Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
87336/17.6YIPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: PRESCRIÇÃO PRESUNTIVA
ÓNUS DA PROVA
SOCIEDADE ANÓNIMA
Data do Acordão: 02/20/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JL CÍVEL - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.298, 304, 306, 312, 313, 317 C) CC
Sumário: 1. A Relação só poderá/deverá alterar a decisão de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa (art.º 662º, n.º 1, do CPC).

2. O art.º 317º, al. c), do CC consagra a prescrição presuntiva, que se funda numa presunção de cumprimento, justificada na dificuldade do consumidor provar o cumprimento das obrigações assumidas no seu quotidiano, face à prática generalizada de não exigir documento de quitação ou de não o guardar.

3. A prescrição presuntiva é liberatória do ónus de prova do cumprimento, limitando-se o prazo prescricional a balizar o termo a partir do qual o réu fica dispensado desse encargo probatório.

4. Não deverá beneficiar desta presunção de cumprimento o devedor sociedade anónima, que, possuindo contabilidade organizada, tem o dever de documentar nesta todos os pagamentos efectuados.

Decisão Texto Integral:            




            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

            I. Em 07.9.2017, M (…), S. A., instaurou procedimento injuntivo[1] contra S (…), S. A., para pagamento do preço da prestação de serviços de contabilidade (nomeadamente, a revisão legal de contas) no valor global de € 9 660,42 (capital) e respectivos juros moratórios vencidos (€ 592,86) e vincendos.

            Alegou, em síntese: entre as partes foi celebrado um contrato de prestação de serviços de contabilidade; pelos serviços prestados, referentes aos anos de 2014 e 2015, resultaram duas facturas nos valores de € 4 391,10 e € 5 269,32, entregues à Ré nas datas nelas apostas e desde esse momento que são devidos juros de mora comerciais; a Ré não liquidou o valor em dívida. 

            A Ré deduziu oposição, alegando, em resumo: nada deve à A., pois todos os serviços prestados foram pagos; pelo decurso do prazo de dois anos, prescreveu o direito que a A. se arroga (alínea c) do art.º 317º do Código Civil/CC)); o facto de a Ré ser uma sociedade e não um profissional liberal não releva, na medida em que, atendendo à ratio legis e à época em que foi publicado e entrou em vigor o Código Civil (aprovado pelo DL n.º 47344 de 25.11.1966 e com entrada em vigor no dia 01.6.1967), não existia, ou seria praticamente insignificante, o número de serviços prestados através de sociedades, pelo que o legislador regulou a única realidade social existente e que era, justamente, a da prática individual deste tipo de serviços, não se podendo afirmar que o legislador quis estabelecer prazos diferentes de prescrição para a prestação de serviços desta natureza consoante os mesmos fossem praticados a título individual ou através de uma sociedade, seja ela de natureza comercial ou uma sociedade civil; a cobrança e o pagamento dos serviços prestados pela A. à Ré sempre, desde a sua génese, tiveram carácter mensal, sendo por isso afastada a interpretação de que o prazo de prescrição apenas se iniciaria após a cessação da relação entre credor e devedor; prescreveram todos os pagamentos dos serviços prestados até Setembro/2015, o que deve ser declarado.

            A A. respondeu, alegando, nomeadamente, que não exerceu as funções de fiscalização da sociedade Ré na qualidade de profissional liberal, mas como órgão social/fiscal único dessa mesma sociedade e contratada para o efeito; as facturas reclamadas dizem respeito a pagamentos desse trabalho de fiscal único da sociedade Ré, pelo que não o é no exercício de qualquer profissão liberal, mas dentro do exercício de um cargo societário, pelo que lhe não é aplicável o disposto no art.º 317º do CC, mas sim o disposto no art.º 310º, al. g) do mesmo diploma legal relativamente a “quaisquer outras prestações periodicamente renováveis”; mesmo que se entendesse que o art.º 317º é aplicável, não estava decorrido o prazo nele fixado (o trabalho de auditoria às contas de 31.12.2014 foi enviado em 19.8.2015 e o trabalho de auditoria às contas de 31.12.2015 foi enviado em 25.7.2016); só em 19.12.2016 é que a Ré comunicou a cessação de funções de fiscal único; não existe qualquer prescrição, ainda que presuntiva e não foram alegados factos comprovativos de qualquer pagamento, sendo que a Ré não impugnou a existência da dívida reclamada.

            A final, a Mm.ª Juíza a quo julgou a acção procedente e, em consequência, condenou a Ré no pagamento à A. da quantia de € 9 660,42 (nove mil, seiscentos e sessenta euros e quarenta e dois cêntimos) de capital em dívida, acrescida de juros vencidos e vincendos, à taxa legal, contados a partir da data de vencimento de cada uma das facturas sobre o montante respectivo até efectivo e integral cumprimento.

Inconformada, a Ré interpôs a presente apelação, formulando as seguintes conclusões:

            (…)

            A A. respondeu concluindo pela improcedência do recurso.

            Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa conhecer e/ou reapreciar: a) impugnação da decisão sobre a matéria de facto (erro na apreciação da prova); b) decisão de mérito (nomeadamente, se ocorre, ou não, a prescrição prevista no art.º 317º, c) do CC).     


*

            II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:

            a) Entre a autora e ré foi celebrado um contrato de prestação de serviços de contabilidade - nomeadamente a revisão legal de contas.

            b) A autora foi eleita, em 30.01.2004, como fiscal único da ré para o triénio 2004/2006 - sendo sucessivamente eleita para os triénios seguintes - e aceitou essa designação.

            c) Pelo menos nos últimos anos, a ré mandava com atraso à autora os documentos necessários para esta poder cumprir com as suas funções, não cumprindo os prazos e as obrigações legais para com o fiscal único da empresa.

            d) Por isso, o trabalho de auditoria às contas de 31.12.2014, da ré, foi enviado em 19.8.2015, tendo sido enviada em anexo a Certificação Legal das Contas e o Relatório e Parecer do Fiscal Único, sendo nesse mês que se realizou a discussão do documento.

            e) O trabalho de auditoria às contas de 31.12.2015, da sociedade ré, foi enviado em 25.7.2016, tendo sido enviada em anexo a Certificação Legal das Contas e o Relatório e Parecer do Fiscal Único, sendo nesse mês que se realizou a discussão do documento.

            f) Em 19.12.2016 a ré comunicou à autora a cessação de funções de Fiscal Único - tendo, em 23 de Dezembro seguinte, a autora pedido o pagamento das quantias em dívida, que a ré não pagou.

            g) A cobrança (e o pagamento) dos serviços prestados pela autora à ré de início era feita mensalmente, mas a dada altura, como a ré já não vinha fazendo o pagamento pontual, os legais representantes de ambas acordaram em que as facturas deixassem de ser emitidas todos os meses.

            h) Pelos serviços prestados, referentes aos anos de 2014 e 2015 a autora emitiu e entregou à ré as seguintes facturas:

            - Factura 1.6.20160626, no valor de € 4 391,10, com data de vencimento a 28.7.2016, relativa aos meses de Março a Dezembro de 2014;

            - Factura 1.6.20160721 no valor de € 5 269,32, com data de vencimento a 30.8.2016, relativa aos meses de Janeiro a Dezembro de 2015.

            i) A ré não pagou as referidas quantias, apesar de diversas vezes instada para tanto.

            2. E deu como não provado:

            a) A ré pagou à autora todos os serviços que esta lhe prestou.

            3. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

            O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou a anulação da decisão (art.º 639º, n.º 1 do Código de Processo Civil/CPC), ou seja, ao ónus de alegar acresce o ónus de concluir - as razões ou fundamentos são primeiro expostos, explicados e desenvolvidos no curso da alegação; hão-de ser, depois, enunciados e resumidos, sob a forma de conclusões, importando que a alegação feche pela indicação resumida das razões por que se pede o provimento do recurso (a alteração ou a anulação da decisão).

            Ora, o tribunal superior tem de guiar-se pelas conclusões da alegação para determinar, com precisão, o objecto do recurso; só deve conhecer, pois, das questões ou pontos compreendidos nas conclusões, pouco importando a extensão objectiva que haja sido dada ao recurso, no corpo da alegação[2], sendo que tudo o que conste das conclusões sem corresponder a matéria explanada nas alegações propriamente ditas, não pode ser considerado e não é possível tomar conhecimento de qualquer questão que não esteja contida nas conclusões das alegações, ainda que versada no respectivo corpo.[3]

As conclusões servem assim para delimitar o objecto do recurso (art.º 635º do CPC), devendo corresponder à identificação clara e rigorosa daquilo que se pretende obter do tribunal superior, em contraposição com aquilo que foi decidido pelo tribunal a quo, constando normalmente, na sua parte final, se se pretende obter a revogação, a anulação ou a modificação da decisão recorrida.

            4. a) A Ré insurge-se contra a decisão sobre a matéria de facto, invocando, sobretudo, a prova pessoal produzida em audiência de julgamento, concluindo que o tribunal a quo não deveria ter julgado provada a factualidade mencionada em II. 1. h) e i), supra (cf., designadamente, as “conclusões 1ª, 2ª e 7ª”, ponto I, supra).

            Se é certo que a Ré não deu o melhor cumprimento aos ónus previstos no art.º 640º do CPC, é evidente estar principalmente em causa saber se houve ou não a invocada modificação na periodicidade na facturação e no pagamento dos serviços que a A. prestava àquela (mormente no tocante aos anos de 2014 e 2015) e se nada obstava a que fosse dada como provada a factualidade referente ao não pagamento dos serviços correspondentes.

            Assim, dada a relevância de tal factualidade, importa saber se outra poderia/deveria ser a decisão do Tribunal a quo quanto à factualidade em causa.

            b) Esta Relação procedeu à audição da prova pessoal produzida em audiência de julgamento, conjugando-a com a prova documental.

            c) Pese embora a maior dificuldade na apreciação da prova (pessoal) em 2ª instância, designadamente, em razão da não efectivação do princípio da imediação[4], afigura-se, no entanto, que, no caso em análise, tal não obstará a que se verifique se os depoimentos foram apreciados de forma razoável e adequada.

            E na reapreciação do material probatório disponível por referência à factualidade em causa, releva igualmente o entendimento de que a afirmação da prova de um certo facto representa sempre o resultado da formulação de um juízo humano e, uma vez que este jamais pode basear-se numa absoluta certeza, o sistema jurídico basta-se com a verificação de uma situação que, de acordo com a natureza dos factos e/ou dos meios de prova, permita ao tribunal a formação da convicção assente em padrões de probabilidade[5], capaz de afastar a situação de dúvida razoável.

            d) Ouvidas as testemunhas, importa indicar o que releva dos respectivos depoimentos.

            (…)

            5. Ante o exposto e ponderada a prova produzida em audiência de julgamento (demonstrando as testemunhas conhecimento directo dos factos, designadamente, das circunstâncias em que a facturação e o pagamento deixou de ter periodicidade mensal, bem como da emissão e entrega das facturas em apreço), afigura-se que se deverá manter o decidido, sendo que, até em razão da exigência de (especial) prudência na apreciação da prova testemunhal[6], a Mm.ª Juíza a quo não terá desconsiderado regras elementares desse procedimento, inexistindo elementos seguros que apontem ou indiciem que não pudesse ou devesse ponderar a prova no sentido e com o resultado a que chegou, pela simples razão de que tal resultado não se antolha inverosímil e à sua obtenção não terão sido alheias as regras da experiência e as necessidades práticas da vida[7]

A Mm.ª Juíza analisou criticamente as provas e especificou os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção, não se mostrando violados quaisquer normas ou critérios segundo a previsão dos n.ºs 4 e 5 do art.º 607º, do CPC, sendo que a Relação só poderá/deverá alterar a decisão de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa (art.º 662º, n.º 1, do CPC).

Soçobra, pois, a pretensão da apelante de ver modificada a decisão de facto.

            6. Estão sujeitos a prescrição, pelo seu não exercício durante o lapso de tempo estabelecido na lei, os direitos que não sejam indisponíveis ou que a lei não declare isentos de prescrição (art.º 298º, n.º 1 do CC).

            Completada a prescrição, tem o beneficiário a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou de se opor, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito (art.º 304º, n.º 1 do CC).

            O prazo da prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido; se, porém, o beneficiário da prescrição só estiver obrigado a cumprir decorrido certo tempo sobre a interpelação, só findo esse tempo se inicia o prazo da prescrição (art.º 306º, n.º 1 do CC).

            As prescrições presuntivas fundam-se na presunção de cumprimento (art.º 312º do CC).

            A presunção de cumprimento pelo decurso do prazo só pode ser ilidida por confissão do devedor originário ou daquele a quem a dívida tiver sido transmitida por sucessão (art.º 313º, n.º 1 do CC). A confissão extrajudicial só releva quando for realizada por escrito (n.º 2).

            Considera-se confessada a dívida, se o devedor se recusar a depor ou a prestar juramento no tribunal, ou praticar em juízo actos incompatíveis com a presunção de cumprimento (art.º 314º do CC).

            As obrigações sujeitas a prescrição presuntiva estão subordinadas, nos termos gerais, às regras da prescrição ordinária (art.º 315º do CC).

            Prescrevem no prazo de dois anos: a) Os créditos dos estabelecimentos que forneçam alojamento, ou alojamento e alimentação, a estudantes, bem como os créditos dos estabelecimentos de ensino, educação, assistência ou tratamento, relativamente aos serviços prestados; b) Os créditos dos comerciantes pelos objectos vendidos a quem não seja comerciante ou os não destine ao seu comércio, e bem assim os créditos daqueles que exerçam profissionalmente uma indústria, pelo fornecimento de mercadorias ou produtos, execução de trabalhos ou gestão de negócios alheios, incluindo as despesas que hajam efectuado, a menos que a prestação se destine ao exercício industrial do devedor; c) Os créditos pelos serviços prestados no exercício de profissões liberais e pelo reembolso das despesas correspondentes (art.º 317º do CC).

            7. Na prescrição presuntiva, decorrido o prazo legal, a lei presume que a obrigação foi satisfeita pelo cumprimento, dispensando o devedor da prova deste, em atenção à circunstância de, por via de regra (face à normalidade das coisas e à experiência da vida), não ser exigível quitação ou, pelo menos, não ser o recibo ou documento de quitação conservado pelo devedor durante muito tempo - os créditos em causa, além de serem normalmente reclamados a curto prazo pelo credor, uma vez que resultam da sua actividade profissional, da qual vive, são também, em regra, satisfeitos com prontidão pelo devedor, por corresponderem, os mais deles, a necessidades repetidas da sua vida quotidiana; parte-se do princípio que o devedor (em regra, o consumidor comum) pagou, dispensando-o do ónus que sobre ele impenderia de provar o pagamento, de harmonia com o disposto no art.º 342º n.º 2 do CC, deslocando-se o ónus de prova do não pagamento para o credor (caberá ao credor ilidir tal presunção, demonstrando que o cumprimento não ocorreu).

            8. A prescrição prevista no art.º 317º do CC é uma prescrição presuntiva ou “imperfeita”, na medida em que, decorrido o prazo legal, o que funciona, o que actua em ter­mos jurídi­cos não é propriamente a extinção da obrigação - mais precisamente, a recusa legítima do cumprimento da prestação por parte do beneficiário (art.º 304º, n.º 1 do CC) - mas apenas a presunção do cumprimento; a “imperfeição”, a incompletude resulta justa­mente da sua natureza presuntiva, e não extintiva do direito accionado.

            A presunção do cumprimento pode ser ilidida por prova em contrário, que, no entanto, a lei só aceita que se faça por confissão do devedor, judicial ou extraju­dicial, mas neste caso ainda com a limitação de ter que se realizar por escrito (art.ºs 313º e 314º do CC).

            A prescrição presuntiva, portanto, tem um carácter diferente da prescrição comum; nesta, basta ao devedor invocar e provar a inércia do credor no exercício do direito durante o tempo fixado na lei - completada, confere ao beneficiário a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou de se opor, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito (art.º 304º, n.º 1, do CC); naquela, exactamente porque só se presume o cumprimento, o devedor carece de provar os elementos (requisitos) que a caracterizam e defi­nem.[8]       

            9. Tem sido entendimento unânime de que não basta ao devedor, para se fazer valer da prescrição presuntiva, alegar o simples decurso do prazo. Tem, igualmente, que alegar o pagamento da dívida, sob pena de a mesma se considerar confessada tacitamente, pela prática em juízo de actos incompatíveis com a presunção de cumprimento, nos termos do art.º 314º do CC.

            Na prescrição presuntiva o decurso do prazo legal não extingue a obrigação. O que ele origina é a presunção do seu cumprimento, libertando dessa forma o devedor do ónus da prova do pagamento. Mas não o dispensa, ao contrário do que sucede na prescrição extintiva, da alegação de que pagou.[9]

            10. Decorre da factualidade dada como provada que não se verificam os pressupostos da invocada prescrição presuntiva (de cumprimento), desde logo, pelo não decurso do prazo que a poderia evidenciar - provado que as facturas reclamadas e juntas aos autos são relativas a trabalhos de contabilidade e revisão oficial de contas, como fiscal único da Ré, para o que a A. foi eleita, em 30.01.2004, para o triénio 2004/2006 - sendo sucessivamente eleita para os triénios seguintes -, resulta igualmente provado que só em 19.12.2016 é que a Ré comunicou a cessação de tais funções de fiscal único, tendo, em 23.12.2016, a A. pedido o pagamento das quantias em dívida e a Ré não pagou, sendo certo que, de harmonia com o convencionado entre as partes[10], as facturas foram emitidas, e venceram-se, em 28.7.2016 e 30.8.2016 [cf., principalmente, II. 1. alíneas b), f), g), h) e i), supra e os documentos de fls. 40 e 41][11].

            De harmonia com o critério fixado no art.º 306°, n.º 1 do CC (o prazo da prescrição “começa a correr quando o direito puder ser exercido”), o prazo de dois anos quanto aos créditos pelos serviços prestados no exercício de profissões liberais só começará normalmente a correr no momento em que cessa a relação estabelecida entre credor e devedor. Mas começará a correr antes, se o credor ´usualmente` exigir a satisfação do seu direito antes desse momento e não tiver havido estipulação em contrário com o devedor.[12]

            Compulsados os autos e vista a factualidade provada, dúvidas não restam de que o presente processo foi instaurado sem que tivessem decorrido dois anos desde a data em que cessou o relacionamento contratual das partes ou da data em que o direito de crédito da A. podia ser exercido.

            11. Assim, importa concluir pela não verificação da excepção peremptória da prescrição, quer se considere aplicável o regime previsto na citada alínea c) do art.º 317º do CC, dizendo-se que o elemento fulcral é o tratar-se de créditos por serviços prestados no exercício de profissão liberal, ainda que o credor/autor seja uma sociedade comercial que tem por objecto a prestação de serviços na área da contabilidade (e ainda que haja o dever legal de o devedor guardar e conservar o recibo de quitação), sendo certo que os serviços que estão na base dos honorários reclamados se traduziram, essencialmente, em prestação de serviços de contabilidade (maxime, auditoria e revisão legal de contas), ser­viços, portanto, que substancialmente se enquadram no exercício duma profissão liberal (sendo indiferente para o legislador a qualificação jurídica da entidade que os presta - o que releva é a natureza dos serviços em causa)[13], quer se considere que prazo mais largo, e diverso, de prescrição será de aplicar (maxime, o prazo de cinco anos do art.º 310º, alínea g) do CC), por se entender, então, que subjaz ao crédito judicialmente exigido uma obrigação relativamente à qual é usual, contra o pagamento, emitir-se documento de quitação e bem assim por ser expectável (quer porque é usual e regra, quer porque é dever legal) que o devedor (sociedade comercial) proceda à guarda e conservação de tal recibo de quitação (o devedor tem a preocupação, e o dever, de exigir o recibo comprovativo do pagamento, conservando-o no seu arquivo contabilístico, mais ou menos organizado).

A inaplicabilidade do regime da prescrição presuntiva é outrossim justificada pela consideração de que nenhuma tutela especial demanda o devedor, pois não corre o risco de ter de cumprir duas vezes, porquanto, nestes casos, não terá dificuldade de prova do pagamento (o documento de quitação é exigido, é emitido e é conservado em arquivo contabilístico).[14]

            12. Se é certo que a problemática versada em II. 11., supra, não é isenta de dificuldades - mas, como vimos, não contende directamente com o desfecho da presente lide [cf. II. 10. supra] -, a interpretação no sentido da salvaguarda dos interesses em presença e da ratio legis leva-nos a propender para a perspectiva explanada na 2ª parte do ponto que antecede.

            Como bem refere a sentença sob censura, uma sociedade como a Ré tem contabilidade organizada, guarda e conserva recibos de quitação - devedores com esta dimensão e organização têm o cuidado de exigir recibo comprovativo dos pagamentos a que procedem, conservando-o no seu arquivo contabilístico. Por isso, não correm o risco de ter de pagar duas vezes a mesma dívida por falta de comprovativo do pagamento, pelo que não faz sentido uma presunção de cumprimento a seu favor.

            13. Como a Ré não logrou ver modificada a decisão relativa à matéria de facto (porventura ciente de que só a sua eventual modificação poderia conduzir a uma diversa resposta de mérito), nem provou o invocado pagamento, outra não poderá ser a decisão de mérito, porquanto a A. prestou serviços de contabilidade à Ré com carácter oneroso e cumpriu as obrigações a que ficou adstrita, não tendo, porém, recebido o preço devido, cabendo assim à Ré/devedora pagar a importância reclamada (cf., designadamente, os art.ºs 406º, 798º e 1154º e seguintes do CC).

            14. E face a essa mesma factualidade que a A. veio a comprovar (cf., principalmente, II. 1. alíneas c) e g), supra), também se dirá - como a A./recorrida - que a invocação da excepção de abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium é um perfeito non sense, pois é destituída de qualquer fundamento, estando-se, sim, perante um simples exercício de um direito pelo credor, através de uma acção de cobrança de dívida, atendendo à relação estabelecida entre a Ré e a A., sociedade revisora oficial de contas dessa sociedade.

            15. Improcedem, desta forma, as demais “conclusões” da alegação de recurso.


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            III. Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

            Custas pela Ré/apelante.


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20.02.2019

Fonte Ramos ( Relator)

Maria João Areias

Alberto Ruço



[1] Depois transmutado em acção declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato.
[2] Vide, entre outros, Alberto dos Reis, CPC Anotado, Vol. V (reimpressão), Coimbra Editora, 1984, págs. 308 e seguintes e 358 e seguintes; J. Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, CPC Anotado, Vol. 3º, Coimbra Editora, 2003, pág. 33 e os acórdãos do STJ de 21.10.1993 e 12.01.1995, in CJ-STJ, I, 3, 84 e III, 1, 19, respectivamente.
[3] Cf. o citado acórdão do STJ de 12.01.1995.

[4] Vide, entre outros, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, págs. 284 e 386 e Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, Vol. II, 4ª edição, 2004, págs. 266 e seguinte.
[5]Refere-se no acórdão da RP de 20.3.2001-processo 0120037 (publicado no “site” da dgsi): A prova, por força das exigências da vida jurisdicional e da natureza da maior parte dos factos que interessam à administração da justiça, visa apenas a certeza subjectiva, a convicção positiva do julgador. Se a prova em juízo de um facto reclamasse a certeza absoluta da verificação do facto, a actividade jurisdicional saldar-se-ia por uma constante e intolerável denegação da justiça.   
[6] Vide, entre outros, Manuel de Andrade, ob. cit., pág. 277.
[7] Vide, nomeadamente, Manuel de Andrade, ob. cit., pág. 192 e nota (1) e Vaz Serra, Provas (Direito Probatório Material), BMJ, 110º, 82.

[8] Vide, nomeadamente, Manuel de Andrade, Teoria Geral do Direito Civil, vol. II, 4ª reimpressão, Almedina, 1974, pág. 452, referindo este Insigne Mestre, acerca do art.º 543º n.º 1 do Código de Seabra, que “a lei funda-se no intuito de evitar que o credor deixe acumular os seus créditos a ponto de ser mais tarde ao devedor excessivamente oneroso pagar”; M. J. de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12ª edição (reimpressão), Almedina, págs. 1126 e seguinte e os acórdãos do STJ de 12.9.2006-processo 06A1764 e da RC de 03.5.2011-processo 712/07.8TBTMR.C1, 20.6.2012-processo 575/10.6T2AND.C1 e 23.9.2014-processo 66850/12.5YIPRT.C1, publicados no “site” da dgsi.

[9] Cf., ainda, entre outros, e J. Lebre de Freitas, e Outros, CPC Anotado, Vol. 2º, Coimbra Editora, 2001, pág. 302 e os acórdãos da RP de 28.11.94 e da RC de 17.11.1998, in CJ, XIX, 5, 215 e XXIII, 5, 16, respectivamente.
[10] Vide, a propósito, Vaz Serra, Prescrição Extintiva e Caducidade, BMJ 106º, págs. 66 e 68.  
[11] A respeito do “quando deve ´começar a correr` o prazo da prescrição”, além do disposto no art.º 306º do CC, vide Vaz Serra, Prescrição e Caducidade, BMJ 105º, 188 e seguintes e Prescrição Extintiva e Caducidade, BMJ 106º, págs. 45 e seguintes, 51 e seguintes, 66 e 68.  

[12] Vide P. de Lima e A. Varela, CC Anotado, Vol. I, 3ª edição, Coimbra Editora, 1982, págs. 276 e 284.
[13] Cf., perfilhando este entendimento, o citado acórdão do STJ de 12.9.2006-processo 06A1764 [com o seguinte sumário: «I - Os serviços na área da contabilidade, traduzidos em consultoria fiscal, designadamente a realização de estudos económicos e análises contabilísticas e o acompanhamento de processos administrativos e burocráticos, enquadram-se substancialmente no exercício duma profissão liberal. II - Para efeitos de aplicação do art.º 317º, al. c), do CC é essencial a natureza dos serviços prestados, mas indiferente a qualificação jurídica da entidade que os presta; nada impede que se trate uma sociedade comercial tendo por objecto a prestação dos serviços referidos em I. III - A prescrição presuntiva tratada nesse normativo tem carácter diferente da prescrição comum: nesta, basta ao devedor invocar e provar a inércia do credor no exercício do direito durante o tempo fixado na lei para se julgar verificada a extinção do direito accionado; já naquela, porque só se presume o cumprimento, o devedor carece de provar os elementos que a caracterizam e definem, podendo a presunção do cumprimento ser ilidida por confissão do devedor (judicial e extrajudicial, mas neste caso apenas por escrito – art.ºs 313º e 314º do CC).»].

[14] Cf., neste sentido, entre outros, o acórdão da RP de 23.02.2012-processo 154791/10.9YIPRT-A.P1 [assim sumariado: «I - O escopo e finalidade das prescrições presuntivas encontra-se na protecção do devedor contra o risco de satisfazer duas vezes dívidas que costumam ser pagas rapidamente e de cujo pagamento não é usual exigir recibo ou guardá-lo durante muito tempo. II - Considerando o pensamento normativo subjacente ao estabelecimento das prescrições presuntivas, deve ter-se por arredada a aplicação dos normativos que as prevêem nas situações em que não estão presentes os fundamentos daquelas, seja porque não é usual pagamento imediato (ou em prazo curto), seja porque não é usual o pagamento sem quitação e é regra a conservação e guarda do recibo comprovativo do pagamento.»], publicado no “site” da dgsi.
   Neste enquadramento, merece acolhimento a perspectiva expressa no mesmo aresto de que “nenhuma tutela especial demanda o devedor, pois não corre o risco de ter de cumprir duas vezes (por estar impedido de comprovar, com o documento de quitação, a satisfação da obrigação) – nestes casos o devedor não tem qualquer dificuldade de prova do pagamento (o documento de quitação é exigido, é emitido e é conservado em arquivo contabilístico)” e bem assim que “(…) não se justifica que beneficie da protecção que através da prescrição presuntiva a lei confere ao consumidor comum relativamente àquelas obrigações geradas de relações da vida quotidiana e de cujo pagamento não é usual guardar ou sequer exigir quitação”.

  E será correcta a perspectiva da A./recorrida quando afirma: “Todas as sociedades comerciais, incluindo a R., têm contabilidade organizada, tendo até fiscal único, cargo que foi exercido pela A.” e que na Ré será “usual e regra que seja cobrado recibo de qualquer pagamento e que este seja feito por meios documentais – cheque ou transferência bancária – até atento montante das facturas em dívida”.

 Cf., ainda, sobre esta matéria, o acórdão do STJ de 14.01.2014-processo 355/11.1TBSTS.P1.S1 [tendo-se concluído: «I - O art.º 317º, al. c), do CC consagra a prescrição presuntiva, que se funda numa presunção de cumprimento, justificada na dificuldade do consumidor provar o cumprimento das obrigações assumidas no seu quotidiano, face à prática generalizada de não exigir documento de quitação ou de não o guardar. II - Não beneficia desta presunção de cumprimento o devedor sociedade anónima, que, possuindo contabilidade organizada, tem o dever de documentar nesta todos os pagamentos efectuados, maxime, os de valor avultado, como é o caso dos autos.»], publicado no “site” da dgsi.