Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
170/14.0TBCTB-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: EXPROPRIAÇÃO
JULGAMENTO IMPLÍCITO
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
Data do Acordão: 11/08/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CASTELO BRANCO – CASTELO BRANCO – INST. LOCAL – SEC. CÍVEL – J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: CÓDIGO DAS EXPROPRIAÇÕES
Sumário: I - Deve acolher-se a tese da admissibilidade do julgamento implícito em processo civil apenas nas situações em que o objecto do processo é composto por uma cumulação aparente de pedidos, correspondendo a decisão implícita a um pressuposto necessário do julgamento expresso.

II - Em processo de expropriação a arbitragem assume a natureza de um tribunal arbitral necessário.

III - Ao acórdão arbitral aplica-se, em matéria de recursos, as mesmas normas do CPC: o poder de cognição do juiz, em caso de recurso, é delimitado pelas alegações do recorrente e decidido no acórdão, que transita em tudo quanto seja desfavorável para a parte não recorrente, envolvendo a falta de recurso concordância com o decidido pelos árbitros.

IV - Na fase do recurso a alegação e a resposta não assumem verdadeiramente a natureza de articulados (petição e contestação), nem tem aplicação o ónus de impugnação e as respectivas consequências, e nem sequer é admissível a réplica.

V - A parte pode pedir, em qualquer altura do processo a condenação da outra como litigante de má fé, porque a lei não estabelece o momento em que o pedido deve ser feito.

Decisão Texto Integral:


I - RELATÓRIO

            1.1.- J... instaurou (29/1/2014) processo especial de expropriação contra o Município de C...

            Alegou, em resumo:

            O Autor é proprietário de um prédio, denominado Quinta das ..., freguesia de C... e pretendendo aí edificar, foi informado pela Câmara Municipal do indeferimento por se localizar em área de protecção de itinerário (variante sul a C...).

            Pediu, com base na aplicação analógica do art.96 do Cexp., a abertura do processo de expropriação judicial de quatro parcelas.

O Município contestou dizendo nada obstar à abertura do processo de expropriação, mas apenas relativamente a duas parcelas, com área total e 3.020 m2, necessárias e previstas para a edificação do segundo troço da variante sul a C...

            Discorda do direito do Autor quanto a ser expropriado a poente das duas parcelas à frente das parcelas expropriadas, por não se verificarem os requisitos do art.3 nº2 b) CExp.

            1.2.- Por despacho de 17/2/2014 ordenou-se a abertura do processo judicial de expropriação pelas parcelas mencionadas.

            1.3.- Foi proferido acórdão arbitral atribuindo à expropriação parcial das parcelas P1 e P2 o valor total de € 14.580,20.

            1.4.- Por despacho de 23/6/2015 adjudicaram-se as parcelas.

            1.5.- O Autor recorreu do acórdão arbitral suscitando duas questões:

            Discordância quanto ao critério de obtenção do valor por m2 do terreno expropriado, requerendo a fixação da indemnização no valor de € 769.963,51;

            A ocorrência de prejuízos adicionais resultantes do facto do Município não ter procedido à expropriação no prazo legal, que computa em € 701.466,41.

            1.6.- O Município de C... respondeu, alegando, em síntese:

            O valor atribuído na decisão arbitral corresponde ao valor de mercado.

            O tribunal é materialmente incompetente para conhecer dos alegados prejuízos adicionais pelo incumprimento do prazo no processo expropriativo, pois é da jurisdição dos tribunais administrativos, estando, porém prescrito do direito.

            O Autor agiu com manifesto abuso de direito.

            Pediu a condenação do Autor na condenação como litigante de má fé em multa e indemnização em quantia não inferior a € 25.000,00.

            1.7.- O Autor, notificado da resposta, apresentou articulado onde concluiu pedindo:

            Que se fixe como assentes os factos confessados pelo Município.

Que se fixem como controvertidos os factos que constando da resposta ao recurso foram impugnados pelo Autor.

            A admissibilidade da resposta às excepções deduzidas pelo Município de acordo com os princípios da agilização e economia processual.

            Julgar-se improcedentes as excepções.

            Julgar-se improcedente o pedido de condenação por litigância de má fé.

            A condenação do Município como litigante de má fé em multa e numa indemnização não inferior a € 25.000,00.

            1.8.- O Município  pediu o desentranhamento, por inadmissibilidade, do articulado.

            1.9.- Por despacho de 22/2/2016 decidiu-se (transcrição na íntegra):

 “ Cabe fazer novamente um ponto de ordem nos presentes autos:

- relativamente à questão do montante a ordenar o pagamento nos termos do n.º 3 do art.º 52º do CE, o Tribunal já se pronunciou acerca de tal matéria a fls. 292 dos presentes autos, sendo certo que também as partes tiveram oportunidade de o fazer já que o mesmo foi proferido, na sequência da conferência com as mesmas, pelo que, nada mais temos a ordenar neste sentido, mantendo-se o despacho proferido nessa sequência.

Quanto às sucessivas questões que têm vindo a ser levantadas pelas partes, duas advertências:

- este é um processo especial que visa apenas e só atribuir justa indemnização ao expropriado (cf. art.º 1º do CE), na medida, em que este o seja, atenta a especificidade deste caso concreto e nada mais, isto é, qualquer outra indemnização peticionada pelo Requerente não terá, nesta sede qualquer acolhimento (isto é, não será de atender qualquer pedido do expropriado que não se prenda com a justa indemnização a arbitrar em razão da expropriação pois, se outros danos sofreu terá que os peticionar em sede própria mas não neste processo). 

 Mais se advertem as partes que neste momento está pendente a questão da decisão da expropriação total e antecedente e necessária instrução dessa mesma matéria, não lhes sendo admissível apresentar qualquer outro requerimento ou articulado (sucessivas respostas a respostas), sendo certo que se tal for feito o Tribunal ver-se-á obrigado a aplicar multas já que as partes estão constantemente a atrasar a normal tramitação do processo.

Assim sendo, desentranhe o último requerimento junto aos autos pelo expropriado por que legalmente inadmissível e devolva ao apresentante, lavrando a respectiva cota no lugar próprio (extraia cópia de tal requerimento).   

            Posto isto, todas as restantes questões suscitadas serão apreciadas apenas e só a final em sede de recurso. 

No mais, aguardem os autos o pagamento dos preparos relativo à perícia requerida pelo expropriado, com a advertência de que se os mesmos não foram pagos, não poderá ter lugar a diligência, em ordem do disposto no n.º 1 do art.º 20º e n.º 1 do art.º 23º, ambos do RCP.  

 Notifique. “

            1.10. - Inconformado, o Autor recorreu de apelação com as seguintes conclusões:

...


FUNDAMENTAÇÃO

            2.1.- Delimitação do objecto do recurso

            As questões submetidas a recurso, delimitado pelas conclusões, são as seguintes:

            O julgamento implícito da competência material / nulidade processual por violação do contraditório e nulidade do despacho por falta de fundamentação;

            A ilegalidade processual no desentranhamento do articulado do Autor.

            2.2.- O mérito do recurso

            O recurso incide sobre o despacho de 22/2/2016 que não admitiu o articulado apresentado pelo Autor expropriado, determinando o seu desentranhamento.

            O Apelante parte do princípio de que o tribunal conheceu da excepção da incompetência material do tribunal, deferindo a questão suscitada nas contra-alegações do Município, pelo facto de afirmar que qualquer outra indemnização peticionada não terá acolhimento no processo e, por isso, alegou a violação do contraditório e da falta de fundamentação, arguindo nulidade processual e a nulidade do despacho.

Sucede que o objecto do recurso é a decisão em si mesma (parte dispositiva), e não os respectivos considerandos ou fundamentos.

Muito embora se afirme que qualquer outro pedido, que não o da justa indemnização, terá que ser peticionado em “sede própria mas não neste processo”, verdade é que se trata de um considerando ou fundamento para rejeitar o articulado, e, por outro lado, não houve um pronunciamento quanto à questão da incompetência material do tribunal.

Importa, porém, analisar a questão no âmbito do julgamento implícito em processo civil.

O art.660 do CPC de 1939 continha um parágrafo único que dizia - “Consideram-se resolvidas tanto as questões sobre que recair decisão expressa, como as que, dados termos da causa, constituírem pressuposto ou consequência necessária do julgamento expressamente proferido”.

Sobre ele ensinava Alberto dos Reis que “o parágrafo único contém uma regra da maior importância e ao mesmo tempo da maior delicadeza. Aceita o julgamento implícito, aplicando-o às questões que, dados os termos da causa, constituírem pressuposto ou consequência necessária do julgamento expresso. É a doutrina dos autores de maior categoria científica. Mas não pode deixar de reconhecer-se que o princípio é perigoso, pelo que a jurisprudência deve fazer dele uso prudente e moderado” ( CPC Anotado, vol.V, pág.59 ).

A Reforma de 1961 suprimiu esse parágrafo único, com a seguinte justificação: ”o problema da extensão (objectiva) do caso julgado aos motivos da decisão não está ainda suficientemente amadurecido na doutrina nem na jurisprudência, em termos de permitir ao legislador o enunciado claro duma posição. Por isso, à semelhança do que se fez no artigo 96, julga-se que a atitude mais prudente é a de não tocar no problema e deixar à doutrina o seu estudo mais aprofundado e à Jurisprudência a sua solução, caso por caso, mediante os conhecidos de integração da lei “(BMJ 123, pág.120 ).

A posição generalizada é no sentido da inadmissibilidade de julgamentos implícitos, devido ao princípio da segurança jurídica e ao dever de fundamentação, e pese embora a supressão do § único do art.660 do CPC/1939, há quem entenda que a possibilidade de julgamentos implícitos postula um problema de interpretação da decisão, e neste contexto, com as devidas cautelas, pois “só deve admitir-se como julgamento implícito aquele que seja consequência necessária, irrecusável, do julgamento expresso“ (Ac RC de 14/5/2014 ( proc. nº 120/13), em www dgsi.pt ).

Contudo, a identificação do julgamento implícito exige a necessidade de um critério de conexão lógica entre decisões implícitas e as decisões expressas, não bastando, para o efeito, que em face dos termos da causa, as decisões (implícitas) constituam pressuposto necessário do julgamento expresso, porque um tal entendimento pode originar incerteza e violar o princípio da segurança jurídica e do contraditório.

Deve, no entanto, acolher-se a tese da admissibilidade do julgamento implícito, mas apenas “quando, dados os termos da causa, este corresponda a um pressuposto ou consequência necessária do julgamento expressamente proferido sobre um determinado pedido que, com o implicitamente decidido, forme uma acumulação de pedidos” (cf. Luís Guilherme Pereira, A Possibilidade Jurídica de Julgamentos Implícitos no Processo Civil, 2012, Salvador da Baía, pág. 135 e segs.).

Por conseguinte, admissibilidade do julgamento implícito em processo civil deve ser acolhida somente nas situações em que o objecto do processo é composto por uma cumulação aparente de pedidos, correspondendo a decisão implícita a um pressuposto necessário do julgamento expresso.

Neste contexto, não pode interpretar-se como uma decisão implícita sobre a competência material, tanto mais que se limitou a afirmar que o processo não é o próprio para apurar determinada indemnização por outros danos (“se outros danos sofreu terá que os peticionar em sede própria, mas não neste processo”).

Daqui resulta ipso facto a inexistência da apontada nulidade do despacho por falta de fundamentação e nulidade processual por violação do contraditório.

Tendo o despacho recorrido justificado o desentranhamento com fundamento em não ser admissível a apresentação de qualquer outro requerimento (sucessivas respostas), advertindo, para o efeito, as partes, coloca-se a questão de saber se é processualmente admissível o articulado do Autor.

Não há hoje qualquer controvérsia sobre a natureza da arbitragem, no sentido de que se trata não de um mero acto pré-judicial de natureza administrativa, mas de um tribunal arbitral necessário, cuja decisão assume natureza judicial ( cf., por ex., Ac do STJ de 21/1/94, C.J. ano II( 1994 ), tomo I, pág.78, Assento do STJ de 30/5/95, BMJ 447, pág.52, Ac do STJ de 28/1/99, BMJ 483, pág.192, Ac do TC nº32/87, DR II de 7/4/87, e nº268/98, DR II de 9/7/98).

            Em face disto, ao acórdão arbitral aplica-se, em matéria de recursos, as mesmas normas do CPC, o poder de cognição do juiz, em caso de recurso, é delimitado pelas alegações do recorrente e decidido no acórdão, que transita em tudo quanto seja desfavorável para a parte não recorrente, envolvendo a falta de recurso concordância com o decidido pelos árbitros.

            Importa ter presente que, na fase do recurso, alegação e resposta não assumem verdadeiramente a natureza de articulados ( petição contestação), nem tem aplicação o ónus de impugnação e as respectivas consequências, nem sequer é admissível a réplica, contrariamente ao alegado pelo Apelante, visto tratar-se antes de um meio de oposição à decisão arbitral, de natureza jurisdicional ( cf., por ex., Ac STJ de 27/5/97, BMJ 467, pág.548)

Dos arts.58 e segs. do CExp. resulta apenas existirem dois articulados – o requerimento do recurso (alegações) e a resposta. Só na hipótese de haver recurso subordinado é que o recorrente poderá responder (art.60 nº1 (2ª parte) C.Exp.).

Verifica-se que o Município de C... respondeu ao recurso do acórdão arbitral, mas não interpôs recurso subordinado, logo parece estar afastada a resposta do Autor/recorrente.

Sucede que na resposta ao recurso o Município requereu a condenação do Autor como litigante de má fé.

No articulado rejeitado o Autor respondeu ao pedido de litigância e também peticionou a condenação do Município.

Ainda que a lei não preveja outros articulados, nesta fase do recurso, a verdade é que por força do princípio do contraditório, o Autor estava legitimado a responder, exercendo a sua defesa quanto ao pedido do Réu.

Por outro lado, a parte pode pedir, em qualquer fase do processo, a condenação da outra como litigante de má fé, porque a lei não estabelece o momento em que o pedido deve ser feito, podendo o interessado formulá-lo em qualquer altura, como já anteriormente se entendia (cf. A. Reis, CPC Anotado, II, pág.279).

Sendo assim, não podia o tribunal ordenar o desentranhamento do articulado do Autor, porque relevante para o incidente de litigância de má fé.

2.3.- Síntese conclusiva

a) Deve acolher-se a tese da admissibilidade do julgamento implícito em processo civil apenas nas situações em que o objecto do processo é composto por uma cumulação aparente de pedidos, correspondendo a decisão implícita a um pressuposto necessário do julgamento expresso.

b) Em processo de expropriação a arbitragem assume a natureza de um tribunal arbitral necessário.

c) Ao acórdão arbitral aplica-se, em matéria de recursos, as mesmas normas do CPC, o poder de cognição do juiz, em caso de recurso, é delimitado pelas alegações do recorrente e decidido no acórdão, que transita em tudo quanto seja desfavorável para a parte não recorrente, envolvendo a falta de recurso concordância com o decidido pelos árbitros.

d) Na fase do recurso, alegação e resposta não assumem verdadeiramente a natureza de articulados (petição contestação), nem tem aplicação o ónus de impugnação e as respectivas consequências, e nem sequer é admissível a réplica.

e) A parte pode pedir, em qualquer altura do processo a condenação da outra como litigante de má fé, porque a lei não estabelece o momento em que o pedido deve ser feito.


III – DECISÃO

            Pelo exposto, decidem:

1)

            Julgar parcialmente procedente a apelação e revogar o despacho recorrido que ordenou o desentranhamento do articulado junto pelo Autor a fls. 320 e segs, devendo ser substituído por outro a admiti-lo, apenas relevante para efeitos do incidente de litigância de má fé.

2)

Custas pela parte vencida a final.

            Coimbra, 8 de Novembro de 2016.


( Jorge Arcanjo )

( Manuel Capelo )

( Falcão de Magalhães )