Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
275/12.2GCPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: INQUÉRITO
PERDA A FAVOR DO ESTADO
DESTINO DOS BENS
MINISTÉRIO PÚBLICO
JUIZ DE INSTRUÇÃO CRIMINAL
DIREITOS DE AUTOR
Data do Acordão: 06/05/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: SERVIÇOS DO MINISTÉRIO PÚBLICO DE POMBAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGO 201.º DO CÓDIGO DO DIREITO DE AUTOR E DOS DIREITOS CONEXOS
Sumário: I - O instituto da perda de objectos a favor do Estado não constitui, actualmente, uma pena acessória; por isso, não tem qualquer relação com o princípio da culpa, sendo, em exclusivo, determinado por necessidades de prevenção relacionadas com o sério risco de uma nova utilização dos bens em causa na prática de novos crimes.

II - Devem ser apreendidos a favor do Estado, nos termos do disposto no artigo 201.º, n.º 1, do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (versão actualizada pela Lei n.º 16/2008, de 1 de Abril), não apenas os CDs contrafeitos, mas também os aparelhos de som utilizados nas respectivas audições.

III - Na fase de inquérito, compete ao Ministério Público dar adequado destino aos bens declarados perdidos a favor do Estado pelo JIC.

Decisão Texto Integral: I) No âmbito dos Autos de Inquérito registados sob o n.º 275/12.2GCPBL, dos Serviços do Ministério Público de Pombal, em 26/10/2012, o Meritíssimo JIC concordou com a respectiva suspensão provisória, pelo período de dois meses, mediante a obrigação de o arguido, durante tal período, cumprir as injunções e regras de conduta estabelecidas pela Digna Procuradora-Adjunta, no seu despacho de fls. 53.  

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                Em 3 de Janeiro de 2013, o arguido A... juntou aos autos comprovativo do cumprimento da injunção (entrega de 250 euros ao Centro Social de Carnide IPSS) que lhe havia sido imposta.

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                Em 24 de Janeiro de 2013, foi proferido nos autos o seguinte Despacho:

                “Uma vez que o arguido A (...) cumpriu a injunção imposta nos presentes autos e não tem nenhuma condenação averbada no seu certificado de registo criminal, devem os presentes autos ser arquivados (artigo 282.º, n.º 3, do CPP).

                Face ao exposto, determino o arquivamento dos presentes autos de inquérito, nos termos do disposto no artigo 282.º, n.º 3, do CPP.

                Notifique.

                Remeta os autos ao Mmo. JIC, promovendo-se se declarem perdidos a favor do Estado todos os objectos apreendidos nos autos (cfr. fls. 7 a 11), nos termos do disposto no artigo 201.º, do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, uma vez que tais objectos foram utilizados na prática da infracção em causa nos autos.

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                Na sequência, em 28/1/2013, o Meritíssimo JIC proferiu o seguinte Despacho:

                “Como resulta dos elementos constantes do inquérito, os objectos apreendidos à ordem dos presentes autos (a fls. 7 a 11), mostram ter servido para a prática de um crime de usurpação, p. e p. pelos artigos 195.º e 197.º, do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.

                Pelo exposto, nos termos do artigo 201.º, nºs 1 e 2, do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, declaro perdidos a favor do estado tais objectos apreendidos, como promovido.

                Notifique.

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                Inconformado com tal decisão, dela recorreu, em 25/2/2013, o arguido, pedindo a sua revogação, extraindo da motivação as seguintes conclusões:

1) O artigo 201.º, n.º 2, do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (doravante: CDADC) só permite declarar perdidos a favor do Estado os objectos apreendidos, desde que provado que os mesmos se destinavam ou foram usados na infracção.

                2) O arguido havia adquirido os originais dos temas alegadamente usurpados, tendo pago, incluído no respectivo preço, os direitos de autor de todas aquelas faixas.

                3) Aquando do seu interrogatório, o arguido comprovou a aquisição de tais músicas mediante exibição das facturas de compra de centenas de música adquiridas, não tendo, por isso, cometido qualquer infracção.

                4) A aceitação, por parte do arguido, da suspensão provisória do processo e das injunções impostas, não pode ser considerada confissão da prática dos factos que lhe eram imputados, dado que resultou de decisão meramente económica.

                5) O arguido, aquando da fiscalização, apenas fazia uso de UM único leitor de CD, pelo que só esse (o CD e as colunas de som) poderia ser objecto de apreensão e declarado perdido, sob pena de violação da ratio legis subjacente ao artigo 201.º, n.º 2, do CDADC.

                6) A perda a favor do Estado (artigo 201.º, n.º 2, do CDADC, e artigo 109.º, do Código Penal), como pena acessória que é, pressupõe sempre a existência de uma sentença condenatória ou, nos casos em que “nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto”, quando a natureza dos objectos possa colocar em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou que oferecem sério risco de serem utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, sendo certo que nos autos nem ocorreu condenação e nem o material constitui qualquer perigo para pessoas ou bens.

                7) Face ao valor do equipamento apreendido (superior a três mil e quinhentos euros), a pena acessória é mais gravosa do que a “pena principal” (duzentos e cinquenta euros), o que viola os critérios gerais constantes do artigo 71.º, do Código Penal, e, ainda, o princípio constitucional da proporcionalidade.

                8) Em substituição da declaração da perda de bens a favor do estado, deveriam os bens apreendidos ser entregues a instituição particular de solidariedade social.

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                O Ministério Público, em 19/3/2013, respondeu ao recurso, defendendo a sua improcedência e argumentando, em resumo, o seguinte:

1) Do auto de notícia que deu início aos presentes autos, consta, para além do mais, que a realização do evento (música ambiente) era utilizado o equipamento de som abaixo identificado: um leitor de CD, da marca Pioneer, modelo CDJ 900, número de série KCMPO14909YY, um leitor de CD, da marca Pioneer, sem modelo, número de série KCMPO14888YY, uma mesa misturadora de som, da marca Pioneer, modelo DJM-700, número de série JFMPO10205YY, e duas colunas de som, da marca BCT, sem modelo e número de série.

2) Para além destes objectos, vários CD contrafeitos foram apreendidos (cfr. fls. 7 a 11) e, posteriormente, declarados perdidos a favor do Estado, por se ter considerado que os mesmos serviram para a prática do crime de usurpação (cfr. despacho de fls. 70).

3) Tendo em conta o ilícito em causa nos presentes autos e o que consta do auto de notícia relativamente ao equipamento que era utilizado aquando da prática da infracção, facilmente se constata que os bens que foram apreendidos e que foram utilizados ou se destinavam à prática da infracção tinham que ser, como foram, declarados perdidos a favor do Estado.

4) Os CD que foram apreendidos ao arguido eram contrafeitos (não eram originais) e o restante material que foi apreendido estava a ser utilizado na prática do ilícito em causa nos autos.

                5) No que concerne ao facto do recorrente referir que os bens em causa, em alternativa, poderão ser entregues a uma Instituição, importa referir que tal facto prende-se com o destino dos bens, destino esse que ainda não foi objecto de apreciação nestes autos.

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                O recurso, em 20/3/2013, foi admitido.

                O Exmo. Procurador-Geral Adjunto, em 8/4/2013, emitiu douto parecer no qual acompanhou a resposta dada ao recurso.

                Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, não foi exercido o direito de resposta.

                Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, realizou-se a legal conferência, cumprindo apreciar e decidir.

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II) Apreciação do Recurso:

O objecto de um recurso penal é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso – artigos 403.º e 412.º, n.º 1, ambos do C.P.P. Na realidade, de harmonia com o disposto no n.º1, do artigo 412.º, do C.P.P., e conforme jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do S.T.J. –  Ac. de 13/5/1998, B.M.J. 477/263, Ac. de 25/6/1998, B.M.J. 478/242, Ac. de 3/2/1999, B.M.J. 477/271), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).

São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – artigo 403.º, n.º 1 e 412.º, n.º1 e n.º2, ambos do C.P.P. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões».                                                                                                          A questão a conhecer é a seguinte:

- Saber se todos os bens apreendidos nos autos devem ser declarados perdidos a favor do Estado.

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Findo o inquérito, e com ele o processo, por decisão de arquivamento, impõe-se dar destino aos objectos apreendidos, nos termos previstos no artigo 268.º, n.º 1, al. e), do CPP, sendo que uma das situações aí previstas diz respeito à suspensão provisória do processo, o que significa que a perda de bens deve ser determinada, mesmo que o agente não seja condenado nem possa sê-lo, podendo ter lugar, portanto, na sequência de despacho de arquivamento (como no caso presente).

Tal serve para deixar claro, sem necessidade de grandes considerações, quão inglório é alegar no sentido de que só através de uma sentença condenatória é possível ser decidida a perda de bens a favor do Estado.

Não se nega que, no âmbito do disposto no artigo 75.º, n.º 1, do Código Penal de 1886, a perda de objectos era entendida como um efeito da condenação, assumindo, preferencialmente, uma função retributiva.

                Todavia, de acordo com a leitura das actas da comissão revisora do Código Penal, – edição da Associação Académica de Lisboa, parte geral, 31ª sessão, pág. 202 - , o autor do projecto refere que “a medida deve essencialmente ser vista como medida preventiva e não como reacção contra o crime – o que explica que ela não esteja na dependência da efectiva condenação do arguido.

                Ao contrário daquilo que alega o recorrente, o instituto da perda de objectos, actualmente, não constitui uma pena acessória e não tem, por isso, qualquer relação com o princípio da culpa, sendo, em exclusivo, determinado por necessidades de prevenção relacionadas com o risco sério de uma nova utilização dos bens em causa na prática de novos crimes.

«A perda de bens a favor do Estado, com eficácia real, transferindo-se a propriedade a favor daquele, apresenta-se como uma medida sancionatória de natureza análoga à medida de segurança, não sendo um efeito da pena ou da condenação, visto poder ter lugar sem elas - art. 109.º, n.º 2, do CP», conforme pode ser lido no Acórdão do STJ -Processo n.º 4306/05 - 3.ª Secção, de 15 de Fevereiro de 2006.

Assentemos, pois, que não é necessário verificar-se a condenação pela prática de um crime para, no âmbito de um processo penal, se declarar a perda para o Estado de determinados objectos apreendidos no mesmo.

Tal decorre, expressamente, do regime geral da perda de objectos, consagrado no artigo 109.º, n.º 1, do Código Penal.

No mesmo sentido vai o Código de Autor e de Direitos Conexos, na versão actualizada pela Lei n.º 16/2008, de 1 de Abril, e mantida pela versão decorrente da Lei n.º 65/2012, de 20 de Dezembro, onde, no artigo 201.º, está consagrado o seguinte:

1 - São sempre apreendidos os exemplares ou cópias das obras usurpadas ou contrafeitas, quaisquer que sejam a natureza da obra e a forma de violação, bem como os respectivos invólucros materiais, máquinas ou demais instrumentos ou documentos de que haja suspeita de terem sido utilizados ou de se destinarem à prática da infracção. 

2 - Nos casos de flagrante delito, têm competência para proceder à apreensão as autoridades policiais e administrativas, designadamente a Polícia Judiciária, a Polícia de Segurança Pública, a Polícia Marítima, a Guarda Nacional Republicana, a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica e a Inspecção-Geral das Actividades Culturais.

3 - A sentença que julgar do mérito da acção judicial declara perdidos a favor do Estado os bens que tiverem servido ou estivessem destinados directamente a servir para a prática de um ilícito, ou que por este tiverem sido produzidos, sendo as cópias ou exemplares destruídos, sem direito a qualquer indemnização.

4 - Na aplicação destas medidas, o tribunal deve ter em consideração os legítimos interesses de terceiros, em particular dos consumidores.

5 - O tribunal, ponderada a natureza e qualidade dos bens declarados perdidos a favor do Estado, pode atribuí-los a entidades, públicas ou privadas, sem fins lucrativos se o lesado der o seu consentimento expresso para o efeito.

6 - O tribunal pode igualmente impor ao infractor, ou ao intermediário cujos serviços estejam a ser utilizados pelo infractor, uma medida destinada a inibir a continuação da infracção verificada, designadamente a interdição temporária do exercício de certas actividades ou profissões, a privação do direito de participar em feiras ou mercados ou o encerramento temporário ou definitivo do estabelecimento.

7 - Nas decisões de condenação à cessação de uma actividade ilícita, o tribunal pode prever uma sanção pecuniária compulsória destinada a assegurar a respectiva execução.

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                Aqui chegados, pouco mais há que acrescentar.

                Com efeito, não pode ser escamoteado que os bens que foram apreendidos foram utilizados ou se destinavam à prática de um crime de usurpação, na medida em que “os CD que foram apreendidos ao arguido eram contrafeitos (não eram originais) e o restante material que foi apreendido estava a ser utilizado na prática do ilícito em causa nos autos.” (resposta ao recurso).

Não se argumente, de igual modo, que só o CD que estava ser usado pelo arguido e as respectivas colunas de som poderiam ser declaradas perdidas, pois tudo o restante que foi apreendido era susceptível de já ter sido utilizado ou de se destinar à prática da infracção. De outro modo, não teria sentido o arguido estar junto de tal material. 

Logo, bem andou o Meritíssimo JIC em declarar perdidos os bens.

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                Para concluir, refira-se que compete ao Ministério Público, na fase de inquérito, dar o destino que entender conveniente aos bens declarados perdidos a favor do Estado pelo juiz de instrução, uma vez que já não estão em causa quaisquer direitos ou garantias que importa acautelar, visto que existe uma diferença de natureza e alcance entre a declaração de perdimento de um bem e a ordem da sua destruição.

A primeira assume natureza jurisdicional, uma vez que, com a declaração de perdimento de bens, visa-se fixar, com trânsito em julgado, a extinção do direito de propriedade do respectivo dono sobre os mesmos.

Já a segunda não interfere minimamente com quaisquer direitos de terceiros, nomeadamente o de propriedade.

                Ora, não há, neste momento, que tomar posição quanto ao destino dos bens, pois tal ainda não foi objecto de apreciação nos autos.

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                III) DECISÃO:

Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção deste Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC.

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               (José Eduardo Martins - Relator)

               (Maria José Nogueira)