Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
121/13.0JALRA-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE JACOB
Descritores: REVOGAÇÃO DA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
CONTRADITÓRIO
AUDIÇÃO DO CONDENADO
Data do Acordão: 09/25/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE LEIRIA – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 495.º, N.ºS 1 E 2, DO CPP; ARTIGOS 51.º, N.º 4, 52.º, N.º 2, E 53.º, N.º 2, DO CP
Sumário: I – A lei impõe sempre a audição do condenado antes da revogação da suspensão da execução da pena de prisão e também em momento imediatamente anterior à alteração das condições fixadas à dita pena de substituição.

II – No entanto, apenas nas situações expressamente previstas no n.º 1 do artigo 495.º do CPP, e por referência às disposições legais contidas nos artigos 51.º, n.º 4, 52.º, n.º 2 e 53.º, n.º 2, todos do CP, exige a lei (n.º 2 do artigo 495.º do CPP) a audição presencial do condenado.

III – Nos demais casos, o contraditório fica devidamente assegurado com a audição do arguido, através da notificação pessoal do próprio e da notificação da sua defensora.

Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO:

Nos autos de processo comum (tribunal singular) supra referenciados, que correram termos pelo Juízo Local Criminal de Leiria – Juiz 1, e que originaram o presente recurso em separado, foi proferida sentença que condenou o arguido A. pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade, p. p. pelo art. 25º, al. a), do DL nº 15/93, de 22/01, na pena de 18 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo.

No decurso do período de suspensão o condenado praticou diversos crimes, pelos quais veio a ser condenado na pena única de 20 anos de prisão.

A audição presencial do condenado foi dispensada por despacho de 20 de Maio de 2018, que tem o seguinte teor:

Por sentença condenatória proferida nos autos e transitada em julgado a 12.05.2014 (cfr. fls. 550), foi o arguido A. condenado na pena de 18 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período.

No período da suspensão, o arguido foi alvo de nova condenação, pela prática de 1 (um) crime de homicídio agravado, p. e p. pelo artigo 131.º do Código Penal e artigo 86.º, n.º 3 do Regime Jurídico das Armas e Munições (RJAM), pela prática de 1 (um) crime de ofensa à integridade física agravado, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal e artigo 86.º, n.º 3 do RJAM e pela prática de 1 (um) crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º, n.º 1, al. c) do RJAM, no âmbito do Processo n.º 370/15.6JALRA, tendo sido condenado na pena única de 20 (vinte) anos de prisão, por factos praticados no dia 30.08.2015 (cfr. certidão das decisões de cada uma das instâncias, de fls. 840 a 980).

Sem embargo de se reconhecer que a revogação de uma pena não opera de forma automática, cumpre evidenciar que o cometimento daqueles crimes – que assumem uma gravidade acentuada, como resulta de modo inequívoco da condenação do arguido numa pena de vinte anos de prisão -, no período da suspensão, constitui um facto concludente no que concerne à não realização das finalidades da punição inerentes a esta nossa pena, dado que o arguido, não obstante a censura do facto que lhe foi, por esta via, dirigida e a ameaça de prisão, voltou a delinquir. Por outro lado, note-se que a suspensão da execução desta pena não foi subordinada a quaisquer condições ou decretada sob regime de prova. Por tudo isto, decide-se dispensar a audição presencial do condenado.

Em sua alternativa, concede-se ao arguido a possibilidade de se pronunciar por escrito, por si ou através do seu defensor, no prazo de 10 dias, para o que ambos devem ser notificados – cfr. artigo 56.º, n.º 1, al. b) do CP e artigos 61.º, n.º 1, al. b)e 495.º, ambos do Código de Processo Penal;

Notificado, veio o arguido requerer a sua audição presencial, arguir a nulidade do despacho que a substituiu pela possibilidade de se pronunciar por escrito e pronunciar-se desde logo sobre a eventual revogação da pena, peticionando a prorrogação do período de suspensão.

Foi então proferida decisão que revogou a suspensão da execução da pena, determinando o seu cumprimento.

Inconformado com essa decisão, dela recorre o arguido, retirando da motivação do recurso as seguintes conclusões:

1. Por uma razão de precedência lógica do vício que reputamos de mais grave, principiamos pela arguição de nulidade do douto despacho recorrido, por ter sido preterido o direito à audição presencial do arguido previamente à decisão de revogação da suspensão da pena de prisão em que foi o mesmo condenado.

2. Entendemos que a audição presencial do arguido, previamente à decisão de revogação da suspensão da execução da pena de prisão, é obrigatória em todo e qualquer caso, por imposição legal.

3. Em todos os casos de possível revogação da suspensão da execução da pena de prisão é obrigatória a audição prévia do condenado, divergindo o entendimento se a lei impõe audição presencial ou se se basta com contraditório por escrito, pessoalmente ou por intermédio de defensor.

4. Entendemos que a lei impõe a audição presencial do condenado previamente à tomada de decisão também no caso em que a revogação da suspensão deriva de prática de crime, no período da suspensão, isto porque o despacho que revoga a suspensão da pena deve ser entendido como complementar da sentença, na medida em que está em causa a conversão de uma pena suspensa numa pena muito diferente, privativa de liberdade.

5. O direito de audiência deverá ser sempre preservado, só podendo, e devendo, ser ultrapassado nos casos em que os arguidos se esquivam ao contacto ou não comparecem, uma vez que, e posto que a revogação da suspensão nunca é automática, é a tomada de declarações ao arguido que constitui o verdadeiro contraditório.

6. A decisão de revogação da suspensão, que implica sempre um juízo de ponderação, pois a revogação não é consequência automática da verificação de um qualquer facto objectivo, deve estar colocada no mesmo plano da sentença condenatória no que se refere ao modo de ser levada ao conhecimento do condenado (Acórdão n.º 422/2005, do Tribunal Constitucional, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 22 de Setembro de 2005).

7. Ora, se existe esta preocupação no estrito plano da notificação do condenado, por maioria de razão a mesma deverá estar presente a montante, isto é, no momento que antecede a decisão de revogação ou de não revogação da suspensão, tanto mais que o arguido continua a ter o direito a ser ouvido em qualquer fase do processo (cfr. artigo 61º n° 1, al. b), do Código de Processo Penal).

8. E isto porque: "A prática de um crime durante o período de suspensão da pena só deve constituir causa de revogação da suspensão quando essa prática, em concreto, tendo em conta, além do mais, o tipo de crime, as condições em que foi cometido e a gravidade da situação, fique demonstrado que não se cumpriram as expectativas que estiveram na base da aplicação da suspensão (Vide Ac. do TRP, datado de 18/04/2012, Relator Mouraz Lopes, in http://www.dgsi.pt/) no qual se sustenta ainda que a audição do arguido é não só obrigatória como também deve ser presencial, salvo a excepção decorrente de uma absoluta ausência do arguido.

9. A exigência da audição presencial do arguido é a interpretação que melhor salvaguarda o efectivo direito de defesa consagrado no artigo 32º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa, já que, e no que respeita ao caso vertente, é a única que se compagina com a exigência contida no artigo 56º, na 1, al. b), do Código Penal, de indagar se as finalidades que estavam na base da suspensão ficaram irreversivelmente comprometidas pelo cometimento do novo crime no período da suspensão, no seu óbvio cotejo com o direito a ser ouvido plasmado no artigo 61º, nº 1, al. b), do Código de Processo Penal.

10. As disciplinas previstas nos artigos 492º, nº 2 e 495º, nº 2, ambos do Código de Processo Penal, encerram simplesmente uma clara especialidade, atenta a especificidade das situações ali contidas, não consubstanciando regras capazes de afastar as demais situações ali não abarcadas, constituindo um claro sinal de que o legislador pretende que exista um contraditório pessoal, que não meramente formal, v.g. através do mandatário ou do defensor, criando aqui a compreensível excepção da presença do técnico.

11. Não faria sentido que estando apenas em causa a modificação dos deveres, regras de conduta ou outras obrigações impostas fosse obrigatória a audição do condenado, e o mesmo não sucedesse nos casos em que estaria iminente a sua possível reclusão, pois a situação vertente é claramente mais gravosa que a do incumprimento das condições da suspensão.

12. Só se não for possível a audição presencial do arguido, envidando o tribunal todos os esforços nesse sentido, é que poderá ocorrer a notificação do defensor para se pronunciar sobre a eventual revogação da suspensão da pena de prisão.

13. Saliente-se que, no caso vertente, a Digníssima Representante do Ministério Público, em promoção de 15/03/2018, com fundamento, precisamente, nos art. 56.° n.º 1 alínea b) do CP e 61 n.º 1 alínea b) do cpp, partilhando, por certo, deste entendimento, promovera a designação de data para a audição presencial do arguido.

14. A omissão da audição presencial do arguido previamente à decisão quanto à eventual revogação da suspensão da pena constitui nulidade insanável, ao abrigo do disposto no art. 119.° alínea c) do CPP, nulidade que agora expressamente se invoca e se vem arguir, para todos os devidos e legais efeitos e que pode ser oficiosamente declarada em qualquer fase do procedimento.

15. A sobredita nulidade, de acordo com o disposto no artigo 122° do Código de Processo Penal, gera a nulidade do despacho recorrido, que determinou a revogação da suspensão da pena de prisão, impondo-se, pois, a sua revogação e substituição por outro que determine a audição presencial do arguido, em audiência de discussão e julgamento.

16. Por despacho de 20/03/2018, de fls. 1004-5, transitado em julgado, foi dispensada a audição presencial do condenado no âmbito deste incidente de revogação da suspensão da pena de prisão, tendo o condenado, além do mais, arguido a nulidade desse despacho, a fIs. 1025-1036, com fundamento na nulidade insanável do art.º 119º alínea c) do CPP, requerendo a sua substituição por outro que designasse data para a audição presencial.

17. Foi proferido despacho a determinar a notificação do condenado para tomar posição sobre as informações remetidas a seu pedido, como refere o douto despacho recorrido, porém, omitindo-se, por completo, a apreciação da nulidade insanável arguida em anterior requerimento, e concedendo-se prazo à defensora do arguido, para requerer ou alterar o que tivesse por conveniente a respeito do incidente em causa (sublinhado nosso).

18. Na sequência de tal notificação, entre outras coisas, e louvando-se em todos os argumentos explicitados aquando da arguição da nulidade insanável do art. 119º, alínea c) do CPP, requereu o condenado a designação de data para audição presencial do arguido, previamente à decisão a tomar quanto ao incumprimento da pena suspensa, requerimento este que ficou sem resposta, sendo proferido o douto despacho recorrido.

19. Salvo o devido respeito por entendimento diverso, que é muito, nem a arguição de nulidade da preterição do direito do arguido a ser presencialmente ouvido, com a consequente nulidade do despacho de fls. 1004-5, logrou obter resposta, tendo essa questão sido totalmente omitida nos despachos subsequentes, nem a requerida audição presencial logrou ser deferida, ou indeferida, não bastando remeter para o despacho de fls 1004-5, transitado em julgado.

20. Salvo o devido respeito, que é muito, a circunstância de transitar em julgado o despacho que dispensou a requerida audição presencial, não invalida que, posteriormente a esse despacho e ao abrigo de notificação para o efeito, o arguido tenha, expressamente, requerido a sua audiência prévia, fundadamente, pretensão do arguido que não foi apreciada, sendo necessário averiguar qual a consequência jurídica dessa omissão.

21. Afigura-se-nos que a lei não responde, directamente, a esta questão, pelo que estaremos perante uma aparente lacuna da lei, salvo melhor opinião, que muito se respeita.

22. O art.° 4.° do CPP começa por erigir como primeiro recurso para a integração de lacunas em processo penal, as disposições do CPP, entendendo nós, com Figueiredo Dias, que o recurso à analogia, como a qualquer outra fonte integrativa que desta tecnicamente se distinga, não fica completamente vedado em processo penal, mas só que ele fica vedado na medida imposta pelo conteúdo de sentido do princípio da legalidade, e portanto sempre que o recurso venha a traduzir-se num enfraquecimento da posição ou numa diminuição dos direitos processuais do arguido (desfavorecimento do arguido), analogia in malam partem.

23. O que não sucede com a norma em questão, que, longe de limitar a posição do arguido, vai no sentido do princípio da sua mais ampla defesa, conferindo-lhe o direito a atacar uma decisão que omite a apreciação de questão que deveria ter sido apreciada.

24. Ocorrendo nesta estrita medida, nulidade do despacho recorrido, por omissão de pronúncia, por aplicação analógica do disposto no art.º 379.° 11.° 1 c) do CPP, analogia permitida, porque in bonam partem, nulidade insanável e arguível em sede de recurso, nos termos do disposto no art. 410,° n.º 3 do CPP, com a consequência de dever ser declarado nulo o despacho recorrido e repetido pelo tribunal a quo, expurgado da tal vício.

Desta forma se fazendo a costumada JUSTIÇA

            O M.P., respondeu, pugnando pela improcedência do recurso.

Nesta instância, a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer pronunciando-se também pela improcedência do recurso.

Foram colhidos os vistos legais.

Cumpre conhecer do recurso, cujo âmbito, segundo jurisprudência constante, se afere  e delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo do que deva ser oficiosamente conhecido.

No caso vertente, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, há que conhecer do seguinte:

- Nulidade do despacho recorrido por preterição do direito à audição presencial do arguido;

- Omissão de pronúncia;

- Existência de lacuna legal e aplicação analógica do art. 379º, nº 1, c), do CPP.

II – FUNDAMENTAÇÃO:

           

            O despacho recorrido tem o seguinte teor:

Incidente de revogação da suspensão da pena de prisão

I. Por sentença proferida nos presentes autos a 3 de Abril de 2014, transitada em julgado a 12 de Maio de 2014 (fls, 550), foi o arguido A. condenado pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25.º al. a) do DL n.º 15/93, de 22.01, na pena de 18 (dezoito) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo.

No período daquela pena suspensa, mais concretamente no dia 30 de Agosto de 2015, o arguido cometeu em autoria material, de forma consumada e em concurso real 1 (um) crime de homicídio agravado, p. e p. pelo artigo 131.° do Código Penal; 1 (um) crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal e 1 (um) crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.°, n.º 1, al. c), do RJAM, crimes pelos quais viria a ser condenado na pena única de 20 (vinte) anos de prisão - por acórdão proferido no processo comum n.º 370/15.6JALRA, superiormente confirmado pelo Tribunal da Relação de Coimbra (agravando apenas a pena única do concurso dos 19 para os 20 anos), Supremo Tribunal de Justiça e decisão sumária e do acórdão do Tribunal Constitucional (cfr. certidão das decisões de cada uma daquelas instâncias, de fls. 840 a 980).

Por despacho de 20 de Março de 2018, de fls.1004-S, transitado em julgado, foi dispensada a audição presencial do condenado no âmbito deste incidente de revogação da suspensão da pena de prisão, pelos motivos aí constantes que aqui damos por reproduzidos, em detrimento da sua audição deferida e por escrito.

O arguido tomou posição no processo, a fls.1025-1036, pugnando pela não revogação da pena suspensa mas outrossim pela sua prorrogação nos termos do art. 55º do Código Penal, e, a fls.1054-1056, tomou ainda posição sobre as informações que foram remetidas a seu pedido pelo Estabelecimento Prisional de Z (...) e de W (...).

O arguido mostra-se preso desde o dia 11 de Setembro de 2015 à ordem do processo comum n.º 370/15.6JALRA do Juízo Central Criminal - J1 - da Comarca de Leiria, e o cômputo da pena que ali lhe foi aplicada ocorrerá no dia 4 de Setembro de 2035 (cfr. liquidação de pena de fls. 999).

A instância permanece válida e regular, estando a defesa do arguido assegurada por I.D.

II. Com relevo para a presente decisão resulta demonstrado:

2.1. Por sentença proferida nos autos e transitada em julgado a 12 de Maio de 2014 foi o arguido A., condenado pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade, a °4.°9.2012, p. e p. pelo art. 25.° ala) do DL n.º 15/93, de 22.01, numa pena de 18 (dezoito) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo.

2.2. Por acórdão proferido pelo Tribunal Judicial da Comarca de Leiria - Juízo Central Criminal - Juiz 1 - no processo comum n.º 370/15.6JALRA, superiormente confirmado pelo Tribunal da Relação de Coimbra (agravando a pena única do concurso dos 19 para os 20 anos), pelo Supremo Tribunal de Justiça e pelo Tribunal Constitucional, já transitado em julgado, foi o mesmo arguido condenado pela prática, a 30 de Agosto de 2015, em autoria material, de forma consumada e em concurso real de 1 (um) crime de homicídio agravado, p. e p. pelo artigo 131.° do Código Penal e 86.º n.º 3 do RJAM; 1 (um) crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143, n.º 1 do Código Penal e 1 (um) crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.°, n.º 1, al. c) do RJAM, numa pena única de 20 (vinte) anos de prisão.

2.3. Pena de prisão que cumpre de forma ininterrupta desde 11.09.2015.

2.4. Com termo desta sua pena previsto para 04.09.2035.

2.5. O arguido é natural de Y (...), Brasil, tendo o processo do seu desenvolvimento ocorrido naquele país natal juntamente com os seus pais e os irmãos mais velhos; seu pai trabalhava numa empresa farmacêutica e a sua mãe era cozinheira num colégio e mais tarde funcionária público; os pais divorciaram-se quando tinha 12 anos de idade; deu entrada na escola com idade regular e concluiu o 6.° ano de escolaridade; frequentou o 7.° e abandonou os estudos com 16 anos de idade; altura em que emigrou para Portugal, para junto da sua mãe, que residia em X (...), onde fixou residência por pouco tempo e depois regressou ao Brasil, do qual veio a regressar com 21 anos de idade; então colabora com a sua mãe que detém um estabelecimento de diversão nocturna; consome estupefacientes (cannabis) e álcool em excesso; mantém uma boa relação afectiva com a sua mãe; tem um filho que à data da sua condenação na primeira instância tinha 3 anos de idade, que está aos cuidados da mãe, não tendo contacto conhecido com aqueles; o arguido encontra-se em situação de permanência ilegal no país e tem pendente contra si mandado de detenção internacional e pedido de extradição por se ter eximido ao cumprimento de uma pena de prisão em que foi condenado no seu país de origem; quando confrontado com os factos por si cometidos e que demandaram uma pena de 20 anos de prisão, revela pouca ressonância emocional face aos mesmos e retrata-se como vítima dos eventos; é visitado no estabelecimento prisional pela mãe, padrasto e namorada; a mãe tenciona apoiar o filho incondicionalmente após a sua restituição à liberdade; sem registos disciplinares em ambiente prisional, à parte de uma repreensão escrita pela detenção de um objecto proibido (cartão vending);

2.6. No estabelecimento prisional de W (...) o arguido não esteve matriculado no sistema de ensino ou frequentou qualquer curso de formação profissional.

2.8. No estabelecimento prisional de Z (...) o arguido esteve matriculado no ensino, B3, no ano lectivo 2016/7, de que foi excluído em 2017 pelo elevado número de faltas; no corrente ano não efectuou qualquer outra matrícula ou se inscreveu em qualquer curso de formação profissional, mas em termos laborais mostra-se a exercer funções de faxina, a meio tempo, desde 06.12.2017, auferindo 2,10 €/dias.

2.9. Este processo aguarda desde Janeiro de 2016 o conhecimento de decisão transitada em julgado no processo referido em 2.2.

Não resultam demonstrados outros factos com relevo para o incidente.

III. O Tribunal para dar como provados os factos consignados como tal valorou o teor da sentença condenatória aqui proferida, de fls.520-535; a certidão extraída do processo comum n.º 370/15.6JALRA e seu acórdão condenatório, superiormente confirmado pelo Tribunal da Relação de Coimbra (agravando apenas a pena única do concurso dos 19 para os 20 anos), Supremo Tribunal de Justiça e decisões do Tribunal Constitucional, de fls. 678-690 e 698-1002), para além da liquidação daquela pena aplicada ao arguido, e ainda no teor das informações remetidas pelos respectivos estabelecimentos prisionais, de fls.1045-9 e 1057 dos autos, que foram ao encontro de parte dos factos alegados pelo condenado.

IV. 4.1. Afigura-se-nos conveniente tecer algumas considerações, ainda que breves, sobre o regime e a natureza da pena em que o arguido foi condenado.

O artigo 50.°, n.º 1, do Código Penal dispõem que «o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.»

As finalidades da punição nos termos do disposto no artigo 40º do Código Penal são, como alega o arguido, a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

A suspensão da execução da pena de prisão subordinada ou não a um regime de prova ou condições constitui uma verdadeira pena autónoma (com elementos relevantes sobre a natureza de pena autónoma, de substituição, da pena suspensa, veja-se o Acórdão da Relação de Évora, de 10.07.2007, Proe. n.º 912/07-1, www.dgsi.pt). Como pressuposto material da sua aplicação, o tribunal deve aplicá-la atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à conduta anterior e posterior ao crime a ainda às circunstâncias deste, quando conclua pela formulação de um juízo de prognose favorável quanto à actuação do agente, sempre que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Por sua vez, constitui um seu pressuposto formal que a medida da pena não seja superior a cinco anos.

4.2. O regime jurídico da suspensão da execução da pena de prisão encontra-se previsto nos artigos 50.º a 57.º, em termos substantivos, e nos artigos 492.° a 495.° do Código de Processo Penal, em termos adjectivos, assumindo três modalidades: (i) suspensão simples; (ii) suspensão sujeita a condições (cumprimento de deveres e/ou regras de conduta); (iii) suspensão acompanhada de regime de prova.

No que concerne ao incumprimento das condições e injunções da suspensão de uma pena de prisão podem ser compagináveis dois grandes tipos de situações em função daquelas que podem ser as suas consequências.

Quando no decurso do período de suspensão o condenado, com culpa, deixar de cumprir os deveres/regras de conduta que lhe foram impostas ou não corresponde ao “plano de reinserção”, pode o Tribunal optar pela aplicação de uma das medidas previstas no artigo 55.º do Código Penal. Mas quando de uma forma grosseira e/ou repetida viola deveres ou regras de conduta impostas ou o “plano de readaptação” ou comete um novo crime pelo qual venha a ser condenado, revelando que as finalidades que estiveram na base da suspensão da sua pena não puderam por intermédio desta ser alcançadas, deve, então, a suspensão da pena ser revogada (artigo 56.º, n.º 1 do Código Penal).

A revogação da pena suspensa determina o cumprimento da pena de prisão. Conforme assinala há muito o Professor Figueiredo Dias, de entre as condições gerais da suspensão de execução da pena de prisão avulta a de o condenado não cometer qualquer crime durante o período de suspensão. Pois o cometimento de um crime no decurso do período de suspensão é a circunstância que mais claramente pode colocar em causa o juízo de prognose favorável pressuposto na pena suspensa (Direito Penal Português - As consequências jurídicas do crime, Aequitas-Editorial Notícias, 1993, pág. 355).

4.3. É aqui que surge a questão deste incidente e que consiste em saber se a condenação deste arguido pelo cometimento de um novo crime contra a vida, integridade física e segurança, embora de natureza distinta desta sua condenação orientada para a saúde pública (tráfico de menor gravidade), por factos praticados cerca de 13 (treze) meses após o trânsito em julgado da sua condenação neste processo compromete, de facto, o juízo de prognose favorável que então foi realizado a respeito do seu comportamento se em liberdade.

A pena de 1 ano e 6 meses de prisão aplicada ao condenado foi suspensa na sua execução por igual período de tempo, e sem mais.

Está-se perante um arguido que à data da sua condenação nestes autos era primário, não registando condenações anteriores, mas que ao cometer três novos crimes no decurso desta sua pena suspensa ignorou em absoluto e de forma contundente a censura do facto que por essa via lhe era dirigida e o dever geral de abstenção de cometimento de novos crimes, que a um qualquer cidadão se impõem independentemente da sua naturalidade.

Como vimos a suspensão da execução da pena de prisão tem como fim de política criminal o afastamento do delinquente da prática de novos crimes, ou seja, a prevenção da sua “reincidência”. Razão pela qual bem se compreende que o Legislador haja prescrito no art. 56.°, n.º 1, al. b) do Código Penal um comando segundo o qual há - em princípio - lugar à sua revogação sempre que, no decurso do período da suspensão, o condenado venha a cometer novo crime pelo qual venha a ser condenado. Isto num primeiro plano de apreciação, que no caso em apreço se verifica de forma clara e contundente e que nos é dada pelo número de crimes efectivamente cometidos pelo condenado, em número de três, como ainda pela expressão e ressonância do crime de homicídio agravado e sua pena única de 20 anos de prisão.

Num segundo patamar de apreciação é ainda exigido que o novo crime ou novos crimes cometidos pelo condenado revelem que as finalidades que estavam na base da suspensão daquela sua pena não puderam, por meio da sua execução, ser alcançadas. Ora, como vimos, o cometimento de um novo crime é a circunstância que mais claramente pode colocar em causa o prognóstico favorável que a aplicação da pena de suspensão pressupõe (Figueiredo Dias, Ob. Cit, pág. 355).

Como também sabemos a Lei não exige que o crime cometido no decurso do período de suspensão por cuja prática o arguido venha a ser condenado por decisão transitada em julgado tenha que ter a mesma natureza do crime punido com a pena de substituição, como ocorre no caso em apreço. É também irrelevante o tipo de pena que àquela condenação superveniente é aplicada (vide acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28.06.2017, disponível em www.dgsi.pt).

O que a Lei não dispensa, para a revogação da pena de suspensão, é a comprovação de que o condenado ao cometer o novo ou novos crimes invalidou definitivamente o juízo de prognose favorável que foi feito, com a aplicação da pena de substituição, ou seja, a expectativa prudencial de que através da suspensão daquela sua pena o condenado se manteria afastado da delinquência.

Aqui chegados impõem-se as seguintes conclusões:

- O condenado mostrava-se à data da sua detenção em situação irregular em Portugal;

- Mostrar-se-á foragido de uma outra condenação em pena de prisão no país de onde é natural;

- Entre o trânsito em julgado desta sua condenação em pena suspensa e o cometimento de três novos crimes, a 30.08.2015, decorreram cerca de 13 meses;

- O crime de tráfico de menor gravidade anda muitas vezes associado a crimes contra as pessoas, a vida ou a detenção de armas proibidas.

- O quadro agravado em que o condenado voltou a delinquir, no que diz respeito à sua culpa e ilicitude qualificadas, demonstrada pela sua pena única elevada (20 anos), e a pouca ressonância emocional face aos factos cometidos, quando com eles confrontado, é revelador que a interiorização que a condenação destes autos visaria imprimir no condenado e em liberdade não foi almejada, antes se mostra comprometida.

- O alarme social provocado pela nova condenação é muito elevado.

- A sua pena suspensa face ao retrato gizado com clareza nos factos dados como provadas na nova condenação, tem um impacto muito negativo e compromete de forma irremediável as finalidades que justificavam a suspensão desta sua pena.

- A evolução das condições de vida do condenado em ambiente prisional até ao presente não são de molde a desfavorecê-lo, mas também não o eleva de forma alguma face à pressuposta normalidade daquela sua condição de recluso.

Perante uma factualidade assim traçada não vislumbramos que o condenado possua ou tenha demonstrado por refração aos factos supervenientemente cometidos uma atitude global de respeito e de quem interiorizou regras basilares de convivência em sociedade, ou que com aquela sua actuação superveniente tenha revelado uma personalidade de quem se pretende adaptar e de se reintegrar numa dada comunidade onde se insere e que o acolhe, ao violar de forma tão intensa e violenta um bem jurídico supremo como a vida humana.

Aliás a violação culposa da suspensão da pena de prisão mostra-se até reconhecida no acórdão condenatório superveniente, sendo que mercê da dosimetria daquela sua pena única, outra coisa não se impunha do que o cumprimento da respectiva pena de prisão efectiva em que foi condenado.

Com o adoptado e descrito comportamento o condenado evidência que não se cumpriram em definitivo as finalidades que motivaram a concessão da suspensão da pena de 18 meses de prisão, de que foi destinatário, não sendo adequado prorrogar o período de suspensão daquela sua pena, como é pretensão do condenado, nem dogmaticamente compaginável que uma tal suspensão prorrogada pudesse ter lugar, a título de mera hipótese, em simultâneo com o cumprimento de uma pena de prisão efectiva.

Deste modo, entendemos que o condenado comprometeu as garantias que permitiram formular inicialmente o juízo de prognose positivo que o Legislador impunha de que no futuro, se e quando restituído à liberdade, não voltaria a delinquir.

Termos em que com estes fundamentos se revoga a sua pena de 1 ano e 6 meses de suspensa na sua execução e se determina o cumprimento desta pena de prisão efectiva.

4.4. Importará ainda assim avaliar se o seu cumprimento deve ser efectuado em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, face à entrada em vigor das alterações introduzidas no Código Penal pela Lei n.º 94/2017, de 23 de Agosto.

Em resultado da revisão operada pela citada Lei no artigo 43.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal, a aplicação do regime de permanência na habitação foi alargada aos casos de revogação da pena de prisão suspensa na sua execução concretamente fixada em medida não superior a dois anos, como é o caso dos autos, devendo o Tribunal optar por esta forma de cumprimento da pena de prisão efectiva sempre que conclua que assim se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da execução da pena e o condenado nisso consentir.

O n.º 2 do mencionado preceito legal estabelece que o apontado regime consiste na obrigação de o condenado permanecer na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, pelo tempo de duração da pena de prisão em que é condenado, sem prejuízo das ausências para o exterior devidamente autorizadas.

Pese embora o pressuposto formal de aplicação de pena concreta em medida não superior a dois anos se mostre aqui preenchido, uma vez que o arguido se mostra condenado numa pena de 1 ano e 6 meses de prisão, certo é que o pressuposto de ordem material assenta na adequação e suficiência do referido regime às finalidades da punição, ou seja, está assente em razões de prevenção.

Ora, uma personalidade como a do condenado avessa a imposições jurídico-penais e a valores socialmente impostos com elevada ressonância ético-jurídica aponta para uma certa indiferença e hostilidade perante o «outro», o que juntamente a uma ausência de juízo crítico para a sua actuação e alcance dos seus actos, invalidam o pressuposto de ordem material consubstanciado na adequação e suficiência do referido regime às finalidades da punição, pelo que sendo a sua escolha determinada exclusivamente por razões de prevenção, não permite que a referida substituição tenha lugar.

As prementes razões de prevenção especial do crime cometido obstam a que se conclua que a execução da pena de prisão aplicada nos autos em regime de permanência na habitação realizará de uma forma adequada e suficiente as finalidades ressocializadoras que o condenado reclama.

Por outro lado, a indicação que existe nos autos é a de que o condenado não possuirá a sua situação - visto e autorização de residência - administrativa regularizada e que aguarda o cumprimento integral daquela sua pena e a sua subsequente extradição para o Brasil, o que obsta a que se possa consentir numa execução desta pena extramuros se comprometido um prognóstico de adesão à obrigação que caracteriza o regime de permanência na habitação, não satisfazendo esta forma de execução da prisão as necessidades de prevenção identificadas.

As finalidades de prevenção são aqui determinantes para considerar que o regime de permanência na habitação se revela insuficiente e totalmente inadequado a este caso, o que impede o preenchimento do pressuposto de ordem material de que depende a sua aplicação.

V. 5.1. Em jeito de conclusão é de afirmar que o condenado A. não logrou interiorizar o desvalor ética e social da conduta que subjaz a esta sua condenação em pena suspensa, como também não demonstra que haja interiorizado a necessidade de conformar a sua atuação com as obrigações jurídico-penais estruturantes de uma convivência em sociedade, que a todos os que nela vivem vinculam, defraudando a convicção gerada neste Tribunal Judicial, de que em liberdade não iria mais delinquir, que havia presidido à suspensão da execução desta sua pena de prisão.

Termos em que se decide revogar a suspensão da execução da pena de 1 ano e 6 meses de prisão em que foi condenado neste processo, devendo o mesmo, em consequência, cumprir esta pena de prisão efectiva, em que foi aqui condenado.

5.2. Registe e arquive em pasta própria.

5.3. Notifique o arguido nos termos do artigo 114.° n.º 1 do Código de Processo Penal.

5.4. Após trânsito em julgado:

5.4.1. Remeta boletim ao registo criminal- cfr. artigo 6.°, al. a) da Lei n.º 37/2015, de 5

de maio.

5.4.2. Extraia certidão deste despacho, com nota do seu trânsito, e comunique:

(í) ao processo comum n.º 370/15.6JALRA do Juízo Central Criminal- J1;

(ii) ao TEP de Lisboa;

(iii) Em face do teor da comunicação efectuada pelo aludido processo (fls.1000) e mantendo¬ se esta decisão deve o condenado informar, no prazo de dez dias após o trânsito em julgado desta decisão, se irá renunciar junto do Tribunal da Relação de Coimbra ao "princípio da especialidade» que esteve na base da emissão do seu MDE, nos termos do artigo 7.º nº 2 al. f) e 3 da Lei 65/2003, de 23.08, tendo em vista compreender o procedimento seguinte a adoptar.

            Vejamos então as questões suscitadas pelo arguido, começando pela invocada nulidade por preterição do direito à audição presencial, havendo assim que averiguar se no caso vertente era exigível a audição presencial do recorrente.

            Alguma jurisprudência recente vem-se pronunciando no sentido da obrigatoriedade da audição presencial. Não a acompanhamos integralmente, por se nos afigurar que a economia do texto legal aponta para soluções diferenciadas consoante os casos.

Que o condenado tem que ser ouvido antes da decisão de revogação da suspensão é ponto assente, desde logo por imperativo legal que se prende directamente com os direitos de defesa que lhe assistem, posto que o art. 61º, nº 1, al. b), do Código de Processo Penal, assegura ao arguido o direito de ser ouvido sempre que o tribunal deva tomar qualquer decisão que pessoalmente o afecte, não havendo decisão judicial susceptível de o afectar mais gravemente do que aquela que o priva da sua liberdade. Não é, pois, concebível que uma decisão tão gravosa para o condenado em pena suspensa como é a da revogação da suspensão da execução da pena, ou mesmo a mera agravação da sua situação pessoal, decorrente da alteração das condições de suspensão, possa ser decidida sem que lhe seja facultada a possibilidade de expor as razões que conduziram ao incumprimento das condições que lhe foram impostas, ou mesmo de produzir prova que sustente as suas afirmações. A questão que se coloca, porém, é a de saber se essa audição é necessariamente presencial.

O art. 495º, nº 2, do CPP, na redacção imediatamente anterior à introduzida pela Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto, dispunha que o tribunal decide por despacho, depois de recolhida a prova e antecedendo parecer do Ministério Público e audição do condenado.

O citado diploma legal alterou aquela norma, passando esta a dispor que o tribunal decide por despacho, depois de recolhida a prova, obtido parecer do Ministério Público e ouvido o condenado na presença do técnico que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições da suspensão.

Ulteriormente foi introduzido um segmento final, sem relevo para o caso de que agora cuidamos, dispondo (…) bem como, sempre que necessário, ouvida a vítima, mesmo que não se tenha constituído assistente.

A lei inovou essencialmente na medida em que impôs a audição do condenado «… na presença do técnico que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições da suspensão.

Diga-se desde já que extrapolar indiscriminadamente da obrigação de audição do condenado na presença do técnico que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições da suspensão para todos os casos em que está em causa a revogação da suspensão traduz, quanto a nós, interpretação não consentida pelo texto legal, sabido que toda a interpretação pressupõe o recurso ao sentido útil da norma. Rege, a propósito, o art. 9º do Código Civil, que dispõe quanto à interpretação da lei:

1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos, o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

            2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

            3. Na fixação e sentido do alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

            À luz do texto legal, qual é o sentido útil da norma de cuja interpretação cuidamos, com correspondência na letra da lei e que melhor se enquadra na unidade do sistema jurídico?

            Se fosse necessário ouvir sempre presencialmente o condenado antes da alteração das condições da suspensão ou da sua revogação, a lei di-lo-ia pura e simplesmente. Simplesmente, não é isso que resulta do teor literal da norma, ainda que interpretada com muito boa vontade. Não é, pois, no argumento literal, que se poderá fundar a interpretação sustentada pelo recorrente.

            O argumento de ordem sistemática, por seu turno, reforça a interpretação restritiva. Já vimos que a lei impõe sempre a audição do condenado antes da revogação da suspensão; e impõe-na também antes da alteração das condições da suspensão. Mas apenas se refere à audição presencial quando a suspensão da execução tenha sido subordinada a condições sujeitas a apoio e/ou fiscalização. Só quando se verifique esta última hipótese adquire sentido a imposição constante do nº 2 do art. 495º do CPP. Expliquemo-nos melhor:

            O art. 495º, nº 1, do CPP dispõe que quaisquer autoridades e serviços aos quais seja pedido apoio ao condenado no cumprimento dos deveres, regras de conduta ou outras obrigações impostos comunicam ao tribunal a falta de cumprimento, por aquele, desses deveres, regras de conduta ou obrigações, para efeitos do disposto no nº 3 do artigo 51º, nº 3 do artigo 52º e nos artigos 55º e 56º do Código Penal. O art. 51º do Código Penal estatui sobre a suspensão da execução da pena de prisão subordinada ao cumprimento de deveres e o respectivo nº 3 admite a sua modificação sempre que ocorram até ao temos do período de suspensão circunstâncias relevantes supervenientes ou de que o tribunal só posteriormente tenha conhecimento. O nº 4 do mesmo artigo prevê a possibilidade de o tribunal determinar que os serviços de reinserção social apoiem e fiscalizem o condenado no cumprimento dos deveres impostos. Portanto, na suspensão da pena de prisão subordinada a cumprimento de deveres, em que o tribunal tenha determinado que os serviços de reinserção social (ou outros serviços – cfr. 1ª parte do nº 2 do art. 495º do CPP) apoiem e/ou fiscalizem o condenado no cumprimento dos deveres impostos, a modificação dos deveres ou a revogação da pena exigem a prévia audição do condenado na presença do técnico que acompanhou e fiscalizou ou apoiou o respectivo cumprimento.

Não é por acaso que assim o dispõe a norma em questão. Repare-se que este evento processual apenas tem lugar se e quando o condenado não cumprir deveres que lhe foram impostos como condição de preservação da sua liberdade. A obrigatoriedade da audição do arguido antes da alteração dos deveres ou da revogação da suspensão não foi gizada para lhe permitir eximir-se a todo o custo à modificação ou agravamento dos deveres ou à revogação da suspensão, mas sim para lhe permitir esclarecer com transparência as razões que conduziram ao incumprimento. Claro que nesse momento importará garantir o contraditório (contraditório relativamente à promoção do M.P. para alteração dos deveres ou revogação da suspensão); mas importará também e sobretudo aferir do bem fundado da expectativa ou prognose em que assentou a decisão de suspensão da execução da pena, já que não está em causa apenas a liberdade do arguido, mas também a eficácia e credibilidade do sistema judicial e, em última instância, a própria realização da justiça (esta última a bastar-se com a manutenção do status quo, a exigir a alteração dos deveres ou a impor a prorrogação do período de suspensão ou mesmo a imediata revogação da suspensão da execução da pena, consoante a gravidade do incumprimento, a razoabilidade da justificação apresentada e os demais elementos apurados com relevo para a decisão). Equacionar a alteração das condições ou a revogação da suspensão significa, afinal, dar satisfação às exigências comunitárias de protecção dos bens jurídicos e garantir o funcionamento do elemento dissuasor. A presença do técnico que apoiou e fiscalizou o cumprimento dos deveres funcionará como fiel das declarações do condenado, permitindo aferir da sua veracidade e facultando a aquisição de elementos preciosos para aquilatar da vontade e dedicação daquele no cumprimento dos deveres que lhe foram impostos. Justifica-se, pois, plenamente – e exige-se – uma audição do condenado não apenas presencial, mas em presença do técnico que apoiou e fiscalizou o cumprimento dos deveres que condicionaram a suspensão.

Contudo, a suspensão da execução da pena de prisão pode assumir uma de três modalidades: simples suspensão da execução da pena, suspensão sujeita a condições ou suspensão com regime de prova. Se porventura a suspensão da execução da pena tiver sido uma suspensão tout court, não subordinada ao cumprimento de deveres, ou se mesmo tendo sido fixados deveres não tiver sido determinado o apoio no seu cumprimento, devendo a fiscalização ser efectuada pelo próprio tribunal em momento determinado, normalmente, no termo do prazo de suspensão – o caso típico da condição de pagamento de indemnização – não terá sentido a exigência da parte final do nº 2 do art. 495º do CPP, que se reporta apenas às situações em que tenha operado o nº 1 do mesmo artigo e por referência ainda ao nº 4 do art. 51º, nº 4 do art. 52º e nº 2 do art. 53º, estes do Código Penal.

            Subsistirá nesse caso, ao menos, a obrigatoriedade da audição presencial, em termos tais que ouvido o condenado sem que o seja presencialmente, daí resulte nulidade insanável?

            Não descortinamos argumento legal nesse sentido. Manifestamente, não resulta do art. 495º, nº 2, do CPP. E também não resulta da al. c) do art. 119º daquele diploma, já que não se vê onde é que a lei exige a comparência do arguido. O que a lei exige – já o dissemos supra – é que o condenado seja ouvido, por respeito ao princípio do contraditório.

Na verdade, neste caso, a prova relevante é documental, centrando-se na sentença condenatória que incidiu sobre o crime cometido no período da suspensão. Ao tribunal da condenação suspensa cumpre apenas apreciar, em função dessa nova sentença, se apesar da violação dos deveres ínsitos à suspensão, nomeadamente, o dever de não cometer novos crimes, as finalidades que presidiram à suspensão podem ainda ser alcançadas; donde resulta a inutilidade da presença do arguido, visto que o que releva para este efeito é a factualidade e circunstancialismo que rodearam a prática do novo crime e que resultam da sentença, não tendo o tribunal que atender a factos não atendidos ou a circunstâncias que visem infirmar o que se teve como provado na sentença transitada em julgado. Sendo assim, qual a razão teleológica, o princípio de funcionamento do sistema ou a garantia constitucional que obsta a uma audição não presencial do condenado para aferir das razões do incumprimento das condições subjacentes à suspensão da pena ou da revogação da suspensão nos caos em que a frustração das expectativas inerentes à suspensão radica no cometimento de novo crime no decurso do período de suspensão?

            Ou seja, no caso vertente apenas se exigia a audição do arguido, o que foi cumprido através da notificação pessoal deste e da sua defensora para se pronunciarem sobre a revogação da suspensão da execução da pena[1]. Consequentemente, o despacho recorrido não enferma da nulidade suscitada pelo recorrente, decorrente da falta de audição presencial.

            Entrando na segunda das questões que se assinalaram, também não ocorre nulidade por omissão de pronúncia, uma vez que o tribunal se pronunciou com clareza sobre as razões que o levaram a dispensar a presença do arguido. É certo que o arguido veio insistir pela sua audição presencial arguindo a nulidade decorrente da omissão dessa diligência. Não obstante, a questão foi conhecida em recurso em sentido oposto ao pretendido pelo recorrente. Trata-se, pois, de questão que nesta instância se deverá considerar ultrapassada, tanto mais que em função da solução dada à arguição de nulidade de que antes se conheceu por força de expressa arguição do recorrente, sempre haveria que aproveitar os actos que pudessem ser salvos, atento o disposto no art. 122º, nº 3, do CPP, aí se incluindo a decisão de revogação da suspensão.

 

            Por fim, sustenta o recorrente a existência de lacuna no Código de Processo Penal. O alegado relativamente a este particular aspecto não se oferece como totalmente claro, mas tanto quanto conseguimos compreender, o recorrente entende que existe lacuna legal por a omissão de pronúncia relativamente a questões a decidir por despacho não estar expressamente prevista em termos idênticos aos legislados para a omissão de pronúncia em sentença, nomeadamente, no art. 379º, nº 1, al. c), do CPP.

            Não existe, no entanto, qualquer lacuna quanto a este aspecto. O legislador restringiu o disposto no art. 379º às nulidades de sentença. Relativamente a todas as demais situações, aplica-se o regime geral das nulidades, constante dos arts. 118º e ss.

III – DISPOSITIVO:

Nos termos apontados, acordam nesta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso.

Condena-se o recorrente na taxa de justiça de 3 UC


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Coimbra, 25 de Setembro de 2019

(texto processado pelo relator, revisto por todos os signatários e assinado electronicamente)

Jorge Miranda Jacob (relator)

José Eduardo Martins (adjunto)

                     (José Eduardo Martins – Relator)


[1] - No sentido apontado, entre muitos outros,, Cfr. os acórdãos desta Relação de Coimbra, de 21/06/2017 (proc. 33/09.IPFIG-A.C2), de 30/10/2013 (Proc. 707/08.4PBAVR.C1), de 2/04/2014 (Proc. 883/07.3TACBR), de 4 de Novembro de 2015 (Proc. 9/05.8GALSA.C1), de 7/04/2016 (Proc. 26/14.7GCTND.C1).