Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
337/19.5T8MGL-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
DECLARAÇÃO DE GARANTIA AUTOMÓVEL
Data do Acordão: 05/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – JUÍZO DE COMPT. GENÉRICA DE MANGUALDE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 798º, 913º E 921º C. CIVIL; DECRETO-LEI N.º 383/89, DE 06 DE NOVEMBRO.
Sumário: Tendo um veículo sido reparado nas oficinas do vendedor com respaldo na declaração «Todo o veículo da marca “Ford” tem garantia contra defeitos de fabrico nos termos que figuram na garantia do fabricante que é facultada ao Cliente no momento da entrega do veículo…», tal declaração é da autoria do fabricante Ford e não do vendedor, pelo que este último não pode ser responsabilizado por eventuais prejuízos decorrentes da paralisação do veículo durante o tempo necessário à reparação.
Decisão Texto Integral:




Recorrente ……………………F..., S. A.

Recorrida………………………L..., Lda.

Melhor identificas nos autos.

I. Relatório

a) O presente recurso vem interposto do despacho saneador na parte em que julgou improcedentes as invocadas exceções de caducidade da ação e da irresponsabilidade da Recorrente.

O teor da decisão é o seguinte:

«(…) a) Da exceção de caducidade do direito da ação:

(…) A ré alega que a causa de pedir da autora se funda na existência de defeitos do veículo de matrícula ..., pelo qual garantiu o seu bom funcionamento enquanto vendedora, devendo a relação estabelecida entre as partes ser enquadrada no disposto no art. 921.º do Código Civil.

Sendo que, para o efeito, dispõe o n.º 4 do inciso que “a ação caduca logo que finde o tempo para a denúncia sem o comprador a ter feito, ou passados seis meses sobre a data em que a denuncia foi efetuada”, concluindo a ré, por via disso, que à data em que a autora propôs a ação (31-12-2019), por referência à data da entrega da viatura (23/09/2016) e, decorrido o período de 2 anos do prazo de garantia concedida, mostra-se caducado o seu direito de propor à ação.

Por outra parte, a autora respondeu que funda a sua causa de pedir na responsabilidade civil contratual, por força do contrato de compra e venda da viatura de matrícula ..., celebrado com a ré, pedindo o pagamento de uma indemnização por danos patrimoniais decorrentes da privação do uso, considerando por isso que são danos colaterais que não se confundem com o disposto no art. 921.º do Código Civil.

Cumpre apreciar e decidir.

A autora na presente ação pede a condenação da ré no pagamento de uma indemnização no valor de €4.200,00 (quatro mil e duzentos euros) pelo dano da privação do uso do veículo de matrícula ...; e ainda pede a condenação da ré no pagamento de uma indemnização no valor de €1.000,00 (mil euros) pelos prejuízos decorrentes das viagens realizadas entre Lusinde/Viseu com vista a submeter a viatura, de matrícula ..., a reparação.

Desde logo, cumpre afastar a aplicação do regime previsto pelo Decreto-lei n.º 67/2003, de 8 de abril, que estabelece o regime legal da venda de bens de consumo, porquanto a autora adquiriu o veículo para alocar à sua atividade profissional, pelo que não integra o conceito de consumidor, previsto na al. a) do art. 1.º-B do referido diploma legal, como sendo “aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carater profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios (…)” .

De igual forma, não será aplicável a Lei n.º 24/96, de 31 de julho, que estabelece o regime legal aplicável à defesa dos consumidores, conforme se extrai da noção de consumidor prevista no n.º 1 do seu art. 2.º.

Assim, ao contrato de compra e venda celebrado entre as partes, deverá ser aplicado o regime geral previsto no art. 874.º e seguintes do Código Civil.

E, se a coisa vendida sofrer de vício ou não tiver as qualidades asseguradas para a realização do fim visado, será aplicado o regime previsto no art. 913.º do Código Civil, que diz respeito à venda de coisas defeituosas.

Por outro lado, por convenção das partes ou por força dos usos, poderá o vendedor ficar obrigado a garantir o bom funcionamento da coisa vendida, cabendo-lhe, independentemente de culpa sua ou erro do comprador, preceder à reparação ou substituição da coisa vendida, conforme resulta do disposto no art. 921.º do Código Civil.

Ora, foi no âmbito deste regime especial, previsto no art. 921.º do Código Civil, que a ré, na qualidade de vendedora, assumiu a obrigação contratual perante a autora, figurando esta na qualidade de compradora, pelas diversas reparações que realizou à viatura de matrícula ..., objeto do contrato de compra e venda celebrado entre ambas.

Mas com a presente ação não visa a autora reclamar qualquer vício ou defeito na viatura, pretende sim ser ressarcida dos prejuízos decorrentes do período em que ficou privada do uso do bem que lhe foi vendido, bem como dos prejuízos que foi obrigada a fazer face para submeter o bem vendido às reparações que se afiguraram necessárias.

Ora, e porque assim é, importa verificar que os prejuízos que a autora alega são autónomos em relação ao vício ou defeito do bem vendido que foi coberto pela garantia de bom funcionamento, recaindo no âmbito da responsabilidade contratual prevista nos art. 798.º do Código Civil.

Pois importa chamar à colação as regras gerais previstas para o cumprimento dos contratos, designadamente no art. 406.º, art. 762.º, art. 879.º e a contrario o art. 913.º, todos do Código Civil, que conjugados, estabelecem que os contratos devem ser pontualmente cumpridos, devendo a coisa entregue encontrar-se em perfeito estado de conservação, correspondendo às expectativas legítimas do comprador de boa-fé, que significa que deve ser apta a satisfazer os fins e os efeitos a que se destina, mediante a contrapartida do pagamento do preço, estipulado, ao vendedor.

Não sendo posta em causa pela autora, na presente ação, a existência ou não de vícios na coisa vendida, apenas importa nesta ação apreciar se lhe assiste o direito ou não a ser ressarcida dos prejuízos patrimoniais que diz ter suportado no período que respeita à reparação da viatura ao abrigo da garantia de bom funcionamento, reparações essas, reconhecidas pela ré.

É um facto inquestionável que a possibilidade de utilização de um veículo automóvel é um valor material em si, sendo suscetível de quantificação com recurso a realidades várias da vida quotidiana, e por isso, autonomamente indemnizável, contando com o preenchimento dos pressupostos da responsabilidade contratual, com base nos critérios previstos nos art. 562.º e seguintes do Código Civil.

Determina o n.º 1 do art. 498.º do Código Civil, que “o direito a indemnização prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respetivo prazo a contar do facto danoso.”

Porém, importa salientar que, o referido prazo de prescrição, enquanto exceção ao prazo ordinário, diz exclusivamente respeito ao prazo de prescrição previsto para a responsabilidade civil extracontratual, contudo, recaindo a presente ação no âmbito da responsabilidade civil contratual, o prazo de prescrição será o prazo ordinário de vinte anos, previsto no art. 309.º do Código Civil.

Assim, e sem necessidade de maiores considerandos, atenta a causa de pedir e pedido configurada na presente ação pela autora, não se encontrando esta sujeita a prazo de caducidade em conformidade com o disposto no n.º 2 do art. 298.º do Código Civil, deverá esta estar sujeita ao prazo de prescrição ordinário de vinte anos, previsto no art. 309.º do Código Civil.

Pelo que, e em face do supra exposto, julga-se improcedente a exceção de caducidade da ação invocada pela ré.


*

b) Da exceção de irresponsabilidade da ré enquanto facto impeditivo do direito invocado pela autora:

A ré alega que é alheia à garantia prestada pela marca Ford e que a sua vinculação decorre exclusivamente da celebração do contrato cujas obrigações cumpriu, em resposta a autora reitera que celebrou o contrato com a ré decorrendo daí a sua obrigação.

Pois, para o efeito importa ressalvar tudo quanto já se expôs no que concerne a causa de pedir da autora na presente ação, afastando a aplicação do regime especial previsto no art. 921.º do Código Civil.

Assim, o que a ré pretende é invocar a sua ilegitimidade substantiva, no que à garantia de bom funcionamento diz respeito, mas sem olvidar que foi esta quem assinou e celebrou o contrato com a autor.

Ora, por via de tal argumentação e recaindo a causa de pedir da presente ação no âmbito da responsabilidade civil contratual, não há duvidas que a ré se obrigou, enquanto vendedora, aquando da celebração do contrato de compra e venda, perante a autora.

Pelo que, independentemente da relação pré-existente ou vigente entre a ré e a marca Ford, no âmbito da relação mediata, é esta responsável e parte legítima na presente ação, designadamente em face do disposto no art. 30.º do Código de Processo Civil.

Em face do exposto, julga-se improcedente a exceção de irresponsabilidade da ré enquanto facto impeditivo do direito invocado pela autora».

b) É destas decisões que vem interposto recurso por parte da Ré, cujas conclusões são as seguintes:

«I. O presente recurso vai interposto do despacho saneador que, não pondo termo à causa, julgou improcedentes as invocadas exceções de caducidade da ação e da irresponsabilidade da Recorrente, enquanto facto impeditivo do direito invocado pela Recorrida, entendendo aquela que, ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo errou na determinação da norma aplicável, incorrendo também na inobservância de normas e princípios de direito, como se concretizará;

II. Celebrado entre Recorrente e Recorrida, respetivamente na qualidade de vendedora e compradora não consumidora contrato de compra e venda de veículo automóvel, da marca Ford, em estado de novo, no âmbito do qual foi prevista garantia do fabricante pelo período de dois anos, e vindo tal veículo, entregue à compradora em 23.09.2016, a revelar as alegadas avarias, será aplicável ao dito contrato o regime jurídico da compra e venda de bens defeituosos, o qual estabelece um prazo de garantia de seis meses;

III. Findo o prazo legal de garantia de seis meses em 23.03.2017, a Recorrida continuou a beneficiar da dita garantia prestada pelo fabricante, enquanto garantia comercial que acompanha o veículo, independentemente, inclusive, de quem seja o vendedor, já que, desde logo e em abstrato, o comprador, verificando-se nesse período alguma anomalia ou desconformidade, poderá apresentar o veículo em qualquer concessionário ou reparador autorizado da marca e não, necessariamente, naquele onde adquiriu a viatura;

IV. A garantia prestada pelo fabricante não exclui, mas também não impede o decurso do prazo legal de garantia imposto ao vendedor, sendo que, findo este, à Recorrente, enquanto vendedora, caberia apenas, durante o período correspondente àquela outra garantia e verificada qualquer anomalia ou desconformidade, independentemente de culpa sua ou erro do comprador, reparar ou substituir o veículo, assim assegurando, em termos materiais e efetivos, a execução dos atos tendentes à concretização da garantia comercial do fabricante, sempre sob indicações deste e, até, no caso de ser necessária substituição, limitando-se a entregar o veículo substituto, naturalmente fornecido pelo fabricante;

V. Assim, apesar de diretamente relacionada com o contrato de compra e venda, a concessão da garantia comercial de que o veículo beneficiou, assim como o respetivo âmbito, não teve qualquer intervenção da Recorrente, cuja vinculação decorreu exclusivamente de tal contrato, pelo que é à mesma alheia;

VI. De modo que, uma vez findo o prazo legal de garantia, verificadas avarias/anomalias no veículo em causa nos autos e tendo sempre a Recorrente cumprido sem vícios a obrigação de os reparar, não lhe será imputável qualquer obrigação de indemnização pela eventual privação do uso do veículo, privação que, aliás, é inerente ao cumprimento da obrigação de reparar, para satisfação da pretensão da Recorrida, pelo que apenas poderia ser, em tempo, responsabilizada a fabricante, não demandada nos autos;

VII. Ainda que assim não se viesse a entender, e mesmo considerando que a Recorrente cumpriu a obrigação de reparar o veículo automóvel ao abrigo de convencionada garantia de bom funcionamento, a respetiva disciplina não prevê, de acordo com a estipulação do nº 1 do artigo 921º do CC, qualquer obrigação de indemnização, mas tão só, e uma vez que decorrido o prazo legal de garantia, de reparação ou substituição, o que não está em causa nos autos;

VIII. Ainda que também assim não se entendesse, à data da propositura da ação, 30.12.2019, e considerada a data de entrega da viatura nova à recorrida, 23.09.2016, já há muito havia decorrido o prazo legal de garantia, assim como o prazo de seis meses previsto no nº 4 do artigo 921º do CC, contado desde a data da última reclamação apresentada pela Recorrida à Recorrente, em 16.04.2018, pelo que se extinguiu, por caducidade, o direito que a Recorrida pretende fazer valer;

IX. E assim é também na medida em que o alegado dano da privação do uso, embora autonomamente ressarcível, não é autónomo dos alegados vícios ou defeitos do veículo automóvel, mas antes deles deriva, traduzindo ainda danos “circa rem”, pelo que lhes será aplicável o regime do cumprimento defeituoso, sujeitando-se, pois, aos respetivos prazos de caducidade e não ao regime geral da responsabilidade contratual e ao prazo ordinário de prescrição de vinte anos;

X. Ao decidir diversamente, ou seja, que o direito que a Recorrida reclama está sujeito ao prazo ordinário de prescrição e que a Recorrente detém legitimidade substantiva no sentido da responsabilização pela indemnização dos danos peticionados ao abrigo do disposto no artigo 798º e no artigo 309º, ambos do CC, o Tribunal a quo incorreu, salvo o maior respeito por entendimento diverso, em erro na determinação das normas aplicáveis, pois que a situação fática sub iudice deverá ser regida pelos normativos previstos nos artigos 916º, nº 2, 917º e 921º, todos do CC, para além de ter inobservado também os princípios da prevalência das normas especiais sobre as normas gerais previsto no nº 3 do artigo 7º do CC e, fazendo observar prazos distintos para a reclamação dos peticionados danos e para a eventual reparação dos defeitos, da unidade do sistema jurídico;

XI. Na medida do exposto, o Tribunal a quo incorreu ainda em violação do disposto no artigo 298º, nº 2 do CC, o qual, salvo entendimento distinto, deveria ter sido aplicado no sentido, em conformidade com o que antecede, de o caso sub iudice não estar sujeito às regras da prescrição ordinária, como decidido, mas sim ao regime de caducidade previsto no regime especial da compra e venda de bens defeituosos.

XII. Deverá, pois, face ao que antecede, ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se, na parte apelada, o douto despacho saneador, por forma a que, na procedência das exceções invocadas, seja declarada a caducidade da ação instaurada pela Recorrida e, em qualquer caso, considerada a Recorrente não responsável, perante a Recorrida, pela indemnização do invocado dano da privação do uso,

Assim V. Exas. farão, como sempre, Justiça!»

c) Não há contra-alegações.

II. Objeto do recurso.

O âmbito objetivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (artigos 639.º, n.º 1, e 635.º, n.º 4, ambos do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

O recurso coloca estas questões:

1 – Em primeiro lugar, considerando que o veículo foi vendido no estado de novo e as avarias ocorreram durante o período da garantia, cumpre verificar se a Ré vendedora pode ser responsabilizada pelos danos reclamados pela Autora emergentes da privação do uso do veículo durante os dias em que esteve em reparação.

Cumprindo discernir se a Ré é responsável por tais danos face ao contrato de compra e venda que celebrou com a Autora ou se não é responsável pelo facto do veículo ter sido reparado ao abrigo da garantia concedida pelo fabricante e o dano da privação do uso ter tido origem nas avarias/reparações efetuadas ao abrigo dessa garantia.

O despacho saneador trata esta questão em sede de legitimidade da Ré, como exceção, cumprindo, por isso começar a análise desta questão clarificando este aspeto.

2 - Em segundo lugar, se a questão não tiver ficado prejudicada, cumpre averiguar se o dano da privação do uso não é autonomizável em relação aos defeitos do veículo, sendo-lhe aplicável o prazo de caducidade previsto no artigo 921.º do Código Civil, ou é separável e a indemnização por tais danos fica sujeita ao regime geral da responsabilidade contratual e ao prazo ordinário de prescrição de 20 anos.

III. Fundamentação

1. Matéria de facto a considerar

(a) O veículo automóvel com a matrícula ..., marca Ford, foi entregue pela Ré à Autora em 23 de setembro de 2016 em estado de novo (artigo 2.º da petição e 1.º da contestação).

(b) A Autora e a ré assinaram na altura do contrato de compra e venda do veículo um documento com o título «Condições de Venda» do qual conta, entre outras declarações, o seguinte:

«As condições abaixo descritas regulam a encomenda de veículo novo realizada pelo Cliente, cujos dados figuram no início deste documento, ao Concessionário Autorizado Ford (a seguir Vendedor), cuja identificação consta do final do mesmo, que age em nome e por conta própria, e em nenhum caso como mandatário do fabricante, que por isso não é responsável pelos actos ou omissões do Concessionário ...» e

«6. Garantia Do Fabricante

Todo o veículo da marca “Ford” tem garantia contra defeitos de fabrico nos termos que figuram na garantia do fabricante que é facultada ao Cliente no momento da entrega do veículo…».

(c) As avarias ocorreram durante o período da garantia e foram reparadas ao abrigo dessa garantia (artigo 56.º da petição e artigo 1.º da contestação).

A última reclamação apresentada pela Autora foi em 16 de abril de 2018.

A ação foi instaurada em 30 de dezembro de 2019.

b) Apreciação das questões objeto do recurso

1 – Como se referiu já atrás, a Ré defende-se argumentando que não pode ser responsabilizada relativamente aos prejuízos alegados na petição, porquanto não lhe são juridicamente imputáveis.

A decisão recorrida analisou esta questão em sede de legitimidade da Ré, como exceção, e desatendeu a argumentação da Ré apelando para o disposto no artigo 30.º do Código de Processo Civil.

Argumentou-se na decisão que foi a Ré «…quem assinou e celebrou o contrato com a autora», não havendo dúvida «…que a ré se obrigou, enquanto vendedora, aquando da celebração do contrato de compra e venda, perante a autora.

Pelo que, independentemente da relação pré-existente ou vigente entre a ré e a marca Ford, no âmbito da relação mediata, é esta responsável e parte legítima na presente ação, designadamente em face do disposto no art. 30.º do Código de Processo Civil».

Cumpre começar por analisar esta questão, isto é, verificar se a questão suscitada pela Ré se resume ou se se restringe apenas a uma questão processual, de legitimidade para ser demandada, ou se a questão entra no campo da apreciação do mérito da causa.

Afigura-se que a argumentação da Ré se dirige ao mérito da causa.

Com efeito, se a Ré argumenta, como argumenta, que não pode ser responsabilizada pelos danos alegados porque não lhe são imputáveis juridicamente, isto é, porque não têm qualquer relação com eles, esta questão respeita ao mérito da causa e como tal tem também de ser tratada, muito embora também possa ser analisada sob a perspetiva da legitimidade das partes.

Aliás, a Ré não alude à sua ilegitimidade como parte, não exceciona a sua legitimidade, alega sim a sua irresponsabilidade pelos danos alegados pela Autora, muito embora se refira a esta irresponsabilidade como sendo uma «exceção» processual.

Porém, independentemente da adequação ao caso do conceito de «exceção», que a Ré utiliza para expressar a sua pretensão, é um facto que a Ré não contesta a sua legitimidade passiva, nem pede a sua absolvição da instância por essa razão, pelo que não se analisará a questão sob o aspeto da legitimidade processual, mas sim sob a perspetiva do mérito da causa.

2 – Vejamos então se a Ré pode ser responsabilizada pelos danos decorrentes da privação do uso do veículo.

Recorda-se que os danos em questão se referem aos lucros que a Autora deixou de auferir por não ter feito transportes de passageiros para o estrangeiro nos dias em que o veículo esteve em reparação.

Como se referiu na decisão recorrida, não se aplica ao presente caso a lei de defesa do consumidor, Lei n.º 24/96, de 31 de julho, porque a Autora não é «consumidora», consoante se extrai da noção de consumidor prevista no n.º 1 do seu art. 2.º («Considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios»).

Ou do Decreto - Lei.º 67/2003, de 08 de abril (venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas), em cuja al. a) do seu artigo 1.º-B, se diz «“Consumidor”, aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios, nos termos do n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho».

Verifica-se que o veículo foi vendido no estado de novo; as avarias ocorreram durante o período da garantia e foram reparadas ao abrigo dessa garantia.

A questão que se coloca consiste em saber sobre quem recai a obrigação de reparação, se incide sobre a Autora como vendedora do veículo ou sobre o fabricante ou importador.

A Autora diz que a responsabilidade é da Ré porque foi com ela que contratou.

A Ré argumenta que a garantia foi «… prestada pela marca Ford, na qualidade de produtora» - artigo 9.º da contestação e que «…apenas a fabricante Ford poderia ter sido, no prazo legal, já ultrapassado, responsabilizada pelos prejuízos, no âmbito da garantia prestada» - art. 35.º da contestação.

A Autora contrapôs que «beneficiou de uma garantia prestada não pela Ford, mas sim pela Ré, entidade vendedora» e que a «…Ford Lusitana, S.A., enquanto importadora dos produtos e acessórios de marca “Ford” e sua representante no território nacional, não detém quaisquer postos de venda ao público, não procedendo, consequentemente à alienação de viaturas  de marca “Ford”, de igual modo que, não sendo titular de quaisquer estabelecimentos  de reparação, não intervém sobre os veículos da marca que comercializa» (pág. 4 da resposta).

Referindo ainda que «Sendo que os concessionários e reparadores autorizados e a Ford Lusitana, S.A. são entidades jurídicas totalmente independentes», pelo que «Assim, a responsabilidade é da Ré e não de qualquer outra entidade» (pág. 5 da resposta).

Vejamos então.

Afigura-se que a Ré não pode ser responsabilizada nem como vendedora, nem como prestadora da garantia de bom funcionamento do veículo, pelas seguintes razões:

(I) (Ir)responsabilidade da Ré como vendedora (sem considerar a garantia)

A eventual responsabilidade da Ré perante a Autora resulta do contrato de compra e venda do veículo.

Afastado que está o regime jurídico da defesa do consumidor, a responsabilidade da Ré emergente do contrato resultaria do (i) incumprimento do contrato, designadamente do facto do veículo ser portador de defeitos, desencadeando neste caso a responsabilidade prevista nos artigos 913.º e seguintes do Código Civil, relativa à venda de coisas defeituosas, ou, então, da (ii) prestação de garantia de bom funcionamento, nos termos previstos no artigo 921.º do Código Civil, sem excluir a possibilidade de invocação do regime geral previsto nos artigos 798.º (responsabilidade do devedor) do Código Civil (Neste sentido Prof. Antunes Varela. Cumprimento Imperfeito do Contrato de Compra e Venda. Colectânea de Jurisprudência, Ano XII, tomo 4.º, pág. 30-31).

No caso, a Autora não identifica nos seus articulados defeitos do veículo, pelo que não pode ser imputada à Ré responsabilidade pelos defeitos de fabrico do veículo.

Porém, se tivesse alegado defeitos de fabrico do veículo, a respetiva responsabilidade recairia sobre o fabricante, não sobre a Ré.

A Ré comercializou um veículo automóvel novo, que não fabricou, sendo certo que o fabricante está identificado.

Por conseguinte, o responsável por eventuais defeitos de fabrico seria o produtor, não o vendedor, como resulta do artigo 1.º (Responsabilidade objetiva do produtor) do Decreto-Lei n.º 383/89, de 06 de novembro (Responsabilidade decorrente de produtos defeituosos), «O produtor é responsável, independentemente de culpa, pelos danos causados por defeitos dos produtos que põe em circulação».

E o artigo 2.º deste diploma acrescenta que «1. Produtor é o fabricante do produto acabado, de uma parte componente ou de matéria-prima, e ainda quem se apresente como tal pela aposição no produto do seu nome, marca ou outro sinal distintivo.

2 - Considera-se também produtor:

a) Aquele que, na Comunidade Económica Europeia e no exercício da sua atividade comercial, importe do exterior da mesma produtos para venda, aluguer, locação financeira ou outra qualquer forma de distribuição;

b) Qualquer fornecedor de produto cujo produtor comunitário ou importador não esteja identificado, salvo se, notificado por escrito, comunicar ao lesado no prazo de três meses, igualmente por escrito, a identidade de um ou outro, ou a de algum fornecedor precedente».

Resulta destas normas que o comerciante que se limita a ser intermediário entre o fabricante e o comprador, não é responsabilizável pelos defeitos do produto, salvo se tiver existido culpa da sua parte, o que não se verifica no caso dos autos.

Com efeito, nos termos do artigo 914.º do Código Civil, «O comprador tem o direito de exigir do vendedor a reparação da coisa ou, se for necessário e esta tiver natureza fungível, a substituição dela; mas esta obrigação não existe, se o vendedor desconhecia sem culpa o vício ou a falta de qualidade de que a coisa padece».

Como a obrigação de reparação (ou substituição) da coisa só pode recair sobre o vendedor se lhe for imputável uma atividade qualificável de culposa, em relação ao vício ou à falta de qualidade da coisa da coisa vendida (como saber da falta de qualidade e mesmo assim não se coibir de a vender), então, como a Autora não identificou defeitos do veículo, não pode ser imputada à Ré qualquer porção de culpa nesta matéria, pelo que a sua responsabilidade em sede de venda de coisa defeituosa, nos termos dos artigos 913.º e seguintes do Código Civil, fica excluída.

Como referiu Calvão da Silva, «Se em regra o comerciante representa hoje um simples elo da cadeia distributiva por onde os produtos passam, sem neles interferir e sem possibilidade e competência para os inspecionar e controlar, não deve ser tratado com a mesma severidade do fabricante. Pelo contrário, a sua responsabilidade tem de ser apreciada pelas regras clássicas do direito comum e afirmar-se, apenas, se houver agido culposamente, não observando o cuidado razoável e exigível com o produto. Como, por exemplo, nos casos de má conservação, manuseamento erróneo, omissão de controlos requeridos, não transmissão de instruções e advertências recebidas do fabricante acerca do uso regular ou perigos do produto, montagem deficiente, etc. Decidir de outro modo seria tratar sem fundamento o desigual de forma igual, com o que isso significa de desrazoável e injusto. Daí que o Dec. Lei n.º 383/89 canalize a responsabilidade objectiva pelos danos causados por produtos defeituosos para o produtor (art. 1.º), não considerando os comerciantes responsáveis, independentemente de culpa, a não ser nos casos excepcionais previstos no art. 2.º» -  Responsabilidade Civil do Produtor. Coimbra: Almedina 1990, pág. 540-541.

Cumpre, concluir, por conseguinte, que a Ré, enquanto vendedora do veículo em estado de novo, não pode ser responsabilizada pelos eventuais defeitos de fabrico, pelo que a sua responsabilização só pode resultar da garantia prestada.

E, na verdade, é com base na garantia prestada que a Autora demanda a Ré e não com base em defeitos, que não invoca.

Colocando-se a questão apenas em face da garantia, vejamos esta matéria.

 (I) (Ir)responsabilidade da Ré como vendedora face à garantia prestada

No que respeita ao conceito de garantia, a al. g) do artigo 1.º-B do Decreto-Lei n.º 67/2003 define garantia nestes termos:

«“Garantia voluntária”, qualquer compromisso ou declaração, de carácter gratuito ou oneroso, assumido por um vendedor, por um produtor ou por qualquer intermediário perante o consumidor, de reembolsar o preço pago, substituir, reparar ou ocupar-se de qualquer modo de um bem de consumo, no caso de este não corresponder às condições enumeradas na declaração de garantia ou na respetiva publicidade».

Sobre a génese desta assunção de responsabilidade, Carlos Ferreira de Almeida diz que «O despertar dos movimentos consumeristas para os danos causados por acidentes de consumo é contemporâneo da intenção dos produtores e distribuidores de bens de consumo dirigida ao acréscimo da confiança dos consumidores na qualidade e durabilidade desses bens. Guiados pelo objetivo de aumentar o volume de negócios e pressionados pela concorrência, os fabricantes de certos bens de consumo duradouro (…) foram impelidos a antecipar a compensação das insuficiências do regime jurídico, emitindo declarações que asseguravam diretamente aos compradores a qualidade e a funcionalidade desses bens (…). A função económico-social é de garantia, uma vez que a obrigação é eventual e se destina a suprir a frustração. Garante é geralmente o fabricante, podendo ser também o intermediário ou mesmo o vendedor. Beneficiário da garantia é o comprador e/ou utilizador. O evento que desencadeia a garantia é um defeito originário ou o funcionamento deficiente. A prestação prometida é quase sempre a reparação ou a substituição, raramente uma indemnização» - Direito do Consumo. Almedina, 2005, pág. 177.

Resulta dos autos que no âmbito do contrato de compra e venda do veículo foi assinado pelas partes um documento do qual consta, entre outras declarações, o seguinte:

«As condições abaixo descritas regulam a encomenda de veículo novo realizada pelo Cliente, cujos dados figuram no início deste documento, ao Concessionário Autorizado Ford (a seguir Vendedor), cuja identificação consta do final do mesmo, que age em nome e por conta própria, e em nenhum caso como mandatário do fabricante, que por isso não é responsável pelos actos ou omissões do Concessionário ...» e, mais à frente, «6. Garantia Do Fabricante

Todo o veículo da marca “Ford” tem garantia contra defeitos de fabrico nos termos que figuram na garantia do fabricante que é facultada ao Cliente no momento da entrega do veículo…».

Verifica-se que o veículo foi sendo sucessivamente reparado no âmbito desta garantia atribuída à Autora no âmbito do contrato de compra e venda do veículo.

Com efeito, está provado, por acordo das partes, que «As avarias ocorreram durante o período da garantia e foram reparadas ao abrigo dessa garantia (artigo 56.º da petição e artigo 1.º da contestação).

A Autora argumenta, contudo, que quem lhe concedeu a garantia foi a Ré e não o fabricante ou o importador do veículo, com os quais, aliás, não teve qualquer contato.

Não tem razão.

Face às declarações que se encontram no documento que corporiza a garantia, resulta claro que quem assumiu a responsabilidade por eventuais defeitos do veículo perante o comprador foi o fabricante: «Todo o veículo da marca “Ford” tem garantia contra defeitos de fabrico nos termos que figuram na garantia do fabricante que é facultada ao Cliente no momento da entrega do veículo…».

Por conseguinte, tendo a garantia sido atribuída pelo «fabricante», então não foi concedida pela Ré à Autora e esta última aceitou, de facto, a garantia dada pelo fabricante.

Para existir uma garantia dada pela Ré à Autora teria de ter existido uma declaração da Ré nesse sentido e não existe.

A declaração que concede a garantia foi formulada pelo fabricante.

Deste modo, como as reparações foram efetuadas ao abrigo desta garantia, como foram, logicamente os prejuízos decorrentes das respetivas paralisações do veículo para reparação só podem ser imputáveis à mesma entidade que se responsabilizou pelas reparações.

E essa entidade não é a Ré.

Não sendo a Ré responsável pela realização das reparações, que apenas as executa por conta do fabricante, não tem qualquer responsabilidade por eventuais prejuízos decorrentes da paralisação do veículo durante o tempo necessário para reparação.

Por conseguinte, procede o recurso e a Ré tem de ser absolvida do pedido.

3 – A segunda questão colocada pelo recurso consistia em averiguar se se aplicava ao dano da privação do uso o mesmo prazo de caducidade previsto no artigo 921.º do Código Civil, ou se lhe era aplicável o regime geral da responsabilidade contratual e o prazo ordinário de prescrição de 20 anos.

Esta problemática ficou prejudicada face à conclusão a que se chegou relativamente à primeira questão.

IV. Decisão

Considerando o exposto, julga-se o recurso procedente, revoga-se a decisão recorria, julga-se a ação improcedente e absolve-se a Ré do pedido.

Custas pela Autora.


Coimbra, 11 de Maio de 2021