Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
6/08.1JACBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO VALÉRIO
Descritores: RECONSTITUIÇÃO DO FACTO
DECLARAÇÕES DO ARGUIDO
VALOR PROBATÓRIO
AUTO
VALIDADE
PROVAS
Data do Acordão: 01/29/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ANSIÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 150.º E 357.º, DO CPP
Sumário: Não representando o auto de reconstituição, lavrado no decurso do inquérito, em substância, mais do que meras declarações (ilustradas) do arguido, e não tendo aquele requerido a leitura das mesmas, tais declarações não podem ser valoradas como meio de prova de factos, descritos na acusação/pronúncia, consubstanciadores de ilícito penal; de outro modo, seria flagrantemente violada a norma do artigo 357.º do CPP.
Decisão Texto Integral: Em conferência na 2.ª secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.


RELATÓRIO
1- No Tribunal Judicial de Ansião, no processo acima referido, foram os arguidos abaixo referidos julgados em processo comum singular, tendo sido a final proferida a decisão seguinte :
- absolvidos os arguidos A... e B... dos crimes de que vinham acusados : um crime de furto qualificado, p.p. pelos arts 203.º-1 e 204.º-1-a) do CodPenal e um crime de receptação, p.p. pelo art. 231.º-1 do CodPenal, respectivamente .

2- Inconformado, recorreu o Ministério Público, tendo concluído a sua motivação pela forma seguinte :
Impunha-se que o Auto de Reconhecimento e Reconstituição constante dos autos a fls. 107 a 119, tivesse sido integralmente valorado como tal, uma vez que se tratou na reprodução, tão fiel quanto possível, das condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido o facto e na repetição do modo de realização do mesmo, nos termos do art.º 150.º do CPP;
Face à prova produzida em audiência de julgamento, e nomeadamente à resultante do auto de reconstituição devia-se ter dado por provado que:
- que o arguido B... se dirigiu ao local onde, na companhia de terceiro não apurado, se encontrava o veículo JZ e o retiraram daquele local;
- que na Serra do Anjo da Guarda, em Ansião, o arguido e terceiro imobilizaram os veículos JZ e o OU e, com a ajuda de ferramentas, desmontaram os bancos da frente do JZ, designadamente o banco do condutor e o banco destinando a dois ocupantes;
- que bem sabia que a carrinha JZ tinha sido subtraída a terceiro, de proveniência ilegítima, e que ao retirar os bancos daquela carrinha para os fazer seus e os usar em seu beneficio, instalando-o no seu veículo OU, agiu com o intuito de obter uma vantagem patrimonial de tal acção, em seu único e exclusivo proveito, bem sabendo que os bancos não lhe pertenciam e que actuava contra a vontade, sem autorização e em prejuízo do proprietário dos mesmos, resultados estes que representou, procurou e logrou alcançar.
- sabia ainda que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Assim o impunham as seguintes provas:
- o Auto de Reconstituição e Reconhecimento a fls. 107 a 122 dos autos; associado à demais prova produzida em audiência e referida na sentença.
Ao decidir de modo diverso, fez o tribunal a quo errada apreciação da prova, violando o art.º 127.º do CPP.
Consequentemente, devia ter-se considerado que o arguido B... praticou o crime de receptação, p. e p. pelo art.º 231.º do Cód. Penal.
Mostram-se violadas as seguintes normas: o art.º 127.º e 150.º do CPP porquanto o Auto de Reconstituição e Reconhecimento a fls. 107 a 122 dos autos foi deficientemente valorado, impondo a correcta apreciação dos mesmo que se desse por provado que o arguido B... tinha plena consciência de que o veículo JZ era furtado e que ao instalar no seu carro os bancos de tal veículo se estava  aproveitar do produto de um furto, o que quis e fez; o art.º 231.º n.º 1 do Cód. Penal, por preteridos.
Assim – e por constarem dos autos todos os elementos – deverá ser reapreciada a prova produzida no sentido apontado, sendo revogada a sentença proferida e condenando-se o arguido B... pela prática do crime de receptação que lhe fora imputado.

3- Nesta Relação, o Exmo PGA emitiu douto parecer em que se pronuncia pela procedência do recurso. 

4- Foram colhidos os vistos legais e teve lugar a conferência .
                                                            
5- Na 1.ª instância deram-se como provados os seguintes factos com interesse para o caso :
1. No dia 28 de Dezembro de 2007 entre as 1h00 e as 6h00, na Rua Casa do Gaiato, em Miranda do Corvo, onde se encontrava estacionado o veículo de marca Mitsubishi, modelo L400, de cor creme e de matrícula (...) JZ, pertencente a C..., desconhecido(s) apoderou(ram)-se da referida viatura, por meio não concretamente apurado, tendo colocado tal veículo em andamento, em direção a Lagoa, Vermoil, Pombal;
(…) 4. Na data mencionada em 1, o arguido B... era dono do veículo de marca Mitsubishi, modelo Pajero, de cor preta e matrícula ...OU;
5. O banco do JZ destinado ao condutor era equipado com encosto de cabeça furado no meio e forrado com napa cinzenta, sendo que apresentava o tecido descosido na parte do assento e do lado esquerdo, apresentando-se igualmente neste lado com o tecido desgastado pelo uso, tendo várias nódoas no tecido;
6. O banco da frente do JZ destinado aos dois ocupantes era constituído por uma estrutura metálica, em razoável estado de conservação, pintada de preto, corpo em tecido e napa de cor cinzenta, com várias nódoas de tecido, sendo equipado com encostos de cabeça forrados a napa cinzenta, sendo o do lado direito furado no meio e o do lado esquerdo mais baixo e sem furo, ambos forrados com o mesmo tipo de napa;
7. Em circunstâncias desconhecidas, o JZ foi levado para local ermo, junto a Amiais, Casal do Gaio e Brejo, e do mesmo foram retirados, tendo sido deixados no local dois bancos de transporte de crianças em veículos automóveis mencionados em 2, (…)
8. Em circunstâncias não concretamente apuradas os bancos mencionados em 5 e 6 foram colocados no veículo 98-26-RO, de marca Mitsubishi, modelo L-400, de cor branca, pertencente ao arguido B....

E deu-se como não provado :
(…) que o arguido B... se tenha dirigido ao local onde o arguido A... se encontrava e tenham combinado que o JZ não poderia permanecer junto ao barracão de D..., tendo decidido retirá-lo daquele local; que tenha sido o arguido A... a colocar a carrinha em andamento em direção à Serra do Anjo da Guarda, em Ansião, no que foi seguido pelo arguido B..., que se fazia transportar no veículo de marca Mitsubishi, modelo Pajero, de cor preta, matrícula ...OU; que na Serra do Anjo da Guarda, em Ansião, os arguidos tenham imobilizado o JZ e o OU e, com a ajuda de ferramentas, designadamente de um jogo de chaves de caixa com roquete, tenham desmontado os bancos da frente do JZ, designadamente o banco do condutor e o banco destinando a dois ocupantes; (…) que o arguido B... tenha agido de forma livre, deliberada e consciente, com vista a obter para si benefício de natureza económica, que sabia não lhe ser permitido por lei, ou que tenha adquirido os bancos ao arguido A...; que ambos os arguidos soubessem que a suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
                                                       +
FUNDAMENTAÇÃO
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, extraídas da motivação apresentada, cabe agora conhece da questão ali suscitada, a e saber se há prova para a condenação do arguido B....
Porque vem questionada a matéria de facto relativa ao crime de receptação e o juízo que levou à respectiva fixação, importa começar por deixar expostos os meios de prova e as razões de convicção do tribunal convicção, em resumo e com interesse :
« (...) reportou a testemunha que a viatura furtada fora avistada em Lagoa, Vermoil, Pombal, estacionada junto a um barracão, de onde foi retirada, segundo populares ali residentes, por indivíduos que se faziam transportar num jeep semelhante ao do arguido B.... Porém, se é verdade que a viatura esteve efetivamente estacionada naquele local – como o confirmou a testemunha E... – nenhuma prova foi produzida sobre a forma como de lá foi retirada e, designadamente, se os arguidos estiveram envolvidos nessa operação.
Por outro lado, embora o banco da frente da viatura tenha sido instalado numa carrinha, da mesma marca e modelo, pertencente ao arguido B..., nada se apurou quanto às circunstâncias em que tal ocorreu. Ninguém presenciou esse facto e o auto de reconstituição de fls. 107 não pode ser valorado nessa parte pois, atento o seu teor, não constitui uma reconstituição (1), antes se tratando de meras declarações ilustradas do arguido B... prestada durante o inquérito e, como tal, não valoráveis em julgamento (2) (art. 355.º n.º 1 e 357.º, ambos do CPP). Nada se provou quando o valor do aludido banco ou quanto ao custo suportado pelo arguido B..., sendo certo que a este propósito ninguém foi inquirido.
(...) De acordo com o artigo 150.º n.º 1 do CPP, quando houver necessidade de determinar se um facto poderia ter ocorrido de certa forma, é admissível a sua reconstituição. Esta consiste na reprodução, tão fiel quanto possível, das condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido o facto e na repetição do modo de realização do mesmo.
A reconstituição do facto não tem, pois, por finalidade a existência dos factos em si, mas se podem ter ocorrido de determinada forma.
Salvo o devido respeito, a valoração de tal auto acarretaria, na prática, em “deixar entrar pela janela o que não pode entrar pela porta ».
Cabe referir, em primeiro lugar, que não pode passar despercebido que um determinado veículo foi furtado e que bancos do mesmo foram instalados num outro veículo, pertença do ora recorrido.
Mas para além deste facto e de ter havido um auto de reconstituição, ou seja, para além da instalação dos bancos de uma viatura furtada no veículo do ora recorrido, nenhuma outra prova existe de que tal instalação tenha  origem num acto de furto de um outro veículo ou de que o recorrido tivesse de ter conhecimento de que tais elementos eram pertencentes a um veículo furtado.
O acto de reconstituição foi feito com a participação do recorrido e da autoridade policial de investigação --- no qual o arguido em causa indica o percurso do veiculo furtado e onde se encontravam os bancos depois colocados no seu veículo---, mas  mais nenhum meio de prova ( pericial, testemunhal, biológico, etc.) se encontra junto aos autos.
E então cabe a interrogação que serve de fundamento ao presente recurso : tendo o recorrido colaborado na reconstituição, que valor atribuir às suas declarações nesse mesmo acto, uma vez que a “reconstituição” apenas se refere às suas declarações ?. Ou, de uma outra forma, como inferir que, perante tais declarações, o auto de reconhecimento pode servir para fundamentar uma condenação, por se dever inferir que o arguido sabia da proveniência ilícita dos bancos do automóvel furtado ?
Cabe então apreciar o meio de prova em causa, a reconstituição.
A propósito da reconstituição como meio de prova, estipula o artigo 150º nos seus nºs 1 e 2, do Código de Processo Penal: 1. Quando houver necessidade de determinar se um facto poderia ter ocorrido de certa forma, é admissível a sua reconstituição. Esta consiste na reprodução, tão fiel quanto possível, das condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido o facto e na repetição do modo de realização do mesmo. 2. O despacho que ordenar a reconstituição do facto deve conter uma indicação sucinta do seu objecto, do dia, hora e local em que ocorrerão as diligências e da forma da sua efectivação, eventualmente com recurso a meios audovisuais (…)”
Refere Germano Marques da Silva que a “reconstituição consiste na reprodução, tão fiel quanto possível, das condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido o facto e na repetição do modo de realização do mesmo (art. 150.º, n.º 1) e tem por finalidade verificar se um facto poderia ter ocorrido de certa forma. A reconstituição, contrariamente à generalidade dos meios de prova, não tem por finalidade a comprovação de um facto histórico, mas antes verificar se um facto poderia ter ocorrido nas condições em que se afirma ou supõe a sua ocorrência e na forma da sua execução. A reconstituição do facto é uma representação da realidade suposta e por isso para ter utilidade pressupõe que o facto seja representado, tanto quanto possível, nas mesmas condições em que se afirma ou supõe ter ocorrido e que se possam verificar essas condições” (cfr. “Curso de Processo Penal”, Vol. II, Verbo, 2002, pág. 196). Também Manuel Simas Santos e Manuel Leal – Henriques (in Noções de Processo Penal, Rei dos Livros, 2010, pág. 213) se pronunciam sobre este meio de prova referindo que se dá “a reconstituição quando se procura certificar a forma como determinado facto terá ocorrido, tentando repeti-lo nas mesmas circunstâncias de modo e lugar, a fim de se aquilatar do merecimento da descrição que dele é feita pelos intervenientes processuais (...) «controlo experimental de um dado acontecimento, relevante para fins processuais», desenvolvido de acordo com determinadas «condições de tempo e de topografia».
Acompanhamos aqui o que se diz no Ac RC, de 10-7-2013 ( proc. 39/12.3GDAND.c1, in www.dgsi.pt ) : « Só podem ser valoradas as declarações do arguido, descritas em “auto”, que sejam indispensáveis à realização da “reconstituição” (...) na medida e apenas para compreensão dessa mesma diligência, nomeadamente, o local da prática dos factos, a posição dos intervenientes, os percursos efectuados ».
A “reconstituição do facto”, na definição legal, é uma representação da realidade suposta e, por isso, para ter utilidade pressupõe que o facto seja representado, tanto quanto possível, nas mesmas condições em que se afirma ou supõe ter ocorrido e que se possam verificar essas condições. – cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. II, edição de 1993,      pág.     151.
        O art.356.º, n.º 7 do Código de Processo Penal estatui que
« Os órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações cuja leitura não for permitida, bem como quaisquer pessoas que, a qualquer título, tiverem participado na sua recolha, não podem ser inquiridas como testemunhas sobre o conteúdo daquelas.».
E o art.129.º, n.º1 do C.P.P. estatui, por sua vez, que « Se o depoimento resultar do que se ouvir dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas.».
Para uma certa orientação jurisprudencial, os depoimentos dos órgãos de polícia criminal sobre o que viram e ouviram na reconstituição do facto, designadamente através dos esclarecimentos aí prestados pelo arguido, não constituem “declarações de arguido”. Uma vez que os esclarecimentos ali prestados são contribuições do arguido para a reconstituição do facto e se integram no meio de prova autónomo a que alude o art.150.º do C.P.P., com este se confundindo, nada obsta a que os órgãos de polícia criminal prestem depoimento sobre os termos e o modo como decorreu a reconstituição do facto. --- Neste sentido, entre outros, podem consultar-se os acórdãos do STJ de 11 de Dezembro de 1996 ( BMJ n.º 462, pág. 299), de 22 de Abril de 2004 ( C.J., ano XII, tomo 2.º, pág. 165), de 5 de Janeiro de 2005 ( CJ., n.º 181, pág. 159), de 20 de Abril de 2006, ( www.dgsi.pt ), de 14 de Junho de 2006, ( www.dgsi.pt ), do Tribunal da Relação do Porto, de 12 de Dezembro de 2007 ( CJ, ano XXXII, 5.º, pág. 215) e do Tribunal da Relação de Coimbra, de 1 de Abril de 2009 (www.dgsi.pt ).
Outra corrente entende que podem ser valorados os factos que resultem da reconstituição do facto, mas não já o que o arguido disse nessa reconstituição.
Neste outro entendimento, as declarações do arguido anteriores à fase de julgamento estão sempre sujeitas ao regime dos artigos 356.º e 357.º do Código de Processo Penal, ainda que tenham sido produzidas a propósito da reconstituição do facto ; e, em consequência não podem ser valorados os depoimentos dos órgãos de polícia criminal sobre o que estes ouviram ao arguido durante a reconstituição do facto efectuada no inquérito, salvo a solicitação do próprio arguido. Os órgãos de polícia criminal só podem depor sobre os outros factos que percepcionaram directamente na diligência.
Em nosso entender, como enuncia o Ac. RC, de 25-9-2013, proc. n.º 681/10.7GBTMR. C1 ( www.dgsit.pt ): - « Não refutando in limine a posição de a reconstituição do facto, quando feita com a colaboração do arguido, não dever ser confundida com as declarações por este, então, prestadas, gozando, por isso, de autonomia, como específico meio de prova que, efectivamente, é, torna-se, contudo, indispensável que, em substância, se possa assentar, sem sofisma, estarmos perante prova por reconstituição, tal como legalmente definida no artigo 150.º do CPP, característica que lhe há-de advir, não por via da semântica a que aqui e ali se recorre, mas, pelo contrário, pelo conteúdo do auto revelador da diligência. II - Quer se adopte a posição mais restritiva - traduzida na negação à reconstituição do facto de poder probatório para atestar a existência ou inexistência de um determinado facto histórico, reservando a reconstituição para o campo da mera verificação do modo e condições em que hipoteticamente terá ocorrido o facto probando -, quer a posição mais alargada - sustentado que a reconstituição é um meio válido de demonstração da existência de certos factos -, não pode a mesma servir finalidades de obtenção, conservação da prova, designadamente por confissão, sob pena de a consideração/valoração do respectivo auto conduzir à violação do disposto nos artigos 355.º e ss. do CPP, por aquele apenas conter verdadeiras declarações ».
É claro que, no caso em apreço, as declarações do agente policial que dirigiu a reconstituição foram, em parte, declarações informais, o que se diz uma conversa informal.
Ora, os órgãos de polícia que tenham recebido declarações cuja leitura não seja permitida em audiência não podem ser inquiridas sobre o conteúdo das mesmas, pois a proibição constante dos art. 356º, nº 7, e 357º, nº 2, do CodProcPenal veda o aproveitamento, como meio de prova, de declarações prestadas por órgãos de polícia criminal sobre o que ouviu aos vários intervenientes processuais no decurso do inquérito.
O caso não será tanto de inadmissibilidade de depoimento ( pois as testemunhas nem sempre estão, nem têm que estar, cientes dos limites dos seus depoimentos, do que podem ou não podem dizer ), mas de uma impossibilidade legal de tais testemunhas serem perguntadas sobre o conteúdo das declarações prestadas pelo arguido e de estas declarações, quando forem referidas, serem valoradas e fundamentarem a decisão sobre a matéria de facto. Já assim não será quando os agentes da autoridade obtêm conhecimento dos factos por modo diferente das declarações do arguido reduzidas a auto (v.g. através de buscas, reconstituições, etc.).  
A jurisprudência vem considerando irrelevantes as provas extraídas de “conversas informais” mantidas entre os agentes e os arguidos, ou seja, declarações obtidas à margem das formalidades e das garantias que a lei processual impõe., entendendo-se que a lei pretende assim que se frustre o direito do arguido ao silêncio, silêncio esse que seria preenchido ilegitimamente através da “confissão por ouvir dizer” relatada pelas testemunhas agentes da autoridade.
Ou seja, como diz o Ac do STJ de 11-7-2001 ( CJ/STJ, III, 165 ), afirmando a sujeição ao princípio da legalidade das conversas informais a propósito de factos em averiguação, « (...) as ditas “conversas informais” só podem ter valor probatório se transpostas para o processo em forma de auto e com respeito pelas regras legais de recolha de prova.  (…) Não há conversas informais, com validade probatória, à margem do processo, sejam quais forem as formas que assumam, desde que não tenham assumido os procedimentos de recolha admitidos por lei e por ela sancionados ».
Refere também o Ac STJ, de 12-5-2000, proc n.º 00P2539 ( www.dgsi.pt ) : « Os órgãos da polícia criminal não podem depor sobre o conteúdo das declarações que hajam recebido durante a recolha da prova e cuja leitura não é autorizada. Tal proibição respeita tanto às declarações registadas no processo como às designadas "conversas informais" que não foram formalizadas em auto e que, por isso mesmo, carecem de validade probatória.
Exemplar em clareza quanto à justificação daquela proibição é o Ac da REvora, de 2-3-2004 (www.dgsi.pt) : « (...)  entendimento contrário conduziria a perversão do sistema: para permitir que as declarações do arguido, tomadas no momento da sua detenção, pudessem ser valoradas em audiência, ainda que aí ele se remetesse ao silêncio, bastaria aos órgãos de polícia criminal não as reduzir a auto, mantendo-as nesse nevoeiro perigoso que são as “conversas informais”; ou melhor ainda, bastar-lhes-ia colocar colocar um determinado agente a ouvir – em declarações formais – o arguido e outro a ouvi-lo “informalmente (…) Desta forma estaria encontrada a forma, através do engenho tipicamente lusitano, de permitir aquilo que o legislador quis proibir (…) Apesar de acreditarmos (...) na lisura dos procedimentos dos órgãos de polícia criminal, não podemos aceitar um entendimento desta questão que, no extremo, permita a apontada perversão do sistema pretendido pelo legislador » --- No mesmo sentido se pronunciaram, entre outros : Ac STJ, de 20-4-2006, www.dgsi.pt ;  Ac STJ, de 9-7-2003, proc. 03P615, www.dgsi.pt ; Acs. do S.T.J. de 29/01/92, CJ, Ano XVII, 1992, I, p. 22 ; de 10/01/01, proc. nº 2539/00 ; de 07/02/01, proc. nº 4/00-3ª ; de 11/07/01, proc. nº 1796-01-3ª ; de 30/10/01, proc. nº 2730-01-3ª ; de 03/10/02, proc. nº 2804-02-5ª ; Ac RP, de 7-3-2007, proc. n.º 0642960, www.dgsi.pt ; Ac RP, de 7-3-2007, proc. n.º 064672, www.dgsi.pt ; Acs da RC, 18-2-2004, da RE, 2-12-2003, da RE, 13-1-2004, da RE, 2-3-2004, da RG, 4-6-2007,  todos em www.dgsi.pt.
Mais, no caso dos autos a diligência de prova em apreço parece não se ter justificado por uma questão de necessidade, qual seja a de determinar se um facto poderia ter ocorrido de certa forma, como impõe o art.º 150º do C.P.Penal
Assim, em termos materiais/substanciais não representa aquele auto de reconstituição mais do que meras declarações (ilustradas) do arguido no âmbito de uma diligência de inquérito, e não tendo o mesmo requerido a leitura das mesmas, tais declarações não podem ser valoradas como meio de prova dos factos de que estava acusado. Fazê-lo, seria violar o plasmado no já citado artigo 357º do Código de Processo Penal, acolhendo um meio de prova não permitido por lei, e assim impõe-se a existência de dúvidas sobre as razões e o modo pelos quais o arguido em causa adquiriu ou instalou no seu veículo aqueles elementos materiais. E não havendo elementos suficientes para se poder, com segurança bastante, concluir que o recorrido tivesse sido o autor dos factos, deverá o mesmo ser absolvido.
                                                             +
DECISÃO
Pelos fundamentos expostos :
I- Nega-se provimento ao recurso, assim se mantendo a decisão recorrida.
II- Sem custas.
                                                             -
                                                             -
Tribunal da Relação de Coimbra, 29 de Janeiro de 2014
                  
 
(Paulo Valério - relator)
 (Frederico Cebola - adjunto)