Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
341/05.0 TALRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA
Data do Acordão: 11/07/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 3º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 205º CP
Sumário: 1.- O crime de abuso de confiança pressupõe a quebra da «relação de fidúcia» que intercede entre o agente e o proprietário da coisa e entre o agente e a própria coisa – quer seja uma relação anterior de confiança (artigo 205.º, n.º 1), quer seja uma relação especial e positivamente determinada na lei («depósito imposto por lei» - n.º 5);
2.- Elemento da essencialidade típica é a apropriação; o agente tem que fazer sua a coisa, passando a actuar uti domini, como se fosse o verdadeiro proprietário. A apropriação tem que ser “para si”; mesmo que o agente dê a coisa gratuitamente a outra pessoa, tem que haver um momento, ao menos lógico, em que o agente se apropria da coisa.
Decisão Texto Integral: I. Relatório.
1.1. Os arguidos A... e B..., ambos entretanto já melhor identificados, e ao que ora releva, foram submetidos a julgamento, sob a aludida forma de processo comum colectivo, porquanto oportunamente pronunciados, cada um deles, pela autoria material consumada de um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo art.º 205.º, n.ºs 1 e 2, al. b), do Código Penal.
No decurso da respectiva audiência, no entendimento pelo Tribunal a quo de que emergiria dos autos uma alteração não substancial de factos e uma alteração da qualificação jurídica, esta porquanto os factos imputados na acusação configurariam, no que àquele ilícito concerne, não a aludida subsunção legal, mas antes a previsão inserta no art.º 205.º, n.ºs 1 e 4, al. b), do Código Penal, acatado o estatuído pelo art.º 358.º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Penal, nada requereram os sujeitos processuais visados.
W..., Lda., com sede na Rua … , em Leiria, mediante articulado de fls. 1346/1350, constitui-se assistente; deduziu acusação nos termos do art.º 284.º, do Código de Processo Penal (aderindo à acusação pública e acrescentando alguns factos), e deduziu pedido de indemnização civil contra (mormente) tais arguidos, pedindo a sua condenação solidária a solverem-lhe a quantia de € 69.361,78, acrescida de juros desde a citação e até efectivo e integral pagamento.
Realizado o contraditório, por acórdão adrede proferido, determinou-se no que contende com o aludido segmento do objecto processual, e além do mais:
- Condenar cada um dos visados arguidos A... e B... como co-autor de um crime de abuso de confiança, p. e p. pelos art.ºs 26.º e 205.º, n.ºs 1 e 4, al. b), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão, cuja execução se suspendeu por correspondente (s) período (s) de tempo;
- Mais os condenar a pagarem solidariamente à demandante W..., Lda., a reclamada quantia de € 69.361,78, acrescida de juros desde a data da sua notificação para contestarem tal pedido, e até efectivo e integral pagamento à peticionante.
1.2. Arguidos e demandados que, porque desavindos com o teor desse veredicto, interpõem o presente recurso, formulando, após motivação, a seguinte ordem de conclusões:
1. Os factos provados e imputados aos co-arguidos não permitem condená-los a nenhum título pelo crime de abuso de confiança, por não preencherem a factualidade típica nem do lado do tipo objectivo, nem do lado do tipo subjectivo em termos tais que só à custa de frontal e irremível violação do imperativo constitucional de legalidade/tipicidade (nullum crimen sine lege) seria possível persistir na sua condenação.
2. Considerando ambas as situações, a da assistente e do arguido ... devem ter tratamento igual no plano ético tão censurável uma como a outra.
O crédito da assistente estava vencido em 16 de Abril de 2004 e era exclusiva responsável a .... O aval é posterior ao vencimento da dívida e entregue em Maio/Junho de 2004, com vencimento, a primeira letra, em Setembro de 2004.
3. A infracção compreende um conjunto de pressupostos que se podem reconduzir a três: uma entrega e um recebimento lícitos; o descaminho ou apropriação por parte do agente; um prejuízo ou perigo de prejuízo para o proprietário. Os factos descritos nos números 17 a 27 da matéria provada nada têm a ver com o crime de abuso de confiança, não preenchendo a factualidade típica nem realizando o pertinente ilícito material típico.
Nada relevando, para o efeito a circunstância, de que com a sua conduta, os arguidos terem causado um prejuízo à W.... Pela razão de que o direito penal está sujeito a um estrito e inultrapassável princípio de legalidade/tipicidade.
4. Em direito penal não releva um qualquer prejuízo, nem mesmo um prejuízo ilicitamente causado a terceiro, por mais elevado que ele seja. Em direito penal só assumem relevo os prejuízos causados pela conduta típica e segundo o processo causal típico previstos na correspondente norma incriminatória. Tudo o que cair fora do alcance da factualidade típica duma qualquer incriminação terá de ser solucionado fora do “direito e do processo penal”. No caso vertente, terá concretamente de se solucionar no foro cível.
5. Com a sua acção – recusa da entrega das letras à W... –, os recorrentes fizeram regredir as coisas ao status quo inicial, isto é, ao momento anterior à primeira entrega das letras à firma credora. Repare-se que os arguidos poderiam nunca ter entregue aquelas letras à W..., hipótese em que persistiria intocada a dívida de € 69.361,78; depois de o Banco ter recusado o desconto por insuficiência de aval, os arguidos poderiam, pura e simplesmente, ter recusado acrescentar os avais solicitados pelo banco, hipótese em que o Banco continuaria a recusar o desconto e em que continuaria a persistir intocada a dívida de € 69.361,78.
6. Só faria sentido falar de abuso de confiança se fosse possível referenciar uma qualquer inversão do título de posse de que resultasse para a W... a desapropriação do seu crédito e reversamente, significasse por outro lado a extinção da sua dívida o que manifestamente não aconteceu.
7. O Acórdão da Relação de Coimbra, relatado pelo Ex.mo Desembargador Fernando Ventura, com data de 4 de Fevereiro de 2009, acolhe aquela Doutrina. O arguido antes satisfez, no exercício pleno dos seus poderes de gerência a assumpção duma dívida sobre a sociedade a qual poderia ser a única accionada pelo credor.
8. À assistente permanece inalterada como credora, que continua a ser, a possibilidade de exigir judicialmente o pagamento.
9. No caso em apreço, não tendo a conduta dos arguidos determinado qualquer diminuição patrimonial indevida (ilícita) na esfera jurídica da assistente, impõe-se concluir pela ausência dos pressupostos da obrigação de indemnizar tal como definidos no art.º 483.°, do Código Civil.
10. Sustenta a assistente/demandante que com a decisão de não entregar as letras os arguidos impediram a demandante de executar, contra a sociedade … e contra o arguido, letras que ascendem a € 69.361,78, ou seja, que contava legitimamente que o arguido pagasse a dívida pela qual assumia a responsabilidade pessoal e reclama ter sofrido “prejuízo correspondente” às quantias que, cumprido o acordado, teriam antes ingressado na esfera do seu património.
Como lapidarmente é sufragado naquele Acórdão e que ora se transcreve:
“Trata-se porém de pretensão indemnizatória fundada exclusivamente em cumprimento contratual, a qual não pode ser aqui conhecida. Nos termos do assento do STJ n.º 7/99, de 17/6/99 [XXIX]:
«Se em processo penal for deduzido pedido cível, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no art.º 377.º, n.º 1, do Código de Processo penal, ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade contratual».
Falece igualmente a condenação do arguido no pagamento de indemnização à demandante..., Lda.”
11. Devendo os arguidos ser absolvidos do crime de abuso de confiança, falece igualmente a condenação dos mesmos no pagamento da indemnização à demandante.
12. Por argumento à “fortiore” tendo o arguido B… funcionando como um “núncio”, não tendo dado o aval, nem sequer prometido dá-lo, em nada prejudicou ou beneficiou com a situação.
Terminaram pedindo a revogação do acórdão prolatado de acordo com o assim alegado.
Com o requerimento de interposição do recurso, juntaram tais arguidos/demandados uma “carta” elaborada pelo Ex.mo Professor Costa Andrade. Em síntese essencial sufraga tal Mestre que a materialidade apurada no acórdão da 1.ª instância não preenche a factualidade típica, nem do lado objectivo, nem do lado subjectivo, do art.º 205.º, n.ºs 1 e 4, al. b), do Código Penal, donde que a impor-se o eximir da responsabilidade penal e civil decretadas pelo acórdão em causa.
1.3. Acatado o art.º 411.º, n.º 6, do Código de Processo Penal, apenas respondeu o Ministério Público. Fê-lo sustentando a manutenção da condenação penal imposta.
1.4. Proferido despacho admitindo os recursos interpostos, cumpridas as formalidades devidas, os autos foram remetidos a esta instância.
1.5. Aqui, no momento processual a que alude o art.º 416.º, ainda do diploma adjectivo penal, o Ex.mo Procurador-geral Adjunto emitiu parecer concordante com o antes expendido pelo Ministério na 1.ª instância.
1.6. Observado o subsequente art.º 417.º, n.º 2, replicaram os arguidos/demandados rebatendo o expendido pelo Ex.mo PGA.
1.7. No exame preliminar a que se reporta o n.º 6, ainda deste inciso, consignou-se que nenhuma circunstância determinava a apreciação sumária das impugnações, ou obstava ao seu conhecimento de meritis, donde que a deverem prosseguir, com a recolha de vistos, o que se verificou, e submissão à presente conferência.
Urge, então, ponderar e decidir.
*
II. Fundamentação de facto.
2.1. No que ora concerne, o acórdão recorrido teve como provados os factos seguintes:
1. Na certidão de matrícula da sociedade … Lda., com sede na Rua … , Leiria, constam inscritas:
- Mediante a apresentação 11 de 29.08.1994, a designação da gerência do arguido A...;
- Mediante a apresentação 7 de 14.05.1997, a designação da gerência do arguido A..., tendo a cessação de funções sido inscrita pela apresentação 11 de 23.09.2004, mencionando-se tratar de renúncia datada de 27.08.2004;
- Mediante a apresentação 10 de 25.03.2002, a designação do início da gerência do arguido B..., tendo a cessação de funções sido inscrita pela apresentação 9 de 23.09.2004, mencionando-se tratar de renúncia datada de 24.08.2004.
2. Tal sociedade foi constituída em 29 de Agosto de 1994.
3. Tinha como objecto social a execução de terraplanagens, urbanizações e construção de edifícios e obras públicas, investimentos imobiliários, compra e venda de imóveis e revenda de adquiridos e fabricação de elementos em metal,
4. Cessou a sua actividade em Agosto de 2004.
5. E foi declarada falida por sentença proferida no dia 29 de Junho de 2005, transitada em julgado.
(…)
17. Entre os credores da sociedade … , Lda., figurava a sociedade W..., Lda., aqui assistente, a qual, no exercício da sua actividade comercial, executou, para aquela, diversos trabalhos de instalações eléctricas.
18. Em Maio de 2004, o crédito da assistente ascendia à quantia de € 69.361,78 (sessenta e nove mil trezentos e sessenta e um euros e setenta e oito cêntimos).
19. Para pagamento, o arguido B... entregou à W..., Lda., onze letras de câmbio, compreendendo aquele valor e o excedente a título de despesas.
20. Com vencimento em 4/09/2004, 4/10/2004, 4/11/2004, 4/12/2004, 4/01/2005, 4/2/2005, 4/03/2005, 4/04/2005, 4/05/2005, 4/06/2006 e 4/07/2005, aceites pela …, Lda., e avalizadas pelo sócio e gerente A....
21. Porém, para serem aceites, para desconto, o banco exigiu que fossem também avalizadas pelos sócios … e B....
22. Daí que a W..., Lda. tenha entregue ao arguido B... as letras, a fim de serem completadas quanto aos avais exigidos.
23. Todavia, na sequência da recusa em prestar o aval, por parte do arguido B… , o arguido A..., que deixara a empresa em 15 de Julho de 2004, disse ao arguido B... (que o contactara, informando-o da posição do arguidoB… ) para reter essas letras e não as devolver, o que este fez, contra a vontade da W....
24. Com a não devolução das referidas letras, impediram, assim, os arguidos A... e B... que a W..., Lda., instaurasse execução com base naqueles títulos.
25. E obstaram, ainda, à execução do património pessoal do avalista A....
26. Com o que provocaram à assistente, que não obteve pagamento do seu crédito, um prejuízo no indicado valor, o que bem sabiam, obtendo, para o arguido A..., o enriquecimento equivalente à não execução do seu património, o que sempre quiseram, não obstante saberem que esse benefício era ilegítimo.
27. Em todas as supra circunstâncias de tempo, modo e lugar referidas nos pontos 23 e seguintes, os arguidos A... e B... agiram deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei.
(…)
50. O arguido A... é aposentado da função pública, auferindo uma pensão de reforma de pouco menos de € 800,00.
51. A sua esposa é educadora de infância e ganha cerca de € 2.000,00 mensais.
52. Tem dois filhos, de 16 e 11 anos de idade, a seu cargo e da sua esposa.
53. Vive numa casa própria da família.
54. O arguido A... é descrito como tendo boas capacidades de inserção familiar, sem quaisquer desenvolvimentos negativos, beneficiando de adequado suporte familiar.
55. Do certificado de registo criminal do arguido A... constam:
- Uma condenação, datada de 19.12.2006 e transitada em julgado em 16.01.2007, pela prática, entre Janeiro de 2004 e Setembro de 2005, de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo art.º 105.º, n.º 1, da Lei n.º 15/2001, de 05.06, na pena de 180 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, perfazendo o total de € 900,00. Tal pena foi declarada extinta, pelo pagamento da multa, em 20.07.2009.
- Uma condenação, datada de 01.02.2010 e transitada em julgado em 22.02.2010, pela prática, em Setembro de 2004, de um crime de abuso de confiança fiscal contra a segurança social, p. e p. pelos art.ºs 105.º, n.º 1, e 107.º, ambos da Lei n.º 15/2001, de 05.06, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de € 7,00, perfazendo o total de € 630,00. Tal pena foi declarada extinta, pelo pagamento da multa, em 22.02.2011.
56. O arguido B... exerce a actividade de técnico administrativo, auferindo o vencimento mensal de € 830,00 / € 840,00.
57. Vive com a sua ex-mulher, que é formadora e que trabalha a recibos verdes, com o que por vezes ganha cerca de € 800,00 por mês.
58. O arguido não tem filhos.
59. O arguido contraiu um empréstimo bancário para adquirir casa, com o que paga € 350,00 mensais pela respectiva amortização.
60. O arguido é considerado como beneficiando de um bom enquadramento familiar, com estabilidade e equilíbrio, mantendo bons níveis de relacionamento e integração.
61. Do certificado de registo criminal do arguido B... consta uma condenação, datada de 01.02.2010 e transitada em julgado em 22.02.2010, pela prática, em Setembro de 2004, de um crime de abuso de confiança fiscal contra a segurança social, p. e p. pelos art.ºs 105.º, n.º 1, e 107.º, ambos da Lei nº 15/2001, de 05.06, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de € 7,00, perfazendo o total de € 630,00. Tal pena foi declarada extinta, pelo pagamento da multa, em 22.02.2011.
(…).
2.2. Relativamente a factos não provados, elencaram-se no dito acórdão recorrido os seguintes:
De entre os factos vertidos na pronúncia, na acusação da assistente, no pedido de indemnização civil e nas contestações, não se provaram os factos acima não descritos e os factos contrários aos factos supra descritos e dados como provados, sendo certo que o Tribunal se debruçou especificadamente sobre cada um dos factos não provados.
Assim, e designadamente, não se provou:
(…)
- Que os três arguidos tenham entregue à assistente as letras de câmbio relatadas nos artigos 39.º e seguintes da acusação;
- Que, para pagamento de tais letras, o banco tenha exigido também e apenas o aval do arguido A...;
- Que, após essa exigência do banco, a assistente tenha entregue as letras aos arguidos, i.é, a todos ou algum mais que não apenas o arguido B...;
- Que os arguidos tenham prometido que também o arguido B... iria avalizar as letras, o que determinou a entrega das letras para serem apostas as assinaturas em falta;
- Que o arguido B... nada decidia de relevante para a empresa.
Também não resultaram provados, de entre os factos vertidos nas contestações do arguido A...:
(…)
- Que a assistente nunca tenha solicitado qualquer aval dos arguidos;
- Que tenha sido acordado que a letra de valor superior (€ 56.993,33) deveria ser reformada aquando seu vencimento;
- Que só apenas após a assistente se ter deslocado ao banco (e daí regressado) é que o arguido ... deu o seu aval, fazendo-o apenas para “desenrascar” e acreditando na viabilidade económica da empresa;
- Que, depois de saber que o arguido se recusava a prestar o seu aval, o outro arguido tenha dito ao arguido B... para emitir doze letras iguais às que tenham sido inicialmente entregues, sem o seu aval, e que tais letras (novas) tenham sido entregues à assistente.
(…).
2.3. Por fim, tem o teor seguinte a motivação probatória inserta no mesmo acórdão recorrido:
A convicção do Tribunal Colectivo para considerar provados e não provados os factos acima descritos teve por base a análise crítica e conjugada dos seguintes elementos probatórios, sobre os quais se fez incidir as regras da experiência comum.
Assim, o Tribunal considerou os seguintes elementos:
1. Declarações do arguido A..., que
(…)
Reconhece a W... como credora da … , sendo o valor da dívida desta para com aquela de mais de € 60.000,00. Reconhece as letras emitidas para pagar tal valor, explicando que o total era superior ao valor da dívida, dado abranger também despesas, e que a 12.ª letra (de mais de € 50.000,00) era para ser posteriormente reformada.
As letras foram entregues à credora em Maio ou Junho de 2004 sem qualquer aval.
Posteriormente, o … disse ao arguido A...para dar o aval às letras, o que este fez apenas para “facilitar” e não com o intuito de se responsabilizar pela dívida.
Posteriormente, já após o arguido A...ter saído da empresa, é contactado pelo arguido B..., que lhe diz ser preciso o aval do arguido … e que este recusou dar o aval. Nessa altura, o arguido A...disse ao arguido B...para reter aquelas letras e entregar à credora doze letras novas, já sem qualquer aval, que terão sido entregues.
Recorda ter dito ao … que lhe ia dar novas letras sem aval e que este aceitou tal facto.
A letra junta a fls. 402 foi por si assinada em branco, à semelhança de outras que deixava na empresa para serem preenchidas depois, quando necessário.
2. Declarações do arguido B..., que
(…)
Reconhece ter emitido as letras juntas a fls. 46-49 do apenso A, que entregou à funcionária da W... sem qualquer aval. Posteriormente, o arguido A...disse-lhe que as letras foram entregues para que ele (arguido ..., entenda-se) prestasse o aval, tendo esse aval sido prestado e as letras, de novo, sido entregues à assistente. Depois, o ... disse ao arguido B...que eram necessários mais avais, tendo este referido que ia falar com o ..., ficando com as letras. O ... recusou dar o seu aval, facto que o arguido B...comunicou ao arguido ..., que lhe disse para reter as letras e emitir novas, sem aval. O arguido B...emitiu novas letras, sem aval, e entregou-as à esposa do ..., D. …, sendo que nunca lhe pediram as primitivas letras.
(…)
3. Declarações de … , legal representante da assistente.
Confirmou os serviços que originaram o crédito, cujo valor referiu, e a emissão das letras juntas a fls. 46-49 do apenso A, que abrangiam o valor facturado e despesas. Tais letras foram entregues em Junho de 2004, vencendo-se a primeira 30 dias depois. A letra de valor superior a € 50.000,00 não era para ser reformada, devendo ser paga como as demais. Essas letras foram entregues à funcionária … já com o aval do A..., tendo o declarante explicado que exigiu esse aval. Tais letras foram apresentadas no U..., que sugeriu mais avais e que disse para as meter à cobrança, tendo o declarante guardado essas letras.
Depois, o arguido B..., tendo tido conhecimento da necessidade de se darem mais avais, ligou ao declarante e disse para este levar as letras para o ... também avalizar.
A … levou as letras, desconhecendo o declarante a quem foram entregues na … . O declarante falou, após, com o arguido B..., que lhe disse ter ordens para não as devolver, vindas do arguido .... O declarante falou com o arguido ..., que lhe disse estar fora da sociedade e que não fazia sentido o seu aval.
Não receberem quaisquer outras letras, sendo que nunca aceitaria letras sem avais por ter tido problemas com letras anteriormente.
Os pagamentos eram feitos com o A...e o B..., não vendo o declarante o arguido ... há um ano.
(…)
6. Depoimento de … , técnico oficial de contas que, através da sua empresa ( … ), fez a contabilidade da … desde Setembro de 2003 até Setembro/Outubro de 2004.
(…)
Das letras da W..., sabe que o banco não as quis descontar e que a letra de valor superior era para desdobrar.
(…)
9...., nora do declarante ... e que trabalha na W..., como empregada de escritório, desde 2002.
A pedido do ..., foi entregar letras à ... para serem prestados mais avais, que entregou ao B.... Essas letras já tinham o aval do ..., pois o ... queria garantias. Anteriormente, a depoente foi ao banco e a Dra. ... disse-lhe serem necessários mais avais, dos três sócios. Essas letras, que entregou ao B..., não foram devolvidas. A depoente chegou a telefonar para saber se estavam avalizadas e diziam que ainda não. Essas letras não foram substituídas e não foram pagas.
Após Agosto de 2004, as instalações da ..., nesse mês de férias, não reabriram.
Recorda o valor das letras, que cobriam as facturas e despesas.
O B..., quando recebeu as letras, disse que ia obter o aval do ..., nada dizendo se também ele iria avalizar as letras.
10. Depoimento de … efectuou serviços de contabilidade na ... até Julho de 2004, recordando que estava organizada. Recorda que foram entregues letras à W..., não sabendo se avalizadas ou não e se eram para substituir outras ou se se tratava de uma primeira entrega.
(…)
12. Depoimento de … nico oficial de contas da assistente desde 1993/1994. Relevantemente, sabe que a assistente tem um saldo credor de € 69.000,00 / € 70.000,00 sobre a ....
13. Depoimento de ..., bancária que exerceu funções de gestão de conta da assistente no U..., agência de … se recorda de a assistente (na pessoa do Sr. ... ou da D. … ue não consegue agora precisar) ter entregue algumas letras de um valor total que era elevado, e nas quais estava aposto um aval, tendo a certeza de que aval estava já dado. Como o banco não tinha um bom conceito comercial da ..., solicitou o aval completo de todos os sócios e gerentes e respectivos cônjuges, o que conferiria um conforto adicional. Tais letras ficaram guardadas no cofre e, dias depois, a assistente foi lá buscá-las para efeitos de prestação dos avais. A depoente não mais viu as letras, nem outras em sua substituição, tendo ouvido, da parte da assistente, que não lhe foram dadas mais letras.
Consigna-se que, no geral, os referidos depoimentos testemunhais se afiguraram globalmente credíveis e idóneos, o mesmo sucedendo quanto às declarações da assistente. Já as declarações dos arguidos, fazendo sentido e sendo até corroboradas pelos demais elementos probatórios quanto à situação económica da ... e quanto à decisão de venda do equipamento, revelaram pouca lógica e consistência na matéria da retenção das letras da assistente, como melhor infra se desenvolverá.
O Tribunal teve ainda em consideração o teor dos seguintes documentos, analisados em audiência de julgamento:
(…)
- Fls. 475-482: certidão de matrícula da ..., escritura de doação de quota e alteração parcial de pacto social;
(…)
- Fls. 882-1306: certidão, emitida em 16.06.2009, do apenso de reclamação de créditos, com parecer do Liquidatário de verificação do crédito da W..., de € 76.449,07, referente a fornecimento de bens.
(…)
Quanto aos factos respeitantes às letras da assistente, sopesaram primordialmente as declarações de … depoimentos de ... ... e de ... ambos prestados de forma isenta, com credibilidade e de forma escorreita e de harmonia com as regras da experiência comum. Vejamos:
1. Em primeiro lugar, a testemunha ... , indiscutivelmente sem qualquer interesse na sorte da demanda, que foi gestora de conta no U..., não teve quaisquer dúvidas em afirmar, de modo absolutamente peremptório, que as letras, quando foram entregues no banco, já tinham um aval.
2. O arguido A... pretendeu convencer o Tribunal de que, num momento, as letras foram entregues sem quaisquer avais e que, após, o ... lhe disse para dar o aval às letras, o que este fez apenas para “facilitar” e não com o intuito de se responsabilizar pela dívida.
Posteriormente, já após o arguido A...ter saído da empresa, foi contactado pelo arguido B..., que lhe diz ser preciso o aval do arguido ... e que este recusou dar o aval. Nessa altura, o arguido ..., porque já tinha saído da empresa e não se queria responsabilizar por uma dívida desta, disse ao arguido B...para reter aquelas letras e entregar à credora doze letras novas, já sem qualquer aval, que terão sido entregues.
Também referiu o arguido ... ter dito ao ... que lhe ia dar novas letras sem aval e que este aceitou tal facto.
Tais declarações não mereceram qualquer credibilidade:
a) Seja em face das referidas declarações e depoimentos em sentido contrário;
b) Seja à luz da experiência comum: a acreditar na tese do arguido (na qual não se acreditou), era evidente que, quando avalizou as letras, sabia que, atenta a obrigação cambiária emergente do aval, poderia ser executado e que seria o único dos gerentes a ser executado; mais, se a sua preocupação era não se responsabilizar por uma dívida que não era sua e num momento subsequente à sua saída da sociedade, não se percebe a razão pela qual, logo quando deixou a ..., não cuidou de pedir de imediato à assistente as letras a fim de as trocar, assim precavendo o seu património.
A mesma experiência que nos diz que, sendo a situação da ... já de insolvência, qualquer credor prudente pediria, em caso de saque de letras, garantias consubstanciadas em avais.
Também a mesma experiência comum levou a que não se acreditasse que os arguidos B...e A...tenham acordado com a assistente em substituir as letras por outras sem qualquer garantia e que esta o tenha aceite.
Por isso, ficou o Colectivo convencido de que as letras foram entregues já com o aval do arguido A... e que, em face das exigências do U..., os arguidos A... e B... acordaram entre si em não as devolver, num momento em que já estavam na posse deste último a fim de serem completados os avais.
As condições pessoais, sociais, familiares e económicas dos arguidos A... e B... resultaram das declarações que, sobre tal matéria, prestaram, conjugadas com os relatórios sociais junto a fls. 1933-1935 (conjugado com fls. 1840 e ss) e 1937-1939 (conjugado com fls. 1826 e ss). (…)
Os antecedentes criminais dos arguidos basearam-se na análise dos certificados de registo criminal juntos a fls. 1940-1943, 1944-1946 e 1947-1951.
(…).
*
III. Fundamentação de Direito.
3.1. O objecto de um recurso penal define-se através das conclusões que o
recorrente extrai da respectiva motivação, mas isto sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso [cfr. art.ºs 403.º e 412.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal].
Na realidade, de harmonia com o disposto neste n.º 1, e conforme jurisprudência pacífica e constante [designadamente, do STJ – Acs de 13.05.1998; de 25.06.1998 e de 03.02.1999, in, respectivamente, BMJ’s 477/263; 478/242 e 477/271], o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença ou as nulidades como tal taxativamente indicadas, nos termos, respectivamente, dos n.ºs 2 e 3, do art.º 410.º, do mesmo diploma, inclusive quando o recurso se encontre limitado à matéria de direito [Acórdão do Plenário das Secções do STJ, de 19.10.1995, in Diário da República, I.ª Série-A, de 28.12.1995].
A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Volume III, 2.ª edição, 2000, fls. 335: Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões.
Nesta perspectiva, no caso vertente, pese embora os dois arguidos/demandados em causa consignem na motivação ofertada, a fls. 9 e sob a epígrafe A2. – Da nossa Análise Crítica à Matéria dada Por Provada e Não Provada (1.ª Questão colocada sob Recurso), certo é que omitem de todo nas conclusões qualquer ênfase na impugnação da matéria de facto acolhida no acórdão sindicado. Vale consequentemente por dizer, nos termos sobreditos, que a única questão decidenda se traduz então em ponderarmos se não concorrem, perante ela, os pressupostos conducentes à decretada responsabilização penal e civil dos recorrentes.
3.2. Como escreveu Figueiredo Dias Citaremos conforme consignação exarada no aresto deste Tribunal da Relação de Coimbra, proferido no âmbito do processo n.º 101/06.1 TACVL.C1, relatado pelo Ex.mo Desembargador Esteves Marques, acedido em www.dgsi.pt. , Abuso de confiança é, segundo a sua essência típica, apropriação ilegítima de coisa móvel alheia que o agente detém ou possui em nome alheio; é, vistas as coisas por outro prisma (…), violação da propriedade alheia através de apropriação, sem quebra de posse ou detenção (por isso sendo este crime chamado, em várias ordens jurídicas de diferente linguagem, «apropriação indevida»).
Daqui resulta que o crime de abuso de confiança, tal como o crime de furto, é um crime patrimonial pertencente à subespécie dos crimes contra a propriedade; tem como objecto de acção, tal como o furto, uma coisa móvel alheia; e, ainda como o furto, revela-se por um acto que traduz o mesmo conteúdo substancial de ilicitude, uma apropriação.
Pese às identidades que ficam anotadas, o crime de abuso de confiança ganha autonomia e especificidade perante o crime de furto logo na contemplação do bem jurídico protegido, que é aqui exclusivamente a propriedade. Com efeito, no furto protege-se a propriedade, mas protege-se também e simultaneamente a incolumidade da posse ou detenção de uma coisa móvel, o que oferece, em definitivo, um carácter complexo ao objecto da tutela. Diferentemente, no abuso de confiança só a propriedade como tal é objecto de tutela e constitui assim integralmente o bem jurídico protegido. Dito com as palavras sugestivas de Maiwald, diferentemente do que sucede com o ladrão, «ao abusador de confiança poupa-se o esforço de ter de 'subtrair' a coisa» (M/S/ Maiwald 1 § 34 1).
A partir desta conclusão não falta quem sublinhe que o perigo para a propriedade resultante do abuso de confiança é mais pesado e grave que o resultante do furto. O argumento que a propósito se esgrime nas literaturas jurídico-penais alemã e italiana é o de que esse maior peso e gravidade deriva da circunstância de o proprietário da coisa furtada poder exigi-la de terceiro adquirente de boa fé, o que já não sucede com o proprietário da coisa apropriada através de abuso de confiança. Este argumento não vale porém perante o direito civil português, sabido como é que a aquisição a non domino, mesmo de boa fé, não é por princípio protegida em qualquer dos casos (…). Em todo o caso a conclusão apontada não deixará porventura, também entre nós, de ter o seu valor não em função de uma consideração jurídica, mas prática: a de que a posição jurídico-processual da vítima de abuso de confiança será em geral mais difícil e gravosa do que a da vítima de furto, por ser mais custoso provar a «inversão do título de posse» – que, (…), constitui a essência típica da conduta abusiva da confiança – do que a «subtracção» que se viu ser elemento essencial da tipicidade do furto.
Face a esta essencialidade, de resto, não tem hoje sentido, mesmo só em perspectiva formal – sistemática, integrar o crime de abuso de confiança nos «furtos», seja como «furto impróprio» (assim Carlos Alegre, «Crimes contra o Património», Cadernos da RMP 3 1988 77 ss.), seja como «furto especial» (assim J. A. Barreiros, Crimes contra o Património 1996 82): uma tal integração representaria, salvo melhor opinião, o retrocesso de mais de um século na elaboração dogmática dos crimes contra o património (a propriedade).
Por quanto fica já exposto não deixa de ser em alguma medida equívoca a redução da essência do abuso de confiança à apropriação de coisa móvel alheia, sem quebra de posse ou detenção (supra § 1; e sobre a questão que se segue, entre nós e por último, Pedrosa Machado, RPCC 1997 495 ss.). Sendo isto em si exacto, toma-se em todo o caso indispensável que o agente tenha detido a coisa (que a coisa «lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade», como claramente se exprime o art.º 205.º-1). Assim, entra na própria conformação do bem jurídico um elemento novo, que serve inclusivamente para contrapor o abuso de confiança à mera apropriação indevida.
Depara-se aqui com uma linha de pensamento e uma orientação legislativas de segura tradição francesa. Com efeito, já o C.P. napoleónico de 1810 (art.º 408.º) era muito claro no sentido de que a apropriação só poderia ter lugar depois do recebimento da coisa.”.
E continua o referido autor, afirmando agora a propósito do elemento “apropriação”: “Em função do que fica exposto toma-se agora seguro determinar em que consiste concretamente o elemento típico que exprime por excelência o bem jurídico protegido: a apropriação. Não deve aqui repetir-se pura e simplesmente o que ficou dito sobre o mesmo elemento – a apropriação – no contexto do crime de furto: cf. supra art.º 203º § 27 s.: no furto a apropriação intervém como elemento do tipo subjectivo de ilícito (como «intenção de apropriação»), no abuso de confiança, diferentemente, na sua estrutura de apropriação qua tale, isto é, na sua veste objectiva de elemento do tipo objectivo de ilícito (realce nosso). Por isso ensinava já Eduardo Correia, RLJ 90.º 36, com plena pertinência e seguindo a lição de Schröeder, que a apropriação no abuso de confiança «não pode ser... um puro fenómeno interior – até porque cogitationis poenam nemo patitur – mas exige que o animus que lhe corresponde se exteriorize, através de um comportamento que o revele e execute» (doutrina que a jurisprudência portuguesa assumiu de forma absolutamente dominante). E a teoria, que não pode deixar de ser acolhida, do acto manifesto de apropriação e que tem relevo, entre outros, para efeitos de consumação (infra § 34).
A apropriação traduz-se sempre, no contexto do abuso de confiança, precisamente na inversão do título de posse ou detenção. Dito por outras palavras (como sempre ensinou Eduardo Correia, RLJ 90.º 35 ss., a propósito da interpretação a conferir às expressões «desencaminhar ou dissipar» que constavam do art.º 453.º do CP de 1886; e também Cavaleiro de Ferreira, Direito e Justiça IV 243): o agente, que recebera a coisa uti alieno, passa em momento posterior a comportar-se relativamente a ela – naturalmente, através de actos objectivamente idóneos e concludentes, nos termos gerais – uti dominus; é exactamente nesta realidade objectiva que se traduz a «inversão do título de posse ou detenção» e é nela que se traduz e se consuma a apropriação.”.
Isto é, agora conforme aresto do Supremo Tribunal de Justiça Datado de 10 de Novembro de 2004, relatado pelo Ex.mo Conselheiro Henriques Gaspar, visto em www.dgsi.pt como documento SJ2004111000022523.
, elemento central da tipicidade do crime de abuso de confiança é a apropriação de «coisa móvel» que tenha sido entregue ao agente por título não translativo da propriedade; o núcleo da acção típica situa-se, assim, na apropriação, ut domini, afectando a confiança com base na qual a «coisa móvel» havia sido entregue; a apropriação é a actuação que revela, externa e materialmente, a inversão do título de posse que constitui o momento essencialmente relevante para a integração dos elementos e para a consumação do crime, sendo a intenção que exista anteriormente à inversão do título de posse tipicamente irrelevante.
O crime de abuso de confiança pressupõe, pois, a quebra da «relação de fidúcia» que intercede entre o agente e o proprietário da coisa e entre o agente e a própria coisa – quer seja uma relação anterior de confiança (artigo 205.º, n.º 1), quer seja uma relação especial e positivamente determinada na lei («depósito imposto por lei» - n.º 5).
O objecto da acção (da apropriação) no crime de abuso de confiança é uma «coisa móvel» alheia.
A noção de coisa móvel deve recolher-se no domínio da realidade material e jurídica (artigos 201.º e 205.º do Código Civil). Neste sentido, créditos e outros direitos não são coisas móveis como elementos típicos do crime; porque não são coisas em sentido material ou jurídico, não podem constituir objecto do crime. Será o caso, por exemplo, do mútuo ou do depósito irregular que tenha por objecto coisas fungíveis, ou o depósito bancário, e que transfere a propriedade da coisa para o depositário (quoad effectum).
Elemento, pois, da essencialidade típica é a apropriação; o agente tem que fazer sua a coisa, passando a actuar uti domini, como se fosse o verdadeiro proprietário. A apropriação tem que ser “para si”; mesmo que o agente dê a coisa gratuitamente a outra pessoa, tem que haver um momento, ao menos lógico, em que o agente se apropria da coisa.
Seja, no crime de abuso de confiança o agente viola a confiança em si depositada, dando a determinado bem uma utilização ou um destino diverso daquele para que o recebera.
Quer dizer no crime de abuso de confiança, a apropriação só pode ter lugar depois do recebimento da coisa.
Ou dito de outro modo, o referido crime só tem a sua concretização a partir do momento em que se verifica a inversão do título de posse, isto é quando o agente, detentor ou possuidor legítimo, a título precário ou temporário, faz entrar a coisa no seu património ou passa a dispor dela como se fosse sua.
3.3. Ressalvado o devido respeito que forçosamente merece um Mestre como o é Costa Andrade, afigura-se-nos ser exactamente na parte final da “carta” de que é autor e foi entretanto junta aos autos, que se colhe a solução (contrária) do caso presente.
Solução que, nessa perspectiva, irá antes de encontro ao decidido na 1.ª instância.
E que ademais justifica, antecedendo-a, a nota segundo a qual em direito, cada caso será sempre um caso. Afirmação cujo móbil se cinge a anotarmos que, mau grado as insuficiências que possa comportar a solução encontrada, certo é nela não havermos (pensamos) postergado num bosquejo doutrinal e jurisprudencial realizado, as respostas adiantadas para tantas e variadas realidades da vida, o cerne e fundamento do Direito.
Consignou Costa Andrade, então, e citamos (fls. 5 do documento junto e 2054 dos autos): “Numa constelação fáctica como a dos autos, só faria sentido falar de Abuso de confiança se fosse possível referenciar uma qualquer inversão do título de posse de que resultasse para a W... a desapropriação do seu crédito e reversamente, significasse para o outro lado a extinção da sua dívida.”
Ora, perguntamos, o acervo fáctico descrito no acórdão recorrido, não integra precisamente tais contornos?
Com efeito, a W... não entregou ao arguido B... as letras em questão, a fim de serem completadas quanto aos avais exigidos pelo U... para seu desconto e, face à recusa do também arguido A... em os prestar, agora de acordo com o co-arguido A..., foram os títulos retidos, não entregues àquela W..., contra a vontade respectiva? Ou seja, recebidos porque entregues pela W... os títulos cambiários, com um determinado móbil (recolha dos avais pessoais dos dois demais sócios da ...), não violaram os arguidos sentenciados a confiança em si depositada pela sacadora, dando-lhes um destino diverso daquele para que os receberam?
Por outro lado, a W... não ficou, consequentemente, desapropriada do seu crédito? Crédito que obviamente só pode ser o cambiário. Sem títulos, como exercitar o aceite da ... e o aval do co-arguido ... já neles apostos?
E, finalmente, mantendo-se a retenção dos títulos, não decorre, sucedâneamente, a extinção da (s) obrigação (ões) cambiária (s) que os mesmos suportavam?
Tudo arredio e coisa distinta do crédito fundado na relação subjacente aos títulos, intui-se.
Perfectibilizada a tipicidade relevante e demais pressupostos indispensáveis ao emergir do ilícito em causado, nenhuma censura assim a fazer aos segmentos condenatórios dos autos, que importa manter.
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IV. Decisão.
São fundamentos pelos quais negamos provimento aos recursos interpostos.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça individualmente devida em 5 UCs.
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Coimbra, 7 de Novembro de 2012