Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1327/12.4TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: SOCIEDADES COMERCIAIS
TRANSMISSÃO DE ACÇÕES
DELIBERAÇÕES SOCIAIS
BONS COSTUMES
NULIDADE
ANULABILIDADE
ACTO PROCESSUAL
LEI APLICÁVEL
Data do Acordão: 03/14/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - JUÍZO COMÉRCIO - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.56, 58, 274, 327 CSC, 12, 334 CC, 590, 591 CPC
Sumário: 1.-A transmissão das acções tituladas e escriturais, fora do mercado bolsista (não integradas em sistema centralizado), só fica perfeita com a entrega (acções tituladas ao portador), a declaração de transmissão escrita no título (acções tituladas nominativas), ou o registo em conta (acções escriturais).

2.- Estes actos não bastam, só por si, para operar a transmissão, que exige uma justa causa de atribuição, ou seja, que eles se apoiem num título válido, num negócio jurídico, o negócio causal subjacente.

3.- Quanto às deliberações enunciadas no art.º 56º, n.º 1, alínea d), do CSC, ou seja, deliberações cujo conteúdo seja ofensivo dos bons costumes, é corrente o entendimento de que as mesmas se traduzem em comportamentos chocantes, numa perspectiva social, designadamente instigando a prática de actividades consideradas ilícitas (v. g., uma deliberação que vise facilitar a prática da prostituição ou que incentive ou permita que os administradores da sociedade paguem “luvas” a determinada entidade pública).

4. -O CSC prevê a nulidade da deliberação ofensiva dos bons costumes unicamente pelo seu conteúdo, reservando para a anulabilidade aquelas que só os ofendem pelo seu fim ou pelo seu modo de realização.

5.- Os diversos actos processuais devem ter como lei reguladora a lei vigente ao tempo da sua prática.

Decisão Texto Integral:





            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:         
           

I. A (…) intentou a presente acção declarativa contra R (…), S. A., pedindo que seja:

- Declarada a nulidade da deliberação social da Ré tomada em assembleia geral realizada, mas não convocada, no dia 31.3.1997;

- Declarada a nulidade da deliberação social da Ré tomada em assembleia geral realizada, mas não convocada, no dia 15.7.1997;

- Declarada a nulidade de todas as deliberações sociais da Ré tomadas em assembleias gerais realizadas subsequentemente, mas não convocadas;

- Declarada a inexistência, em virtude das nulidades supra mencionadas, de todos os actos jurídicos decorrentes e subsequentes às deliberações sociais declaradas nulas nos termos supra descritos;

- Autorizada uma mudança na ordem jurídica consubstanciada na reposição da situação societária da Ré existente no momento imediatamente anterior à primeira das deliberações nulas (assembleia geral de 31.3.1997), aqui se abrangendo, designadamente, a confirmação da titularidade da A. sobre 1 000 acções representativas do capital social da Ré;

- Determinada a concretização de todos os actos tendentes à reposição daquela situação material originária.

Alegou, em síntese: aquando da constituição da Ré subscreveu 1 000 acções representativas do capital social, nunca tendo alienado a sua participação a favor do accionista M (…), nem de qualquer outra pessoa; as assembleias gerais da Ré de 31 de Março e 15.7.1997 iniciaram-se e concluíram-se de modo irregular, porque sem convocatória e sem a presença da A.; as deliberações tomadas nas sucessivas assembleias gerais traduzem a execução de uma estratégia eticamente muito reprovável e atentatória da moral social; com esta estratégia, pretendia o administrador da Ré enriquecer o seu actual clã (constituído por si, pela sua actual companheira e pelo seu filho menor), à custa da A. e da sua filha, excluídas da sociedade por falsificações e meios verdadeiramente fraudulentos; deste modo, as deliberações sociais da Ré ofendem clamorosamente os bons costumes nos termos do art.º 56º, n.º 1, al. d) do Código das Sociedades Comerciais (CSC).

A Ré contestou por excepção e impugnação - excepciona a ilegitimidade da A. alegando que a acção de declaração de nulidade de deliberações sociais deve ser proposta por quem seja accionista da Ré e a A. não prova por qualquer meio idóneo que, no momento imediatamente anterior à referida assembleia geral fosse efectivamente titular daquelas acções, nem junta aos autos qualquer prova da posse e titularidade das acções; diz desconhecer se a A. alienou ou não, cedeu a terceiro ou não, a título oneroso ou gratuito, total ou parcialmente, a participação em causa ou o exercício dos respectivos direitos sociais; refere ainda que as assembleias gerais da Ré de 31.3.1997 e 15.7.1997 reuniram com a totalidade do capital social presente e todos os accionistas manifestaram vontade de que a assembleia se constituísse e deliberasse sobre todos os assuntos objecto de deliberação; as deliberações quanto ao conteúdo não ofendem os bons costumes, sendo por isso insusceptíveis de gerar a alegada nulidade; a existir tal ofensa, a deliberação em causa seria geradora de anulabilidade, e não de nulidade (art.º 58º, n.º 1, al. b) do CSC); à data da propositura da acção, o direito à eventual instauração de acção que pretendesse a declaração de anulação da deliberação social, sempre estaria precludido; não corresponde à verdade que as deliberações postas em crise pela A. sejam apropriadas para a satisfação dos propósitos de um dos accionistas e para, através do exercício do direito de voto, conseguir vantagens especiais para esse accionista ou para terceiros, em prejuízo da sociedade ou de outros accionistas; se se entendesse que as deliberações tomadas na assembleia geral de 15.7.1997 eram nulas, ainda assim o aumento da capital realizado por escritura de 26.8.1997 manter-se-ia plenamente válido - nesta assembleia geral não se delibera a realização de qualquer aumento de capital, sendo que o aumento de capital em 25 000 000$00 foi uma decisão da Administração, nos termos da autorização que lhe é conferida pelo art.º 5º, n.º 2, dos Estatutos da Sociedade; a realização da reunião de assembleia geral da Ré de 15.7.1997 não era uma exigência legal, mas apenas pretendia traduzir o reforço de informação aos accionistas da Ré; a deliberação de concessão de poderes ao administrador único para outorgar a escritura é uma redundância em face do que dispõe o art.º 85º, n.º 5 do CSC; a A. actua com o abuso de direito, porquanto vem invocar agora a nulidade da deliberação e pretende com essa nulidade declarar nulo o aumento do capital social deliberado pela administração, situação que conhecia desde 1997, de acordo com a carta que endereçou à Ré.

Concluiu a Ré pela sua absolvição da instância ou do pedido e pediu a condenação da A. como litigante de má fé.

A A. respondeu à matéria de excepção e ao pedido de condenação como litigante de má fé, e invocou a falsidade das listas de presenças anexas às actas.

Foi proferido despacho saneador que julgou improcedente a excepção de ilegitimidade da A. e seleccionou-se a factualidade relevante (assente e controvertida), desatendendo-se a reclamação da A. (fls. 571 e 662 a 666).

A A., ampliando o pedido, requereu a declaração de nulidade da deliberação social da Ré tomada em assembleia geral realizada no dia 21.9.2012 e dos actos jurídicos decorrentes da mesma (aumento do capital social e alteração dos estatutos da sociedade), com a seguinte fundamentação: a assembleia geral da Ré realizou-se sem ter sido convocada e não estiveram presentes ou representados todos os accionistas, ofendendo-se clamorosamente os bons costumes; teve conhecimento da referida assembleia por consulta à certidão comercial permanente da Ré efectuada em Maio de 2013; embora a assembleia tenha sido publicada no Portal da justiça no dia 27.7.2012, os estatutos da sociedade prevêem que a convocatória para a assembleia geral se faz por publicação e, enquanto as acções forem nominativas, por carta registada dirigida aos accionistas, expedida para a morada constante do livro de acções ou da conta de acções escriturais; as acções que representam o capital social da Ré são nominativas pelo que a convocatória para qualquer assembleia geral se faz pelo envio da carta registada dirigida aos accionistas paras as respectivas moradas e sendo a A. accionista da Ré e não tendo recebido qualquer carta registada contendo convocatória para a dita assembleia geral, a mesma iniciou-se e concluiu-se de modo irregular, porque não foi devidamente convocada nos termos da lei e dos estatutos da sociedade e porque não contou com a presença da A.; a deliberação em causa, à semelhança das demais invocadas na petição inicial, traduz a execução de uma estratégia eticamente reprovável e atentatória do moral social, por via da qual pretende o administrador da Ré, que domina os rumos da sociedade, enriquecer o seu actual clã à custa da A. e da sua filha, excluídas da sociedade por via de falsificações e ilegalidades; há, assim, também nesta deliberação social, um substrato manifestamente ofensivo dos bons costumes, sendo nula.

A ampliação do pedido foi admitida[1] e consignou-se que “não serão os factos em que ele se baseia incluídos no despacho a que se fazia alusão no art.º 511º do CPC, visto que tal despacho já não estar actualmente previsto” (despacho de 20.11.2013/fls. 660).

A Ré veio ainda sustentar que as acções são ao portador de acordo com o art.º 6º, n.º 1 do Estatutos da Sociedade e por isso com a publicação no Portal da Justiça, datada de 27.7.2012 a assembleia geral da Ré está convocada; o conteúdo das deliberações em causa não tem qualquer relação com as classes fundamentais de ofensa aos bons costumes.

Realizada a audiência de julgamento, por sentença de 17.6.2016 o Tribunal a quo julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência, decidiu: - Declarar que a A. é titular de 1000 acções representativas do capital social da Ré, nomeadamente no momento imediatamente anterior à assembleia geral da Ré de 31.3.1997 e, consequentemente, determinar que a Ré realize todos os actos necessários à reposição da situação originária; - Declarar a nulidade das deliberações sociais da Ré tomadas nas assembleias gerais realizadas nos dias 31.3.1997, 15.7.1997 e 07.8.1997, de acordo com o disposto no art.º 56º, n.º 1, al. a), do Código das Sociedades Comerciais; - Absolveu a Ré dos demais pedidos; - Absolveu a A. do pedido de condenação por litigância de má fé deduzido pela Ré.

            Inconformada, a A. apelou formulando as seguintes conclusões:

            (…)

A Ré respondeu à alegação pugnando pela improcedência do recurso e interpôs recurso subordinado, formulando as seguintes conclusões:

            (…)

            A A. respondeu concluindo pela improcedência do recurso subordinado.

            Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa apreciar e decidir, sobretudo, as seguintes questões: a) titularidade da A. sobre 1 000 acções representativas do capital social da Ré; b) se as deliberações da Ré realizadas sem a presença da A. devem ser declaradas nulas, por conteúdo ofensivo dos bons costumes; c) se o aumento de capital de 1997 se sustenta em decisão do administrador único ou na deliberação declarada nula de 15.7.1997; d) excepção de abuso do direito; e) se a sentença é nula, nos termos do art.º 590º n.º 4 do CPC de 2013.


*

            II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:

            1) A A. foi casada no regime de comunhão geral de bens com o actual presidente do Conselho de Administração da Ré M (…).

            2) Em 16.4.1998 foi decretada a separação judicial de pessoas e bens entre os acima referidos, tendo a acção dado entrada em Juízo a 23.5.1997, sendo aí requerente a A..

            3) O divórcio da A. e de M (…) foi declarado em Setembro de 2000.

            4) A (…) está registada como filha da A. e do referido M (…)

            5) M (…) está registado como filho de M (…) e A (…) e nasceu em 06.02.1997.

            6) A Ré é uma sociedade anónima com sede em (...) , Leiria, sendo o seu capital social representado por acções ao portador e tendo à data da propositura da presente acção o capital social de € 150 000.

            7) Para o triénio 2009/2011 o Conselho de Administração da Ré era composto por M (…) e A (…).

            8) A Ré foi constituída por documento intitulado de “escritura pública” de 15.7.1993 no 2° Cartório Notarial de Leiria.[2]

            9) Ao tempo da sua constituição o capital social da Ré ascendia ao montante de 5 000 000$00 representado por cinco mil acções com o valor nominal de mil escudos cada.

            10) As acções, conforme se deixou escrito no documento complementar que acompanha tal escritura (art.º 6º) são nominativas ou ao portador, livre e reciprocamente convertíveis, e são representadas por títulos de um, dez, cem, quinhentas e mil acções.

            No art.º 5º, n.º 2 do documento complementar consta ainda que “O conselho de Administração poderá, sem necessidade de prévia deliberação da Assembleia Geral, deliberar sobre o aumento de capital, por uma ou mais vezes, até ao montante de duzentos milhões de escudos”.

            11) O capital social da Ré ao tempo da sua constituição encontrava-se distribuído do seguinte modo:

            - M (…) – 2 800 000$00 (2 800 acções nominativas ou ao portador);

             - A (…) (A.) – 1 000 000$00 (1 000 acções nominativas ou ao portador);

            - A (…) – 1 000 000$00 (1 000 acções nominativas ou ao portador):

             F (…) – 100 000$00 (100 acções nominativas ou ao portador).

            - R (…) Lda – 100 000$00 (100 acções nominativas ou ao portador).

            12) No documento complementar que faz parte integrante da escritura de constituição da Ré, deixou-se escrito no artigo 13°

            “ 1 - A assembleia geral será convocada pelo presidente da mesa ou por quem sua vez fizer:

            a) No primeiro trimestre de cada ano, em reunião anual, com o fim de deliberar sobre matérias que são, por lei, da sua competência e ainda sobre quaisquer outras que porventura sejam incluídas na convocatória;

            b) Sempre que a reunião seja solicitada pelo conselho de administração, pelo conselho fiscal ou por um ou mais accionistas que possuam correspondentes a 5 % do capital social.

            2 - A convocatória da assembleia geral poderá fazer-se tanto por publicação nos termos e prazos legais, como, enquanto as acções forem nominativas[3] por carta registada dirigida aos accionistas, expedida para a morada constante do livro de acções ou da conta de acções escriturais”.

            13) Foi nomeado administrador único da sociedade M (…) presidente da Assembleia Geral A (…), ambos para o triénio 1993/1995.

            14) No dia 07.12.1993 reuniu a assembleia geral extraordinária da Ré, tendo sido elaborada a respectiva acta.

            15) No dia 25.02.1994, sem qualquer publicação, reuniu a assembleia geral ordinária da Ré, tendo sido elaborada a respectiva acta (fls. 265 e seguintes)

            Anexa a tal acta consta a lista de presenças assim discriminada:

Nome                                                        N.° de acções      Valor Nominal Assinaturas

- M (…)                                         3.800              1.000$00

- A (…)                 1.000              1.000$00

- F (…)                  100               1.000$00

- R(…) representada por M (…)        100                1.000$00”.

            16) Em 29.3.1996 em assembleia geral da Ré foram os referidos em 13) reconduzidos no seu cargo no triénio 1996-1998.

            17) No dia 31.3.1997 reuniu a assembleia geral da Ré, sem qualquer convocatória publicada em qualquer jornal, presidida por A (…), constando a lista de presenças a tal assembleia geral discriminada do seguinte modo:

Nome                                                             N.° de acções         Valor Nominal Assinaturas

 - M (…)                                         3.800                        1.000$00

- A (…)        1.000                        1.000$00

- F (…)                 100                         1.000$00

- R(…)representada por M (…)   100                        1.000$00” .

            18) Deixou-se escrito em tal acta da assembleia-geral, para além do mais:

            “Aos trinta e um dias do mês de Março de mil novecentos e noventa e sete, pelas quinze horas, reuniu na sua sede social, sita em (...) , Concelho de Leiria, em assembleia Geral Ordinária, os accionistas que constituem a sociedade R (...) … estando presente os cem por cento do capital social, conforme lista de presenças assinada, tendo todos os accionistas legalmente convocados com a seguinte ordem de trabalho:

            Ponto um: Apreciar, deliberar sobre o relatório de gestão, o balanço e as contas do exercício de mil novecentos e noventa e seis.

            Ponto dois: Deliberar sobre a proposta da aplicação dos resultados líquidos;

            Ponto três: Proceder à apreciação geral da administração e fiscalização da referida sociedade;

            Apreciado o assunto (…) e depois de verificadas as contas, o balanço e o relatório de gestão e tendo encontrado o pareceu favorável do fiscal único e em consideração a certificação legal das contas, foram as mesmas aprovadas por unanimidade, tendo a sociedade apresentado um prejuízo de esc. 8.386.233$00 (…), também por unanimidade foi aprovada que esta verba seja transferida para a conta resultados transitados. (…)”.

            19) Junto a tal consta o balanço de 31.12.1996, a demonstração de resultados, o anexo ao balanço e demonstração de resultados, o relatório de gestão, o anexo ao relatório de gestão, o relatório e parecer dos fiscal único e a certificação legal das contas.

            20) Em 19.5.1997 a A. enviou ao M (…), administrador único da Ré, que a recebeu, uma carta com o seguinte conteúdo:

            “Tomo a liberdade de me dirigir a V. Exa como administrador único da Sociedade acima referenciada para o seguinte

            Sou sócia fundadora da sociedade acima referenciada e accionista da mesma pois subscrevi mil acções do valor nominal de 1.000$00 cada, cujos respectivos títulos nunca me foram entregues.

            Neste momento tomo a liberdade de solicitar ao Sr. Administrador para que essas mil acções me sejam entregues no prazo de 10 dias…”

            21) Tal carta não obteve resposta.

            22) Em 08.7.1997 no Diário da República III Série, n.° 155 foi publicado o seguinte aviso, do qual a A. teve conhecimento:

            “Avisam-se os Srs. Accionistas da R (…)o S. A. de que, nos termos da autorização concedida pelo n.° 2 do artigo 5º do pacto social, o administrador único delibera aumentar o capital social para 30.000.000$00, nas seguintes condições:

            O aumento de 25.000.000$00 será realizado em dinheiro, através da emissão de 25 000 novas acções ao portador, do valor nominal de 1000$00 cada uma;

            A subscrição é reservada aos actuais accionistas, na proporção das acções actualmente detidas; no caso de haver accionistas que não subscrevam a totalidade das acções a que têm direito, serão satisfeitos os pedidos excedentários dos outros accionistas, procedendo-se a rateio se for necessário.

            Terminado o período de subscrição, a sociedade solicitará por escrito aos accionistas a realização do capital subscrito, dando como prazo máximo a data da escritura de aumento.

            Os Srs. Accionistas têm o prazo de 30 dias, após a data da publicação do presente aviso, para procederem à subscrição das acções pretendidas, através de carta dirigida à sociedade.

            Para o assunto proposto foi obtido o parecer favorável do órgão de fiscalização da sociedade nos termos do n.° 3 do artigo 456° do Código das Sociedades Comerciais”.

            23) Em Julho de 1997, a A. redigiu e enviou uma carta à Ré na pessoa de M (…) recepcionada pela Ré e com o seguinte conteúdo:

            “Escrevo esta carta na qualidade de sócia fundadora da sociedade R (…), tendo subscrito 1.000 acções de valor nominal de 1.000$00 cada e dirijo-a a V. Exa na qualidade de Administrador único da mesma.

            Tomo a liberdade de dizer a V. Exa que fiquei verdadeiramente surpreendida ao ver Publicado na III Série do Diário da República, de 8 do corrente, um aviso a publicitar o aumento do capital da referida sociedade da quantia de 25.000.000$00, a fim dos Senhores accionistas exercerem os seus direitos de preferência se assim entenderem.

            Embora reconheça que o pacto dá direito à administração para aumentar o capital, julgo que uma operação desta natureza nunca deveria ser desencadeada sem primeiro terem sido consultados os restantes accionistas sobre as vantagens e inconvenientes da mesma.

            Lançado de surpresa, como o foi, este aumento de capital deixou-me verdadeiramente apreensiva sobre o seu verdadeiro alcance.

            E digo isto, porque, estando a correr entre nós, casados no regime da comunhão geral, uma acção judicial de separação de pessoas e bens, penso que será muito mais curial e transparente aguardar o desfecho deste processo.

            Por outro lado, há bem pouco tempo escrevi uma carta para que me fossem entregues as minhas acções e não só não me foram enviadas, como ainda não me foi dada qualquer resposta.

            Tudo isto me deixa preocupada e receosa do futuro.

            Gostaria imenso que o nosso processo de separação corresse serena e civilizadamente, mas perante o que se está a passar não posso deixar de zelar e exercer os meus direitos.

            Assim, ao abrigo do disposto no art.º 288° do Código Comercial, para efeitos de me elucidar da situação da sociedade e dos motivos desta operação, a fim de decidir se devo ou não concorrer ao aumento de capital, solicito ao Senhor Administrador que, acompanhada de um contabilista da minha confiança, me permita ir consultar os documentos, referentes aos últimos três anos, mencionados nas alíneas a), b). c) e e) do n.º 1 do art.º 288° atrás citado, ou seja os relatórios de gestão e os documentos de prestação de contas, as convocatórias, actas e listas de presenças nas assembleias de accionistas, livro de registo de acções, etc.

            Agradecia que, com a antecedência razoável, fosse informada do dia e hora em que poderei iniciar esta consulta.

            Desde já quero deixar claro que, no caso de uma recusa a este meu pedido, embora isso muito me pese, serei forçada a pensar no recurso ao inquérito judicial, ao abrigo do disposto no art.º 292° do Cód. Comercial.”.

            24) No dia 15.7.1997 reuniu a assembleia geral da Ré, sem qualquer convocatória publicada em qualquer jornal, tendo-se escrito na respectiva acta:

            “Aos quinze dias do mês de Julho de mil novecentos e noventa e sete, pelas dez horas, reuniu na sua sede social, sita em (...) , Concelho de Leiria, em assembleia Geral extraordinária, os accionistas que constituem a sociedade R (…)… estando presente os cem por cento do capital social, conforme lista de presenças assinada, tendo todos os accionistas legalmente convocados com a seguinte ordem de trabalho.

            Ponto um: deliberar sobre o aumento de capital

            Apreciado o assunto para que foi convocada esta assembleia geral presidida pelo presidente da assembleia geral a Dra. A (…) foi aprovado por unanimidade que o aumento de capital de 25.000.000,00 (vinte e cinco milhões de escudos) será realizado em dinheiro.

            O número dois do artigo 5° do pacto social concede autorização à administração para poder proceder ao aumento de capital proposto e por isso foi também aprovado por unanimidade que o Administrador, o senhor M (…) ficaria com poderes para fazer e assinar a escritura”.

            25) Em 07.8.1997 reuniu a assembleia geral da Ré sem qualquer convocatória publicada em qualquer jornal, tendo-se deixado escrito na respectiva acta a seguinte ordem de trabalho:

            “Ponto um : Deliberar sobre a remuneração do administrador único.

            (…) foi aprovado por unanimidade que o administrador único, o senhor M (…) não recebe nenhuma remuneração”.

            26) Anexa a tal acta consta a lista de presenças.

            27) Em 20.8.1997 a Ré enviou à A que a recebeu a missiva com o seguinte conteúdo:

            “Exma. Senhora:

            Em resposta à sua carta, sem data, vimos por este meio informar V. Exa que nesta companhia não constam acções registadas em nome de V. Exa.

            Sem outro assunto de momento subscrevemo-nos com elevada estima e consideração”.

            28) Em 26.8.1997 foi efectuado aumento de capital da Ré nos termos que constam da certidão de fls. 396 e seguintes.

            29) Em 03.12.1997 no âmbito do processo n.º 428/98 (arrolamento) em que era requerente a aqui A. e requerido M (…) foi decretado o arrolamento, entre outras de: 2.800 acções subscritas pelo requerido (M (…)) na sociedade R (...) (Ré) e de 1 000 acções subscritas pela requerente (A).

            30) Aos 27.5.1998 reuniu a assembleia geral da Ré, convocada para o efeito na II Série do Diário da República de 27.4.1998, e no Diário de Leiria de 25.4.1998, tendo-se deixado escrito na respectiva acta:

            “1° Deliberar sobre o relatório de gestão e as contas do exercício de mil novecentos e sete. //      2° Deliberar sobre as propostas de aplicação de resultados. // 3° Proceder a apreciação geral da Administração e fiscalização da sociedade. // 4° Alteração da composição dos órgãos sociais da sociedade.

            À reunião convocada nos termos legais estatutários estiveram presentes os accionistas constantes da lista de presenças anexas, noventa e três vírgula quarenta por cento (93.40) do capital social.

            Após ter aguardado trinta minutos e não tendo comparecido o presidente da Assembleia Geral assumiu a presidência o Senhor M (…) detentor do maior número de acções. Tendo sido secretariado por A (…).

            O presidente da Mesa em exercício, deu inicio à reunião entrando no ponto um da ordem de trabalhos, tendo sido apreciado o relatório de gestão de contas do exercício e ainda a certificação legal de contas e o parecer do fiscal único tendo sido os referidos documentos aprovados por unanimidade.

            Passados de seguida ao ponto dois da ordem de trabalhos foi aprovado por unanimidade a proposta de aplicação de resultados positivos de esc. 576.823$50 (quinhentos e setenta e seis mil oitocentos e vinte e três escudos e cinquenta centavos) apresentada pelo administrador único nos seguintes termos:

            Para reserva legal esc: 28.841$00 (vinte e oito mil oitocentos e quarenta e um escudos).

            Para resultados transitados esc: 547.982$00 (quinhentos e quarenta e sete mil novecentos e oitenta e dois escudos).

            No ponto três da ordem de trabalhos foi aprovado por unanimidade um voto de louvor pelo presidente da mesa, a forma como se efectuou a administração e fiscalização do exercício.

            Relativamente ao ponto quatro da ordem de trabalhos, o accionista Senhor M (…), propôs que em face das dificuldades constatadas no desempenho do cargo pelo actual presidente da mesa da Assembleia geral fossem eleitos novos membros para este órgão passando a sua composição à ser a seguinte

            Presidente: A (…).

            Secretário: L (…).

            Esta proposta foi aprovada por unanimidade.

            Nada mais havendo a tratar foi encerrada a reunião pelo presidente em exercício, tendo sido lavrada a presente acta que depois de lida vai assinada pelo presidente e pelo secretário // Presidente. //    Secretário”.

            31) Anexa à acta acima referida consta a “lista de presenças da assembleia geral” assim discriminada:

Nome                                             N.° de acções       Valor Nominal    Assinaturas

M (…)                       5.000                  1.000$00

M (…)                            2.400                  1.000$00 

L (…)                              4.000                  1.000$00

F (…)                           4.000                   1.000$00    

V (…)                         4.000             1.000$00

J (…)                             1.000                   1.000$00            

J (…)                                1.000                   1.000$00

A (…)                                    2.000                   1.000$00

L (…)                                  2.000                   1.000$00

A (…)                                  2.000                   1.000$00

R (…) Lda.                                                  600                   1.000$00.

            32) Junto a tal acta consta o relatório de gestão, anexo ao relatório de gestão, balanço, demonstração de resultados, certificação legal de contas, relatório e parecer fiscal único.

            33) Aos 16.8.2000 reuniu a assembleia geral da Ré, convocada para o efeito na III Série do Diário da República de 13.7.2000, e no Diário de Leiria de 16.7.2000, lavrando-se a competente acta e que tinha seguinte ordem de trabalho:

            1º - Deliberar sobre a transformação da sociedade R (…), Lda. em sociedade anónima e aumento de capital.

            2º - Nomeação dos corpos Sociais para o triénio de 2000 a 2002, (…)

            34) Aos 30.5.2001 reuniu a assembleia geral da Ré, lavrando-se a competente acta com a seguinte ordem de trabalho:

            1º - Deliberar sobre o relatório e de gestão de contas de exercício de dois mil.

            2º - Deliberar sobre a proposta de aplicação dos resultados;

            3º - Proceder à apreciação geral da administração e fiscalização da sociedade;

            4º - Redenominação do capital social para euros;

            5º - Ratificação da designação do órgão de fiscalização da sociedade.

            35) Junto a tal acta consta o relatório de gestão, balanço a 31.12.2000, proposta de aplicação de resultados, demonstração de resultados do ano de 2000, anexo ao balanço e à demonstração de resultados do exercício de 2000, certificação legal das contas, relatório e parecer do fiscal único.

            36) Aos 22.6.2007 reuniu a assembleia geral da Ré, publicada a 14.5.2007 no respectivo portal do Ministério da Justiça lavrando-se a competente acta com a seguinte ordem de trabalhos:

            1º - Deliberar sobre o relatório de gestão e as contas de exercício de dois mil e seis.

            2º - Deliberar sobre a proposta de aplicação de resultados;

            3º - Proceder à apreciação geral da administração e fiscalização da sociedade;

            4º - Deliberar sobre a alteração à composição dos órgãos sociais;

            5º - Deliberar sobre a alienação de participações sociais.

            Foi aprovada por unanimidade a substituição do administrador único por um conselho de administração e a alteração da composição da Mesa da Assembleia Geral, que passaram a ter a seguinte configuração:

            Mesa da Assembleia Geral

            e) Presidente: F (…);

            n) Secretária: L (…).

            Conselho de Administração:

            a) Presidente: M (…)

            b) Vogal: A (…).

            37) Aos 22.9.2009 reuniu a assembleia geral da Ré publicada a 10.8.2009 no respectivo portal do Ministério da Justiça lavrando-se a competente acta com a seguinte ordem de trabalhos:

            1º - Deliberar sobre a eleição dos corpos sociais para o triénio 2009/2011;

            2º - Deliberar sobre alteração ao objecto social da sociedade;

            3º - Deliberar sobre actualidade da sede social;

            4º - Discussão de outros assuntos de interesse para a sociedade,

            38) Anexa a tal acta consta a “lista de presenças da assembleia geral” assim discriminada:

Nome                                     N.° de acções               Valor Nominal   Assinaturas

M (…)                         18.000                         5,00 €

M (…)                         5.400                           5,00 € 

A (…)                           5.000                          5,00 €

F (…)                             600                          5,00 €

            39) Por apenso a estes autos a A. propôs contra a Ré procedimento cautelar requerendo o arrolamento da totalidade da participação social que a Ré detém no capital social da sociedade R (…) S. A., tendo tal procedimento sido liminarmente indeferido.

            40) A presente acção deu entrada em juízo a 13.3.2012, tendo a A. registado a presente acção em 16.3.2012 com o seguinte pedido “decretado a nulidade da deliberação social da R. tomada em assembleia geral realizada mas não convocada, no dia 31 de Março de 1997. Declarada a nulidade da deliberação social da R. tomada em assembleia-geral realizada mas não convocada no dia 15 de Julho de 1997; Declarada a nulidade de todas as deliberações sociais da R. tomadas em assembleias-gerais realizadas subsequentemente e não convocadas”.

            41) No dia 21.9.2012 teve lugar uma assembleia geral da Ré publicada no dia 27.7.2012 no Portal da Justiça com a seguinte ordem de trabalho:

            “Ponto Primeiro: Deliberar sobre a realização de aumento do capital social da sociedade no montante de € 1.350.000,00, por realização de entradas em espécie.

            Ponto Segundo: Deliberar sobre a alteração do número um do artigo quinto dos estatutos da Sociedade.

            O Presidente da Mesa Sr. F (…), deu início à reunião e entrando de imediato no primeiro ponto de ordem de trabalhos foi apreciada a proposta de aumento do capital da sociedade em € 1.350.000,00 (…), mediante emissão de duzentos e setenta mil novas acções, a realizar com entradas em espécie relativas a entradas efectuadas a título de suprimentos pelos seguintes accionistas:

            a)         O accionista M (…) subscreve o valor de € 500.250,00 (…), correspondente a cem mil e cinquenta novas acções;

            b)         O accionista M (…) subscreve o valor de € 250.000,00 (…), correspondentes a cinquenta mil novas acções;

            c)         A accionista A (…) subscreve o valor de € 300.000,00 (…), correspondentes a sessenta mil novas acções; e

            d)         A accionista L (…), Lda. subscreve o valor de € 299.750,00 (…), correspondentes a cinquenta e nove mil e cinquenta novas acções.

            O Sr. Presidente da mesa salientou que o aumento do capital social que ora se discute foi objecto de relatório por “M (…)”, representada pela Dr. (…)Revisores Oficiais de Contas sem interesse na Sociedade, datado de 3 de Setembro de 2012, concluindo pela existência e suficiência dos suprimentos que suportam este aumento de capital social.

            Esta proposta sujeita à votação, foi aprovada por unanimidade.

            Tendo passado ao segundo ponto da ordem de trabalhos, o Presidente do Conselho de administração propôs que em consequência do aumento de capital aprovado no ponto anterior, fosse alterado o número um do artigo quinto do pacto social, passando o mesmo a ter a seguinte redacção:

            5º

            1 - O capital social, inteiramente subscrito e realizado é de um milhão e quinhentos mil euros, correspondentes a trezentas mil acções, com o valor nominal de cinco euros cada uma.

            2 - A proposta sujeita a votação, foi aprovada por unanimidade. (…)”.

            42) No artigo 6º dos estatutos da Ré consta pelo desde Setembro de 2007:

            “1º - As acções são ao portador, livre e reciprocamente convertíveis e são representadas por títulos de uma, dez, quinhentas e mil acções”.

            43) A (…) vive maritalmente com o presidente do Conselho de Administração da Ré e ex- cônjuge da A. desde pelo menos 1997.

            44) F (…) é amigo de M (…) presidente do Conselho de Administração da Ré.

            45) A Ré nunca entregou à A. as acções que titulavam a sua participação e constituição da mesma.

            46) Em meados de 2011 a A. estava na posse de todos os elementos necessários para a propositura da presente acção.

            47) No mês de Maio de 2013 pela consulta da certidão comercial permanente da Ré a A. constatou que se encontrava inscrito o seguinte acto:

            - Insc. 8 – Ap. 39120121023 12:51:46 UTC – AUMENTO DE CAPITAL

            Montante do aumento: 1.350.000,00 Euros

            Modalidade e forma de subscrição: Realizado em espécie, por conversão de suprimentos, mediante emissão de 270.000 novas acções.

            Capital após o aumento: 1.500.000,00 Euros

            Artigo(s) alterado( s): Art. 5°

            ACÇÕES: Número de acções: 300 000

            Valor nominal: 5,00 Euros.

            48) O aumento do capital referido em 41) visou o reforço do capital próprio da Ré.

            49) Todas as assembleias gerais da Ré realizadas desde 25.02.1994 até à data da entrada da petição inicial iniciaram-se e concluíram-se sem a presença da A..

            50) No livro de registo de acções constam registadas a favor da A. as acções n.ºs 2801 a 3800 e registadas essas mesmas acções a favor do administrador da Ré, M (...) , em 30.4.1997.

            2. E deu como não provado que:

            a) O F (…) mantivesse uma participação social na A. por razões de amizade e conveniência daquele.

            b) A A. tenha cedido a participação social que detinha na Ré, após Dezembro de 1994 e antes de 31.3.1997.

            c) As acções que representam o capital social da Ré tenham sido nominativas até 27.9.2013.

            d) A Ré tenha tido resultados transitados negativos no valor de € 524 249,94 no exercício de 2012.

            3. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

            A qualidade de sócio não depende da emissão e entrega do título de acção; surge com a outorga do contrato de sociedade ou da escritura de aumento do capital (art.º 274º do Código das Sociedades Comerciais/CSC[4], sob a epígrafe “aquisição da qualidade de sócio”, na sua redacção primitiva/DL n.º 262/86, de 02.9).[5]

            Os títulos definitivos devem ser entregues aos accionistas nos seis meses seguintes ao registo definitivo do contrato de sociedade ou do aumento de capital (art.º 304º, n.º 3).

           

Perante a factualidade dada como provada, podemos assim concluir que a A., ao outorgar o contrato de sociedade da Ré, em 15.7.1993, adquiriu a qualidade de accionista da mesma com uma participação de 1000 acções, pois a qualidade de sócio não depende da emissão e entrega do título de acção, surgindo com a outorga do contrato de sociedade ou da escritura de aumento do capital (art.º 274º).

E a Ré devia emitir e entregar os títulos definitivos à A., representativos da respectiva posição societária, provando-se que a Ré nunca entregou as acções à A. e que a aquisição das acções por parte da A. foi levada ao livro de registo [cf. II. 1. 45) e 50), supra].

            Porém, verifica-se que, tratando-se de acções ao portador (até 27.9.2013), essas mesmas acções foram registadas a favor do administrador da Ré, M (…) em 30.4.1997 [cf., designadamente, II. 1. 42), 45) e 50), supra e fls. 1118 e seguintes].

            4. Os direitos inerentes às acções - entre os quais o direito de voto - serão exercidos de acordo com o que constar no registo do emitente (cf. o art.º 327º).[6]

            Porém, a transmissão das acções tituladas e escriturais, fora do mercado bolsista (não integradas em sistema centralizado), só fica perfeita com a entrega (acções tituladas ao portador), a declaração de transmissão escrita no título (acções tituladas nominativas), ou o registo em conta (acções escriturais), mas estes actos não bastam, só por si, para operar a transmissão, que exige que eles se apoiem num título válido, num negócio jurídico, o negócio causal subjacente (exige-se, sempre, a existência, a validade e a procedência de uma justa causa de atribuição).[7]

            Ou seja, para a transmissão das acções não basta a entrega material e o registo; exige-se, ainda, uma justa causa de atribuição, um negócio causal subjacente válido.

            5. A A. alegou que nunca transmitiu as acções que adquiriu aquando da celebração do contrato de sociedade; a Ré contrapôs, tão-somente, desconhecer, nem ter de conhecer, se a A. alienou ou não, cedeu a terceiro ou não, a título oneroso ou gratuito, total ou parcialmente, a participação em causa.

            Contudo, como bem se diz na decisão sob censura, esta posição da Ré é manifestamente incompreensível - para registar as acções que eram da A. a favor do accionista M (…)  a Ré teria, necessariamente, de ter acesso ao título de transmissão, se a transmissão tivesse existido…; a Ré, pessoa colectiva e entidade autónoma de imputação de direitos e deveres, mercê da sua estrutura fechada e de índole familiar (veja-se a data em questão/1997 e o número de accionistas/5) tinha de ter conhecimento do negócio subjacente à transmissão das acções e que levou ao registo em 30.4.1997, na eventualidade de ele ter existido.

E incumbia-lhe a alegação e prova de que a A. tinha transmitido as acções de que era titular ao administrador da Ré. 

Não tendo a Ré provado que a A. havia transmitido ao administrador da Ré, M (…), as acções que adquiriu quando outorgou o contrato de sociedade, apenas se poderá concluir - face à factualidade dada como provada e como não provada - que tais acções nunca foram transmitidas (e adquiridas por outrem - vendo-se a ´aquisição` como o acto pelo qual uma pessoa faz ingressar participações sociais/valores imobiliários já existentes na sua esfera jurídica)[8], permanecendo, assim, na esfera jurídica da A., independentemente da posse material sobre as mesmas [cf., sobretudo, II. 1. 11), 29), 45) e 50) e II. 2. b), supra, e o cit. art.º 274º].

Ademais, vista a posição expressa no recurso subordinado e evidenciando-se que a dilucidação desta problemática precede o conhecimento de outras questões, dúvidas não restam de que a Ré dispunha de um sistema de registo das acções representativas do capital social, e, bem assim, de que não há lugar à aplicação subsidiária do direito civil em matéria possessória.

Acresce que os elementos disponíveis dizem-nos, claramente, que a A. nunca deixou de invocar e de ver reconhecida, até em juízo, a sua qualidade de accionista [cf., v. g., II. 1, 29), supra e fls. 1102].

Daí, nada a objectar à decisão recorrida quando conclui que importa reconhecer à A. o direito de propriedade sobre as 1000 acções que adquiriu com a celebração do contrato de sociedade e, consequentemente, determinar que a Ré realize todos os actos necessários à reposição das acções que foram retiradas à A..

6. Preceitua o art.º 56º:

1 - São nulas as deliberações dos sócios:

a) Tomadas em assembleia geral não convocada, salvo se todos os sócios tiverem estado presentes ou representados;

b) Tomadas mediante voto escrito sem que todos os sócios com direito de voto tenham sido convidados a exercer esse direito, a não ser que todos eles tenham dado por escrito o seu voto;

c) Cujo conteúdo não esteja, por natureza, sujeito a deliberação dos sócios;

d) Cujo conteúdo, directamente ou por actos de outros órgãos que determine ou permita, seja ofensivo dos bons costumes ou de preceitos legais que não possam ser derrogados, nem sequer por vontade unânime dos sócios.

2 - Não se consideram convocadas as assembleias cujo aviso convocatório seja assinado por quem não tenha essa competência, aquelas de cujo aviso convocatório não constem o dia, hora e local da reunião e as que reúnam em dia, hora ou local diversos dos constantes do aviso.

3 - A nulidade de uma deliberação nos casos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 não pode ser invocada quando os sócios ausentes e não representados ou não participantes na deliberação por escrito tiverem posteriormente dado por escrito o seu assentimento à deliberação.

E o n.º 1 do art.º 58º estabelece o seguinte:

São anuláveis as deliberações que:

a) Violem disposições quer da lei, quando ao caso não caiba a nulidade, nos termos do artigo 56º, quer do contrato de sociedade;

b) Sejam apropriadas para satisfazer o propósito de um dos sócios de conseguir, através do exercício do direito de voto, vantagens especiais para si ou para terceiros, em prejuízo da sociedade ou de outros sócios ou simplesmente de prejudicar aquela ou estes, a menos que se prove que as deliberações teriam sido tomadas mesmo sem os votos abusivos;

c) Não tenham sido precedidas do fornecimento ao sócio de elementos mínimos de informação.

            7. O cit. art.º 56º prevê duas espécies de "nulidade": nulidade resultante de vício de formação (nas duas primeiras alíneas do n.º 1) e nulidade resultante de vício do conteúdo (nas restantes alíneas do mesmo n.º).

As duas primeiras nulidades são sanáveis (art.º 56º, n.º 3); as duas últimas são nulidades puras ou insanáveis.

Naturalmente, temos um vício no procedimento quando é o processo ou modo de formação da deliberação que está inquinado (v. g., na convocação, reunião, votação e apresentação de propostas, contagem de votos, apuramento de resultados); há vício no conteúdo quando este ocorre na deliberação em si.

Os vícios no conteúdo geram anulabilidade quando se trate da violação de uma regra do contrato ou de uma norma legal dispositiva; quando esteja em causa a violação de uma norma legal imperativa (ou a ordem pública ou os bons costumes), a consequência será a nulidade da deliberação.

Em regra, as anulabilidades são sempre sanáveis e as nulidades não o são, excepto as previstas nas alíneas a) e b) do n.º 1 do art.º 56º (também designadas invalidades mistas) que, por constituírem vícios de procedimento, são sanáveis.[9]

8. Por regra, a reunião de uma assembleia geral é precedida da convocação dos que a ela devam comparecer. A excepção tem em vista as chamadas assembleias universais, previstas no art.º 54º, n.º 1 [que estabelece: “podem os sócios, em qualquer tipo de sociedade, (…) reunir-se em assembleia geral, sem observância de formalidades prévias, desde que todos os sócios estejam presentes e todos manifestem a vontade de que a assembleia se constitua e delibere sobre determinado assunto”].

 A reunião da assembleia geral tem que obedecer a pressupostos, como o de ser competente e regularmente convocada e que o seu funcionamento tenha sido também regular, viabilizando-se assim, nomeadamente, o direito dos sócios/accionistas de intervirem na formação da vontade social.

Relativamente às sociedades anónimas reconhece-se ao accionista que, segundo a lei e o contrato, tiver o direito a, pelo menos, um voto, o direito de estar presente na assembleia geral e de nela discutir e votar (art.º 379º n.º 1), razão pela qual assume particular relevância o modo de proceder à convocação dos sócios (art.º 377º n.º 2 e 3), sendo que a preterição ou erro sobre as suas menções especiais poderá ser causa de nulidade das deliberações dos accionistas (art.º 56º n.º 1 al. a)).

A convocação da assembleia geral ocorre sempre que a lei o determine, ou o conselho de administração, a comissão de auditoria, o conselho de administração executivo, o conselho fiscal ou o conselho geral e de supervisão entenda conveniente e ainda quando tenha sido requerida por accionistas que representem, pelo menos, 5 % do capital social (art.º 375º n.ºs 1 e 2).

9. Ficou provado que as assembleias gerais ocorridas em 31.3.1997, 15.7.197 e 07.8.1997 não foram convocadas [cf. II. 1. 17), 24) e 25), supra].

            Sendo A. accionista (titular de 1000 acções na sociedade Ré) e não tendo estado presente em tais assembleias [cf. II. 1. 49)], para as quais não foi convocada, verifica-se a nulidade das deliberações tomadas nessas assembleias gerais [art.º 56º, n.º 1, alínea a)], corolário que a própria Ré também não enjeita.

            Mas o mesmo já não ocorreu, por exemplo, com a assembleia de 21.9.2012, devidamente convocada por anúncio publicado em sítio na internet de acesso público do Ministério da Justiça [cf. II. 1. 41), supra, e os art.ºs 167º e 377º, n.º 2].

            10. A A. afirma que aquelas deliberações são nulas por ofensivas dos bons costumes, enquadrando-as, assim, na previsão do art.º 56º-1, d).

            Para determinar os limites impostos pelos bons costumes (à luz do disposto no art.º 334º do CC), há que atender de modo especial às concepções ético-jurídicas dominantes na colectividade[10]; os bons costumes são uma noção variável, com os tempos e os lugares, abrangendo o conjunto de regras éticas aceites pelas pessoas honestas, correctas, de boa fé, num dado ambiente e num certo momento.[11]

            E quanto às deliberações enunciadas no art.º 56º, n.º 1, alínea d), ou seja, deliberações cujo conteúdo seja ofensivo dos bons costumes, é corrente o entendimento de que as mesmas se traduzem em comportamentos chocantes, numa perspectiva social, designadamente instigando a prática de actividades consideradas ilícitas (por exemplo, uma deliberação que vise facilitar a prática da prostituição ou que incentive ou permita que os administradores da sociedade paguem “luvas” a determinada entidade pública).[12]

            Perfilhando-se aquela perspectiva, dir-se-á ainda que o CSC consagrou a concepção germânica de ferir de nulidade a deliberação ofensiva dos bons costumes unicamente pelo seu conteúdo, reservando para a anulabilidade aquelas que só os ofendem pelo seu fim ou pelo seu modo de realização.[13]

            11. Ante o descrito enquadramento jurídico-normativo e a factualidade dada como provada, é irrecusável, salvo o respeito sempre devido por entendimento contrário, que as deliberações impugnadas nos autos não são ofensivas dos bons costumes, ou seja, não estão inquinadas de um vício de conteúdo segundo a previsão do art.º 56º, n.º 1, al. d), traduzindo, antes, a realização de actos tendentes ao (normal) prosseguimento e desenvolvimento da actividade societária.

            12. No que concerne à assembleia geral realizada em 15.7.1997 afigura-se igualmente correcto o expendido na decisão sob censura.

            Então, no tocante à problemática do aumento do capital social, apenas se deliberou que o aumento de capital de 25 000 000$00 seria realizado em dinheiro e que o M (…) ficaria incumbido de outorgar e assinar a escritura, sendo que quem autoriza o Conselho de Administração a aumentar o capital social não é a deliberação da assembleia geral mas o contrato de sociedade (cf. os art.ºs 5º, n.º 2 do contrato de sociedade[14] e 456º, n.ºs 1 e 2 do CSC).

            E a deliberação de concessão de poderes ao administrador para outorgar a escritura é uma redundância em face do que dispõe o art.º 85º, n.º 4 (à data da assembleia era o n.º 4[15]) - o M (…), presidente do órgão de administração, estava obrigado a realizar a escritura pública de aumento do capital social.

            13. A A./recorrente continua a afirmar que as deliberações tomadas nas sucessivas assembleias gerais da Ré corporizam a execução de uma estratégia eticamente reprovável e atentatória da moral social: o administrador da Ré pretenderia dominar a sociedade e enriquecer o seu actual clã (constituído por si, actual companheira e seu filho menor) à custa da A. e da sua filha, excluídas da sociedade por via de falsificações e meios fraudulentos, existindo, pois, um substrato manifestamente ofensivo dos bons costumes, porquanto, valorado pelo sentido ético vigente na sociedade, se revela imoral (viola as regras da moral social) e contrário àquilo que uma pessoa correcta e honesta entende como bom.

            Pese embora tal alegação da A. sempre devesse encontrar suficiente acolhimento na matéria de facto dada como provada (o que não se evidencia), é igualmente correcta a análise expressa na sentença sob censura, mormente quando se diz que aquela perspectiva da A. aponta também no sentido de que as deliberações em causa não têm propriamente um conteúdo ofensivo dos bons costumes - o seu fim é que pode ser eventualmente ofensivo dos bons costumes (dada o pretenso objectivo de enriquecer os administradores da Ré à custa dos direitos e interesses da A.) [cf., ainda, II. 10. e 11., supra].

            Ora, tratando-se de deliberações abusivas por vícios respeitantes aos seus fins ou modo de realização (não pelo conteúdo), as mesmas podem eventualmente ser anuláveis nos termos do art.º 58º, n.º 1, al. b).[16]

            Porém, a acção visando a respectiva declaração teria que ser intentada no prazo de 30 dias a contar da data em que a A. teve conhecimento da deliberação [art.º 59º, n.º 2, alínea c)].

            Estando demonstrado que em meados de 2011 a A. estava na posse de todos os elementos necessários para a propositura da presente acção e porque a petição inicial deu entrada em juízo a 13.3.2012 [cf. II. 1. 40) e 46), supra], tais invalidades sempre se encontrariam sanadas pelo decurso do tempo, por caducidade do direito que assistia à A.; idêntica conclusão se deverá extrair quanto à deliberação ocorrida na assembleia de 21.9.2012 (a A. refere que teve conhecimento da deliberação em Maio/2013 mas veio requerer a impugnação em Setembro/2013 - fls. 504 e seguintes).

            14. A lei processual civil impõe que o autor formule claramente o pedido, a sua pretensão, o efeito jurídico pretendido (cf. os art.ºs 467º, n.º 1, alínea e) e 498º, n.º 3 do CPC 1961/552º, n.º 1, alínea e) e 581º, n.º 3 do CPC de 2013).

            O pedido deverá ser claro e inteligível, preciso e determinado, desde logo para assegurar à contraparte o exercício do direito de defesa.

            Como vimos, a A. veio pedir que seja declarada a nulidade de todas as deliberações sociais da Ré tomadas em assembleias gerais realizadas subsequentemente à de 15.7.1997, mas não convocadas.

            Tal pedido não comunga daqueles requisitos, pois não são identificadas/concretizadas as assembleias gerais em que foram tomadas essas deliberações.

            Não obstante, tendo já sido considerada a assembleia geral (não convocada) de 07.8.1997 (cf. II. 8., supra), verifica-se que as assembleias gerais de 27.5.1998 e 16.8.2000 foram convocadas no Diário da República e num jornal e as de 22.6.2007 e 22.9.2009, realizadas após a alteração da redacção do art.º 167º pelo DL n.º 76-A/2006, de 29.3, em sítio da internet de acesso público [cf. II. 1. 30), 33), 36) e 37), supra.

            15. Prosseguindo e acolhendo a sistematização adoptada em 1ª instância, importa ainda dizer que, se é certo que nas actas das assembleias gerais da Ré consta na maioria delas que se encontrava presente a totalidade do capital social - o que não correspondia à realidade (a A., titular de 1000 acções, não esteve presente ou representada nessas assembleias gerais) -, considerando o número de acções de que a A. é titular e deduzindo ao número de acções representativas do capital social presente em cada uma das assembleias, conclui-se que em todas as assembleias se obteve o quórum constitutivo e deliberativo necessário para a tomada de qualquer deliberação (art.º 383º).

            De resto, as deliberações dos sócios tomadas sem a maioria exigível são meramente anuláveis (art.º 58º n.º 1 al. a)), assim, como se alguém for ilegalmente admitido a emitir voto (vício na votação), e o emitiu, como aconteceu no caso em apreço com o M (…) que foi admitido a votar nas assembleias gerais com as acções da A., a deliberação daí decorrente deve, em princípio, ser anulada em virtude da apontada emissão ilegal de um voto.

            Para se determinar a repercussão do vício do voto sobre a validade da deliberação social, ter-se-á que comprovar se a invalidade da deliberação subsistiria se retirássemos, in casu, ao accionista M (…) os votos que expressou para além das acções por si pacificamente detidas, raciocínio comummente designado como “prova de resistência” e que consiste em somar o voto em falta aos votos da minoria apurada ou em subtrair aquele que haja sido indevidamente expresso (como é o caso do M (...) relativamente às 1000 acções da A.).

            E em qualquer das situações (deliberações em que foram emitidos os votos ineficazes) a deliberação em causa será apenas anulável (na situação dos autos, se expurgamos os 1000 votos utilizados pelo M (…) e não se atingir a maioria relativa ou qualificada exigida) e valerá/subsistirá se, descontados tais votos (ineficazes), os restantes forem suficientes para preencher a maioria legal ou estatutariamente necessária para a sua aprovação.[17]

            No caso em análise, aplicando-se aquele entendimento, é manifesto que as deliberações se mantêm, na medida em que mesmo não considerando os votos ineficazes (relativos a 1000 acções), subsistem votos suficientes para a formação da maioria necessária, ou seja, vencida ou ultrapassada a denominada prova de resistência, tais deliberações consideram-se válidas.

            Reafirma-se, assim, que apenas se poderá concluir pela nulidade das deliberações ocorridas nas assembleias gerais de 31.3.1997, 15.7.1997 e 08.7.1997, por falta de convocação.

            16. Relativamente ao segmento do pedido em que o A. requer que seja “declarada a inexistência, em virtude das nulidades supra mencionadas, de todos os actos jurídicos decorrentes e subsequentes às deliberações sociais declaradas nulas nos termos supra descritos”, também aqui será de considerar que tal pretensão apenas poderia ser eventualmente acolhida se alegados/invocados os actos praticados pela Ré na sequência dessas deliberações e dependentes ou consequentes das deliberações declaradas nulas, aferindo-se, então, da existência ou verificação de tal vício nos actos subsequentes.

            A A. não invocou qualquer acto que pudesse estar dependente ou fosse consequência das deliberações declaradas nulas, o que, naturalmente, obsta à eventual declaração de nulidade subsequente de qualquer acto.

            Não obstante, sempre se dirá que a assembleia geral realizada em 15.7.1997 não sustentou o aumento do capital social - apenas foi deliberado que o aumento de capital de 25 000 000$00 seria realizado em dinheiro e que o M (…)ficaria incumbido de outorgar a escritura, sendo que quem autoriza o conselho de administração a aumentar o capital social não é a deliberação da assembleia geral mas o contrato de sociedade (cf. II. 12., supra).

            Ademais, em 08.7.1997 foi publicado um aviso no DR, III Série, n.º 155, de que a A. tomou conhecimento, referente ao aumento do capital, mencionando todos os elementos relevantes (cumprindo-se ou actuando-se, assim, os requisitos legais para a validade do aumento de capital) com vista à sua subscrição pelos accionistas [cf., ainda, II. 1. 22) e 23), supra].

            Por conseguinte, não podemos considerar que exista qualquer irregularidade no aumento de capital objecto da escritura pública de 26.8.1997 [cf. II. 1. 28), supra].

            17. É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito (art.º 334º do CC).

            Sem prejuízo do exposto em anteriores pontos e atenta a matéria dada como provada, dir-se-á, por um lado, que nada nos diz que a A. não tenha actuado respeitando o “licere” dos direitos que lhe são conferidos pelo ordenamento jurídico vigente e, por outro lado, que tudo quanto poderia ser atendido em prol do posicionamento da Ré já foi devidamente considerado.

Na verdade, ao contrário do ora reiterado pela Ré, e como se defende na sentença sob censura, a factualidade dada como provada não permite ver na actuação da A. qualquer comportamento gerador de qualquer tipo de expectativa de que fosse destinatário a Ré e muito menos a criação de qualquer estado de confiança que merecesse a tutela do direito, pelo que a excepção de abuso de direito terá de improceder.

A circunstância de A. não ter participado activamente na vida societária, não lhe retirava os direitos que a lei lhe confere, pois, por si só, não representa comportamento do qual se pudesse retirar que não iria interpelar judicialmente a Ré se e quando o entendesse oportuno e razoável, naturalmente, com as limitações decorrentes da factualidade em causa e do respectivo enquadramento normativo, mormente em matéria de caducidade.          

            Assim, e designadamente, nada obstava a que a A. pretendesse ver reconhecida e fizesse valer a titularidade das 1000 acções e viesse invocar a nulidade de deliberações sociais tomadas em assembleias gerais não convocadas e onde não esteve presente (v. g., o exercício do pedido de nulidade das deliberações tomadas na assembleia geral de 15.7.1997).    

            E, relativamente à questionada validade do aumento de capital social realizado em 1997, já dissemos o suficiente no sentido da improcedência da pretensão da A., antolhando-se desnecessário verificar da suficiência dos factos dados como provados e demais elementos disponíveis para poder suportar eventual comportamento da A. contrário à posição sustentada em juízo…

            18. A presente acção foi proposta a 13.3.2012 e o despacho saneador foi proferido a 14.6.2013 (fls. 467).

            Segundo a lei processual então vigente (e que se manteve até à entrada em vigor do actual CPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26.6), o juiz podia convidar qualquer das partes a suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido (art.º 508º, n.º 3 do CPC de 1961, na redacção conferida pelo DL n.º 180/96, de 25.9)[18]; “Concluídas as diligências resultantes do preceituado no n.º 1 do artigo anterior, se a elas houver lugar, é convocada audiência preliminar, a realizar num dos 30 dias subsequentes, destinada a algum ou alguns dos fins seguintes: (…) c) Discutir as posições das partes, com vista à delimitação dos termos do litígio, e suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto que ainda subsistam ou se tornem patentes na sequência do debate” (art.º 508º-A, n.º 1, alínea c), do mesmo Código, na redacção introduzida pelo DL n.º 375-A/99, de 20.9).

            Na doutrina e jurisprudência considerava-se, de forma praticamente unânime, que o despacho de convite ao aperfeiçoamento era uma faculdade do juiz, não um poder-dever, não representando a omissão de prolação de tal despacho qualquer violação da lei; a eventual inércia do juiz, perante falhas de articulação da matéria de facto, não se reconduzia a qualquer nulidade.[19]

            Foi entretanto aprovado o CPC de 2013, o qual entrou em vigor em 01.9.2013 (art.º 8º da Lei n.º 41/2013, de 26.6).

            No actual Código, o despacho de convite ao aperfeiçoamento passou a constituir um poder-dever para o juiz, e não uma faculdade, conforme prevê o n.º 4 do art.º 590º: “Incumbe ainda ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido”.

            19. Atendendo às regras de aplicação da lei no tempo (cf. os art.ºs 12º do CC e 5º, n.º 1 da Lei n.º 41/2013, de 26.6[20]), o art.º 590º, n.º 4 do CPC de 2013 não era aplicável no presente processo, à data em que poderia ter sido proferido despacho de convite ao aperfeiçoamento.

            Na verdade, se as disposições do CPC de 2013 são aplicáveis às acções pendentes à data da sua entrada em vigor, importa atentar ao momento processual da (eventual) prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento dos articulados.

            Da leitura dos art.ºs 590º e 591º do CPC de 2013 resulta que o momento da prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento dos articulados será entre a finalização da fase de articulados e a realização da audiência prévia.

            No caso em análise, dispensou-se a realização da audiência preliminar e o despacho saneador foi proferido em 14.6.2013 (fls. 467).

            Mas, à data da entrada em vigor do CPC de 2013, estava ultrapassado o momento processual adequado para a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento.

            E se a nova lei de processo será de aplicar nas próprias causas já instauradas, a todos os termos processuais subsequentes (o processo seguirá daí por diante os termos da lei nova), importa respeitar, necessariamente, o princípio segundo o qual os diversos actos processuais devem ter como lei reguladora a lei vigente ao tempo da sua prática.[21]

            Nesta conformidade, não existe qualquer violação do disposto no art.º 590º, n.º 4, do CPC de 2013 e também não vemos invocado qualquer desrespeito da lei processual civil pretérita que deva ser considerado.

            20. Ademais, evidenciando-se que a A./recorrente, com a sua derradeira alegação em sede de recurso, visou atingir, sobretudo, os procedimentos ligados ao aumento do capital social, afigura-se ainda, por um lado, que apenas será de reafirmar o que se deixou exposto (supra) a respeito da validade e regularidade dos procedimentos seguidos ou dos assinalados efeitos na esfera jurídica das partes; por outro lado, que a A. não deixou de articular os factos dos quais emergiam as pretensões que decidiu apresentar em juízo (ainda que com as vicissitudes ou particularidades ditas, principalmente, em II. 14. e 16., supra); e, finalmente, que não se vislumbra que outros concretos e consequentes actos a A. pretenderia ver ainda invalidados (o que, de resto, também não se indica ou concretiza no arrazoado da alegação de recurso…).

            Daí que não possamos concluir pela nulidade da decisão recorrida e que incumbisse ao Tribunal a quo convidar a A. a suprir quaisquer insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto alegada…

            21. Soçobram, desta forma, todas as “conclusões” das alegações de recurso (principal e subordinado).


*

            III. Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedentes as apelações, confirmando-se a sentença recorrida.

            Custas do recurso principal pela A. e as do recurso subordinado pela Ré. 


*

14.3.2017


Fonte Ramos ( Relator )

Maria João Areias

Vítor Amaral

             

           




[1] A A. apresentou novo requerimento de “ampliação do pedido”, não admitido por despacho de 06.5.2014, por se tratar de uma nova acção que se pretendia enxertar nos autos em curso… (cf. fls. 1007 e 1012 e seguinte).
[2] Rectificou-se atendendo à data da escritura pública reproduzida nos autos (fls. 40/381).
[3] Sublinhado nosso, como o demais a incluir no texto.
[4] Diploma a que pertencem as disposições doravante citadas sem menção da origem.

[5] A redacção actual (DL n.º 76-A/2006, de 29.3) é a seguinte: A qualidade de sócio surge com a celebração do contrato de sociedade ou com o aumento do capital, não dependendo da emissão e entrega do título de acção ou, tratando-se de acções escriturais, da inscrição na conta de registo individualizado.

[6] A redacção do art.º 327º do CSC (aqui aplicável e entretanto revogado pelo DL n.º 486/99, de 13.11) era a seguinte: A transmissão entre vivos de acções ao portador efectua-se pela entrega dos títulos, dependendo da posse dos mesmos o exercício de direitos de sócio (n.º 1). Para as acções sujeitas ao regime de depósito ou de registo, a prova da posse efectua-se nos termos do artigo 338º (n.º 2).

   E preceituava o art.º 338º: A posse do título de acções ao portador sujeitas obrigatória ou facultativamente ao regime de registo ou de depósito só pode ser provada pelo registo ou pelo depósito delas (n.º 1).

[7] Vide, nomeadamente, Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, Vol. II, 2002, págs. 370 e seguinte e, entre outros, os acórdãos do STJ de 15.5.2008-processo 08B153, da RC de 19.02.2013-processo 894/11.4TBPBL.C1 [onde se defende, nomeadamente, que “para a transmissão de acções tituladas nominativas não integradas em sistema centralizado não basta, para a sua transmissão, a entrega material ou o seu endosso, respectivamente, e o registo: exige-se, em qualquer dos casos, sempre, a existência, a validade e a procedência de uma justa causa de atribuição” (II)] e da RG de 24/10/2013-processo nº 3770/12.0TBBRG-C.G1, publicados no “site” da dgsi.
[8] Vide Paulo Olavo Cunha, Direito das Sociedades Comerciais, 6ª edição, Almedina, 2016, pág. 412.
[9] Vide, entre outros, J. H. Pinto Furtado, Deliberações de Sociedades Comerciais, Almedina, 2005, págs. 590 e seguintes e 631 e seguintes e Paulo Olavo Cunha, ob. cit., págs. 701 e seguintes.

[10] Vide Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. I, 3ª edição, Coimbra Editora, pág. 297.
[11] Vide C. A. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, 1980, pág. 435.

[12] Vide Paulo Olavo Cunha, ob. cit., págs. 708 e seguinte e J. H. Pinto Furtado, ob. cit., págs. 616 e seguinte [autor que nos indica, e sistematiza (baseado na doutrina e na jurisprudência), as seguintes classes fundamentais de ofensa aos bons costumes: “a) tráfico de bens cuja comercialidade é reprovada pela ´moral pública` (tráfico sexual, esponsais, tráfico de influência…); b) exploração económica eticamente censurável pelo aproveitamento das circunstâncias para se extorquir uma prestação patrimonial indevida ou para se comercializarem bens incomerciáveis (recebimento de ´luvas`, ´quota litis`, remuneração para não se cometer um delito, etc.); c) sujeição do semelhante a formas de servidão.” E remata: “É neste quadro que terá de integrar-se uma ´deliberação de sociedade comercial`, para poder dizer-se inquinada de ´ofensa aos bons costumes` e por essa via ser fulminada de ´nulidade`"].
[13] Vide J. H. Pinto Furtado, ob. cit., pág. 617 e, do mesmo autor, Deliberações dos Sócios, Comentário ao CSC, Almedina, 1993, pág. 340.
[14] Que reza o seguinte: “O Conselho de Administração poderá, sem necessidade de prévia deliberação da Assembleia Geral, deliberar sobre o aumento de capital, por uma ou mais vezes, até ao montante de duzentos milhões de escudos”.
[15] Com a seguinte redacção: “Qualquer membro da administração tem o dever de outorgar a escritura exigida pelo número anterior, com a maior brevidade, sem dependência de especial designação pelos sócios”.

[16] Vide J. H. Pinto Furtado, Deliberações de Sociedades Comerciais, cit., pág. 617 e, entre outros, o acórdão do STJ de 16.4.1996, in CJ-STJ, IV, 2, 23 [Tendo-se concluído: “São anuláveis as deliberações sociais que sejam apropriadas para satisfazer o propósito de um dos sócios conseguir, através do exercício do direito de voto, vantagens especiais para si ou para terceiro, em prejuízo da sociedade ou de outros sócios.”].
[17] Vide, neste sentido, H. Pinto Furtado, Deliberações dos Sócios, Comentário ao CSC, cit., págs. 150 e seguintes; cf., ainda, o cit. acórdão da RC de 19.02.2013-processo 894/11.4TBPBL.C1.

[18] Dispunha o referido normativo: “Pode ainda o juiz convidar qualquer das partes a suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido.”
[19] Vide, nomeadamente, J. Lebre de Freitas, e Outros, CPC Anotado, Vol. 2º, Coimbra Editora, 2001, págs. 355 e Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª edição, pág. 68 [onde se refere: “se o tribunal considerar que o articulado da parte não necessita de qualquer correcção ou concretização e se, por isso, se abstiver de convidar a parte a aperfeiçoá-lo, essa omissão não é susceptível de originar uma nulidade processual”] e, entre outros, os acórdãos do STJ de 11.5.1999 e 14.12.2006-processo 06A3861 [“O despacho de aperfeiçoamento previsto no art.º 508º, do Cód. de Proc. Civil não é vinculado, não dando a sua omissão origem a qualquer nulidade processual.”], publicados no BMJ 487º, 244 e “site” da dgsi, respectivamente.

[20] Prevendo este normativo: “Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, o Código de Processo Civil, aprovado em anexo à presente lei, é imediatamente aplicável às acções declarativas pendentes.”

   E é evidente que as situações especialmente previstas nos n.ºs 2 a 6 do mesmo artigo não ocorrem no caso sub judice, estando ali em causa a aplicação de normas relativas à determinação da forma do processo declarativo, reguladoras dos actos processuais da fase dos articulados, ou referentes a requerimentos probatórios, intervenção do tribunal colectivo e à preparação e o julgamento das acções de valor superior à alçada do tribunal da Relação.

[21] Vide Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, págs. 42 e 43 e Antunes Varela, e Outros, Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra Editora, 2004, pág. 49 (1ª edição – págs. 46 e seguinte) [defendendo-se, nomeadamente, que «Há, por conseguinte, que estender ao domínio do processo civil, com as necessárias adaptações, a doutrina estabelecida, em termos genéricos, no artigo 12º do Código Civil. // A ideia, proclamada neste artigo, de que a nova lei ´não regula os factos pretéritos` (para não atingir ´efeitos já produzidos por estes`), traduzir-se-á, no âmbito do direito processual, em que a ´validade` e ´regularidade` dos actos processuais anteriores continuarão a aferir-se pela lei antiga, na vigência da qual foram praticados - sublinhado nosso].