Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
509/20.0PCCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANA CAROLINA CARDOSO
Descritores: INSUFICIÊNCIA PARA A DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA
JULGAMENTO NA AUSÊNCIA DO ARGUIDO
CONDIÇÕES PESSOAIS DO ARGUIDO
REENVIO DO PROCESSO PARA NOVO JULGAMENTO
Data do Acordão: 03/22/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE COIMBRA – JUIZ 2
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGO 71.º, N.º 2, DO CÓDIGO PENAL
ARTIGOS 333.º, N.º 3, 368 A 371.º, 410.º, N.º 1, ALÍNEA A), 426.º, N.º 1, E 426.º-A, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário: I - O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada verifica-se quando o tribunal deixa de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes para a decisão, alegados pela acusação, pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda quando o tribunal não investigou factos essenciais para a decisão que deviam ter sido apurados em julgamento, como para a escolha e determinação da medida da pena.

II - Trata-se de uma válvula de segurança do sistema a usar nas situações em que não seja possível tomar uma decisão sobre a questão de direito, por a matéria de facto ser manifestamente insuficiente, carecendo de indagação adicional.

III - Dada a importância do apuramento das condições relativas à personalidade e modo de vida do agente, o Código de Processo Penal português consagrou o sistema de cèsure: a produção de prova na audiência de julgamento é cindida: primeiro o tribunal decide a questão da culpabilidade; só depois de concluir ser de aplicar no caso uma pena ou medida de segurança se produz prova, incluindo a elaboração de relatório social, relativa à personalidade e condições pessoais do arguido, podendo reabrir a audiência para produção de prova suplementar com esse objetivo.

IV - Mesmo que o arguido não compareça na audiência, o tribunal tem o poder-dever de recorrer a outros meios probatórios para apurar as suas condições económicas e pessoais, actualizados ao momento mais próximo possível da sentença, nomeadamente através da elaboração do relatório social.

V - Quando a nulidade decorrente da verificação de um vício da sentença não envolve o juízo sobre a culpabilidade, já efetuado nos termos do artigo 368.º do Código de Processo Penal, nada obsta a que o mesmo juiz reabra a audiência para produção de prova suplementar com vista à determinação da sanção, porque não se trata de repetir um julgamento, antes de continuar e concluir o julgamento já iniciado com o objetivo a produção de prova suplementar ainda não produzida, relativamente à qual o tribunal recorrido não tomou ainda posição.

Decisão Texto Integral:
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RELATÓRIO

Por sentença constante de ata de 1 de junho de 2022, proferida pelo Juízo Local Criminal de Coimbra – J2, Comarca de Coimbra, no processo comum singular n.º 509/20...., foi decidido:

“1- Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material, na forma consumada, e em concurso real e efectivo: de um crime de dano, p. e p. no art. 212.º, n.º 1, 14.º, 26.º e 30.º, n.º 1, do C.P.; de um crime de violação de domicilio agravada, p. e p. no art. 190.º, n.ºs 1 e 3, 14.º, 26.º e 30.º, n.º 1, do C.P.; e de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. no art. 143.º, n.º 1, 14.º, 26.º e 30.º, n.º 1, do C.P., nas penas parcelares, para cada um dos crimes, de 200 (duzentos) dias de multa, e operando o cúmulo jurídico de penas, na pena única de 330 (trezentos e trinta) dias, à razão diária de 6,00€ (seis), o que perfaz o montante global de 1.980,00€ (mil novecentos e oitenta euros).

(…)

3- Julgo totalmente procedente o pedido cível deduzido pelo Demandante BB, por provado, e em consequência, condeno o arguido/demandado AA no pagamento de uma indemnização decorrente dos danos de caráter patrimonial no valor de € 1.225,00 (mil, duzentos e vinte e cinco euros) a que deverão acrescer os juros de mora devidos desde a notificação do presente pedido de indemnização civil até efetivo e integral pagamento, e ainda de uma indemnização por conta dos danos de caráter não patrimonial por este sofridos no valor de € 2.000,00 (dois mil), acrescidos de juros de mora à taxa legal em vigor, desde a data da presente sentença até efetivo e integral pagamento.

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Inconformado com a decisão, dela recorre o arguido AA, formulando as seguintes conclusões (que se transcrevem na parte relevante):

3. O Tribunal sustentou a sua decisão com base em critérios de experiência comum, não tendo logrado obter prova suficiente referente à personalidade e situação socioeconómica do, ora, recorrente, por a sustentar a medida concreta da pena aplicada.

4. É previsto no nosso Código Processo Penal, no seu artigo 410.º a necessidade de fundamentar suficientemente a sentença no que respeita, também, a estes elementos.

5. Ao não fazer, concluindo pela aplicação da medida da pena com base em meros critérios de experiência comum, considera, com o devido respeito, enfermar a sentença de vício de insuficiência conducente à nulidade da mesma.

7. Certo é que não logrou fazer-se prova da personalidade do agente que, além do mais, poderia, em termos práticos, resultar na inimputabilidade do agente e consequente medida concreta da pena aplicada resultar ser diferente da que ora se conhece.

8. Nestes termos, considera o recorrente impor-se a repetição da audiência de discussão e julgamento nos termos do artigo 426.º do Código Processo Penal, por certo que se considera que a decisão condenatória proferida, ao ser omissa quanto a factos relevantes para a determinação da sanção, é ferida do vício de insuficiência da matéria de facto provada, nos termos e para efeitos do artigo 410º, nº2, al. a) do Código de Processo Penal.

*

3. O Ministério Público em primeira instância respondeu ao recurso, sustentando a manutenção da sentença recorrida.

4. Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da total improcedência do recurso. 

*

II.

FUNDAMENTAÇÃO

SENTENÇA RECORRIDA

(transcrição das partes relevantes para o conhecimento dos recursos)

«(…) A) Factos Provados:

(Da acusação pública):

1. No dia 28.05.2020, pelas 07h00, na Residencial ..., sita na Rua ..., em ..., propriedade de BB, o arguido AA encontrava-se hospedado no quarto com o n.º ...2, e, exaltado uma vez que se fechou acidentalmente no referido quarto, partiu diversos dos bens ali existentes,

2. O arguido pegou numa cadeira de madeira e atirou-a pela janela para a rua, sendo que a mesma se partiu com o impacto no solo, de seguida, o arguido quebrou o vidro da porta do guarda-fatos e partiu o fecho da porta,

3. O arguido causou, no modo descrito, prejuízos no valor de pelo menos €550,00 (quinhentos e cinquenta euros), o que levou o ofendido BB a informá-lo que deverá abandonar o local e não mais voltar.

4. Entre a noite do dia 28.05.2020 e as 04h20 do dia 29.05.2020, naquele mesmo local, o arguido, por diversas vezes, tocou à campainha da porta da referida residencial com o propósito de aceder ao seu interior,

5. De seguida e já perto das 04h20 daquele dia 29.05.2020, o arguido quebrou o fecho da porta de entrada e acedeu ao interior da residencial,

6. O arguido, vendo o ofendido BB na cima das escadas que dão acesso ao 1.º andar, correu na sua direção e, apesar do ofendido tentar refugiar-se no seu quarto, o arguido alcançou-o e desferiu-lhe diversos pontapés no lado esquerdo do corpo do ofendido, atingindo-o, além do mais na perna, o que o fez cair,

11.Até à presente data, o arguido não ressarciu o ofendido pelos danos causados.

12.O arguido AA agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito concretizado de quebrar, partir e inutilizar os referidos objetos existentes no quarto da residencial do ofendido e a referida fechadura, não obstante bem saber que agiu contra a vontade do seu legitimo proprietário e lhe causava o prejuízo equivalente ao valor de tais bens e à impossibilidade do seu uso na exploração comercial da residencial.

13.O arguido agiu, ainda, de forma livre deliberada e consciente, com o propósito de se introduzir na referida residencial onde vivia além dos mais o ofendido, apesar de saber que tinha sido proibido de ali entrar pelo legitimo proprietário que, alias, não lhe abriu a porta, não se inibindo, de forma a lograr a entrada, arrombar a respetiva porta, de noite, e, assim, aceder ao interior contra a vontade do ofendido, o que logrou conseguir.

14.O arguido agiu, por fim, de forma livre deliberada e consciente, com o propósito concretizado de molestar o corpo do ofendido.

15.O arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e criminalmente punidas. Do pedido de indemnização cível:

16.Fruto da destruição de vários bens existentes no quarto em que o Demandado se encontrava alojado, designadamente, o quarto nº 22 da Residencial ..., o Demandante teve necessidade de substituir diverso mobiliário.

17.Nomeadamente, uma cama, um roupeiro e uma cómoda/camiseiro.

18.Aquisição que causou ao Demandante um prejuízo de € 550,00 (quinhentos e cinquenta euros).

19.O Demandante teve ainda necessidade de substituir a fechadura da porta de acesso ao quarto em questão.

20.Uma vez que os atos de destruição levados a cabo pelo Demandado, tornaram o quarto nº 22, da Residental ... inutilizável no período compreendido entre o dia 29 de maio de 2020 e o dia 25 de junho de 2020, o Demandante viu-se privado de alojar qualquer hóspede naquele quarto pelo referido período.

21.Circunstância que lhe causou prejuízo, dado que, naquele período, poderia ter comercializado o quarto em questão por um valor médio de € 25,00 (vinte e cinco euros) por noite.

32.O arguido nasceu em .../.../1952, encontra-se reformado da sua anterior atividade de ..., auferindo de pensões cerca de 15.000,00€ anualmente (cerca de 1.250,00€/mensais).

33.O arguido não tem condenações averbadas no certificado de registo criminal.

(…)

Relativamente às condições pessoais do arguido, o tribunal considerou o teor das bases de dados, com o teor da declaração fiscal de fls. 79/80 e declaração sobre a situação económica de fls. 60, e quanto à ausência de antecedentes criminais estribou-se no teor do certificado de registo criminal junto aos autos a fls. 128. (…)»

*

QUESTÕES A DECIDIR

…([1])

Assim, atendendo às conclusões formuladas, a única questão suscitada prende-se com a verificação do vício de insuficiência da matéria de facto e reenvio do processo.

*

III.

APRECIAÇÃO DO RECURSO

Invoca o recorrente padecer a sentença do vício a que se refere o art. 410º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal, por não constarem da sentença quaisquer factos referentes à personalidade e situação socioeconómica do arguido para sustentar a medida concreta da pena aplicada.

Para além dos antecedentes criminais do arguido, que constam do respetivo certificado de registo criminal, consta da sentença o seguinte: Na fundamentação da sentença recorrida, consta o seguinte: O arguido nasceu em .../.../1952, encontra-se reformado da sua anterior atividade de ..., auferindo de pensões cerca de 15.000,00€ anualmente (cerca de 1.250,00€/mensais).

Fundamentado se encontra este facto no seguinte: o tribunal considerou o teor das bases de dados, com o teor da declaração fiscal de fls. 79/80 e declaração sobre a situação económica de fls. 60, e quanto à ausência de antecedentes criminais estribou-se no teor do certificado de registo criminal junto aos autos a fls. 128.

Ou seja, o tribunal a quo, na ausência do arguido, reconhecendo a essencialidade da prova das suas condições pessoais, decidiu recorrer a informações constantes das bases de dados e através do Serviço de Finanças, numa altura em que se no inquérito se averiguava o paradeiro do arguido (referindo-se a declaração de rendimentos junta ao ano de 2019).

Nada mais.

O arguido foi julgado na ausência, constando de despacho proferido em ata a não essencialidade da sua presença “desde o início da audiência”. Estabelece o art. 333º, n.º 3, do Código de Processo Penal: “No caso referido no número anterior (início da audiência sem a presença do arguido), o arguido mantém o direito de prestar declarações até ao encerramento da audiência e, se ocorrer na primeira data marcada, o advogado constituído ou o defensor nomeado ao arguido pode requerer que este seja ouvido na segunda data designada pelo juiz ao abrigo do n.º 2 do artigo 312º”.

No caso, a audiência foi declarada abertas às 9,50 horas, foram inquiridas 4 pessoas, produzidas alegações orais, que terminaram às 11,08 horas, e logo depois, “tendo em vista a cooperação e agilização processual, e após ponderação”, foi lida a sentença de 24 páginas, que consta da ata – declarando-se encerrada a audiência às 12,25 horas.

Justiça célere, é certo, mas no caso manifestamente insuficiente para a obtenção da boa decisão da causa.

Na verdade, estabelece o art. 410º, n.º 2, al. a), do Código de Processo Penal o seguinte: “Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiencia comum, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”. Os vícios têm de resultar da própria sentença, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, sem necessidade de recurso a elementos estranhos à mesma ([2]).

O vício enunciado verifica-se quando os factos provados na sentença são insuficientes para fundamentar a solução de direito e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão da causa. Trata-se de uma válvula de segurança do sistema que deve ser utilizada nas situações em que não seja possível tomar uma decisão sobre a questão de direito, por se alicerçar em matéria de facto manifestamente insuficiente, carecendo de indagação adicional ([3]).

A sentença enferma de insuficiência de matéria de facto quando o tribunal deixa de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes para a decisão, alegados pela acusação, pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda quando o tribunal não investigou factos essenciais para a decisão que deviam ter sido apurados em julgamento, como para a escolha e determinação da medida da pena ([4]).

Na realidade, a atividade judicial de determinação da pena é, toda ela, juridicamente vinculada e não puramente discricionária, impondo a consideração das circunstâncias concretas a que se refere o n.º 2 do art. 72º do Código Penal, plasmadas em factos, que devem ser conjugados com “regras de direito escritas e não escritas, elementos descritivos e normativos, atos cognitivos e puras valorações”, erigindo desta forma a “fase de juridificação da determinação da pena” ([5]).

O n.º 2 do art. 71º do Código Penal manda o julgador atender, para a determinação concreta da pena, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do crime, deponham a favor e contra o agente, desde que relevantes para a culpa e a prevenção, geral e especial, como decorre do n.º 1. O n.º 3 do mesmo preceito impõe que na sentença sejam expressamente referidos os fundamentos da medida da pena.

Dada a importância do apuramento das condições relativas à personalidade e modo de vida do agente, o Código de Processo Penal português consagrou o designado sistema de cèsure, encontrando-se a produção de prova na audiência de julgamento cindida: o tribunal decide, primeiro, a questão da culpabilidade e só depois de concluir ser de aplicar no caso uma pena ou medida de segurança produz prova (incluindo a elaboração de relatório social) relativa à personalidade e condições pessoais do arguido, podendo reabrir a audiência para produção de prova suplementar com esse objetivo (arts. 368º a 371º do Código de Processo Penal).

No caso dos autos, a factualidade relativa à personalidade e condições pessoais do arguido constantes da sentença, em confronto com a respetiva motivação, é manifestamente insuficiente para possibilitar uma ponderação dos elementos a que o n.º 2 do art. 71º do Código Penal manda atender para a determinação da medida da pena (a que acrescem as condições a atender para a fixação da indemnização por danos não patrimoniais, enunciadas no n.º 3 do art. 496º do Código Civil).

Mesmo que não seja possível obter a comparência do arguido na audiência de julgamento, o tribunal tinha o poder-dever de recorrer a outros meios probatórios para apurar as condições económicas e pessoais do arguido, atualizados ao momento mais próximo possível da sentença, nomeadamente através da elaboração do relatório social a que se refere o art. 370º do Código de Processo Penal.

Nenhuma tentativa de apurar as condições de vida do arguido foi efetuada, nem tentada a sua comparência em julgamento para esclarecer, querendo, o tribunal quanto às mesmas.

A celeridade processual a que hodiernamente tanto se apela não se coaduna nem permite que se prescinda do apuramento das condições de vida do futuro condenado para determinar qual a sanção e medida da mesma que se mostram mais adequadas à realização das finalidades das penas no caso concreto. Acresce que foi o próprio tribunal que decidiu ser a presença do arguido dispensável no julgamento, o que resulta num ónus superior para agir ao abrigo do art. 340º do Código de Processo Penal com vista à produção da prova possível para aplicação de uma pena justa.

Verificado se encontra, assim, o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, que não é suprível nesta instância por depender de prova a produzir.

Maioritariamente, a jurisprudência tem entendido que a nulidade decorrente da omissão do apuramento de factos relativos à situação pessoal e económica do arguido implica o reenvio do processo para novo julgamento, conforme se encontra previsto nos arts. 426º, n.º 1, e 426º-A do Código de Processo Penal.

No entanto, importa atentar que o reenvio tem por objetivo evitar a repetição do julgamento perante o mesmo tribunal que tomou já posição sobre a prova produzida. Quando a nulidade decorrente da verificação de um vício da sentença não envolve o juízo sobre a culpabilidade já efetuado nos termos do art. 368º do Código de Processo Penal, no plano dos princípios vigentes no processo penal nada obsta a que o mesmo juiz reabra a audiência para produção de prova suplementar com vista à determinação da sanção ([6]). Não tem cabimento determinar a remessa dos autos para outro tribunal, antes assegurando a prolação da nova sentença pelo mesmo juiz o princípio da plenitude da assistência dos juízes, consagrado no art. 328º-A do Código de Processo Penal ([7]).

Do que se trata não é de repetir um julgamento, antes de continuar e concluir o julgamento já iniciado (e indevidamente concluído, por não ter incidido sobre a sua segunda parte, a que se referem os arts. 369º a 371º do Código de Processo Penal).

Como se decidiu no acórdão do STJ de 27-06-2012 ([8]), “o artigo 40.º do CPP assume uma específica dimensão processual que tem por objetivo essencial assegurar uma das finalidades últimas do processo penal que é o da garantia da imparcialidade que caracteriza o processo justo a que tem direito qualquer arguido.

O funcionamento da tutela da imparcialidade, ínsito na reformulação operada no artigo 40.º do CPP, não tem cabimento quando está em causa a mera supressão de causas de nulidade detetadas na decisão e não uma nova apreciação da matéria de facto.” ([9]).

Por essa razão importa neste caso determinar a remessa para o mesmo tribunal ([10]) de molde a que a audiência seja reaberta para a determinação da sanção, nos termos do art. 371º do Código de Processo Penal ([11])

Na verdade, no sistema de césure de que é tributário o nosso sistema processual penal a questão da determinação da sanção aplicável é destacada da questão da determinação da culpabilidade do agente. A reabertura da audiência que se ordena encontra-se prevista no art. 371º do Código de Processo Penal, e tem por objetivo a produção de prova suplementar ainda não produzida, relativamente à qual o tribunal recorrido não tomou ainda posição. Por essa razão, e contrariamente às regras vigentes no reenvio, não está em causa evitar a repetição do julgamento por um tribunal que tomou anteriormente posição sobre a valia da prova produzida.

Esta a razão para deferimento da competência para produção de prova suplementar exatamente ao mesmo tribunal/juiz que presidiu aos restantes atos relativos à culpabilidade do arguido ([12]).

Assim, impõe-se a reabertura da audiência de julgamento para o apuramento das condições sociais, familiares e económicas, do arguido, bem como a posterior prolação de nova decisão que deverá ter em consideração os factos que se venham a provar relativos às condições de vida do arguido.

*

IV.

DECISÃO

Pelas razões expostas, decide-se:

Na procedência do recurso, declarar a nulidade parcial da sentença recorrida, ordenando-se a remessa do processo ao tribunal a quo a fim de se proceder à reabertura da audiência para apuramento das condições pessoais do arguido, e, posteriormente, à prolação de nova sentença que reconfigure a matéria de facto e a medida da pena em conformidade – a ser efetuada pela Exma. Juíza que presidiu ao julgamento anterior.

Sem tributação.

Coimbra, 22 de março de 2023

Ana Carolina Veloso Gomes Cardoso (relatora – processei e revi)

João Bernardo Peral Novais (1º adjunto)

Rui Pedro Miranda Mendes Lima (2º adjunto)



[1]
[2] Cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8ª ed., pág. 77-78, e Germano Marques da Silva,
direito Processual Penal Português, Do Procedimento, Univ. Católica, 2018, pág. 323 e ss.
[3]A título exemplificativo, v. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.10.2013, Proc.
53/12.9GACUB.S1, 5ª seção, e de 13.11.2013, proc. 33/05.0JBLSB.C1.S2, 3ª secção.
[4]A título exemplificativo, v. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.10.2013, Proc.
53/12.9GACUB.S1, 5ª seção, e de 13.11.2013, proc. 33/05.0JBLSB.C1.S2, 3ª secção.
[5] Cf. Figueiredo Dias, “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, 1993, págs.
194-195.

[6] Concordando com o Juiz. Cons. Simas Santos, na declaração de voto que apôs no Ac. de 29.3.2003,
proc. 03P756, em www.dgsi.pt.
[7] Cf. Ac. da Relação de Évora de 16.2.2016, rel. Fernando Ribeiro Cardoso, proc. 3/16.3YREVR, em
www.dgsi.pt.
[8] processo n.º 127/10.0JABRG.G2.S1.
[9] Citado no Ac. referido na nota 7
[10] O denominado “reenvio atípico”, a que se refere Carmona da Mota, no Ac. do Supremo Tribunal de
Justiça de 13.3.2003, proferido no Proc. 03P623, em www.dgsi.pt.
[11] no mesmo sentido, cf. os Acórdãos da Relação de Lisboa de 10.9.2013, proc. 58/12.0PJSNT.L1-5, de
23.5.2017, proc. 307/14.0PEAMD.L1-5, rel. Artur Vargues, e desta Relação de Coimbra de 1.6.2022, rel.
Paulo Guerra, proc. 218/21.2GCCVL.C1, todos em www.dgsi.pt.

[12] no mesmo sentido, cf. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 18.12.2008, rel. Simas Santos, proc.
08P2816, em www.dgsi.pt, e Ac. da Relação de Lisboa de 18.2.2014, rel. Jorge Gonçalves, em Coletânea
de Jurisprudência, 2014, tomo I, p. 147-149.