Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
310/12.4T3AND-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA PILAR DE OLIVEIRA
Descritores: INQUÉRITO
FALTA
ABERTURA DE INSTRUÇÃO
PROMOÇÃO
MINISTÉRIO PÚBLICO
NULIDADE INSANÁVEL
RECLAMAÇÃO HIERÁRQUICA
Data do Acordão: 11/06/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA (JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE ÁGUEDA)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 262.º, N.º 2, 119.º, ALÍNEA B), E 278.º, DO CPP; ARTIGOS 61.º E 63.º, ALÍNEAS A) E B), DO ESTATUTO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Sumário: I - Embora o Código de Processo Penal não contemple expressamente o que se vem denominando de arquivamento liminar de queixa/denúncia, tem o Ministério Público o dever de assim proceder nas situações em que lhe são participados factos que não constituem crime. Implicitamente tal encontra assento no artigo 262.º, n.º 2 daquele compêndio legislativo.

II - Tendo sido declarada aberta instrução sem ter sido realizado inquérito, verifica-se o vício, de nulidade insanável, previsto no artigo 119.º, alínea b), do CPP, consubstanciado na falta de promoção do processo pelo Ministério Público, que abarca também as realidades em que o processo pura e simplesmente não existe, porque o detentor da acção penal assim decidiu.

III - Por força desta nulidade, é inválido tudo o que for processado após o despacho no sentido do arquivamento e da não realização de inquérito, devendo os autos retornar os Serviços do Ministério Público, para aí continuarem arquivados.

IV - No caso referenciado, o denunciante pode reagir contra o arquivamento, não através de requerimento para abertura da instrução, mas suscitando intervenção hierárquica. Ainda que o artigo 278.º do CPP não contemple a situação em causa, essa possibilidade sempre decorre do poder de emitir ordens e instruções que está cometida ao superior hierárquico nos artigos 61.º e 63.º, alíneas a) e b), do Estatuto do Ministério Público.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

 

I. Relatório

No processo 310/12.4T3AND do Juízo de Instrução Criminal de Águeda, da Comarca do Baixo Vouga, A... denunciou factos praticados por B... e C... que, no seu entender, integrariam a prática de um crime de burla qualificada p. e p. pelo artigo 218º do Código Penal.

O Ministério Público, entendendo que os factos denunciados não integravam a prática de qualquer crime, determinou imediatamente o arquivamento do processo sem a realização de qualquer acto de inquérito.

A... constituiu-se assistente e requereu a realização de instrução, fase processual que foi admitida.

Em 18.4.2013, no decurso da instrução, o Mmº  Juiz proferiu despacho declarando nulo o inquérito nos termos do artigo 120º, nº 2, alínea d) do Código de Processo Penal e ordenando a devolução dos autos aos Serviços do Ministério Público.

Tal despacho é do seguinte teor:

Nos presentes autos o assistente apresentou a queixa constante de fls. 7 e seguintes nos termos da qual conclui, após a descrição dos pertinentes factos que terão conduzido à entrega de certa soma em dinheiro, que «os participados actuaram de livre e espontânea vontade, querendo com o seu comportamento criar prejuízo patrimonial de valor elevado, através do erro e engano em que induziram o participante e tendo-o conseguido e obtendo para eles enriquecimento ilegítimo», imputando aos mesmos a prática de um crime de burla qualificada p. p. art. 218º do CPenal.

Indicou testemunhas e juntou 13 documentos.

O MP sem realização de qualquer diligência de prova proferiu o despacho de arquivamento constante de fls.32, concluindo que os factos descritos «não têm relevo criminal».

Requerida a Instrução pelo assistente veio este requerer a nulidade do Inquérito nos termos do artigo 120º nº 1, d) do CPP.

O arguido B... opôs-se ao pedido sustentando que haveria o assistente que ter suscitado intervenção hierárquica para além de que a procedência da invocada nulidade implicaria que ficasse cerceado de requerer (ele arguido) a abertura da Instrução.

Cumpre apreciar.

Nos termos do invocado artigo 121º nº 1 d) do CPP verifica-se a nulidade do Inquérito quando tiverem sido omitidas diligências que pudessem reputar-se de essenciais para a descoberta da verdade.

No caso dos autos nenhuma diligência de prova foi realizada pelo MP antes do despacha final do Inquérito, sendo certo que havia sido requerida a inquirição de testemunhas e oferecida prova documental.

É certo que a uma simples denúncia não se segue necessariamente a realização de diligências de prova, nomeadamente quando em face dos próprios termos da denúncia se conclui não haver crime. Mas tal omissão só pode ocorrer quando tal conclusão for de tal forma evidente que torne tais diligências absolutamente inúteis.

Ora no caso dos autos não é isso que ocorre. Estão descritos factos na denúncia que a comprovar-se poderão efectivamente traduzir-se em responsabilidade criminal dos denunciados, nomeadamente:

- uma deslocação patrimonial;

- baseada em certos pressupostos que afinal não se verificavam e;

- a criação de um certo contexto meramente aparente de factos potenciadores ou facilitadores daquela deslocação patrimonial.

Tal descrição de factos, aliás com expressa indicação dos elementos subjectivos da infracção, não era susceptível de uma decisão final de Inquérito sem realização de quaisquer diligências de prova estando, por isso, verificado o invocado vício do Inquérito.

Sustenta o arguido B... que teria o assistente que reclamar hierarquicamente e não arguir a nulidade (de resto só depois de alertado) em sede de Instrução. Mas não é assim; a arguição de nulidades do Inquérito pode ser feita em Instrução como expressamente previsto no nº 3 c) do CPP, não havendo qualquer obrigação de reclamação hierárquica prévia. O alerta (mais precisamente convite a esclarecimento) a que se refere o arguido resulta de não ter sido plenamente entendido pelo tribunal o pedido formulado no RAI em face da logo ali antes alegada omissão total de diligências de prova requeridas no Inquérito. E de resto, a arguição de nulidades do Inquérito pode ser requerida (tendo havido lugar a Instrução) até ao encerramento do debate instrutório (art. 121º nº3 c) do CPP), sendo certo que no caso dos autos o mesmo não fora sequer ainda designado.

Por outro lado, diz o mesmo arguido que a procedência da suscitada nulidade vai cercear o seu direito de requerer a abertura da Instrução, mas é precisamente o contrário que se verifica no caso de serem (só agora em Instrução) realizadas as diligências de prova requeridas logo com a queixa pelo assistente implicaria isso sim a impossibilidade de o arguido ver apreciada criticamente uma decisão do titular do Inquérito quanto à existência ou inexistência de indícios suficientes através da Instrução que viesse a requerer no caso do MP após a realização das pertinentes diligências de prova, entendesse deduzir acusação. Efectivamente sendo tais diligências feitas em sede de Instrução (em vez de serem previamente realizadas no Inquérito) o despacho será o de não pronúncia ou de pronúncia e, nesta última hipótese, não poderá o arguido requerer a abertura de Instrução porque já realizada a pedido do assistente,

Acresce que, como expressamente decorre do artigo 286° nº 1 do CPP, a Instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o Inquérito e não a realização de novo Inquérito ou de Inquérito paralelo com repetição das diligências efectuados ou realização de diligências omitidas, pertinentes e tempestivamente requeridas no decurso do Inquérito.

Entendimento diverso implicaria a subtracção da acção penal ao seu titular legalmente reconhecido (o MP) bem como a supressão, por impossibilidade (como atrás descrito) da faculdade do arguido requerer a abertura da Instrução visando a comprovação judicial da decisão do MP quanto aos inícios recolhidos.

Em conclusão, verifica-se a invocada nulidade uma vez que no Inquérito não foram realizadas quaisquer diligênci3s de prova, nomeadamente, as requeridas pelo assistente na queixa por si apresentada, diligências que eram necessárias à atenção da responsabilidade penal imputada aos denunciados, nulidade que foi adequada e tempestivamente arguida.

Face ao exposto decide-se:

Julgar procedente a invocada nulidade e, em consequência, declarar nulo o Inquérito por verificação da nulidade a que se refere o artigo 120 n.º 2 d) do Código de Processo Penal.

Notifique e, após trânsito, devolva os autos aos serviços do MP de Anadia.

Inconformado, recorreu o Ministério Público, condensando a sua motivação nas seguintes conclusões:

1a- A... denunciou B... e C..., a quem imputou os factos vertidos a fls. 1 e ss., ora reproduzidos, os quais, em seu entender, poderiam integrar um crime de burla qualificada, p. p. no art. 218º do CP.

2a- Por despacho de abstenção de 9.11.2012, fundamentado, o Ministério Público entendeu estar prejudicada a realização de inquérito, pois que, ainda que tais factos viessem a indiciar-se, não têm dignidade criminal, relevando, outrossim e apenas, em sede cível, vg. no domínio do eventual incumprimento do negócio jurídico - compra e venda de um estabelecimento comercial - e das obrigações daí inerentes para os contraentes.

3a- Inconformado com tal despacho, o assistente requereu a abertura de instrução, pugnando pela pronúncia dos arguidos pelos factos e crime denunciados, que ali imputou;

4a- Remetidos OS autos ao JIC de Águeda, este admitiu tal requerimento e a abertura de instrução pelo suposto crime de burla qualificada por despacho de 5.2.3013;

5ª- Em instrução o assistente invocou a nulidade de insuficiência do inquérito, cfr. art. 1202-d) do CPP e, exercido o contraditório e sem diligências de prova, o MO JIC proferiu o despacho recorrido, de 18.4.2013;

6ª- No qual julgou procedente a invocada nulidade do inquérito por omissão de quaisquer diligências de prova, vg. as requeridas pelo assistente na denúncia e que, na sua óptica, eram necessárias à  aferição da responsabilidade criminal dos arguidos, pelo que, ordenou a devolução dos autos aos Serviços do MP de Anadia para realização de inquérito.

7ª- Ora, tal despacho do JIC, impondo ao MP, e à sua revelia, a tramitação de um inquérito e a realização potestativa de diligências concretas que este antes declinara por despacho fundamentado, violou ostensivamente o quadro Constitucional, estatutário e legal que enforma o Ministério Público, como único titular da acção penal que é, e não o JIC, e a quem cabe exclusivamente a direcção funcional do inquérito, violando ainda o princípio do acusatório;

8ª-· Estando, por isso, a intervenção do JIC, em sede de inquérito, limitada à prática ou autorização dos actos previstos nos arts. 268° e 269° do CPP, que contendem com os direitos, liberdades e garantias, não lhe cabendo imiscuir-se, como fez, na direcção funcional do inquérito, que apenas compete ao titular da acção penal e ainda que discorde dos fundamentos de tal despacho;

9ª- O despacho recorrido, com o devido respeito, é ainda tributário da filosofia subjacente ao há muito defunto CPP de 1929, em que a intervenção do MP na instrução preparatória era controlada/sindicada pelo juiz;

10ª- Mas mais: tal despacho do JIC, e com o mesmo respeito, atravessou-se nas funções que no caso apenas competiam ao imediato superior hierárquico do Magistrado que proferiu o despacho de abstenção, nos termos do art. 278° do CPP, único que o podia censurar e, por isso, ordenar-lhe a realização do inquérito preterido e, a final, a eventual dedução de acusação em função dos indícios recolhidos;

11ª- Ao contrário do que ressuma do despacho recorrido, que parece ressumar de uma leitura desatenta do art. 278°-2 do CPP, a intervenção hierárquica e a instrução não são alternativas, nem equivalentes funcionais e muito menos relevam de uma mera opção do assistente (ou do arguido, se for o caso), pois que, como é bom de ver, têm campos de aplicação processual muito diversos, embora a opção por um deles exclua o outro.

12ª- Para significar que mal andou o assistente ao requerer a abertura de instrução no caso em apreço, em que não houve lugar a inquérito, pois que, não podendo aquela substituir-se a este, tal fase processual facultativa não está talhada para acudir à sua pretensão, pelo que, deveria ele antes ter lançado mão da intervenção hierárquica, o que não fez;

13ª- E mal andou igualmente o JIC, ao admitir uma instrução estéril, inviável e sem debate instrutório - que, aliás, sempre seria obrigatório, cfr. art. 289°-1 do CPP - como depois constatou quando devolveu os autos ao MP, o que fez à revelia da sua finalidade e âmbito, pelo que, deveria ter sido liminarmente rejeitado o requerimento do assistente para o efeito, por inadmissibilidade legal da instrução, cfr. art. 287°-3 do CPP, posto que não tinha havido sequer lugar a inquérito;

14ª- O MP, no despacho de abstenção que proferiu, explicitou de facto e de direito as razões pelas quais estava prejudicada a realização de inquérito, que omitiu in tottum, pelo que, como único titular da acção penal, apenas sindicado hierarquicamente nessa aferição, mas sempre no âmbito do MP, não cometeu a nulidade prevista no art. 1200-2-d) do CPP;

15ª- Pois que, não se tratou de caso de insuficiência de inquérito; não omitiu ele nenhum acto legalmente obrigatório, nem omitiu diligências essenciais à descoberta da verdade;

16ª- Tal como não extraiu o JIC da declarada nulidade - nem o poderia fazer por não quadrar com a situação em apreço - os efeitos legais previstos no art. 122° do CPP, pois que, não tendo havido inquérito, nenhum acto concreto foi declarado nulo ou ordenada a sua repetição, como seria mister ... !

17ª- O despacho recorrido sucumbiu à crítica ( injusta) que fez ao arguido B... na sua douta e certeira oposição, ou seja, acabou por subtrair o exercício da acção penal ao seu titular, o MP e não o JIC, reitera-se, impondo-lhe a realização de um inquérito criminal com diligências concretas requeridas pelo denunciante que o MP já havia declinado fundamentadamente no despacho de abstenção.

18ª- Violou, pois, entre outros, os arts. 219°-1 e 32°-5 da CRP; 1°, 2°, 3°-1-c) h) do EMP, aprovado pela L. 60/98 de 27.8; 48°, 53°, 120º-2-d), 122°, 241°, 262°, 263°, 267° a 269°, 278°, 286º e 287°-3, todos do CPP.

Termos em que,

Se Vas. Exas. revogarem o despacho recorrido e o mandarem substituir por outro, que decline a abertura da instrução, por inadmissibilidade legal, remetendo o assistente, de acordo com a pretensão vertida no seu requerimento, para o instituto da intervenção hierárquica previsto no art. 278° do CPP, será feita a habitual, JUSTIÇA!

 

Notificados os arguidos e o assistente, não responderam ao recurso.

 

O Mmº Juiz a quo admitiu o recurso e exarou a seguinte sustentação:

O despacho recorrido não é, como alegado no recurso, tributário de concepção ancorada no CPP de 1929. É precisamente o contrário; não se pode pretender que a Instrução se transforme em sucedâneo do Inquérito, realizando nesta sede todas as diligências que ali não foram realizadas por força de um despacho de arquivamento sem produção de quaisquer diligências de prova anteriores.

Em momento algum se afirma no despacho recorrido quais as diligências a realizar no Inquérito, o que se diz (e reafirma) é que a Instrução visa a comprovação judicial da decisão do MP sujeitar ou não a causa a julgamento o que pressupõe, salvo razões de natureza adjectiva que no caso não se colocam, a análise crítica da decisão do MP quanto à existência ou não de indícios suficientes após as diligências que entenda pertinentes, juízo crítico que fica cerceado quando no despacho final do Inquérito nenhuma apreciação se faz sobre tais indícios em face da total omissão de quaisquer diligências de prova.

Também não se concorda com o entendimento de que exista uma espécie de precedência obrigatória da reclamação hierárquica sobre a Instrução quando se pretenda arguir nulidade do Inquérito por omissão de diligências de prova essenciais. As nulidades são sempre judicialmente invocáveis desde logo de modo a permitir a sua análise em sede de recurso e o Juiz competente para praticar actos jurisdicionais na fase do Inquérito é o Juiz de Instrução. Acresce que a lei prevê expressamente a possibilidade de arguição de nulidades do Inquérito durante a fase da instrução - art. 120º nº 3 c) do CPP, E, de resto é precisamente por esta via que se cumpre a garantia Constitucional de controlo externo (judicial) das decisões finais do MP de submeter ou não a causa a julgamento, pois que, de outro modo (remetendo como se pretende no recurso para a esfera hierárquica) tudo seria decidindo ainda e só dentro do MP,

Uma última nota quando à também chamada à colação omissão do debate instrutório: tendo sido arguida nulidade que, a ser julgada procedente, prejudicaria os actos subsequentes e tendo sido relativamente a todos os sujeitos processuais cumprido o contraditório (e de resto o MP não se opôs à invocada nulidade) a realização do debate tornava-se inútil e, por isso, desnecessária, sobrepondo-se o dever de não realizar diligências inúteis.

Mantém-se assim o despacho recorrido.

 

Nesta Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de que o recurso merece provimento.

Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não tendo ocorrido resposta.

Procedeu-se a exame preliminar e foram cumpridos os demais trâmites legais.

Realizada conferência, cumpre apreciar e decidir.

***

II. Apreciação do Recurso

Como é sabido o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da respectiva motivação (artigos 403º, nº 1 e 412º, nº 1 do Código de Processo Penal) e, vistas essas conclusões, a questão que se coloca para apreciação deste consiste em saber se arquivado o processo liminarmente, logo após a apresentação da queixa e sem a realização de qualquer acto de inquérito, pode ser requerida a instrução e nesta declarar-se nulo o inquérito e ordenar-se a remessa dos autos ao Ministério Público.

Os dados da questão que sucessivamente devem ser apreciados, porque deles resultará a resposta que se pretende, são os seguintes:

- Se o Ministério Público pode arquivar o processo sem dar início ao inquérito propriamente dito, analisando exclusivamente o conteúdo da queixa/denúncia;

- Se perante este despacho de arquivamento pode o denunciante constituído assistente requerer a abertura de instrução.

No caso em apreço o Ministério Público, perante queixa cujo teor entendeu não ser susceptível de integrar a prática de crime decidiu arquivar "liminarmente" a queixa, não determinando por isso a abertura de inquérito propriamente dito. Com efeito, o artigo 262º, nº 1 do Código de Processo Penal define inquérito como "o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação".

  O nº 2 do mesmo preceito, por seu turno, estipula que "ressalvadas as excepções previstas neste Código a notícia de crime dá sempre lugar à abertura de inquérito" (as excepções referem-se às situações/tipos de processos em que não há lugar à realização de inquérito).

Mas se a notícia de um crime deve dar lugar à abertura de inquérito, do mesmo modo uma denúncia de factos que não constituem crime deve dar lugar ao seu arquivamento liminar, não só porque nada haverá a investigar como porque o exige o princípio da legalidade, formulado positivamente no preceito, incumbindo efectuar também a sua formulação negativa que a um código destinado a regular os termos de um processo menos interessava. Da formulação negativa do princípio da legalidade extrai-se quando não deve existir processo.

O princípio da legalidade a que está sujeita a actividade do Ministério Público tanto o obriga a promover o processo penal (pressupondo a sua legitimidade) sempre que adquira notícia de factos que integrem a prática de um crime, como de igual modo o obriga a não promover o processo penal sempre que os factos da denúncia não integram a prática de um crime (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol I, pág 72).

Tal princípio vem, aliás, vertido com a devida proeminência no Estatuto do Ministério Público, logo no seu artigo 1º, nº 2, estando, pois, toda a actividade do Ministério Público sujeita à legalidade e especificamente a acção penal como se preceitua no artigo 3º alínea b).

Assim, embora o Código de Processo Penal não contemple expressamente o que se vem denominando de arquivamento liminar de queixa/denúncia, tem o Ministério Público o dever de assim proceder nas situações em que lhe são participados factos que não constituem crime. Implicitamente tal encontra assento no disposto no artigo 262º, nº 2 do Código de Processo Penal.

Deparamo-nos, assim, com duas perplexidades. O despacho recorrido declara nulo inquérito que não existiu porque o detentor da acção penal não abriu inquérito, sendo certo que decidiu não abrir inquérito no âmbito de uma competência própria. Existiu fase de instrução, sem a fase de inquérito que lhe seria prévia.

Estas perplexidades reconduzem-nos à interrogação sobre se é possível a existência de instrução sem prévio inquérito.

A resposta terá de ser com toda a evidência negativa. Com efeito, o artigo 286º, nº 1 do Código de Processo Penal estipula que " a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento" em estreita conexão com o disposto nos artigos 277º e 283º a 285º do mesmo diploma. E os dois primeiros preceitos que no caso importa convocar especialmente, prevêem o tipo de despachos finais de inquérito; de arquivamento e de acusação que permitem, o primeiro ao assistente, o segundo ao arguido, requerer a instrução em consonância com a previsão do artigo 287º, nº 1.

Verificamos que foi admitida instrução legalmente inadmissível porque não foi realizado inquérito nem proferido nesse âmbito despacho de arquivamento que permitisse ao assistente requerer a abertura de instrução e esses são requisitos bem patentes nos citados artigos 286º, nº 1 e 287º, nº 1, alínea b).

Não está em causa o vício a que alude o artigo 120º, nº 2, alínea d) do Código de Processo Penal (que motivou a prolação do despacho recorrido) de insuficiência do inquérito que, necessariamente, pressupõe que tenha existido inquérito, como também não está em causa o vício de falta de inquérito porque tal pressuporia que devesse ter existido inquérito e a decisão do detentor da acção penal foi precisamente no sentido de que não devia existir inquérito. Trata-se de nulidade relativa a situação em que o detentor da acção penal decida exercê-la; acusando, sem realizar inquérito quando tal é obrigatório (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal em anotação ao artigo 119º).

Diga-se que não havendo inquérito nunca o despacho que decide não abrir inquérito e ordenar arquivamento liminar, poderá  estar sujeito ao controle do juiz pela simples razão de que ao juiz devem apenas chegar processos que tenham sido promovidos pelo detentor da acção penal, seja no sentido de acusar, seja no sentido de arquivar por falta de indícios, seja no sentido de submeter o arguido a julgamento nas formas de processos especiais ou ainda nas situações de suspensão provisória do processo.

Tendo sido declarada aberta instrução sem que o Ministério Público tenha promovido a acção penal através de inquérito, o vício que efectivamente se verifica é o de nulidade insanável prevista no artigo 119º, alínea b) do Código de Processo Penal de falta de promoção do processo pelo Ministério Público que abarca também as situações em que o processo pura e simplesmente não existe porque o detentor da acção penal assim decidiu.

Por força da ocorrência desta nulidade é inválido tudo o que foi processado após o despacho do Ministério Público no sentido do arquivamento e da não realização de inquérito, devendo os autos retornar aos Serviços do Ministério Público para aí continuarem arquivados.

E nenhum acto processual há que repetir porque nenhum devia ter sido praticado sem a necessária promoção processual do Ministério Público.

 

Embora já não contenha relevância para a decisão do recurso, sempre se dirá que o denunciante podia reagir contra o arquivamento, não requerendo instrução, mas suscitando a intervenção hierárquica. Embora o artigo 278º não contemple o caso em apreço, essa possibilidade sempre resultaria do poder de fiscalizar e de emitir ordens e instruções que é cometida ao superior hierárquico nos artigos 61º e 63º, alíneas a) e b) do Estatuto do Ministério Público.

Salva continua, a nosso ver, a possibilidade de requerer a abertura de inquérito nos termos do artigo 279º do Código de Processo Penal por argumento interpretativo de maioria de razão (o que justifica também a pertinência de os autos deverem voltar aos Serviços do Ministério Público). 

Em face do exposto, embora por diferentes razões das alegadas, procede o recurso.

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III. Decisão

Pelo exposto, acordam em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, revogar o despacho recorrido declarando a invalidade de tudo o que foi processado posteriormente ao ordenado arquivamento, devendo os autos retornar aos Serviços do Ministério Público.

Não há lugar a tributação em razão do recurso.

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Coimbra, 6 de Novembro de 2013

(Maria Pilar Pereira de Oliveira - Relatora)

(José  Eduardo Fernandes Martins)