Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
73/14.9JALRA-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALICE SANTOS
Descritores: CIBERCRIME
DADOS DE BASE
DADOS DE CONTEÚDO
Data do Acordão: 02/04/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (INSTÂNCIA CENTRAL CRIMINAL DE LEIRIA - J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 2.º, AL. C), DA LEI N.º 109/2009
Sumário: I - Quando os elementos pretendidos, funcionalmente constituem já elementos inerentes à pró­pria comunicação, na medida em que permitem identificar, em tempo real ou à pos­terior, os utilizadores, o relacionamento directo entre uns e outros através da rede, a localização, a frequência, a data, hora, e a duração da comunicação, devem participar das garantias a que está submetida a utilização do serviço, especialmente tudo quanto respeite ao sigilo das comunicações.

II - Desde que os dados de base estejam em interligação com dados de tráfego ou dados de conteúdo, torna-se necessária a auto­rização do Juiz para a sua obtenção e junção aos autos.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra


O Ministério Público, não se conformando com o despacho proferido pela Mma Juiz que indeferiu:
- o pedido de solicitação à Meo da remessa de, todas as comunicações recebidas (chamadas, SMS e MMS), no período compreendido entre 22/12/2013 e a presente data (abrangendo expressamente o dia 19/3/2014 e demais períodos que já haviam sido judicialmente determinados), por referência aos MSISDN`s 967 203 786 e 967 997 896; a indicação do IMEI em que se encontrava a operar no dia 19/03/2014 o MSISDN 967 203 786 e as comunicações ocorridas (chamadas telefónicas, SMS`s e MMS`s efectuadas e recebidas) bem como a localização celular deste IMEI no período compreendido nos últimos seis meses, abrangendo expressamente a data de 19/03/2014;
- o pedido de solicitação à Vodafone da remessa de, todas as comunicações recebidas (chamadas, SMS e MMS), no período compreendido entre 22/12/2013 e a presente data e as comunicações efectuadas entre 11/2/2014 e a presente data (abrangendo expressamente o dia 19/3/2014 e demais períodos que já haviam sido judicialmente determinados), por referência aos MSISDN`s 916 867 914:
- o pedido de solicitação à A..., com sede na (...), Lisboa,  da remessa de, todas as comunicações recebidas (chamadas, SMS e MMS), no período compreendido nos últimos seis meses, salvaguardando-se, com urgência, a data de 19/3/2014, por referência aos MSISDN`s 920 357 518, vem dele interpor recurso para este tribunal, sendo que na respectiva motivação formulou as seguintes conclusões:
1º Nos presentes autos investiga-se a eventual prática de factos susceptíveis de serem qualificados como burla informática, p. e p. no art. 221°. n.º 1, do Código Penal, em concurso real com o crime de acesso ilegítimo, previsto e punido pelo art.º 6.°, n.° 1 en.° 3 da Lei do Cibercrime.
II. Por decisão de fls. 240 a 242-verso, indeferiu o Mmo. Juiz de Instrução 2. junto da Comarca de Leiria, indeferiu a promoção de fls. 230-233, onde se solicitava a obtenção de dados de tráfego relativo a comunicações de telemóveis.
III. Existe discussão quanto a decisão do tribunal a quo, ao considerar que compete ao Ministério Público solicitar as informações pretendidas, não se justificando a intervenção do Juiz de Instrução Criminal.
IV. A informação solicitada a diversos operadores de telecomunicações de todas as chamadas, SMS's e MMS's, recebidas, num dado período temporal constituem dados de tráfego, já que permitem a identificação da fonte e destinatários de diversas comunicações, data, hora, duração, tipo de comunicação e identificação do equipamento de telecomunicação.
V. Investigando-se, designadamente um crime de acesso ilegítimo, nos termos do art.º 6.°, n.ºs 1 e 3 da Lei do Cibercrime, é-lhe aplicável o regime especial de preservação, pesquisa, apreensão e intercessão de comunicações e à recolha de prova em suporte eletrónico, constante da mesma, mormente o art.º 18.º;
VI. A decisão recorrida postergou em absoluto a aplicação do citado art.º 18.º da lei do cibercrime, pretendendo a aplicação dos art.°s 13.º a 15.º da referida Lei;
VII. Os art.°s 13.° a 15.° da Lei do Cibercrime, não se aplicam a dados de tráfego: o artigo 13.°, conjugado com o art.º 12.° (preservação expedita de dados), refere-se ao pedido de preservação e conservação de dados, que deve ser efetuada pela autoridade judiciária competente, sob pena dos mesmos se perderem, alterarem-se, ou deixarem de estar disponíveis; o art.º 14.°, refere expressamente no seu n.° 4 que o referido artigo se aplica a "qualquer informação diferente dos dados relativos ao tráfego"; o art.º 15.º, por sua vez, refere-se a "dados informáticos específicos e determinados", não cabendo tal descrição, aos dados de tráfego solicitados pelo Ministério Público.
VIII. Por aplicação do art.º 18.°, n.° 1, al. a), da Lei do Cibercrime, "é admissível o recurso à interceção de comunicações em processos relativos a crimes previstos na presente lei", aplicando-se quer à intercepção e o registo de transmissões de dados informáticos só podendo ser obtidos, por despacho fundamentado do juiz de instrução e mediante requerimento do Ministério Público (n.° 2 do citado normativo).
IX. Nos termos do n.° 3 do referido art.º 18.º da Lei do Cibercrime, a interceção pode destinar-se ao registo de dados relativos ao conteúdo das comunicações ou visar apenas a recolha e registo de dados de tráfego, como sucede in casu;
X. Finalmente estabelece o art.º 18.º, n.° 4 da Lei do Cibercrime que, em tudo o que não for contrariado pelo referido artigo, à interceção e registo de transmissão de dados informáticos é aplicável o regime de interceção e gravação de conversações ou comunicações telefónicas constantes dos art.°s 187.°, 188.° e 190.° do Código de Processo penal.
XI. A possibilidade de obtenção e junção aos autos destes dados de tráfego, e a sua validade está dependente da intervenção do Juiz de Instrução, conforme prescreve o art.º 190.° do Código do Processo Penal, aplicável ex vi, art.º 18.º, n.º 4, da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, e que comina com nulidade a obtenção de prova fora dos requisitos previstos no art.º 187.º e 1 89.° do mesmo diploma legal, do citado art.º 18.º, n.º 2 da Lei do Cibercrime e ainda do art.º 34.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa.
XII. Só assim se cumpre a mens 1egis1atoris, e a coerência do sistema, ao atribuir-se ao "juiz das liberdades e garantias", poderes para decidir, através de uma ponderação dos interesses em jogo, decisão essa, subordinada aos princípios da proporcionalidade, da necessidade, da adequação e da subsidiariedade, que no caso se reputam existir.
XIII. A decisão recorrida, salvo melhor entendimento, violou e interpretou de forma incorreta o disposto nos art.ºs 13.º a 15.º e 18.º da Lei n.º 109/2009, bem como art.°s 169.º, n.º 1, al. e), 187.°, 189.º, 2 e 190.º do Código Processo Penal.
XIV. O Tribunal a quo, deveria ter interpretado o disposto nos supra citados preceitos legais no sentido de que os elementos pretendidos pelo Ministério Público, na promoção de fls. 230-233, dizem respeitos a dados de tráfegos e que a validade da sua obtenção e junção está dependente da autorização do Juiz de Instrução Criminal.
XV. A promoção do Ministério Público foi no sentido de se dar exequibilidade a anterior decisão judicial e não de colocar, nessa parte, novas questões.
XVI. A nova reforma judicial não atribui poderes de sindicância ou de revisão não suscitada a Juiz de Instrução quando já foi judicialmente determinado o mesmo efeito e existiu defeito no cumprimento por operadora de telecomunicações.
XVII. Existindo o vício de violação de caso julgado.
Nestes termos e nos demais de direito, deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, revogado o despacho recorrido e substituído por outro que defira ao promovido pelo Ministério Público a fls. 230-233, assim se fazendo a boa e costumada
JUSTIÇA.

Nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual se manifesta no sentido da procedência do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

É este o despacho recorrido:
A fls. 230 a 233, o Ministério Público veio promover o seguinte:

«(…)Indiciam fortemente os autos factos suscetíveis de serem qualificados como burla informática, previsto e punido pelo artigo 221°, n° 1, do Código Penal em concurso real com o crime de acesso ilegítimo, previsto e punido pelo artigo 6°, n° 1, e nº 3 da Lei do Cibercrime.

Com efeito, o ofendido/lesado B... deu conta que individuo (s) de identidade não concretamente apurada, no dia 19 de Março de 2014, sem a sua autorização, efetuaram uma transferência bancária no valor de € 5.000,00 (cinco mil euros) da conta da empresa de que é representante legal " C..., Lda," para outra conta bancária titulada por D...,

Interrogada esta, veio-se a confirmar a transferência acima descrita, bem como que a mesma acedeu a colaborar com um familiar e conhecido seu E... tendo para o efeito, a pedido deste, lhe fornecido o seu NIB e após a transferência prontificou-se a efetuar juntamente com este indivíduo duas operações de câmbio de USD dólares no valor de € 2.500,00 cada.

Interrogado E..., o mesmo referiu que um individuo que apenas sabe que se chama Eduardo, de nacionalidade brasileira e utilizador do número de telemóvel 967203786 e que conhecia de frequentar um café no Cacém, lhe pediu para o ajudar no sentido de arranjar alguém com uma conta no Montepio a fim de ser efetuada uma transferência do Brasil por parte do companheiro de uma amiga sua que se encontra em Portugal.

Segundo E... este forneceu com o respetivo consentimento o NIB da sua sobrinha e arguida nos autos D... ao Eduardo e juntamente com ela efetuou no dia 19 de Março de 2014 o câmbio dos € 5.000,00 em duas lojas de câmbio, nomeadamente no CC Colombo e aeroporto de Lisboa. Mais declarou que entregou os USD dólares ao Eduardo nesse mesmo dia e que a partir dessa data nunca mais o viu.

Assim, para o prosseguimento das investigações e descoberta da verdade, afigura-se-nos essencial a obtenção de determinados dados ele tráfego, para, através desses, recolher indícios que permitam confirmar ou infirmar a versão do arguido, designadanente apurar da existência do indivíduo de nome "Eduardo" e a fim de conseguir identificar o autor dos factos.

Por força da Lei do Cibercrime é legalmente admissível o recurso à interceção de comunicações em processos relativos a crimes previstos na referida lei, aí se incluindo o tipo legal supra identificado.

A Lei do Cibercrime prevê, nos seus artigos 11° a 19°, um regime especial de preservação, pesquisa, apreensão e interceção de comunicações relativas ao Cibercrime e à recolha de prova em suporte eletrónico.

É admissível o recurso à interceção de comunicações em processos relativos a crimes previstos nesta lei ou cometidos por meio de um sistema informático ou em relação aos quais seja necessário proceder à recolha de prova em suporte eletrónico, quando tais crimes se encontrem previstos no artigo 18]0(sic)do Código de Processo Penal (artigo 18° da referida Lei).

Esta disposição legal, na parte que se refere aos crimes previstos na Lei do Cibercrime, veio alargar o catálogo dos crimes previstos no artigo 187° do Código de Processo Penal para os quais é legalmente admissível a interceção das comunicações, assim permitindo a aplicação do regime das interceções telefónicas aos crimes previstos na Lei do Cibercrime, aí se incluindo o tipo legal de acesso ilegítimo previsto no seu artigo 6°, um dos indiciados nestes autos.

É igualmente admissível, por força da extensão do regime das escutas e intercepções ao registo de comunicações, prevista no artigo 189°, n° 2, do Código de Processo Penal, quanto ao crime de acesso ilegítimo, a obtenção e junção aos autos de dados sobre a localização celular ou de registos da realização de conversações ou comunicações, desde que ordenados pelo Juiz de Instrução em relação às pessoas referidas no n° 4 do artigo 187 do Código de Processo Penal.

São dados de tráfego "os dados informáticos relacionados com uma comunicação efetuada por meio de um sistema informático, gerados por este sistema como elemento de uma cadeia de comunicação, indicando a origem da comunicação, o destino, o trajeto, a hora, a data, o tamanho, a duração ou o tipo de serviço subjacente" (artigo 2°, alínea c), da Lei do Cibercrime).

É da competência do Juiz de Instrução solicitar tal informação às empresas fornecedoras de serviços de comunicação, nos termos do disposto no artigo 18°, n° 1, alíneas a) e b), 2 e 3 da Lei do Cibercrime.

Dos autos, apurou-se que E... foi utilizador do Mobile Station Integrated Services Digital Network (MSISDN) 916 867 914 da Vodafone e 920 357 518 da A... no período de eventos criminosos.

Por douto despacho judicial constante de fls. 163, datado de 22/5/2014, foi determinado que se oficiasse a Vodafone que facultasse a localização celular e a faturação detalhada no período compreendido entre 1/8/2013 e a referida data referente ao MSISDN 916 867 914.

Salvo melhor entendimento, existiu um cumprimento defeituoso de referida ordem judicial por parte de Vodafone, que legitimamente determinou a remessa de referidos dados entre 22/12/2013 e 22/5/2014. Com efeito, a Vodafone apenas remeteu as chamadas de SMS's e MMS's efetuadas entre 1/11/2014 e 11/2/2014, olvidando as comunicações recebidas e demais datas.

No referido douto despacho judicial, foi igualmente determinado que a operadora MEO remetesse a localização celular e a faturação detalhada dos MSISDN 967 203 786 e 967 997 896 no período entre 1/8/2013 e a referida data.

Salvo melhor entendimento, existiu um cumprimento defeituoso de referida ordem judicial por parte de MEO, que legitimamente determinou a remessa de referidos dados entre 22/12/2013 e 22/5/2014. Com efeito, operadora apenas remeteu as chamadas de SMS's e MMS's até 11/5/2014 (967 203786) e 22/5/2014 (967 997 896), olvidando as comunicações recebidas.

Por outro lado, importará apurar qual o IMEI associado ao referido MSISDN 967 203 786 e averiguar quais as comunicações geradas no referido aparelho telefónico.

Considerando impacto de Acórdão de Tribunal de Justiça Europeu e legislação atual, existe o grave problema de dados acima referidos serem destruídos, quando já havia sido judicialmente determinado a sua entrega.

Pelo exposto, nos termos do disposto no artigo 269°, n° 1, al. e), 187°, 189°, nº 2, 190°, do Código de Processo Penal, 6°, nºs 1 e 3, 18°, nº 1, al. a), 2 e 3 da Lei nº 109/2009, de 15 de Setembro, por se reputarem serem absolutamente essenciais à descoberta de verdade material, o Ministério Público promove que:

a) Por referência a operadora Meo:

a. Se determine a remessa de todas as comunicações recebidas (chamadas, SMS' s e MMS's), no período compreendido entre 22/12/2013 e a presente data (abrangendo expressamente o dia 19/3/2014 e demais períodos que já haviam sido judicialmente determinados), por referência aos MSISDN's 967 203 786 e 967 997 896;

b. Se determine que seja indicado o IMEI em que se encontrava a operar no dia 19/03/2014 o MSISDN 967 203 786 e as comunicações ocorridas (chamadas telefónicas, SMS' s e MMS's, efetuadas e recebidos) bem como a localização celular deste IMEI no período compreendido nos últimos seis meses, abrangendo expressamente a data de 19/3/2014;

b) Por referência a operadora Vodafone:

a. Se determine a remessa de todas as comunicações recebidas chamadas, SMS' s e MMS's), no período compreendido 22/12/2013 e a presente data e as comunicações efetuadas entre 11/2/2014 e a presente data (abrangendo expressamente o dia 19/3/20H e demais períodos que já haviam sido judicialmente determinados) por referência ao MSISDN 916 867 914e

c) Por referência a operadora A..., com Sé de na (...), Lisboa:

a. Se determine a remessa de todas as comunicações recebidas (chamadas, SMS' s e MMS's), no período compreendido nos últimos seis meses, salvaguardando-se com urgência a data de 19/3/2014, por referência ao MSISDN 920 357 518 (…)».


*

Do exposto resulta que o Ministério Público:

a) considera investigar-se a prática de crimes de burla informática, p. e p. pelo artigo 221°, n° 1, do Código Penal e de acesso ilegítimo, p. e p. pelo artigo 6°, n° 1 e nº 3, da Lei do Cibercrime e

b) pretende obter dados de tráfego relativos a comunicações de telemóveis.

Os crimes acima referidos não se incluem no catálogo previsto no n.º 1 do artigo 187º do C. P. Penal, não podendo por isso aplicar-se neste caso o previsto no artigo 189º, n.º 2, do mesmo diploma legal.

Por outro lado, não cabem igualmente esses crimes na definição de crimes graves feita na alínea g) do n.º 1 do artigo 2º da Lei n.º 32/2008, de 17/07. O que implica que os dados de tráfego pretendidos não possam ser obtidos com fundamento nas disposições desse diploma, atento o estatuído no n.º 1 do seu artigo 9º.

Resta pois saber se isso é possível com recurso à Lei do Cibercrime.

O Ministério Público, embora pretenda meros dados de tráfego, invoca o artigo 18º desta Lei, aplicável à intercepção de comunicações. Ora, se o pretendido pelo Ministério Público não é a intercepção de comunicações electrónicas, mas pura e simplesmente o acesso ou fornecimento de informações atinentes a comunicações já efectuadas, não faz sentido invocar o artigo 18º da Lei do Cibercrime, mas sim os artigos 13º a 15º do mesmo diploma.

Tal implica que, com fundamento na Lei do Cibercrime, a competência para solicitar tais informações durante o inquérito caiba ao Ministério Público, não existindo reserva de juiz para a obtenção das informações pretendidas, ao contrário do que sucede para a intercepção de comunicações electrónicas ou apreensão de correio electrónico (artigos 13º a 15º da Lei do Cibercrime e 1º, al. b), 48º, 262º, n.º 1, 263º, n.º 1, 268º e 269º, estes dois últimos a contrario sensu, do C. P. Penal).

Neste sentido veja-se, por todos, veja-se o recente Ac. da RL de 22/01/2013, Relatora Desembargadora Alda Tomé Casimiro, disponível na internet em www.dgsi.pt), assim sumariado:

«(…) I - A Lei do Cibercrime (Lei 109/2009 de 15 de Setembro) nos seus artigos 12.º a 17.º respeitam a meios de obtenção de prova, mormente sua conservação e recolha. São eles: a “preservação expedita de dados”, a “revelação expedita de dados de tráfego”, a “injunção para apresentação ou concessão de acesso a dados”, a “pesquisa de dados informáticos”, a “apreensão de dados informáticos” e, finalmente, a “apreensão de correio electrónico e registo de comunicações de natureza semelhante”.

II - Com excepção desta última, em que se faz expressa menção à intervenção do juiz, todas as outras diligências são levadas a cabo por ordem da autoridade judiciária competente o que necessariamente inculca a ideia de que essa autoridade judiciária pode ser o Ministério Público ou o Juiz consoante a fase processual.

III - Este novo regime especial de obtenção de meios de prova teve em vista superar a lacuna da Lei nº 109/91 de 17 de Agosto (Criminalidade Informática) que por não conter essas normas processuais que adequassem o regime legal às particularidades da investigação “empurrou” a jurisprudência para a interpretação de que só em relação a crimes de catálogo seria possível a obtenção de certo tipo de dados como os dados de tráfego e mercê da intervenção do juiz de instrução (cfr. por exemplo, o Ac. T.R.E. de 26.06.2007, proc. 843/07-1, em que estava em causa a investigação do crime de acesso ilegítimo do art. 7º, nº 1 da citada Lei nº 109/91)

IV - Significa isto, na leitura integrada de todo o regime legal, que se julga adequada a interpretação de que se os dados a obter são “dados de tráfego”, de acordo com a definição do art. 2º, al. c) da Lei do Cibercrime, e tiverem de ser recolhidos junto de uma operadora localizada em território nacional, independentemente de estarmos perante “crimes graves”, enunciados no artigo 2º, nº 1, alínea g) da Lei 32/2008 de 17 de Julho, poderá a autoridade judiciária competente, tendo em vista a descoberta da verdade, ordenar que estes sejam disponibilizados sob pena de punição por desobediência. É o que resulta do disposto no art. 14º, nºs 1, 2, 3 e 4 da mesma Lei.

V - Pedir à operadora que forneça os dados em questão não é a mesma coisa que proceder a uma intercepção de uma comunicação, mesmo que com esta se vise proceder ao registo de “dados de tráfego” (…)».

Em conclusão:

a) o pretendido pelo Ministério Público não tem cabimento à luz da regulamentação prevista no C. P. Penal e na Lei n.º 32/2008, de 17/07;

b) a ter suporte na Lei do Cibercrime, compete ao Ministério Público solicitar as informações pretendidas, não se justificando a intervenção do Juiz de Instrução Criminal.

Termos em que, face ao exposto, indefiro o requerido pelo Ministério Público a fls. 230 a 233.

Devolva ao DIAP.
           
            A factualidade denunciada neste autos é susceptível de integrar a prática dos crimes de burla informática, previsto no artº 221º nº1 do CodPenal em concurso real com o crime de acesso ilegítimo, previsto no artº 6º nº 1 e nº 3, da Lei nº 109/2009 de 15/9 (Lei do Cibercrime). 
            A Lei 32/2008 de 17 de Julho regula a conservação e a transmissão dos dados de tráfego e de localização relativos a pessoas singulares e a pessoas colectivas, bem como dos dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador registado, para fins de investigação, detecção e repressão de crimes graves por parte das autoridades competentes, transpondo para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março, relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações electrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações, e que altera a Directiva n.º 2002/58/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Junho, relativa ao tratamento de dados pessoais e à protecção da privacidade no sector das comunicações electrónicas.
            No nº 2 do art 2º da lei 32/2008 na al. g) o «Crime grave», é definido como abrangendo crimes de terrorismo, criminalidade violenta, criminalidade altamente organizada, sequestro, rapto e tomada de reféns, crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal, contra a segurança do Estado, falsificação de moeda ou títulos equiparados a moeda e crimes abrangidos por convenção sobre segurança da navegação aérea ou marítima.

Por seu lado, a transmissão dos dados às autoridades competentes só pode ser ordenada ou autorizada por despacho fundamentado do juiz, nos termos do artº 9º, ou seja se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter no âmbito da investigação, detecção e repressão de crimes graves.
            O âmbito de aplicação deste diploma circunscreve-se à transmissão de dados de tráfego (fonte e destinatária de uma comunicação, data, hora e duração de uma comunicação, tipo de comunicação, identificação do equipamento de teleco­municação) de localização (localização do equipamento de comunicação móvel) e conexos necessários à identificação do assinante ou utilizador registado, no que concerne à investigação, detecção e repressão dos crimes graves e acima já referidos, por parte das autoridades judiciárias ou das autoridades de polícia criminal definidas.
            Os tipos legais aqui em causa, não se integram no conceito de crimes graves e como tal, excluem a aplicação do regime legal supra referido.
            Contudo, o regime de acesso aos dados gerados e tratados no contexto de comunicações electrónicas encontra-se regulado pelas disposições do Código de Processo Penal, - artigos 187° a 190°, do Código de Processo Penal, e pela Lei n.º 109/2009 de 15 de Setembro (Lei do Cibercrime).
            O artº 187 nº 1 do CPP dispõe que:
            “A intercepção e gravação de conversações e comuni­cações telefónicas, só podem ser autorizadas durante o inquérito se houver razões para crer que a diligência à indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter, por despacho fundamentado do juiz de instrução e mediante requerimento do Ministério Público relativamente ao crimes de catálogo, elencados no art. 187° n. ° 1, do Código de Processo Penal.
            O artigo 189°, n.º 1, do Código de Processo Penal, estende o disposto nos arts 187º e 188º (escutas telefónicas) "às conversações ou comunicações por qualquer meio técnico diferente do telefone, designadamente correio electrónico ou outras formas de trans­missão de dados por via telemática, mesmo que se encontrem guardadas em suporte digital, e à intercessão das comunicações entre presentes.
            O n.º 2, estipula que "a obtenção e junção aos autos de dados sobre a localização celular ou de registos da realização de conversações ou comunicações só podem ser ordenadas ou autorizadas, em qualquer fase do processo, por despacho do juiz, quanto a crimes previstos no nº 1 do artº 187" e em relação às pessoas referidas no nº 4 do mesmo artigo”.
            Por sua vez, a Lei do Cibercrime, no seu capítulo III, contem um regime especial de preservação, pesquisa, apreensão e intercessão de comunicações relativas ao Cibercrime e à recolha de prova em suporte electrónico, transpondo para a ordem jurídica interna a Decisão Quadro n.º 2005/222/JAI, do Conselho, de 24 de Fevereiro.
            Nos termos do disposto no art. 18°, n.º 1, al. a), da Lei do Cibercrime "é admissível o recurso à intercepção de comunicações em processos relativos a crimes previstos na presente lei".
            Esta disposição legal veio claramente alargar o catálogo dos crimes pre­vistos no art. 187°, do Código de Processo Penal para os quais é legalmente admis­sível a intercepção das comunicações, assim permitindo a aplicação do regime das intercepções telefónicas aos crimes previsto na Lei do Cibercrime, aí se incluindo o tipo legal de acesso ilegítimo previsto no seu artigo 6°, indiciado nestes autos.
            Por decorrência da extensão do regime das escutas e intercepções ao regis­to de comunicações, prevista no art. 189°, n.º 2, do Código de Processo Penal, é admissível igualmente, quanto ao crime de acesso ilegítimo previsto no art. 6°, da Lei n.º 109/2009, a obtenção e junção aos autos de dados sobre a localização celular ou de registos da realização de conversações ou comunicações, desde que ordenados pelo Juiz de Instrução em relação às pessoas referidas no n.º 4, do artº 187°, do Código de Processo Penal- (extensão do regime que resulta confirmada pelo disposto no n.º 4, do art. 18°, da Lei do Cibercrime).
            Para efeitos do disposto no art. 2º, al. c), da Lei n.º 109/2009, considera-se dados de tráfego "os dados informáticos relacionados com uma comunicação efectuada por meio de um sistema informático, gerados por este sistema como elemento de uma cadeia de comunicação, indicando a origem da comunicação, o destino, o trajecto, a hora, a data, o tamanho, a duração ou o tipo de serviço subjacente".
            O que o Ministério Público pretende cai no âmbito dos chamados "elementos de tráfego ou elementos funcionais de uma comu­nicação", pois que, para além de serem necessários ao estabelecimento e à direcção de uma comunicação, identificam ou permitem identificar a comunicação e possibi­litam a identificação das comunicações entre o omitente e o destinatário, a data e a hora da comunicação.
            Como bem refere o Ministério Público, estes elementos funcionalmente constituem já elementos inerentes à pró­pria comunicação, na medida em que permitem identificar, em tempo real ou à pos­terior, os utilizadores, o relacionamento directo entre uns e outros através da rede, a localização, a frequência, a data, hora, e a duração da comunicação.
            Estes elementos, para além de necessários ao estabelecimento de uma comunicação, devem participar das garantias a que está submetida a utilização do serviço, especialmente tudo quanto respeite ao sigilo das comunicações. - neste sentido Acórdão Tribunal da Relação de Guimarães de 12.04.2010 - Des. Anselmo Lopes, acessível em www.dgsi.pt/jtrg.
            No caso vertente o que se pretende obter nestes autos é a remessa de todas as comunicações recebidas – SMS`s, MM`s no período temporal acima referido, por referência a MSISDN`s acima referidos.
            Os dados de base que se pretendem obter (identificação da fonte e destinatário de uma comunicação, data, hora, duração, tipo de comunicação e identificação do equipamento de telecomunicação) são conexos com dados de tráfego, registo de uma comunicação suspeita e objeto da investigação desenvolvida nestes autos, pois o que se pretende obter é a identificação da fonte e destinatário de uma comunicação, data, hora.
            O Ac. do TRC de 9.12.2009 (relator Des. Jorge Jacob) decidiu que "na distinção entre "dados de base", "dados de tráfego" e "dados de conteúdo" os primeiros constituem elementos necessários ao estabelecimento de uma base de comunicação, estando, no entanto, aquém dessa comunicação" e que face a tal distinção, a "protecção entendida como restrição à transmissão de dados de base, opera apenas enquanto tais dados sejam considerados em interligação com outros dados (de tráfego, de localização ou de conteúdo).
            Portanto, desde que os dados de base estejam em interligação com dados de tráfego ou dados de conteúdo, torna-se necessária a auto­rização do Juiz para a sua obtenção e junção aos autos.

            Nos termos apontados, concede-se provimento ao recurso, determinando-se que o Mmº Juiz do tribunal “a quo” profira despacho no sentido pretendido pelo M.P. no requerimento que formulou.

Ficam prejudicadas as restantes questões.
Sem tributação

Coimbra, 4 de Fevereiro de 2015

(Alice Santos – relatora)
(Belmiro Andrade - adjunto)