Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
195/09.8T3AVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE JACOB
Descritores: FALSO TESTEMUNHO
Data do Acordão: 05/18/2011
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA - JUÍZO DE MÉDIA INSTÂNCIA CRIMINAL DE AVEIRO (JUIZ 2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 360º, DO C. PENAL
Sumário: 1. É irrelevante para a verificação do tipo a circunstância de se não ter apurado em qual das ocasiões o ora recorrente faltou à verdade, se quando prestou declarações em inquérito, se quando prestou depoimento em audiência.
2. O requisito material ou objectivo que condiciona a verificação do tipo legal previsto no art. 360º, nº 1, do Código Penal, na vertente do depoimento testemunhal, é a prestação de depoimento falso, elemento que está indesmentivelmente comprovado, já que tendo o recorrente prestado declarações díspares naquelas duas ocasiões, não restam dúvidas de que num dos depoimentos faltou à verdade.
3. Esta determinação alternativa dos factos constitui uma excepção ao funcionamento do princípio in dubio pro reo, sofrendo apenas os limites decorrentes do princípio da legalidade e os decorrentes da eventual verificação da prescrição relativamente a uma das incriminações (não necessariamente a mais antiga), já que no caso de factos temporalmente distanciados, a determinação alternativa nos termos preconizados não poderá funcionar em desfavor do arguido.
Decisão Texto Integral: Recurso próprio, tempestivamente interposto por sujeito processual dotado de legitimidade e interesse em agir e recebido com o efeito adequado.

O recurso oferece-se, porém, como manifestamente improcedente, o que constitui causa de rejeição [art. 420º, nº 1, al. a), do CPP], razão pela qual, nos termos do disposto no art. 417º, nº 6, al. b), do CPP, se profere


DECISÃO SUMÁRIA


            Nestes autos de processo comum que correram termos pelo Juízo de Média Instância Criminal de Aveiro (Juiz 2) – Comarca do Baixo Vouga, após julgamento com documentação da prova produzida em audiência foi proferida sentença em que se decidiu nos seguintes termos:

            (…)

Pelo exposto, e na procedência da acusação, decide-se:

I. Condenar o arguido CC..., como autor material de um crime de falsidade de testemunho p. e p. pelo art. 360º nº 1 do Código Penal, na pena de 140 (cento e quarenta) dias de multa à taxa diária de €5 (cinco euros), o que perfaz a soma de €700, e a que correspondem, subsidiariamente, 93 dias de prisão.

(…)

            Inconformado, o arguido CC... interpôs recurso, retirando da respectiva motivação as seguintes conclusões:

            I – O facto nº 3 “no decurso da audiência foi perguntado por diversas vezes a arguido se alguma vez tinha comprado haxixe ao referido R..., arguido no processo em questão, tendo o mesmo respondido que não” não recolheu, na audiência de julgamento, pelas razões expostas, prova bastante para ter sido, como foi, julgado provado.

            II – Assim sendo, falta o elemento fáctico para que o arguido possa ser condenado;

III -  A par disso e sem conceder, ainda que aquele facto seja julgado provado, não se apurou qual dos depoimentos, se o prestado no inquérito, se o da audiência de julgamento, é desconforme com a realidade.

IV – Como o crime de falso testemunho tem como elemento de facto uma acção ou facto voluntário concreto desconforme com a realidade, importaria, para a aplicação da norma do art. 360º, nº 1, por que o arguido foi condenado, que se apurasse qual das duas acções do arguido havia sido a desconforme, o que não aconteceu e, como assim, não se verifica esse elemento do crime que desencadeie a sanção.

V – Ficando a dúvida sobre qual das condutas imputadas ao arguido foi a desconforme com a realidade, impunha-se a aplicação do princípio in dubio pro reo… e a absolvição do arguido.

VI – Nestes termos, deve ser dado provimento ao recurso, revogada a douta sentença recorrida e substituída por outra que absolva o arguido.

O M.P. respondeu, pugnando pela improcedência do recurso.

            Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer sufragando a posição assumida pelo M.P. em 1ª instância, pronunciando-se também pela negação de provimento.       

Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso. E assim sendo, perante o alegado pelo recorrente, é manifesto estarmos perante caso de rejeição do recurso por manifesta improcedência, nos termos previstos no art. 420º, nº 1, al. a), do Código de Processo Penal, já que, como referem Simas Santos e Leal Henriques, dizer-se que o recurso é improcedente e de forma manifesta “significa que, atendendo à factualidade apurada, à letra da lei e à jurisprudência dos Tribunais superiores, é patente a sem razão do recorrente, sem necessidade de ulterior e mais detalhada discussão jurídica em sede de alegações escritas ou alegações orais”[1].

Conforme o disposto no art. 420º, nº 2, do CPP, há apenas que identificar o tribunal recorrido, o processo e os seus sujeitos e que especificar sumariamente os fundamentos da decisão.

Na sentença recorrida tiveram-se como provados os seguintes factos:

1. No dia 10 de Março de 2009, pelas 10 horas e 30 minutos, nas instalações do Tribunal Judicial de Aveiro, em sede de audiência de julgamento no âmbito do Processo Comum Colectivo n.º 578/08.0 PEAVR, no qual se encontrava a ser julgado RF…, ao qual era imputada a prática de um crime de tráfico de estupefacientes, o arguido, na qualidade de testemunha de acusação, prestou declarações, tendo sido expressamente advertido pelo magistrado que presidia a diligência de que era obrigado a responder com verdade à matéria dos autos e que a falsidade das respostas o faria incorrer em responsabilidade criminal.

2. O arguido entendeu o significado e alcance de tal advertência, bem como as consequências que lhe poderiam advir de um depoimento falso.

3. No decurso da aludida audiência foi perguntado por diversas vezes ao arguido se alguma vez tinha comprado haxixe ao referido RF…, arguido no processo em questão, tendo o mesmo respondido que não.

4. Porém, no dia 16 de Outubro de 2008, nas instalações da Esquadra de Investigação Criminal de Aveiro, no decurso da sua inquirição enquanto testemunha efectuada no âmbito do inquérito que deu origem aos supra referidos autos, o arguido declarou que conheceu o “Gigio”, sabendo tratar-se de RF…, a quem comprou pedaços de pólen de haxixe, pela quantia de 10 euros, contactando-o normalmente pessoalmente e tendo-lhe mandado uma ou duas mensagens, a encomendar haxixe.

5. Prestando na P.S.P. e em Tribunal depoimentos absolutamente contraditórios, o arguido prestou depoimento que sabia não corresponder à verdade.

6. O arguido mentiu deliberadamente, com intuito de prejudicar a boa administração da justiça, tendo agido de forma voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.

7. Depois de ter trabalhado temporariamente em várias empresas e de ter tido alguns períodos algo atribulados derivados da separação dos pais, actualmente o arguido está a frequentar um curso de multimédia que lhe dá acesso à obtenção do 12º ano de escolaridade, recebendo um subsídio de cerca de €150 por tal frequência.

8. Vive com sua mãe e padrasto.

9. É tido como bom rapaz e respeitador.

10. Do seu CRC constam averbadas duas condenações, em penas de prisão suspensas na sua execução, por crimes de roubo cometidos em 27/12/2007 e 26/02/2008.

A convicção do tribunal recorrido quanto à matéria de facto foi fundamentada nos seguintes termos:

O tribunal, num juízo crítico de apreciação da prova produzida, formulou a sua convicção, tendo por base nos seguintes elementos:

a) nas declarações do arguido que apenas se dispôs a prestá-las quanto à sua situação económica, familiar e habilitações literárias;

b) no depoimento da testemunha CF… (pai do arguido) o qual fez alusão ao período de alguma perturbação do arguido derivado da separação dos pais, tecendo contudo as melhores considerações acerca do comportamento actual do arguido;

c) no teor dos seguintes documentos: certidão de fls. 2 a 8, oriunda daquele Processo Comum Colectivo n.º 578/08.0 PEAVR, das quais se destacam a fls. 3 as declarações prestadas pelo arguido (enquanto testemunha) em sede do inquérito, a fls. 4 a 8 a acta daquela audiência de julgamento, na qual é ordenada a extracção de certidão contra a testemunha (ora arguido). Igualmente foi tido em conta a transcrição do depoimento do arguido (enquanto testemunha) prestado naquela audiência de julgamento, transcrição essa constante de fls. 35 a 43. Igualmente foi ouvido em audiência o CD, que consta a fls. 46, respeitante à referida transcrição de fls. 35 a 43.

Ainda foi tido em consideração o CRC do arguido constante de fls. 98 a 101.

d) nas regras da experiência comum ligadas à consciência da ilicitude por parte do arguido e à voluntariedade da sua conduta, regras essas que, apesar do silêncio do arguido em audiência quanto aos factos de que estava acusado, não foram minimamente postas em causa em sede de audiência.

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Especificando sumariamente os fundamentos da decisão, diremos ser manifesta a inaptidão dos argumentos aduzidos pelo recorrente para pôr em crise a sentença recorrida.

Na verdade, não contende com o direito ao silêncio, invocado pelo recorrente, a audição de gravação de depoimento que prestou em audiência de julgamento realizada noutro processo, em que tinha a qualidade de testemunha e em que estava obrigado a responder e com verdade ao que lhe fosse perguntado.

De resto, aquela gravação, aliás, transcrita nos autos, constitui prova documental (cfr. art. 166º, nº 3, do CPP – o registo fonográfico constitui prova documental), lícita (art. 125º do CPP), cuja conformidade com a realidade não foi fundadamente posta em causa.

Por outro lado, é irrelevante para a verificação do tipo a circunstância de se não ter apurado em qual das ocasiões o ora recorrente faltou à verdade, se quando prestou declarações em inquérito, se quando prestou depoimento em audiência. O requisito material ou objectivo que condiciona a verificação do tipo legal previsto no art. 360º, nº 1, do Código Penal, na vertente do depoimento testemunhal, é a prestação de depoimento falso, elemento que está indesmentivelmente comprovado, já que tendo o recorrente prestado declarações dispares naquelas duas ocasiões, não restam dúvidas de que num dos depoimentos faltou à verdade. E nem se diga, como o faz o recorrente, que nestas circunstâncias deveria ter sido absolvido em homenagem ao princípio in dubio pro reo. Este é um daqueles casos “em que o juiz não logra esclarecer, em todas as suas particularidades juridicamente relevantes, um dado substrato de facto, mas em todo o caso o esclarece suficientemente para adquirir a convicção de que o arguido cometeu uma infracção, seja ela em definitivo qual for (…). Nestes casos ensina-se ser admissível, dentro de certos limites, uma condenação com base em uma comprovação alternativa dos factos”[2]. Esta determinação alternativa dos factos constitui uma excepção ao funcionamento do princípio in dubio pro reo, sofrendo apenas os limites decorrentes do princípio da legalidade e os decorrentes da eventual verificação da prescrição relativamente a uma das incriminações (não necessariamente a mais antiga), já que no caso de factos temporalmente distanciados, a determinação alternativa nos termos preconizados não poderá funcionar em desfavor do arguido.

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O recurso afirma-se, pois, e de forma manifesta, como totalmente improcedente, pelo que o rejeitamos, nos termos do art. 420º, nº 1, al. a), do CPP.

            Condena-se o recorrente na taxa de justiça de 3 UC e ainda na importância de 3 UC, esta última ao abrigo do previsto no nº 3 do art. 420º do CPP.

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Jorge Miranda Jacob


[1] - Cfr.“Recursos em Processo Penal”, 5ª Ed., pág. 111.
[2] - Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal I”, pag. 218