Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
8271/18.0T8CBR-G.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: QUEBRA DE SEGREDO PROFISSIONAL
Data do Acordão: 03/08/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES DE COIMBRA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECLAMAÇÃO
Decisão: INDEFERIMENTO DA RECLAMAÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGOS 417.º, N.º 4, DO CPC E 335.º, N.º 3 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário: I – A divulgação, com quebra do segredo profissional, das gravações de sessões de terapia familiar, realizadas no âmbito de um processo de regulação das responsabilidades parentais, é de indeferir quando o fim visado com tal divulgação – provar que, no relatório que apresentaram, os técnicos faltaram à verdade no relato dos factos ou veicularam conclusões/valorações infundadas – pode ser alcançado através de das declarações e dos esclarecimentos de tais técnicos prestados na audiência final.

II – Justificam ainda a não divulgação de tais gravações o facto de o acesso a elas ter ficado originariamente condicionado – em sede de consentimento informado e acordo de todos os sujeitos intervenientes – à existência de autorização escrita dos progenitores e o facto de um deles não dar autorização a tal acesso.

Decisão Texto Integral:










Acordam, em Conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra

I - Por decisão sumária do Relator, datada de 21/12/2021, proferida ao abrigo do disposto no art.º 656.º do NCPCiv., foi decidido «não autorizar a quebra do sigilo profissional», nos seguintes termos:

“I – Relatório

Resulta destes autos que corre termos processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais, referente à menor AA,

em que é requerente o pai, BB, com os sinais dos autos, sendo requerida a mãe da menor, CC, também com os sinais dos autos.

Nesse âmbito de processo de regulação, o Requerente apresentou alegações (art.º 39.º, n.º 4, do RGPTC), onde requereu, probatoriamente (quanto a “documentos em poder de terceiro”), que se oficiasse à F... (doravante, F...) para juntar aos autos a gravação de todas as sessões de terapia familiar ocorridas no âmbito dos autos ([1]).

Deferido o requerido, veio a F... comunicar não poder disponibilizar as gravações, por:

- nas sessões terapêuticas ser apurada matéria/informação de natureza pessoal e que não tem importância para o processo, sendo apenas selecionada aquela que é relevante para ser reportada ao tribunal, assim cumprindo as normas de ética e deontologia;

- ambos os progenitores terem sido informados e terem assinado, na primeira sessão, “declaração de consentimento informado”, consentimento esse onde constam as cláusulas de confidencialidade (incluindo a obrigatoriedade de autorização escrita de todos os elementos envolvidos para qualquer pedido de acesso “ao processo, em papel ou gravações”);

- a cedência do material solicitado poria “em causa todos os fundamentos de um processo terapêutico”, que se baseia numa relação de confiança, abalando a adesão das pessoas implicadas, também em futuros processos de intervenção psicológica, psicossocial e de saúde mental em geral.

O Requerente veio, perante isso, invocar que lhe assiste o direito a contraditar o relatado pelos técnicos quanto a factos inverídicos ([2]), «juízos conclusivos» fundados em apreciação «meramente subjectiva» (constantes de relatório junto aos autos pela F...) e avaliações sem sustentação fáctica([3]), a denotar clara parcialidade dos técnicos, inexistindo violação da deontologia profissional e ética e consentindo ele na prestação da informação no que lhe respeita. Porém, para o caso de assim não ser entendido, requereu que fosse suscitado incidente de verificação da legitimidade da escusa e dispensa do dever de sigilo profissional (ao abrigo do disposto no n.º 3 do art. 135.º do CPPen., ex vi n.º 4 do art.º 417.º do NCPCiv.).

Indeferido, na sequência, o requerido quanto às gravações das sessões de terapia familiar, interpôs o Requerente recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra (doravante, TRC), o qual veio a decidir no sentido de revogar o despacho recorrido, ordenando a sua substituição por outro, que ordenasse o requerido pelo apelante, «sob a), e sob b), in fine (na parte final das suas conclusões de recurso), sem prejuízo de pertinente notificação à ... e subsequente dinâmica processual»([4]).

Por subsequente despacho da 1.ª instância de 10/11/2021, foi ordenada a notificação da «progenitora para, em 10 dias, autorizar a F... a fornecer a gravação de todas as sessões de terapia familiar havidas», perante o que esta veio pronunciar-se assim:

«1. A requerida não autoriza a junção aos autos das gravações das sessões de terapia familiar.

2. Entende a requerida que os relatórios elaborados pelos técnicos isentos e especializados, bem como a sua audição em sede de audiência de julgamento, contêm todas as informações relevantes e essenciais para a descoberta da verdade material da questão controvertida.

3. A exposição das gravações das sessões em tudo o que não for essencial para a decisão da causa constitui uma intrusão na vida privada da requerida que não é admissível.

4. Na verdade, no início das sessões de terapia familiar, a requerida foi informada pelos técnicos de que as gravações efetuadas estavam a coberto do sigilo profissional, sendo que foi nesse pressuposto de confiança que a mesma prestou declarações.

5. O requerente vem pôr em causa a veracidade das declarações contidas nos relatórios dos técnicos independentes, sem, para isso, fundamentar a sua suspeita.

6. Se os técnicos mentiram nos seus relatórios, estamos perante uma violação do código deontológico por parte dos técnicos, devendo o requerente demonstrar indícios fortes para levantar essa suspeição sobre os peritos.

7. Sem a demonstração de que haja indícios fortes de que os relatórios dos técnicos e as suas declarações em sede de audição, e no futuro, em sede de julgamento sejam falsas, não há motivo para que o sigilo profissional seja levantado e, consequentemente, as gravações por ele protegidas sejam juntas aos autos,

8. Uma vez que os mesmos irão prestar declarações em sede de julgamento, podendo o Tribunal, nesse momento, pedir todos os esclarecimentos relativamente ao que se haja passado nas sessões de terapia familiar.

9. Na verdade, nenhum dos intervenientes processuais tem conhecimento técnico na área da psicologia e terapia, pelo que a análise das gravações por parte do Tribunal nunca poderá ser feita sem ser de acordo com os relatórios e declarações dos peritos.

(…)

11. Também por isto, a requerida não vê fundamento para que as mesmas sejam juntas aos autos.».

Respondeu o Requerente, pugnando pela improcedência da argumentação da Requerida e, assim não se entendendo, por dever ser «suscitado à Veneranda Relação de Coimbra o Incidente de levantamento do sigilo profissional».

Após diversas vicissitudes processuais, por despacho de 02/12/2021 foi ordenada a extração de certidão para «suscitar o incidente de quebra de segredo profissional junto do Tribunal da Relação de Coimbra» ([5]).


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Remetidos, por isso, os autos a este TRC, cumpre apreciar e decidir, ao que nada obsta.


***

II – Âmbito da Decisão

Sendo o objeto do incidente delimitado pelo que vem suscitado nos autos, está em causa apenas saber se deve, ou não, determinar-se o levantamento/quebra de sigilo profissional para efeitos probatórios – aquisição de prova documental concernente à gravação das múltiplas sessões de terapia familiar em que foram intervenientes Requerente e  Requerida, no âmbito dos autos de regulação do exercício de responsabilidades parentais da sua filha menor, sendo que essa informação técnica está coberta pelo dever de sigilo dos profissionais da F... e existe declaração (originária) de consentimento informado daqueles Requerente e  Requerida, onde consta expressamente que qualquer pedido de acesso “ao processo, em papel ou gravações, terá de ser realizado com a devida autorização escrita de todos os elementos envolvidos neste mesmo processo”.


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III – Fundamentação

A) Matéria de facto

A factualidade a considerar nesta sede é a que consta do antecedente relatório, cujo teor aqui se dá por reproduzido.


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B) Substância jurídica do incidente

Como já referido, o Centro de Prestação de Serviços à Comunidade da F..., uma vez notificado para entregar/facultar a gravação de todas as sessões de terapia familiar ocorridas no âmbito dos autos em questão, apresentou recusa a prestar os elementos solicitados, invocando, para tanto, dever de sigilo profissional (aludindo a “violação ética e deontológica”), o que consubstancia escusa, que a afirmada não autorização (quanto à entrega/junção da gravação) pela Requerida não permitiu superar (como sublinhado pela 1.ª instância).

Perante isso, o Requerente pretende que ocorra dispensa do dever de sigilo profissional, a fim de ser junta a pretendida gravação, que considera relevante para o desfecho dos autos.

As questões probatórias aludidas – as únicas agora a ter em consideração – prendem-se, pois, com a imputada parcialidade dos técnicos, na medida em que teriam estes veiculado:

a) Factos inverídicos (alegadamente, ter sido escrito um acordo com residência alternada, que nunca existiu);

b) Juízos conclusivos/subjetivos (constantes de relatório junto aos autos pela F...); e

c) Avaliações/valorações sem sustentação fáctica.

Vejamos, então.

Nos termos do disposto no art.º 417.º, n.º 3, al.ª c), do NCPCiv., a recusa de colaboração devida para a descoberta da verdade, designadamente respondendo, como testemunha, ao que lhe for perguntado, ou, como in casu, facultando documentos/gravações reservados do âmbito das sessões de terapia familiar, a que se submeteram Requerente e Requerida, é legítima se a obediência importar violação do sigilo profissional.

E acrescenta o n.º 4 do mesmo dispositivo legal: “Deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado”.

Vale aqui, por isso, o disposto no art.º 135.º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal, segundo o qual “O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado (…) pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos (…).”.

Preceito que vem na linha do n.º 1 do mesmo art.º, dispondo que “Os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos e jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos”.

No caso, a satisfação da solicitação dirigida à F... importaria uma violação do sigilo profissional a que os técnicos (e a instituição) estão obrigados, no concernente à Requerida, que não concedeu autorização escrita para o efeito (apesar de o Requerente, por seu lado, ter concedido tal autorização).

Na aludida decisão sumária do TRC de 06/10/2021 foi invocado o «princípio 2 do Cód. Deontológico da Ordem dos Psicólogos Portugueses», âmbito em que foi assim expendido:

«É sabido que as partes têm direito a conhecer as informações, as declarações da assessoria técnica e outros depoimentos, processados de forma oral ou documentados em auto, relatórios, exames e pareceres constantes do processo, podendo pedir esclarecimentos, juntar outros elementos ou requerer a solicitação de informações necessárias, a elas lhes sendo garantido o contraditório (art. 23º, nº 1 e 3, do RGTPC), que é o desiderato do recorrente. Salvo, claro, a existência de sigilo profissional.

Neste aspecto decorre do princípio 2 do aludido Cód. Deontológico que:

 2 - Privacidade e confidencialidade

Os/as psicólogos/as têm a obrigação de assegurar a manutenção da privacidade e confidencialidade de toda a informação a respeito do seu cliente, obtida direta ou indiretamente, incluindo a existência da própria relação, e de conhecer as situações específicas em que a confidencialidade apresenta algumas limitações éticas ou legais.

(…)

2.2 - Privacidade dos Registos. Os/as psicólogos/as recolhem e registam apenas a informação estritamente necessária sobre o cliente, de acordo com os objetivos em causa.

(…)

2.4 - Acesso do Cliente à Informação sobre si Próprio. O cliente tem direito de acesso à informação sobre ele próprio e a obter a assistência adequada para uma melhor compreensão dessa mesma informação.

(…)

2.7 - Autorização para divulgar informação. Os/as psicólogos/as podem divulgar informação confidencial sobre o cliente quando este, ou o seu representante legal, der previamente o seu consentimento informado.

(…)

2.9 - Comunicação de informação confidencial. A informação confidencial é transmitida apenas a quem se considerar de direito e imprescindível para uma intervenção adequada e atempada face à situação em causa. O cliente é informado sobre a partilha de informação confidencial antes desta ocorrer, exceto em situações onde tal seja manifestamente impossível, pretendendo minimizar-se os danos que a quebra de confidencialidade poderá causar na relação profissional.

(…)

2.14 - Situações Legais. Sempre que haja solicitação legal para a divulgação de informação confidencial sobre o cliente (registos, relatórios, outros documentos e ou pareceres), é fornecida a um destinatário específico, apenas a informação relevante para a situação em causa, tendo em conta os objetivos da mesma, podendo haver recusa de partilha de informação considerada não essencial. O cliente é previamente informado desta situação, bem como dos conteúdos da informação a revelar, exceto em situações em que tal for manifestamente impossível. E Caso os/as psicólogos/as  considerem que a divulgação de informação confidencial pode ser prejudicial para o seu cliente, podem invocar o direito de escusa (de acordo com o disposto no artigo 135.º do Código de Processo Penal).

(…)».

Vem sendo jurisprudência pacífica, em geral, que o dever de sigilo não é um dever absoluto, havendo de ser compaginado com as exigências da descoberta da verdade e realização da Justiça.

Os valores e interesses protegidos pelo sigilo aqui em causa são, essencialmente, o da confiança e segurança das relações entre os psicólogos/técnicos e seus clientes e o direito à reserva da vida privada destes últimos, a que se contrapõe, na outra vertente (a da Justiça), o direito de qualquer das partes a produzir prova num processo judicial, havendo de verificar-se da imprescindibilidade para a sua tutela do levantamento do sigilo e consequente restrição do direito por este protegido.

Assim sendo, o dever de sigilo em discussão, como dever de segredo profissional, não constitui um limite absoluto ao dever de cooperação para a descoberta da verdade, podendo ser quebrado sempre que tal se mostre justificado à luz do princípio da prevalência do interesse preponderante, desde que se verifiquem os requisitos da adequação, necessidade e proporcionalidade.

Com efeito, de acordo com o art.º 20.º da Constituição da República Portuguesa, a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, daqui emergindo um direito geral de proteção jurídica e de acesso aos tribunais, devendo ser atendidas todas as provas, desde que lícitas, quando exercido o direito de produção de prova para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos.

A regra é, pois, a da admissibilidade de todos os meios de prova permitidos em direito, independentemente do tipo de processo e da natureza e do objeto do litígio, permitindo, todavia, a lei a recusa de colaboração na obtenção da prova em certos casos, estabelecendo como fronteiras a invasão/ofensa da intimidade da vida privada, da dignidade humana ou do sigilo profissional.

Os interesses em confronto nesta sede estão, pois, claramente identificados pela jurisprudência e pela doutrina, devendo proceder-se a uma ponderação conjugada dos mesmos, em concreto – perante as circunstâncias de cada caso –, de molde a, se não compatibilizá-los/harmonizá-los, deixá-los hierarquizados.

Assim é que vem sendo entendido que, na análise casuística a fazer nesta sede, “releva determinar qual o interesse que deve prevalecer face aos interesses conflituantes, isto é, por um lado o interesse na realização da justiça, assim como a tutela do direito à produção de prova pela parte sob a qual impende o respetivo ónus, e por outro o interesse tutelado com o estabelecimento do dever de sigilo, tendo em conta a relação de confiança que levou a transmitir determinados dados àquele que se mostra obrigado pelo sigilo, mas também, a dignidade do exercício da respetiva profissão” ([6]).

Havendo quem entenda que “Os «valores da Justiça» prevalecem sobre os outros valores meramente económico-privatísticos” ([7]), haverá, todavia, de convir-se que os valores contrapostos nos autos suplantam, obviamente, os meramente materiais.

Em qualquer caso, é seguro, por legalmente imposto, que tem de verificar-se da imprescindibilidade da prova – aquela que se pretenda obter por via do levantamento do segredo – para a descoberta da verdade ([8]), sem o que não deverá haver quebra do dever de sigilo.

No caso dos autos, afigura-se-nos ocorrer, desde logo, o requisito da adequação, pelo que se passará à ponderação quanto aos requisitos da necessidade e da proporcionalidade.

Ora, cabe dizer, salvo o devido respeito, que a prova pretendida, sendo adequada ao fim prosseguido, não se mostra necessária/indispensável para apuramento do pretendido pelo Requerente.

Com efeito, se o fim probatório prosseguido se direciona para a infirmação de factos inverídicos (um acordo com residência alternada, que nunca existiu), então devem os técnicos/psicólogos prestar esclarecimentos nos autos e/ou ser ouvidos em declarações – sabido que a sua audição, para além de requerida, pode ser judicialmente determinada, para que tenha lugar em sede de audiência final –, com integral observância do contraditório, a fim de ser cabalmente esclarecida qualquer questão de facto relevante.

E, se o assunto ficar, por essa via, resolvido/clarificado, com a obtenção dos esclarecimentos necessários e elucidação fáctica a respeito, então não se torna necessário sacrificar a esfera pessoal (de intimidade da vida privada) da Requerida, mantendo-se intocado o âmbito sigiloso quanto a ela, tal como consta das gravações convocadas (de sessões de terapia familiar).

Caso não se lograsse alcançar a necessária clarificação, então – aí sim – poderia ser de ponderar quanto à necessidade de levantamento do dever de sigilo.

Quanto, por sua vez, aos invocados juízos conclusivos/subjetivos, constantes de relatório da F..., sempre poderia essa invocada imperfeição/deficiência ser superada através de esclarecimentos a essa matéria, a prestar pelos mesmos técnicos, fossem esclarecimentos escritos (em peça escrita a juntar aos autos, em prazo) ou orais (em sede de audiência final).

E o mesmo se diga, mutatis mutandis, relativamente às assacadas avaliações/valorações sem sustentação fáctica: deve começar-se pela prestação de esclarecimentos a respeito, esclarecimentos esses por parte dos técnicos/peritos, escritos ou orais, com integral observância do contraditório. Por essa via, lograr-se-á determinar quanto à existência, ou não, de sustentação fáctica bastante e adequação conclusiva técnica, preservando-se, ao mesmo tempo, sem dano, a matéria sigilosa, de molde a defender a esfera essencial de intimidade da Requerida mãe.

Não estão esgotados, pois, os meios admissíveis para conseguir aferir, através dos próprios técnicos – e respetivo contraditório –, se estes trouxeram para os autos uma versão inexata, infundamentada ou abusiva quanto à matéria – incluindo os factos relevantes – em discussão.

Em suma, não se demonstra o requisito enunciado da necessidade/imprescindibilidade.

Por outro lado, não pode deixar de atentar-se no teor da declaração de consentimento informado originariamente subscrita por ambos os aqui Requerente e Requerida, no âmbito da terapia familiar a que se submeteram.

Com efeito, não só o Requerente pai mas também a Requerida mãe, ao autorizarem a presença de observadores e a gravação áudio das sessões de terapia – trata-se de uma finalidade terapêutica, na órbita familiar –, ficaram esclarecidos, como declararam, quanto ao âmbito de posterior utilização dos registos e gravação, com garantia de confidencialidade e de reserva, sendo que qualquer pedido de acesso ao processo/gravações, teria (inevitavelmente) de ser realizado com a devida autorização escrita de todos os elementos envolvidos, incluindo, pois, obviamente, aquela Requerida mãe.

Quer dizer, qualquer acesso à gravação das sessões de terapia ficou, ab initio, sujeito à condição de autorização da Requerida mãe, atenta a sua exposição, quanto à esfera da sua intimidade pessoal/familiar, nessas sessões e gravação.

Ora, tais pressupostos do «consentimento informado» daquela Requerida – no âmbito de um processo judicial que se quer justo e equitativo, sujeito, pois, aos ditames da boa-fé, comprometida esta com a tutela da confiança e as legítimas expetativas investidas dos sujeitos processuais envolvidos – deverão ser respeitados, sob pena de subversão do acordado e do respetivo «processo terapêutico».

Por isso, não parece que se possa fazer tábua rasa dos pressupostos que presidiram ao consentimento informado dos pais da menor (Requerente e Requerida), que por isso acederam – ambos – em permitir a gravação, a qual incide, obviamente, atenta a natureza das terapias gravadas, sobre a esfera irredutível da sua vida privada e familiar, o núcleo dos direitos de personalidade das pessoas (no caso, importam os direitos da mãe).

Uma vez que a Requerida mãe, notificada para o efeito, não veio prestar a sua aquiescência/autorização – do que só a si cabe decidir, visto o originariamente acordado/estabelecido entre os sujeitos envolvidos, com a condição mencionada, por todos aceite –, tem ela de ser protegida na sua intimidade da vida pessoal e familiar e na confiança investida, posto não ter anuído ex ante, nem o ter feito ex post facto, em matéria de consentimento informado prévio, que não deverá ser agora defraudada.

Donde que, sem quebra do respeito devido, também não fosse proporcional uma irrestrita disponibilização probatória das gravações de todas as sessões de terapia para o fim visado pelo Requerente.

O caso não justifica, pois, em ponderação de interesses divergentes, o levantamento do dever de sigilo.

Com efeito, se, por um lado, as gravações pretendidas não devem ser vistas, no contexto do processo, como essenciais/imprescindíveis à descoberta da verdade e boa decisão da causa – reitera-se que ainda se vislumbra possível e adequado, ante as vicissitudes dos autos, fazer a prova necessária, mediante declarações/esclarecimentos (escritos ou orais) dos técnicos/peritos, designadamente em audiência final, com total abertura do contraditório –, também, por outro lado, se considera que, na análise casuística a fazer nesta sede, não deve prevalecer, numa lógica de proporcionalidade, dentre os interesses conflituantes, o interesse do Requerente, atento o teor/âmbito do consentimento informado prestado e inerente condição de acesso estabelecida, originariamente e em comum, sem que assim se deixe sacrificado o interesse da realização da Justiça, através da tutela do direito à produção da prova, que não se queda inviabilizada.

Donde que deva prevalecer aqui o dever de sigilo, associado àquela condição de acesso estabelecida, não podendo, assim, ser acolhida a pretensão probatória do Requerente.

***

IV – Concluindo (cfr. art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv.):

(…)


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V – Decisão

Pelo exposto e ao abrigo do disposto no art.º 656.º do NCPCiv., decide-se não autorizar a quebra do sigilo profissional.

Custas pelo Requerente (vencido neste âmbito incidental), fixando-se a taxa de justiça em montante equivalente ao mínimo legal..

                                                 ***

II - Discordando do assim decidido, veio o Requerente reclamar para a Conferência, ao abrigo do disposto no art.º 652.º, n.º 3, do NCPCiv., para que sobre a matéria da decisão singular proferida recaia acórdão deste Tribunal da Relação, visto considerar que «se verificam todos os requisitos para autorização da quebra do sigilo profissional e, consequentemente, para autorização para junção aos autos das pretendidas gravações».

Não foi oferecida resposta.

                                                 ***

III - Apreciando

1. - O Requerente formula as seguintes conclusões de reclamação:

«a) “O dever de segredo profissional não constitui um limite absoluto ao dever de cooperação para a descoberta da verdade, podendo ser quebrado sempre que tal se mostre justificado à luz do princípio da prevalência do interesse preponderante, desde que se verifiquem os requisitos da adequação, necessidade e proporcionalidade.”

b) Visando o presente incidente a quebra do dever de sigilo profissional por parte dos técnicos da F... com vista à junção aos autos de Regulação das Responsabilidades Parentais das gravações das sessões de terapia familiar em que requerente e requerida intervieram verificam-se todos os referidos requisitos.

c) Verifica-se o requisito da adequação porquanto tratando-se as gravações das sessões de terapia familiar a documentação fiel do que em tais sessões se verificou, das mesmas resultará claro se os comportamentos imputados ao requerente pelos técnicos da F... que presidiram a tais sessões correspondem, ou não (como afirma o requerente), à realidade;

d) Verifica-se o requisito da necessidade porquanto, aos pedidos de esclarecimento por escrito oportunamente solicitados pelo reclamante não foi dada resposta e, ao invés, foi determinada uma diligência de declarações presenciais pelos técnicos sem qualquer contraditório possível, estando já cristalizada em acta as afirmações em face das quais, mesmo em contraditório oral a efectuar em sede de audiência final, não se antevê que os senhores técnicos da F... reconheçam que faltaram à verdade, tudo redundando nas mesmíssimas afirmações já prestadas nos autos conforme acta de diligência de 22-09-2020, mais revelando que para o respectivo contraditório as próprias gravações são um elemento imprescindível.

e) Verifica-se o requisito da proporcionalidade na medida em que o teor da reserva da intimidade da vida privada da requerida mãe, por via da junção das gravações pretendidas, não cederá mais do que o interesse da reserva da intimidade da vida privada do requerente e ora reclamante, que já queda abstratamente carreado para os autos por via das declarações nos mesmos produzidos pelos técnicos ao relatarem factos (sejam eles quais forem), sobre os quais versou a sua intervenção;

f) E, nesta perspectiva, naturalmente que se crê que a reserva da intimidade da vida privada da requerida mãe, não terá valor superior à reserva da intimidade da vida privada do requerente e ora reclamante e que, como tal, são merecedores da mesma tutela, pelo que nada habilita que os técnicos da F... possam ter divulgado factos inverídicos pertencentes à vida privada do requerente nos termos que entenderam e, sob a égide do sigilo profissional e da tutela dos direitos da requerida, agora se coíbam, com sucesso, de fornecer aos autos os elementos de prova que podem demonstrar cabalmente a inexactidão do que anteriormente revelaram.

g) Termos em que, com o muitíssimo devido respeito pela decisão singular reclamada, se crê que se verificam todos os requisitos para autorização da quebra do sigilo profissional e, consequentemente, para autorização para junção aos autos das pretendidas gravações.».

                                                 ***

2. - Não tem razão, a nosso ver – salvo, sempre, todo o devido respeito –, a parte aqui reclamante.

Desde logo, como parece claro, não fará sentido adotar-se um prognóstico de total inoperância/ineficácia da prova a produzir em sede de audiência final, por invocada “cristalização”/imutabilidade, mesmo em oralidade presencial e contraditoriedade.

Antes deve adotar-se o pressuposto contrário: o de que a audiência final decorrerá com inteira normalidade e segundo as regras dominantes/imperantes sobre a produção das provas e o integral contraditório, de molde a, com eficácia e proficuidade, se alcançar a verdade material e a boa decisão da causa, isto é, o julgamento do litígio à luz da Justiça do caso.

E se, eventualmente, em fase anterior do processo as exigências do princípio do contraditório, em matéria probatória, não vingaram integralmente – como afirmado na reclamação –, cabia ao Requerente, a ser assim, reagir a tal situação, de acordo com os mecanismos legais ao seu dispor.

Mas ainda que o não tenha feito – ou o resultado não tenha sido o pretendido –, o certo é que o julgamento está por realizar, podendo então, a final, em total contraditório, produzir-se a prova necessária, designadamente com convocação dos técnicos/peritos para declarações/esclarecimentos em audiência de julgamento.

Nessa altura, a haver questões a esclarecer, designadamente no campo da imparcialidade dos técnicos/peritos, ou das informações e considerações pelos mesmos trazidas aos autos, poderão/deverão as mesmas ser esclarecidas, presencialmente – «cara a cara» – naquela audiência, sob a direção do Tribunal e mediante esclarecimentos a solicitação também dos sujeitos processuais.

Também não adiantará, salvo sempre o devido respeito, esgrimir com eventuais anteriores atropelos à esfera de «reserva da intimidade da vida privada do requerente e ora reclamante, que já queda abstratamente carreado para os autos».

Com efeito, trata-se de matéria que não está em causa nesta sede processual perante a Relação, de que esta não pode conhecer e para o que nem estaria habilitada com a materialidade necessária.

Ao invés, cabia ao Requerente, logicamente, a ter ocorrido o que invoca, reagir com os meios legais ao seu dispor e em tempo oportuno.

E nem os eventuais «abusos»/excessos anteriores contra si próprio justificariam – elevados a critério de aferição – que a Relação permitisse, em lógica de «reciprocidade», que se «avançasse» para (outros) «atropelos» à outra contendora (a Requerida mãe). Obviamente, não é por essa via que se deverá julgar quanto à pretendida quebra do sigilo.

Quanto, por sua vez, à «divulgação de factos inverídicos», a audiência de julgamento é – tem de ser – o âmbito próprio para repor a verdade, seja qual for a prova em causa, mormente tratando-se de técnicos/peritos, cujo papel é ajudar o Tribunal na busca da verdade e boa decisão da causa.

Sem esquecer a «regra de ouro» do contraditório, com os Exm.ºs Mandatários Judiciais a poderem/deverem intervir em toda a produção da prova em audiência.

Resta sublinhar – mais uma vez (perdoe-se a repetição) – que não deve prevalecer, numa lógica de proporcionalidade, dentre os interesses conflituantes, o interesse do Requerente, atento o teor/âmbito do consentimento informado prestado e inerente condição de acesso estabelecida, originariamente e em comum, sem que assim se deixe sacrificado o interesse da realização da Justiça, através da tutela do direito à produção da prova, que não se queda inviabilizada.

Não podendo, assim, prescindir-se de “um processo judicial que se quer justo e equitativo, sujeito, pois, aos ditames da boa-fé, comprometida esta com a tutela da confiança e as legítimas expetativas investidas dos sujeitos processuais envolvidos (…), sob pena de subversão do acordado e do respetivo «processo terapêutico»”.

Em suma, tem de improceder a reclamação.

(…)

                                                  ***

                                                 ***

V - Decisão

Termos em que, em Conferência, se decide indeferir a reclamação apresentada, confirmando a decisão singular em apreço.

Custas pelo Reclamante.

                                                 ***
08/03/2022

Escrito e revisto pelo Relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas.

Vítor Amaral (Relator)

         Luís Cravo

Fernando Monteiro


([1]) Não deixando, simultaneamente, de requerer a «PRESTAÇÃO DE ESCLARECIMENTOS DOS TÉCNICOS DA CPSC da FPCEUC
a. Dr.ª Clara Santos, já identificado nos autos,
b. Dr. Brito Largo, já identificado nos autos».
([2]) Aludiu, concretamente, ao «facto vertido» de «alegadamente ter sido escrito um acordo com residência alternada… que nunca existiu!» (cfr. art.º 13.º das alegações do Requerente).
([3]) Como a referência a «investimento desigual na execução das tarefas pedidas a ambos com maior participação /envolvimento por parte de Fátima em ralação a José» ou a uma «posição de José (…) bastante cristalizada e o diálogo é inviabilizado na sétima sessão» (cfr. art.º 14.º das mesmas alegações).
([4]) Decisão sumária do TRC de 06/10/2021, Proc. 8271/18.0T8CBR-F.C1 (Rel. João Moreira do Carmo), disponível em www.dgsi.pt.
([5]) Com a seguinte justificação: «Dado que a requerida não autoriza que as gravações das sessões de terapia familiar – envolvendo ambos os pais da Carolina – sejam juntas ao processo, tal como requerido pelo requerente destes autos e determinado pelo Tribunal da Relação de Coimbra, importa suscitar o incidente de quebra de segredo profissional (…). // Assim, a fim de conhecer do incidente de quebra do dever de sigilo profissional por parte dos técnicos da faculdade de psicologia, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 135º, nº 3 do C.P.P. e 417º, nº 4 do C.P.C. aprovado pela Lei nº 41/2013 de 26/6, suscito a intervenção do Tribunal da Relação de Coimbra.».
([6]) Cfr., entre outros, o Ac. Rel. Lisboa, de 19/03/2013, Proc. 3048/06.8TVLSB-A.L2-7 (Rel. Ana Resende), em www.dgsi.pt.  
([7]) Assim o Ac. Rel Lisboa, de 20/03/2014, Proc. 2505/09.9TJ[K]LSB-B.L1-8 (Rel. Rui da Ponte Gomes), em www.dgsi.pt.
([8]) Note-se que, nas conclusões do seu interposto recurso, o Requerente pai dizia: «16. A pretensão de junção de tais gravações aos autos prende-se com a necessidade do ora recorrente ter que desmistificar a versão dos factos, não coincidentes com a realidade, relatada nos autos pelos próprios técnicos da FPCEUC.».