Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
562/19.9T8FND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA CATARINA GONÇALVES
Descritores: INSOLVÊNCIA
CASO JULGADO
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
Data do Acordão: 12/03/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CASTELO BRANCO - FUNDÃO - JUÍZO COMÉRCIO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 3, 20, 27, 39 Nº7,230, 238 CIRE, 580, 581, 619 CPC
Sumário: I – Depois de ter sido proferida sentença a declarar a insolvência em determinado processo – que, entretanto, foi encerrado – e não estando em causa a situação prevista no artigo 39º, nº 7, alínea d), do CIRE, deve ser liminarmente indeferida – por se configurar a excepção de caso julgado – a petição inicial por via da qual a devedora vem requerer, novamente, a sua declaração de insolvência (para o efeito de usufruir da exoneração do passivo que não havia requerido no processo anterior) invocando apenas a inexistência de qualquer património a liquidar e a impossibilidade de satisfazer determinado passivo que, apesar de não ter sido aí reclamado e reconhecido, já existia à data da anterior declaração de insolvência.

II – Com efeito, se o passivo invocado para fundamentar o pedido de insolvência já existia à data da anterior declaração de insolvência e se nenhum outro activo tiver acrescido àquele que existia naquele momento, a pretensão formulada (delimitada pelo pedido e respectiva causa de pedir) é idêntica àquela que já foi reconhecida e declarada na anterior sentença, uma vez que a concreta situação de insolvência – traduzida pela impossibilidade de o activo assegurar a satisfação do passivo vencido – é exactamente a mesma.

III – Por outro lado, se o passivo invocado para fundamentar o pedido de insolvência já existia à data da anterior declaração de insolvência, os titulares desses créditos eram legalmente considerados como credores da insolvência no âmbito do anterior processo, estando, por isso, habilitados a exercer os seus direitos nesse processo; nessas circunstâncias, o facto de não terem aí reclamado os créditos não obsta a que, no segundo processo instaurado, se conclua pela existência de identidade de sujeitos que é pressuposto de funcionamento da excepção de caso julgado.

IV. A exoneração do passivo está sempre dependente da existência de um processo de insolvência – não correspondendo, portanto, a uma pretensão que possa ser formulada de forma autónoma – e pressupõe, naturalmente, que esse processo esteja em condições de ser admitido e que nele venha a ser declarada a insolvência do devedor; nessas circunstâncias, sendo liminarmente indeferido o pedido de declaração de insolvência, também não poderá ser admitido o pedido de exoneração do passivo.

Decisão Texto Integral:








Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

M (…), residente em (…) , veio apresentar-se à insolvência e requerer a exoneração do passivo restante.

Alegou, para o efeito:

- Que, ainda no estado de casada (antes, portanto, de 22/10/2013) foi proprietária, em nome individual, de dois estabelecimentos comerciais;

- Que, no âmbito dessa actividade profissional, contraiu dividas a M (…) Lda e J (…) no valor global de 18.559,79 €;

- Que não consegue cumprir essas obrigações que estão a ser reclamadas, apesar de ter celebrado acordos de pagamentos, sendo certo que apenas aufere o vencimento mensal de 600,00€ e não dispõe de outros bens ou rendimentos;

- Que acabou por fechar os mencionados estabelecimentos comerciais, o que agravou a sua difícil condição económica, acabando por incumprir com os acordos de pagamento entretanto celebrados, encontrando-se em situação de insolvência;

- Que já foi declarada insolvente por sentença proferida em 22/07/2013, mas nunca beneficiou da exoneração do passivo restante.

Depois de ter sido junta aos autos certidão da petição inicial e da sentença proferida no âmbito do processo de insolvência n.º 742/13.0TBCTB que havia corrido termos no mesmo Juízo e depois de observado o contraditório no que toca à eventual verificação da excepção dilatória de caso julgado, foi proferida decisão que, com fundamento nessa excepção, indeferiu liminarmente o pedido de declaração de insolvência que havia sido apresentado.

Inconformada com essa decisão, a Requerente veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

1. A Autora, ora Recorrente, apresentou-se à insolvência com pedido de exoneração do passivo restante, cumprindo todas as condições exigidas pela lei.

2. O Legislador não nega o acesso ao instituto da Insolvência às pessoas já declaradas insolventes.

3. No pedido de insolvência devem ser valoradas as circunstâncias que nortearam a atual situação de insolvência, ao momento da sua apreciação, verificando-se se a Autora/Recorrente se encontra ou não em situação de insolvência, sempre em respeito pelos pressupostos a que se reporta o artigo 238º do CIRE.

4. Aliás, é o próprio Legislador que, no artigo 238º al. c) do CIRE, "a contrario sensu" admite a renovação do pedido de exoneração do passivo restante desde que o mesmo não tenha sido decretado nos 10 anos anteriores ao início ao processo de insolvência em que tenha sido apresentado.

5. Nas insolvências onde não haja pedido de exoneração do passivo restante, não há qualquer impeditivo temporal, mas existe o condicionalismo previsto no artigo 39.º, n.º 7, alínea d) do CIRE.

6. No entanto, a Recorrente beneficia de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento da taxa de justiça e demais encargos do processo.

7. O direito de acesso aos tribunais, pelo princípio da tutela jurisdicional efetiva, encontra-se consagrado nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, ambos da Constituição da República Portuguesa.

8. Esta garantia consagrada na Constituição da República Portuguesa impede que o acesso aos Tribunais não seja dificultado em função da condição económica das pessoas.

9. Garantia que, no caso vertente, foi concretizada na concessão de apoio judiciário.

10. A norma, prevista no artigo 39.º, n.º 7, alínea d) do CIRE, ora em questão, obstaculiza o funcionamento da garantia constitucional e compromete a finalidade para a qual foi instituída.

11. Assim, o condicionalismo previsto no artigo 39.º, n.º 7, alínea d) do CIRE, é inaplicável nos presentes autos, por violar do princípio da tutela jurisdicional efetiva, consagrado nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, ambos da Constituição da Republica Portuguesa. (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional, 2.ª secção, n.º 440/2012, de 31 de Outubro, disponível em: Diário da República, 2.ª série – N.º 211 – 31 de outubro de 2012, pp. 36005 e 36006)

12. No caso em apreço, embora a Recorrente já tenha sido declarada insolvente no passado, esse facto não é impeditivo para a sua declaração de insolvência atual.

13. Assim, serão relevantes apenas os circunstancialismos que norteiam a situação da Recorrente atualmente, veja-se que dentro destes circunstancialismos se enquadra uma realidade antes desconhecida e que agora também há-de ser relevante para a apreciação do presente pedido de insolvência.

14. Entenda-se que com os presentes autos não se pretende que o Tribunal declare a Recorrente insolvente à data de 2013.

15. A declaração de insolvente com pedido de exoneração do passivo restante, terá apenas em consideração os circunstancialismos atuais, sem nenhuma correspondência a anteriores decisões.

16. Neste sentido, não se verificar qualquer exceção de caso julgado, desde logo, porque a sentença de insolvência prolatada há mais de cinco anos não faz qualquer caso julgado material ou formal nos presentes autos, nomeadamente, quanto aos circunstancialismos de vida da Recorrente, que fazem parte da sua vivência, nem quanto à declaração de insolvência em si, pois não consubstancia qualquer facto essencial, ou mesmo instrumental, para a decisão do pleito.

17. Aliás, os sujeitos processuais nem sequer são os mesmos.

18. Dúvidas não restam que a Recorrente se encontra em situação de Insolvência, pois, por um lado, apresenta uma condição económica débil, que justificou a atribuição do apoio judiciário, nas modalidades de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo e nomeação e pagamento da compensação de patrono, por outro lado, tem um passivo enorme, que a irá deixar “ad aeternum” nessa condição.

19. Deixar a pessoa singular em situação de insolvência “ad aeternum” é uma solução contrária aquela que o Legislador introduziu no nosso ordenamento jurídico, aquando adotou a doutrina do “fresh start” ou do novo começo, no sentido de permitir uma segunda oportunidade às pessoas singulares.

20. Assim, estando em causa uma pessoa singular, não deve prevalecer a solução economicamente mais favorável, pelo contrário, deverá aplicar-se aquela que melhor se coadune na defesa dos direitos constitucionalmente consagrados na Constituição da República Portuguesa, dentro dos limites que a Lei estabelece.

21. Pelo exposto, o douto despacho recorrido, viola na sua fundamentação princípios consagrados na Constituição da República Portuguesa e adota uma solução que não encontra enquadramento legal, pelo contrário, segue um caminho contrário aquele que o Legislador optou.

22. Em suma, neste processo de insolvência tudo é diferente, sem que exista nenhuma relação com o anterior processo de 2013, nomeadamente, os sujeitos são diferentes, as dividas são diferentes, a realidade em torno da Requerente, ora Recorrente, é diferente, ou seja, este processo versa sobre uma realidade totalmente nova.

23. Pelo exposto, o douto despacho violou os artigos: 20.º, 264, ambos da CRP e 27.º e 28.º, também ambos do CIRE, pelo que, deve o mesmo ser revogado e em consequência, deve a petição inicial ser admitira e o processo seguir os seus termos até final.

Não foram apresentadas contra-alegações.


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II.

Questão a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – a questão a apreciar e decidir consiste, fundamentalmente, em saber se está (ou não) configurada a excepção de caso julgado e se, como tal, a petição inicial deve (ou não) ser liminarmente indeferida.


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III.

Na decisão recorrida foram consignados os seguintes factos (resultantes das pesquisas oficiosamente efectuadas pela Secretaria, da análise do assento de nascimento da Requerente e da certidão extraída do processo n.º 742/13.0TBCTB):

1. A Requerente foi já declarada insolvente no âmbito do processo n.º 742/13.0TBCTB, por sentença proferida a 22/07/2013, o qual veio a ser encerrado, por decisão de 16/01/2014, por insuficiência da massa para pagamento das custas do processo e demais dívidas da massa.

2. Nos referidos autos e ao contrário do que sucede nos presentes, não foi requerida e, consequentemente, não foi apreciada a exoneração do passivo restante.

3. No referido processo n.º 742/13.0TBCTB, a insolvência da aqui Requerente foi peticionada pela sociedade B (…), Lda., constando como créditos reconhecidos, o Banco (…), S.A.; a B (…), Lda.; a C (…); o I (…) a T (…) e a O (…), S.A..

4. Nos presentes autos foram indicados dois novos credores: M (…), Lda. e J (…)

5. O único activo indicado pela requerente, nos presentes autos, corresponde ao seu vencimento mensal, no valor de 600,00 Euros.


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IV.

Conforme resulta dos factos supra enunciados, a Requerente/Apelante foi declarada insolvente no âmbito do processo n.º 742/13.0TBCTB, por sentença proferida a 22/07/2013, o qual veio a ser encerrado, por decisão de 16/01/2014, por insuficiência da massa para pagamento das custas do processo e demais dívidas da massa.

A Apelante veio agora instaurar novo processo peticionando a declaração da sua insolvência e o que importa saber – é esse o objecto do recurso – é se ocorre ou não a excepção de caso julgado. A decisão recorrida entendeu que sim e, como tal, indeferiu liminarmente aquela pretensão ao abrigo do disposto no artigo 27º, nº 1, alínea a), do CIRE[1], sustentando a Apelante que não se verifica a aludida excepção, uma vez que os sujeitos processuais não são os mesmos, as dívidas são diferentes e a realidade em causa no presente processo é totalmente nova e diferente daquela que ocorria no processo anterior.

Analisemos, então, a questão

De acordo com o disposto no art. 580º, nº 1, do Código de Processo Civil, a excepção de caso julgado pressupõe a repetição de uma causa depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário.

E, dispõe o art. 581º do mesmo diploma, “repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir”.

Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica” (nº 2 do citado art. 581ºº); “há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico” (nº 3 da citada norma) e “há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico” (nº 4 da mesma disposição legal).

A excepção de caso julgado assenta na força e autoridade da sentença transitada em julgado que é consagrada no art. 619º nº 1 onde se dispõe: “transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica tendo força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos arts. 580º e 581º…”. Ainda que também se possa impor na sua vertente positiva – por via da autoridade do caso julgado, vinculando o tribunal e as partes a acatar o que aí ficou definido em quaisquer outras decisões que venham a ser proferidas – o caso julgado também se impõe na sua vertente negativa, por via da excepção de caso julgado no sentido de impedir a reapreciação da relação ou situação jurídica material que já foi definida por sentença transitada. E, enquanto excepção que obsta à reapreciação da relação ou situação jurídica material que já foi definida por sentença transitada (cfr. artigos 576º, nº 2, e 577º, alínea i), do CPC), o caso julgado pressupõe a verificação da tríplice identidade (de sujeitos, de pedido e de causa de pedir) que é exigida pelo citado artigo 581º.

Importa, portanto, saber se existe (ou não) identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir entre a presente acção e a que correu termos em momento anterior e, na análise dessa questão, importa não perder de vista os fins visados pela aludida excepção e que se reconduzem a evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior (cfr. artigo 580º, nº 2, do CPC).

Comecemos, então, por saber se existe identidade de sujeitos.

A Apelante sustenta que não, dizendo que os credores são diferentes. Mas, salvo o devido respeito, não lhe assiste razão.

A questão de saber se existe identidade de sujeitos (identidade que, segundo dispõe o citado artigo 581º, nº 2, ocorre quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica) reveste, na nossa perspectiva, algumas especificidades no âmbito do processo de insolvência.

O processo de insolvência – nos termos em que está legalmente configurado – inicia-se com uma fase (a que poderemos chamar declarativa[2]) que se destina a verificar se existe situação de insolvência e a declarar (ou não) tal insolvência. Nessa fase, o processo desenrola-se apenas entre o devedor e o credor requerente ou apenas com a intervenção do devedor quando é este que se apresenta à insolvência – cfr. artigos 27º a 35º – e, se terminar com uma sentença que indefira o pedido de declaração de insolvência, não haverá intervenção de outros credores, importando notar que, em conformidade com o disposto no artigo 45º, apenas o requerente pode reagir (mediante recurso) contra essa sentença.

No entanto, se essa fase inicial culminar com uma sentença de declaração de insolvência, o processo passará a assumir diversos contornos, assumindo-se, a partir daí como um processo de execução universal (cfr. artigo 1º, nº 1) que, além de abranger todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que venham a ser adquiridos na pendência do processo (património que passa a integrar a massa insolvente) – cfr. artigos 46º, nº1, e 149, nº 1 –, é dirigido a todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração ou tenham sido adquiridos no decorrer do processo – cfr. artigos 47º, nº 1 e nº 3. Todos esses credores são legalmente considerados como credores da insolvência (cfr. citado artigo 47º) que, nessa qualidade, estão habilitados a intervir nos autos, exercendo os seus direitos e reclamando os seus créditos no processo.

Sendo expressamente considerados como credores da insolvência, parece dever concluir-se que todos esses credores são considerados, pelo menos em abstracto, como sujeitos processuais, independentemente de terem efectiva intervenção no processo e independentemente de terem reclamado e obtido reconhecimento do seu crédito (ainda que esta reclamação e consequente reconhecimento do crédito seja condição necessária para a efectiva satisfação dos seus direitos no âmbito do processo). Veja-se que, em conformidade com o disposto no artigo 217º, nº 1, com a sentença de homologação do plano de insolvência produzem-se as alterações dos créditos sobre a insolvência introduzidas pelo plano de insolvência, independentemente de tais créditos terem sido, ou não, reclamados ou verificados e, de acordo com o disposto no artigo 245º, nº 1, a exoneração do devedor importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados. Significa isso, portanto, que, ainda não tenham reclamado e obtido o reconhecimento dos seus créditos, os credores da insolvência (ou seja, os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração ou tenham sido adquiridos no decorrer do processo) não deixam, de algum modo, de ser considerados como sujeitos processuais no âmbito do processo de insolvência e não deixam de ficar sujeitos aos efeitos que dele emergem para os credores. Tais credores são destinatários da citação – efectuada por edital e anúncio nos termos do artigo 37º, nº 7 – para exercerem os seus direitos no processo o que, só por si, já lhes confere, pelo menos em abstracto, a qualidade de sujeitos processuais, ainda que a satisfação dos seus direitos e o direito de efectiva participação no processo fique dependente do facto de reclamarem os respectivos créditos.

No caso em análise, a Requerente/Apelante relaciona apenas dois credores: M (…), Ldª (titular de um crédito no valor de 14.119,79€) e J (…) (titular de um crédito no valor de 4.440,00€).

Tais créditos não foram reconhecidos no anterior processo de insolvência. No entanto e na sequência das considerações supra efectuadas, o facto de esses créditos não terem sido reconhecidos no anterior processo de insolvência não obsta à verificação da identidade de sujeitos em ambos os processos.

Na verdade, é a própria Requerente que reconhece que esses créditos – apesar de não terem sido reclamados e reconhecidos no anterior processo de insolvência – já existiam à data em que foi declarada a insolvência, alegando, na petição inicial, que tais dívidas foram contraídas antes do seu divórcio – ocorrido em Outubro de 2013 – e juntando, inclusivamente, um acordo de pagamento celebrado com um desses credores e que está datado de Maio de 2010. Essa situação é também reconhecida no documento nº 12 junto com a petição inicial (onde explica as causas da situação de insolvência) e nas alegações do presente recurso, onde a Apelante afirma, designadamente, que não contraiu novas dívidas. Significa isso, portanto, que, à luz do disposto no artigo 47º, esses credores eram credores da insolvência no âmbito do primeiro processo de insolvência; nessa qualidade, eram destinatários da citação – efectuada por edital e anúncio nos termos do artigo 37º, nº 7 – para exercerem os seus direitos no processo e a circunstância de não terem aí reclamado os seus créditos não altera o facto de que, naquela qualidade de credores da insolvência, devem ser considerados como sujeitos do processo, designadamente para efeitos de caso julgado.

Concluímos, portanto, em face do exposto, pela existência de identidade de sujeitos em ambos os processos.

Vejamos agora se existe identidade de pedido e causa de pedir.

Não há dúvida que o efeito jurídico que se pretende obter nesta acção é formalmente idêntico àquele que se pretendia obter – e foi efectivamente obtido – na anterior acção: a declaração de insolvência. Mas essa identidade formal não equivale necessariamente a uma identidade material, uma vez que a declaração de insolvência com referência a uma determinada realidade ocorrida em determinado momento temporal não corresponde, em termos substanciais, à declaração de insolvência com referência a realidade diferente e ocorrida em qualquer outro período temporal; ainda que formalmente idênticos, os efeitos jurídicos que se pretendem obter em cada uma dessas situações são substancialmente diferentes porque se reportam a realidades diferentes e ocorridas em momentos temporais distintos. Será, portanto, a causa de pedir de cada uma dessas pretensões que nos permitirá aferir se o efeito jurídico e a concreta pretensão que se pretende obter nesta acção é idêntica àquela que já foi obtida na anterior acção.

Dispondo o artigo 3º, nº 1, que se considera em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas, impõe-se concluir que a verificação (ou não) dessa situação há-de ser uma constatação a retirar, sobretudo, da comparação entre o activo e o passivo vencido do devedor, ainda que possam existir outras circunstâncias que também relevem para apurar se o devedor está ou não impossibilitado de cumprir aquelas obrigações. Daí que a causa de pedir do pedido de declaração de insolvência corresponda, por regra, ao concreto passivo e activo que exista em determinado momento temporal e à impossibilidade de o activo do devedor lhe permitir cumprir o passivo que nesse momento se encontra vencido. E se é certo que o pedido de declaração de insolvência poderá radicar apenas num dos factos que se encontram previstos no artigo 20º, nº 1, também é certo que tal acontece porque tais factos são legalmente considerados como factos índice ou factos que indiciam a situação de insolvência, ou seja, a impossibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações vencidas.

Nestas circunstâncias, poder-se-á concluir que a pretensão de ver declarada a insolvência nos presentes autos será idêntica à pretensão já obtida na acção anterior se a realidade a que se reporta – balizada pelo activo e pelo passivo existente e pela impossibilidade de esse activo assegurar a satisfação do passivo – for a mesma, ou seja, se o passivo em questão for o mesmo que já existia à data da anterior declaração de insolvência e se nenhum outro activo tiver acrescido àquele que existia naquele momento.

Ora, à luz dessas considerações, pensamos ser de concluir que a pretensão formulada nos autos é, efectivamente, idêntica à pretensão que já foi obtida na acção anterior por via da declaração de insolvência.

Na verdade e conforme dissemos supra, o passivo agora invocado já existia à data em que foi declarada a insolvência no anterior processo e a Requerente/Apelante não alega ter adquirido qualquer outro património. Ou seja, a situação de insolvência que é invocada nos presentes autos é a mesma que já se configurava no primeiro processo, na medida em que se reconduz à impossibilidade de cumprir obrigações que já existiam naquela data; tal impossibilidade é – continua a ser – a mesma que existia anteriormente e que fundamentou a declaração de insolvência no anterior processo sem que tivesse ocorrido qualquer outro facto (pelo menos não foi alegado) que fosse susceptível de determinar qualquer alteração da situação.

Nessas circunstâncias, pensamos que está, efectivamente, configurada a excepção de caso julgado. A concreta situação de insolvência que é invocada nos autos é a mesma que esteve subjacente à declaração de insolvência no anterior processo, sem que tivesse existido qualquer alteração relevante (não é invocada a constituição de novas dívidas e não é invocada a existência de qualquer património a liquidar) que pudesse justificar e conferir alguma utilidade a uma nova declaração de insolvência.

Note-se que não estamos a dizer que uma pessoa declarada insolvente não possa voltar a ser declarada insolvente, sendo certo que nada na lei o impede. Mas, para que tal aconteça, é necessário que esteja em causa uma realidade fáctica diferente que configure uma situação de insolvência distinta (porque se reporta a momento temporal distinto e envolve passivo ou activo diferentes e não coincidentes com os que existiam à data da anterior declaração de insolvência). Não é isso que acontece na situação dos autos.

E, salvo o devido respeito, não tem fundamento a invocação – feita pela Apelante nas suas alegações de recurso – do disposto no artigo 39º, nº 7, alínea d).

O citado artigo 39º regula a situação em que o juiz tem elementos para concluir – logo no momento em que profere a sentença de declaração de insolvência - que o património do devedor não é presumivelmente suficiente para a satisfação das custas do processo e das dívidas previsíveis da massa insolvente, aí se determinando que o juiz fará menção desse facto na sentença que será proferida com carácter limitado nos termos que aí se encontram previstos, sendo o processo de insolvência declarado findo logo que a sentença transite em julgado. Nesse caso, dispõe o nº 7, d), que “Após o respectivo trânsito em julgado, qualquer legitimado pode instaurar a todo o tempo novo processo de insolvência, mas o prosseguimento dos autos depende de que seja depositado à ordem do tribunal o montante que o juiz razoavelmente entenda necessário para garantir o pagamento das custas e das dívidas previsíveis da massa insolvente…”. É certo, portanto, que se permite a instauração de novo processo com base na mesma situação de insolvência, o que, na prática, equivale a dizer que a sentença proferida nos termos da citada disposição legal não faz caso julgado e, como tal, não impede que, em novo processo, seja formulada idêntica pretensão baseada na mesma causa de pedir. Mas essa é uma situação excepcional que apenas se aplica no caso ali previsto e que encontrará a sua justificação no facto de estar em causa uma sentença que não produz todos os efeitos que são inerentes a uma declaração de insolvência e que, além do mais, se baseia numa presunção de insuficiência de massa que é retirada dos elementos que, à data, estão na disponibilidade do juiz e que poderá não ter efectiva correspondência com a realidade.

Sucede que a sentença que declarou a insolvência da Apelante – no âmbito do processo que correu termos em momento anterior – não foi proferida nos termos da citada disposição legal. Na verdade, essa insolvência foi declarada por sentença proferida a 22/07/2013 (sem qualquer limitação) e só posteriormente – em 16/01/2014 – o processo veio a ser encerrado por insuficiência da massa para pagamento das custas do processo e demais dívidas da massa, em conformidade com o disposto nos artigos 230º, nº 1, alínea d), e 232º. Está em causa, portanto, uma situação diferente daquela que está prevista no citado artigo 39º, não sendo aqui aplicável o disposto no seu nº 7, alínea d).

Concluimos, portanto – como, aliás, já havíamos concluído supra – que está, efectivamente, configurada a excepção de caso julgado, o que obsta à apreciação da pretensão da Requerente/Apelante no sentido de ser declarada a sua insolvência. Tal insolvência – reafirma-se – já foi declarada por sentença proferida em acção anterior, sendo certo que a concreta situação de insolvência que aqui é invocada e que está retratada nos factos alegados na petição inicial é a mesma situação de insolvência que já existia e serviu de fundamento à anterior declaração de insolvência.

Nessas circunstâncias, se viesse a ser proferida nos autos sentença que julgasse improcedente o pedido de insolvência, tal sentença iria contradizer a sentença anteriormente proferida que, relativamente à mesma situação, já havia declarado a insolvência e se aqui viesse a ser proferida sentença a declarar a insolvência ela corresponderia a mera repetição ou reprodução da anterior sentença. E são precisamente essas situações que a excepção de caso julgado pretende evitar, conforme se dispõe no artigo 580º, nº 2, do CPC.

Na verdade, aquilo que está verdadeiramente em causa – já que a Requerente/Apelante não terá qualquer interesse real em ver novamente declarada a sua insolvência – é o pedido de exoneração do passivo restante que a Apelante não formulou no anterior processo e do qual pretende agora usufruir.

Sucede que, como resulta do disposto nos artigos 235º e segs., a exoneração do passivo está sempre dependente da existência de um processo de insolvência – não correspondendo, portanto, a uma pretensão que possa ser formulada de forma autónoma – e pressupõe, naturalmente, que esse processo esteja em condições de ser admitido e que nele venha a ser declarada a insolvência do devedor, situação que aqui não se verifica uma vez que, conforme referimos, ocorre a excepção de caso julgado relativamente ao pedido de declaração de insolvência.

Conforme referimos supra, a situação de insolvência que é invocada nos autos e relativamente à qual se pede a exoneração do passivo é a mesma que fundamentou a declaração de insolvência no âmbito do processo supra mencionado que correu termos anteriormente e, portanto, era no âmbito desse processo que a devedora – ora Apelante – tinha que formular o pedido de exoneração do passivo (e ainda assim tinha que o fazer necessariamente até à assembleia de apreciação do relatório, ou, no caso de dispensa da realização desta, após os 60 dias subsequentes à sentença que tenha declarado a insolvência, conforme dispõe o artigo 236º, nº 1). Reafirmamos que o passivo que a Apelante vem agora invocar já existia aquando da declaração de insolvência – pela sentença proferida em 22/07/2013 no âmbito do processo n.º 742/13.0TBCTB – e, portanto, ainda que esse passivo não tivesse sido aí reclamado e reconhecido, ele ficaria abrangido pela exoneração que aí fosse concedida, conforme se determina no artigo 245º, nº 1. Desconhecemos as razões pelas quais a Apelante não pediu tal exoneração no processo anterior e tão pouco sabemos se reunia as condições necessárias para usufruir de tal exoneração. Mas, a mera circunstância de não ter formulado aí esse pedido não lhe dá o direito de vir instaurar novo processo de insolvência tendo como referência a mesma situação de insolvência e com vista à exoneração do passivo que já existia àquela data. Se assim não fosse, o devedor que, à data da declaração da sua insolvência, não reunisse as condições necessárias para usufruir da exoneração do passivo – por se verificar alguma das situações previstas no artigo 238º - poderia contornar essa situação mediante a instauração de novo processo de insolvência com referência à mesma situação de insolvência (mesmo passivo e mesmo activo) no âmbito do qual aquelas circunstâncias já não se pudessem ter como verificadas, o que, evidentemente, não pode ser admitido e consentido. Note-se que não pretendemos dizer que a Apelante fique absolutamente impedida de vir a usufruir da exoneração do concreto passivo que agora vem invocar; pretendemos apenas dizer que, para que tal aconteça, terá que estar configurada uma concreta situação de insolvência que seja distinta daquela que esteve subjacente à anterior insolvência e com base na qual possa vir a ser declarada nova insolvência e a verificação de uma nova e distinta situação de insolvência não implica necessariamente que aquele passivo já esteja extinto.

Assim e em face do exposto, julga-se improcedente o recurso e confirma-se a decisão recorrida.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

I – Depois de ter sido proferida sentença a declarar a insolvência em determinado processo – que, entretanto, foi encerrado – e não estando em causa a situação prevista no artigo 39º, nº 7, alínea d), do CIRE, deve ser liminarmente indeferida – por se configurar a excepção de caso julgado – a petição inicial por via da qual a devedora vem requerer, novamente, a sua declaração de insolvência (para o efeito de usufruir da exoneração do passivo que não havia requerido no processo anterior) invocando apenas a inexistência de qualquer património a liquidar e a impossibilidade de satisfazer determinado passivo que, apesar de não ter sido aí reclamado e reconhecido, já existia à data da anterior declaração de insolvência.

II – Com efeito, se o passivo invocado para fundamentar o pedido de insolvência já existia à data da anterior declaração de insolvência e se nenhum outro activo tiver acrescido àquele que existia naquele momento, a pretensão formulada (delimitada pelo pedido e respectiva causa de pedir) é idêntica àquela que já foi reconhecida e declarada na anterior sentença, uma vez que a concreta situação de insolvência – traduzida pela impossibilidade de o activo assegurar a satisfação do passivo vencido – é exactamente a mesma.

III – Por outro lado, se o passivo invocado para fundamentar o pedido de insolvência já existia à data da anterior declaração de insolvência, os titulares desses créditos eram legalmente considerados como credores da insolvência no âmbito do anterior processo, estando, por isso, habilitados a exercer os seus direitos nesse processo; nessas circunstâncias, o facto de não terem aí reclamado os créditos não obsta a que, no segundo processo instaurado, se conclua pela existência de identidade de sujeitos que é pressuposto de funcionamento da excepção de caso julgado.

IV. A exoneração do passivo está sempre dependente da existência de um processo de insolvência – não correspondendo, portanto, a uma pretensão que possa ser formulada de forma autónoma – e pressupõe, naturalmente, que esse processo esteja em condições de ser admitido e que nele venha a ser declarada a insolvência do devedor; nessas circunstâncias, sendo liminarmente indeferido o pedido de declaração de insolvência, também não poderá ser admitido o pedido de exoneração do passivo.


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V.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas a cargo da Apelante sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido.
Notifique.

Coimbra, 3/12/2019

Maria Catarina Gonçalves ( Relator)

Maria João Areias

Ferreira Lopes


[1] Diploma a que se reportam as demais disposições legais que venham a ser citadas sem menção de origem.
[2] Seguindo a terminologia adoptada por Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 2013, 5ª edição, pág. 15.