Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
679/08.5GBILH.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ABÍLIO RAMALHO
Descritores: SUSPENSÃO DA PENA
IMPOSIÇÃO DE DEVER
CONDIÇÃO
Data do Acordão: 05/23/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: MÉDIA INSTÂNCIA CRIMINAL DE ÍLHAVO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 51º Nº 1 A) CP
Sumário: A quantia cujo pagamento à ofendida foi imposto à arguida como condição da suspensão da execução da pena, constitui a imposição de um dever que reforça o sancionamento penal, e como tal não está na disponibilidade da ofendida renunciar ao seu recebimento.
Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO


1 – Pugnando pela revogação da decisão judicial – exarada no despacho documentado a fls. 256 – declarativa da extinção da pena (suspensa) oportunamente cominada à cidadã A..., dela interpôs o MINISTÉRIO PÚBLICO o recurso ora analisando, de cuja motivação (ínsita na peça junta a fls. 264/272) extraiu o seguinte quadro-conclusivo (por transcrição, com realces do ora relator):
«[…]
1. Por sentença proferida em 5 de Maio de 2010, transitada em julgado, a arguida A... foi condenada como autora material de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo art. 143.º, 145.º, n.º 1 e 2 e 132.º alínea h) na pena de 6 (seis) meses de prisão.
Tal pena foi suspensa pelo período de 1 (um) ano, condicionada ao pagamento pela arguida, no prazo de 6 (seis) meses, da quantia arbitrada em sede civil.
Julgou-se ainda parcialmente procedente o pedido de indemnização civil condenando-se a demandada a pagar à demandante a quantia de 1.000,00 € (mil euros), acrescida de juros à taxa legal.
2. A arguida juntou aos autos declaração assinada pela demandante cível na qual esta refere prescinde/renuncia ao direito de receber o valor de 1.000,00 € que a arguida foi condenada a pagar-lhe a título de indemnização civil (cfr. fls. 225).
3. Em face do referido em 2. o tribunal a quo considerou que "A posição da ofendida retira sentido à obrigação imposta na sentença. (...)
Se a dívida está perdoada afigura-se desnecessário reacender o conflito com a exigência de uma obrigação que deixou de se justificar.
Assim e porque se encontrar decorrido o período de suspensão da pena sem que haja conhecimento de que arguida tenha praticado qualquer facto ilícito, nos termos do art. 57.º do CP o tribunal julgou extinta a pena.
4. O instituto da suspensão da pena acolhe a possibilidade de impor ao condenado determinados deveres como condição de lhe ser suspensa a execução da pena de prisão.
Com a imposição de tais deveres pretende-se que o condenado por um lado, contribua activamente para a reparação do mal que provocou e, por outro lado, contribua para a sua reinserção na sociedade e também como meio idóneo de dar satisfação suficiente às finalidades da punição, respondendo nomeadamente à necessidade de tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias.
5. Tal intenção está claramente consignada na sentença uma vez que o tribunal entendeu ser primordial sensibilizar a arguida adequadamente para prevenir os bens jurídicos violados acrescentando que tal sensibilização passa pela entrega de uma prestação pecuniária à lesada que vier a ser determinada em sede cível.
6. A propósito da caracterização da indemnização atribuída ao lesado, Figueiredo Dias, Consequências Jurídicas do Crime, p. 352/3, focando as dúvidas que se podem colocar à correlacionação entre este dever e o pedido de indemnização civil afirma: "... do que se trata em suma, neste dever de indemnizar, é da sua função adjuvante da realização da finalidade de punição, não de reeditar a tese do carácter penal da indemnização civil proveniente de um crime que o artigo 128° quis postergar".
7. O acórdão do Tribunal Constitucional n.º 305/2001, processo 412/2000, de 27-06-2001, in DR, II - Série, de 19-11-2001, onde se analisa a jurisprudência do STJ sobre o tema, pronunciou-se no sentido de que a indemnização devida ao lesado a que se refere o artigo 51º, 1, a), do CP tem diferente natureza da que é objecto do pedido de indemnização cível, é tida como que um tertium genus, com uma natureza jurídica própria (cumprindo a «função adjuvante da realização da finalidade da punição»), onde desde logo avulta como traço diferenciador o facto de ela não ser exigível pelo lesado.
8. O sancionamento pelo não cumprimento do dever económico imposto como condição da suspensão é o que deriva das regras do próprio instituto da suspensão da pena, não ficando subordinado aos condicionalismos específicos substantivos e processuais próprios do direito civil – acórdãos do STJ, de 31-05-2000, CJSTJ 2000, tomo 2, 208, de 19-02-2003 e de 26-02-2003, CJSTJ 2003, tomo 1, 201 e 220.
9. A decisão que condiciona a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento de determinada quantia em nada é afectada pela declaração de 225 e esta apenas poderá relevar no conteúdo da obrigação civil de indemnização por perdas e danos resultantes da prática do crime.
10. Em suma, a condição de suspensão da pena imposta à arguida (entrega da quantia arbitrada em sede cível de 1.000,00 € à denunciante) não está cumprida.
11. Não se mostrando cumprida a condição a que ficou subordinada a suspensão da execução da pena não poderá a pena ser declarada extinta nos termos do art. 57.° do CP.
[…]»

2 – Nesta Relação foi emitido douto parecer por Ex.mo representante do mesmo órgão da administração da justiça (M.º P.º) em sentido concordante com a tese recursória, que reforça, (vd. peça de fls. 282/285).


II – AVALIAÇÃO

§ 1.º


Com vista à cabal aferição da legalidade do sindicado acto decisório importa reter o respectivo conteúdo:
«A posição da ofendida trazida aos autos a fls. 225 retira sentido à obrigação imposta na sentença.
O pagamento da indemnização tinha como objetivo acentuar a necessidade de a arguida alterar definitivamente o seu comportamento para com a ofendida, sua sogra.
A ofendida veio dizer que não pretende ser indemnizada o que, na prática, constitui uma forma de perdão da dívida.
Se a dívida está perdoada afigura-se desnecessário reacender o conflito com a exigência de uma obrigação que deixou de se justificar.
Assim e porque durante o já decorrido período de suspensão da pena, não há conhecimento de que a arguida tenha praticado qualquer facto ilícito, nos termos do art. 57° do CP julgo extinta a pena imposta.
[…]»

§ 2.º


Apreciando:

1 – Com o devido respeito, muito mal se compreende o equívoco silogismo jurídico do sindicado despacho, cuja recursória crítica manifestamente se justifica.

De facto, como bem-assisadamente observado quer na peça recursória quer no parecer, para além da ligeireza com que, desavisadamente, por puro acto-de-fé, se aceitou o conteúdo do escrito apresentado em 20/11/2011 pela própria defensora da id.ª condenada – junto a fls. 224/225 – como correspondente a real e voluntária (incondicionada) manifestação de vontade da própria ofendida  … de renúncia à prestação indemnizatória de € 1.000,00 (mil euros) a cujo pagamento aqueloutra fora condenada – com acrescidos juros moratórios – por sentença de 05/05/2010 (documentada a fls. 152/162), a título ressarcitivo de danos não patrimoniais à dita sexagenária [… , nascida em 1945 – com uma diferença de idades da própria ofensora A... (nascida em 1982) de 37 anos, como realçado/enfatizado na referida sentença], produzidos com pessoal – e assaz censurável – acto comportamental criminalmente tipificado como ofensa, qualificada, à respectiva integridade física, [p. e p. pelos arts. 143.º, 145.º, ns. 1 e 2, e 132.º, alínea h), do Código Penal], sem qualquer concernente confirmação, (designadamente por atinente tomada de declarações à suposta signatária), evidencia-se a respectiva inconsequência jurídica na sorte da cominada punição – 6 (seis) meses de prisão, suspensa na respectiva execução pelo período de 1 (um) ano, mediante a condição do pagamento, pela própria condenada, à dita ofendida, no prazo de 6 (seis) meses, da importância pecuniária de € 1.000,00 (mil euros) –, pela seguinte inescapável ordem-se-razões:

1.1 – Por há muito[1] se ter esgotado o definido prazo de 6 (seis) meses para realização pela id.ª condenada da referida condição de suspensão da execução da pena de 6 (seis) meses de prisão, cujo termo ocorreu em 04/12/2010, posto que a respectiva sentença (documentada na peça de fls. 152/162), publicada e depositada em 05/05/2010, (vd. fls. 163/164), transitou-em-julgado em 04/06/2010 – termo do prazo legal máximo, especial, de recurso, de 30 dias, prevenido no art.º 411.º, ns. 1, al. a), e 4, do C. P. Penal;

1.2 – E pela absoluta ilegitimidade da própria cidadã-ofendida para intromissão no conteúdo, controlo e modificação de tal injunção, a cuja precisa realização é apoditicamente alheia, em razão da respectiva natureza adjuvantemente punitiva – de reforço do sancionamento – do próprio acto ilícito-criminal objecto da condenação penal, em si juridicamente bem-distinta do mero cumprimento da correlata dívida obrigacional-indemnizatória, e, logo, diferentemente desta, obviamente indisponível a qualquer particular, designadamente à sua pessoa, como claramente decorre do dispositivo normativo ínsito sob o art.º 51.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, e assim vem sendo consensualmente entendida pela jurisprudência nacional, máxime do Supremo Tribunal de Justiça e do tribunal Constitucional, exemplificada pelos arestos convocados pelo recorrente M.º P.º[2].   

2 – Por conseguinte, havendo-se como manifestamente incumprida tal condição de suspensão da execução da referida pena, impor-se-á concluir pela ilegalidade do questionado despacho, e, dessarte, pela procedência recursória.


III – DISPOSITIVO


Assim – sem outras considerações, por despiciendas –, deliberando-se a concessão de provimento ao avaliando recurso (do Ministério Público), revoga-se o despacho recorrido e determina-se ao questionado tribunal de 1.ª instância a pertinente observância do regime legal subordinado aos arts. 55.º e 56.º, ns. 1, al. a), e 2, do Código Penal.

***

Sem tributação.

***

Abílio Ramalho (Relator)

Luís Ramos


[1] Com referência à data da apresentação da pretensa declaração de renúncia à indemnização – de 20/11/2011.
[2] Vide, por todos, Ac. n.º 305/2001, do Tribunal Constitucional, consultável em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20010305.html.


Coimbra, 23/05/2012.