Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
441/11.8JALRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BELMIRO ANDRADE
Descritores: ACTO SEXUAL DE RELEVO
Data do Acordão: 04/24/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 2º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DE ALCOBAÇA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 171º NºS 1 E 2 E 172º CP
Sumário: 1.- O crime do art. 172º, por remissão, para o n.º 1 ou 2 do art. 171º, prevê indistintamente, as duas situações previstas nos dois preceitos: “ato sexual de relevo” ou “ato sexual de relevo que consista em cópula” ou conceito análogo de penetração;

2.- Assim o crime, recortado para o ato sexual de relevo, fica consumado ainda que não haja cópula;

3.- Consubstancia a prática de um ato sexual de relevo a conduta do pai que, entrando no quarto da filha, entra na cama desta e tirando-lhe as calças do pijama, começa a apalpar os seios, as nádegas e a vagina enquanto perguntava – “Queres?” e tentava introduzir o pénis na sua vagina, o que não conseguiu porque a ofendida disse repetidamente que não, fez força e conseguiu fugir

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório

Após audiência pública de discussão e julgamento, pelo Tribunal Colectivo, foi proferida decisão de final, de mérito, na qual foi decidido:

1. ABSOLVER o arguido A... da prática de 9 (nove) crimes de Abuso Sexual de Menor Dependente Agravado, na forma consumada, previstos e punidos pelos artigos 172.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, que lhe eram imputados.

2. CONDENAR o arguido A..., em concurso efectivo, pela prática dos seguintes crimes:

- 1 (um) crime de Abuso Sexual de Menor Dependente Agravado, na forma consumada, previsto e punido pelos artigos 172.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos de prisão [referente a uma ocasião da parte da tarde de dia não concretamente apurado do final do mês de Junho de 2011 – 1.º acontecimento];

- 1 (um) crime de Abuso Sexual de Menor Dependente Agravado, na forma consumada, previsto e punido pelos artigos 172.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos de prisão [referente a uma ocasião em dia não apurado do final do mês de Julho de 2011 – 2.º acontecimento];

- 1 (um) crime de Abuso Sexual de Menor Dependente Agravado, na forma consumada, previsto e punido pelos artigos 172.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos de prisão [referente a uma ocasião em data não concretamente apurada entre finais de Agosto/início de Setembro de 2011 até 12 de Novembro de 2011 – 3.º acontecimento];

- 1 (um) crime de Abuso Sexual de Menor Dependente Agravado, na forma consumada, previsto e punido pelos artigos 172.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos de prisão [referente a uma ocasião em data não concretamente apurada entre finais de Agosto/início de Setembro de 2011 até 12 de Novembro de 2011 – 4.º acontecimento];

- 1 (um) crime de Abuso Sexual de Menor Dependente Agravado, na forma consumada, previsto e punido pelos artigos 172.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos de prisão [referente a uma ocasião em data não concretamente apurada entre finais de Agosto/início de Setembro de 2011 até 12 de Novembro de 2011 – 5.º acontecimento];

- 1 (um) crime de Abuso Sexual de Menor Dependente Agravado, na forma consumada, previsto e punido pelos artigos 172.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos de prisão [referente a uma ocasião em data não concretamente apurada entre finais de Agosto/início de Setembro de 2011 até 12 de Novembro de 2011 – 6.º acontecimento];

- 1 (um) crime de Abuso Sexual de Menor Dependente Agravado, na forma consumada, previsto e punido pelos artigos 172.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos de prisão [referente a uma ocasião em data não concretamente apurada entre finais de Agosto/início de Setembro de 2011 até 12 de Novembro de 2011 – 7.º acontecimento];

- 1 (um) crime de Abuso Sexual de Menor Dependente Agravado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22.º, 23.º, 172.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão [uma ocasião no dia 19 de Novembro de 2011, às 07:30 horas – 8.º acontecimento].

3. Realizando o CÚMULO JURÍDICO, CONDENAR o arguido A... pela prática, em concurso efectivo, de 7 (sete) crimes de Abuso Sexual de Menor Dependente Agravado, na forma consumada, previstos e punidos pelos artigos 172.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, al. a), do Código Penal e de 1 (um) crime de Abuso Sexual de Menor Dependente Agravado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22.º, 23.º, 172.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, na PENA ÚNICA DE 12 ANOS DE PRISÃO.

4. DECLARAR o arguido A... inibido de pleno direito do exercício do poder paternal, pelo período de 6 (seis) anos, ao abrigo do artigo 179.º, al. a), do Código Penal, em conjugação com o artigo 1913.º, n.º 1, al. a), do Código Civil.

5. Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido pela demandante B..., representada pelo Ministério Público, contra o demandado A... e, em consequência,

Condenar o demandado A... a pagar à demandante B... a quantia de €35.000,00 (trinta e cinco mil euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, contados a partir da data do presente acórdão, até efectivo e integral pagamento.

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Inconformados com o acórdão, dele recorrem o MºPº e o arguido.

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No recurso interposto pelo MºPº são formuladas as seguintes CONCLUSÕES:

1- Reproduz a condenação, já enunciada supra

2 - O tipo legal do art. 172º n.º1 do C. Penal compreende condutas previstas nos dois primeiros números do artigo 171 do mesmo diploma.

3 - Por isso, tanto são punidas, como consumadas, condutas traduzidas designadamente em cópula como noutro ato sexual de relevo.

4 - "No dia 19 de Novembro de 2011, às 07:30 horas, o arguido entrou no quarto da menor B... sito no interior da residência acima mencionada, entrou na cama desta e tirou-lhe as calças do pijama, começou a apalpar os seios, as nádegas e a vagina enquanto perguntava - "Queres?” e tentava introduzir o pénis na sua vagina, o que não conseguiu porque a ofendida disse repetidamente que não, fez força e conseguiu fugir".

5 - Na citada data, o arguido consumou, na pessoa da menor, claramente, atos sexuais de relevo, embora entre eles não conste a cópula (apenas tentada).

6 - A prática de tais atos foi suficiente para que o crime previsto no art. 172º, nº1 do C. Penal tivesse ocorrido, e não apenas na sua forma tentada.

7 - O crime de abuso sexual de menores dependentes, previsto no art. 172º nº1 do C. Penal, agravado (como no caso) nos termos do art. 177º/ 1 al. a) do mesmo diploma, é punível, na sua forma tentada, com pena de prisão entre 1 mês e 7 anos e 40 dias.

8 - Ao mesmo crime, consumado, é aplicável pena de prisão entre 1 ano e 4 meses e 10 anos e 8 meses.

9 - Ao arguido, tendo em conta aquela moldura penal, foi aplicada a pena de 3 anos de prisão pela prática do abuso sexual considerado tentado.

10 - Pela prática de cada um dos sete crimes considerados consumados, com cópula, ao arguido foi aplicada a pena de 5 anos de prisão.

11 - Nas circunstâncias referidas em 4., o arguido praticou diversos atos sexuais de relevo na pessoa da filha menor, e em circunstâncias semelhantes àquelas em que levou a cabo os restantes crimes.

12 - Só não consumou a cópula pretendida por forte oposição da menor.

13 - Face aos citados factos e à "verdadeira" moldura penal dos mesmos, o tribunal deveria ter aplicado ao arguido a pena de 4 anos de prisão.

14 - Na prática de todos os crimes o arguido: agiu, sempre, com dolo direto; fez, sempre, uso da força, embora tal não seja requisito do tipo legal; reiterou, por sete vezes (após a primeira) o intuito de manter relações sexuais de cópula com a filha; concretizou-o, no total sete vezes (incluindo aqui a primeira): não confessou senão muito parcialmente os factos praticados; não apresenta ressonância crítica em relação a condutas semelhantes às adotadas nem expressa sentimentos quanto aos danos causados nas vítimas.

15 - O arguido não tem antecedentes criminais, é trabalhador, estando socialmente inserido e está a ser acompanhado em consultas de psicologia.

16 - Porém, a generalidade dos casos de abusos sexuais, essencialmente os intra-­familiares, são praticados por pessoas socialmente inseridas e "primárias".

17 - As consultas de psicologia não afastam a falta de ressonância crítica e de sentimentos do arguido em relação a vítimas de abusos, como a sua filha.

18 - As condutas do arguido tiveram consequências devastadoras, em termos psicológicos e familiares, para a sua filha.

19 - Não sendo, a cópula, elemento necessário do tipo legal do art. 172 /1 do C. Penal, a sua ocorrência, em cada uma das sete vezes em que se consumou, constitui circunstância agravante geral de "peso" do abuso sexual correspondente.

20 - Ao arguido deveria, por isso, ter sido aplicada, por cada um dos crimes de abuso sexual de menores com cópula, a pena de 5 anos e 6 meses de prisão.

21 - Face ao exposto, a não existir o limite máximo de 25 anos para a pena de prisão, a pena conjunta a aplicar ao arguido situar-se-ia entre um mínimo de 5 anos e 6 meses e um máximo de 42 anos e 6 meses de prisão.

22 - Mesmo a entender-se que são corretas a qualificação jurídica dos factos descritos em 4 e a dosimetria concreta de cada uma das penas aplicadas pelo tribunal, a soma material de tais penas é de 38 anos de prisão.

23 - No caso estão em causa oito crimes de abuso sexual de menores agravados, sete deles com cópula, cometidos ao longo de sensivelmente cinco meses, na casa de morada da família do arguido e da vítima, sempre com uso da força.

24 - Tais factos revelam, pelo seu número e reiteração, que a personalidade do arguido é manifestamente desconforme a direitos básicos de pessoa próxima claramente dependente, pondo em causa confiança que foi repetidamente desrespeitada.

25 - A personalidade do arguido continua alheia a tais direitos e manifesta indiferença ao sofrimento causado.

26 - Levando em conta a globalidade dos factos cometidos pelo arguido. a sua personalidade e a moldura penal do concurso de crimes, o tribunal devia ter-lhe aplicado, em cúmulo jurídico, pelo menos a pena de treze anos de prisão.

27 - Ao deliberar como fez, o tribunal aplicou incorretamente os critérios previstos nos artigos 71º, nº 1 e 2 e 77º n.º1 do C. Penal e interpretou indevidamente o disposto no art. 172º, n.º1 do mesmo diploma.

28 – Pelo exposto, o tribunal a quo deverá alterar o acórdão impugnado, nos termos preconizados.  

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No recurso interposto pelo arguido são formuladas as seguintes CONCLUSÕES:

1 - O recurso limita-se à discordância do arguido relativamente à sua condenação quanto aos crimes que o Acórdão recorrido definiu como «3º a 7º acontecimentos».

2 - O recorrente confessou ter praticado quatro deles, prática que ele efectivamente admitiu e reconheceu, demonstrando a sua confissão que, não obstante a sua prevaricação, entendeu assumi-la, não se refugiando em negações nem no exercício do direito ao silêncio.

3 - Os únicos meios de prova da prática dos factos mormente quanto ao número de vezes em que teriam ocorrido, foram e são as declarações do arguido e as da vítima; afigura-se que aquelas merecem credibilidade, pela forma natural (ainda que obviamente constrangida) e espontânea com que foram prestadas;

4 - e quanto à vítima, esta não conseguiu precisar o número de vezes em que os acontecimentos tinham ocorrido: embora inicialmente tenha dito que «a partir de Setembro» «começou a acontecer muitas vezes», quando, insistentemente instada para concretizar um número de vezes, sequer um número mínimo, sempre negou ser capaz de o fazer (cfr. transcrição anexa).

Por outro lado:

5 - Não se ignora que para que a prática do crime em análise se tenha por verificada e irrelevante o consenso da vítima se ele for menor, como é o caso - porém, a credibilidade de uma adolescente, púbere, embora menor, não deverá merecer uma aceitação absoluta, como foi o caso, e ainda por cima limitada à parte em que as declarações foram desfavoráveis ao arguido em oposição ao princípio in dubio.

6 - Na verdade, no caso de uma adolescente (ao contrário do que poderá passar-se com uma menor impúbere), não seria e não é de contar que ela admitisse ter anuído e condescendido com os actos, sem mais; ao invés, no sentido de «salvar a face» e diminuir um sentimento de vergonha e recato, seria e é de contar que afirmasse ter discordado da prática dos actos de cada vez que eles tiveram lugar, que foi o que ela afirmou.

7 - E mesmo essa alegada discordância parece «relativa», quando a vítima afirma que por vezes fugia do quarto para a sala e ia sentar-se ao pé da mãe a ver uma novela, «fuga» estranha, sobretudo quando se constata, pelas próprias declarações da vítima, que nada contava à mãe nem esta se apercebia fosse do que fosse (cfr. transcrição anexa).

8 - Sem prejuízo de, como se disse, se encontrar preenchido o tipo legal de crime, salienta-se que não será uma atitude comum e normal que esses actos se tivessem verificado sempre contra a vontade da vítima e, tendo-se eles passado na residência familiar, ela não os comunicasse pelo menos à mãe sobretudo tendo em conta que não houvera qualquer ordem, muito menos qualquer ameaça, por parte do pai, para os manter em segredo.

9 - Por isso, constituirá um erro notório o Tribunal dar como provado que em todas as actuações do arguido sobre a ofendida esta diria que «não queria» ou que o arguido «a agarrava com força ou deitava-se por cima dela depois de a despir» - não obstante ter arredado (e bem) a possibilidade da existência de violação.

10 - Em síntese, deverá ter-se como provada a prática, pelo arguido, de quatro crimes de Abuso Sexual de Menor Dependente Agravado os que ele confessou e expressamente admitiu - e ser reduzida a respectiva pena para não superior a nove anos.

11 - Pelas razões de facto e de direito atrás referidas, deverá ser dado provimento ao recurso, modificando-se a matéria de facto, nos termos do art. 431º al. s a) e b) do CPP e, por conseguinte, alterando-se o Acórdão recorrido na medida proposta.

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O arguido respondeu ao recurso interposto pelo MºPº sustentando a sua improcedência.

O MºPº respondeu ao recurso interposto pelo arguido sustentando a sua improcedência.

Neste Tribunal o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual sufraga a posição assumida pelo MºPº em 1ª instância em relação a ambos os recursos. 

Corridos vistos, cumpre decidir.


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II. Fundamentação

1. O recurso interposto pelo MºPº incide exclusivamente sobre matéria de direito – qualificação jurídica da conduta que foi qualificada pelo tribunal recorrido como crime tentado; medida concreta das múltiplas penas parcelares e da pena única aplicada em cúmulo jurídico.

Já o recurso interposto pelo arguido incide sobre matéria de facto de facto e de direito: - em matéria de facto sustenta que deve ser dada como provada apenas a matéria relativa aos 4 crimes que confessou, daí concluindo que deve ser absolvido dos restantes crimes pelos quis vem condenado na decisão recorrida, por não provada a matéria de facto correspondente; - em matéria de direito pede a redução das penas parcelares aplicadas aos 4 crimes remanescentes e da pena aplicada em cúmulo jurídico.

As questões suscitadas serão apreciadas pela ordem de precedência lógica prevista nos artigos 368º/369º do CPP, por remissão do artigo 424º, n.º2 do mesmo diploma, independentemente do recurso em que são suscitadas.

Apreciam-se assim em primeiro lugar as questões relativas à matéria de facto suscitadas pelo arguido pois que, procedendo, implicam a absolvição do arguido por 4 dos crimes pelos quais vem condenado pela decisão recorrida.

Para proceder à apreciação, importa ter presente a decisão do tribunal recorrido em matéria de facto.

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2. A matéria de facto, com a motivação que suporta a decisão é a seguinte:

A) MATÉRIA DE FACTO PROVADA

→ Factos Provados da Acusação:

1. B... nasceu no dia 24 de Junho de 1996 e é natural de Pousos, Leiria.

2. A B... é filha de A... e de C....

3. Em dia não concretamente apurado do mês de Junho de 2011, no interior da residência sita na ..., o arguido A... perguntou à menor B... se esta já tinha tido relações sexuais com algum rapaz ou se pretendia ter, ao que esta respondeu que não.

4. Em dia não concretamente apurado da última semana do mês de Junho de 2011, enquanto a menor B... se encontrava de férias em ..., juntamente com o pai, a mãe e a sua irmã, o arguido tomou banho, no duche, juntamente com a menor B..., ambos nus, não tendo havido qualquer contacto de natureza sexual entre ambos.

5. [1.º acontecimento] Da parte da tarde de dia não concretamente apurado do final do mês de Junho de 2011, após as férias passadas em ..., no interior da residência sita na ..., o arguido A... entrou na casa de banho sita no 1.º andar onde se encontrava a menor B... a tomar banho e despiu-se por completo.

6. Entrou no duche e agarrou a menor B... pela cintura e disse:

– “Queres ter relações sexuais? É só desta vez para experimentar e não volta a acontecer”, ao que a menor B... respondeu:

– “Não”.

7. Acto contínuo, o arguido A... agarrou com força a ofendida B..., empurrou-a contra a parede, apalpou os seios desta e introduziu o pénis na vagina da menor B... e aí o friccionou.

8. Após os referidos factos, já depois de jantar, o arguido A... abeirou-se da menor B...e disse-lhe para não contar nada a ninguém senão podia acontecer-lhe algum mal.

9. [2.º acontecimento] Em dia não concretamente apurado do final do mês de Julho de 2011, no quarto de dormir ou na casa de banho do interior da residência acima mencionada, o arguido A... disse à menor B...:

– “Queres?”, ao que a menor B... respondeu:

– “Não”.

10. Mas o arguido agarrou a B...com força e introduzi-lhe o pénis erecto na sua vagina (art. 11.º).

11. [3.º, 4.º, 5.º, 6.º e 7.º acontecimentos] A partir de finais de Agosto/início de Setembro de 2011 até 12 de Novembro de 2011, em datas não concretamente apuradas, pelo menos em cinco ocasiões, no quarto de dormir ou na casa de banho do interior da residência acima mencionada, o arguido A..., agarrando-a com força ou deitando-se por cima dela depois de a despir, introduziu o pénis erecto na vagina da menor B....

12. [8.º acontecimento] No dia 19 de Novembro de 2011, às 07:30 horas, o arguido entrou no quarto da menor B... sito no interior da residência acima mencionada, entrou na cama desta e tirou-lhe as calças do pijama, começou a apalpar os seios, as nádegas e a vagina enquanto perguntava – “Queres?” e tentava introduzir o pénis na sua vagina, o que não conseguiu porque a ofendida disse repetidamente que não, fez força e conseguiu fugir.

13. O arguido A... valeu-se do ascendente e força física que tinha sobre a ofendida B..., que sabia ser sua filha, a qual, perante aquele, não pode libertar-se e resistir das e às suas acções.

14. O arguido quis, com as suas descritas condutas, satisfazer os seus instintos sexuais e paixões lascívias, à custa daquela, o que conseguiu, bem sabendo que, com os seus comportamentos, atingia os sentimentos de pudor moral, de vergonha e sexuais daquela.

15. O arguido sabia que a menor B... tinha apenas 15 (quinze) anos de idade, circunstância essa que bem conhecia e que, por causa dessa idade, esta não tinha capacidade para querer e entender o significado social dos actos por si e nela praticados.

16. O arguido só não conseguiu os seus intentos no dia 19 de Novembro de 2011 [8.º acontecimento], ou seja, introduzir o pénis na vagina da menor B... e praticar com ela cópula, porque a mesma se lhe opôs fisicamente, fazendo força.

17. O arguido A... actuou sempre de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que as suas descritas condutas eram censuradas, proibidas e punidas por lei penal.

→ Factos Provados Pessoais do Arguido:

18. Nada consta do Certificado de Registo Criminal do arguido.

19. O percurso escolar do arguido A... iniciou-se aos seis anos de idade e foi marcado pelo fraco investimento e desinteresse porque, em virtude da doença dos pais, desde cedo que tinha necessidade de assumir responsabilidades laborais em tarefas agro-pecuárias (ordenha de vacas e distribuição de farinha aos animais), com determinação, investimento e responsabilidade, características transversais ao longo da sua vida profissional. Aos 14 anos teve o seu primeiro emprego, propriamente dito, como operário fabril, até aos 20 anos. Também se dedicou ao cultivo de terras, fabrico de paletes e criação de animais para venda. A partir dos 20 anos começou a trabalhar por conta própria, como carpinteiro e depois como madeireiro.

20. O arguido A... casou-se aos 20 anos de idade e deste casamento nasceram duas filhas. O relacionamento familiar, por transmissão geracional, caracteriza-se por forte investimento profissional em detrimento de maior proximidade afectiva e relacional. O arguido trabalha conjuntamente com a sua esposa, assumindo o primeiro a direcção dos negócios e delegando para a sua esposa os cuidados essenciais e educacionais a prestar às filhas e nos contactos com educação e saúde. Apenas ao Domingo se relacionam um pouco mais. O arguido tem um relacionamento sexual normal com sua esposa.

21. O arguido nunca esteve envolvido em actividades desportivas ou sociais estruturadas atento o seu forte investimento profissional. Durante a juventude frequentava festas populares e depois de casado saia com a família e promovia almoços de convívio com os amigos. Gozava de boa imagem e aceitação social.

22. Os factos que deram origem ao presente processo alteraram as rotinas e modo de vida do arguido, por imposição judicial saiu de casa de morada de família e foi morar em imóvel de amigos e posteriormente em barracão de progenitor sem condições de habitabilidade e conforto. Apesar da sua esposa lhe prestar apoio alimentar, na higiene da roupa e trabalhar em conjunto com o arguido, a progressão do seu negócio ficou condicionada por não ter acesso aos instrumentos do seu trabalho guardados na casa de morada de família agora interditada. Em Janeiro de 2012, o arguido voltou para a casa de morada de família, onde reside com a sua esposa, trabalham e partilham as refeições durante o dia e à noite a esposa deixa o domicílio e pernoita em casa dos progenitores onde se encontra a filha mais nova. Os avós paternos, após tomarem conhecimento dos factos esfriaram o seu relacionamento com o arguido, mas apoiam a sua filha (a esposa do arguido) e as duas netas, visitando a mais velha no X... em ....

23. O arguido e a esposa dispõem de moradia no meio rural com boas condições de habitabilidade, com algum desleixo na higiene e arrumação, mantêm a actividade de madeireiros, situação que lhes confere estabilidade económica. Desde que foi constituído arguido que se refugia mais no seu trabalho em virtude da oposição social que passou a sentir, meio onde até então era respeitado. Não frequenta locais de lazer.

24. Está a ser acompanhado semanalmente em consultas de psicologia pelo Dr. D....

25. O arguido A... teme ser condenado em prisão efectiva, em não poder honrar os seus compromissos profissionais e preocupa-se com as dificuldades económicas com que a sua esposa se depararia.

26. O arguido, confrontado com a gravidade de factos de idêntica natureza àqueles de que se encontra acusado, não apresenta grande ressonância crítica em relação aos mesmos e procura fazer alguma atribuição externa das responsabilidades imputadas a agressores sexuais, sobretudo quando manipulados pelas vítimas. Não expressa sentimentos quanto aos danos causados nas vítimas.

27. O presente processo foi do conhecimento da população e dos seus familiares, surpreendendo-os a todos, tendo tido grande impacto nestes meios. Alguns elementos da aldeia deixaram de o considerar como até então, evitando contratar-lhe alguns serviços no sector agrícola, os seus sogros deixaram de conviver consigo e cessaram os contactos com suas filhas e foi abandonado por alguns amigos que frequentavam sua casa.

28. Os hábitos de trabalho, as boas condições de habitabilidade e situação económica estável constituem-se como factores de protecção na vida do arguido, no entanto, a sua obsessão pelo trabalho constituiu um óbice à estruturação e experienciação de afectos e sentimentos.

29. O arguido é casado, tem duas filhas, a mais nova com 12 anos de idade, é empresário de madeiras, aufere a quantia média mensal de €1.000,00, dispõe de casa própria, viatura própria e viaturas de trabalho, possui o 6.º ano de escolaridade.

→ Factos Provados do Pedido de Indemnização Civil:

30. Antes dos factos acima descritos a menor B... era alegre, bem disposta e sentia alegria de viver.

31. Em consequência dos factos praticados pelo arguido A..., no dia 24 de Novembro de 2011 a menor B... foi sujeita a perícia médico-legal, de natureza sexual, no Gabinete Médico-Legal de Leiria.

32. Em consequência dos factos praticados pelo arguido A..., por deliberação proferida no dia 30 de Novembro de 2011, pela Comissão de Protecção de Crianças e Jovens de ..., a menor B... foi retirada da sua habitação e do convívio com sua irmã E..., amigos e familiares.

33. E, por via dela, a menor B... foi acolhida no X..., na ...em ..., na sequência da aplicação, provisória, da medida de promoção e protecção de acolhimento em instituição.

34. A referida deliberação referida foi confirmada no dia 02 de Dezembro de 2011 por decisão proferida nos Autos de Promoção e Protecção n.º ..., do 3.º Juízo do Tribunal Judicial de ....

35. No dia 24 de Janeiro de 2012, pelas 15:30 horas, foi realizada conferência para obtenção de acordo no âmbito do Processo de Promoção e Protecção, no âmbito da qual foi aplicada à menor B... a medida de promoção e protecção de Acolhimento em Instituição, pelo período de um ano.

36. O presente processo foi do conhecimento da população e dos seus familiares e amigos.

37. Em consequência dos factos praticados pelo arguido A... a menor B... sofreu mal-estar e sente-se deprimida, profundamente angustiada, traída, com vergonha, insegura, amargurada e incapaz de esquecer o que se passou.

38. A menor B... sentiu-se e continua a sentir-se triste por causa dos factos contra si praticados por seu pai, o arguido A....

39. A menor B... chorou e chora por causa dos referidos factos.

40. A menor B... sente medo e fica em pânico de cada vez que vê o arguido A... na rua.

41. Por causa desses mesmos factos, a menor B... recebeu e continua a receber apoio psicológico, quer na Escola ..., quer no X..., em ..., quer na consulta de adolescentes, pela Dr.ª Q..., quer na consulta de Pedopsiquiatria do Centro Hospitalar ..., sito em ..., pela Dr.ª I....

42. O arguido A... não ignorava que tinha um ascendente sobre a menor B..., que sabia ser sua filha e que ao actuar das formas supra descritas, como efectivamente actuou, comprometia a sua formação sexual e prejudicava o livre desenvolvimento da sua personalidade, sendo que a B... nunca havia tido contactos sexuais.


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B) Matéria de Facto Não Provada

Não se provaram os seguintes factos:

→ Factos Não Provados da Acusação:

- Que em dias não concretamente apurados do mês de Junho de 2011, no interior da residência sita na ..., o arguido A... apalpou os seios e as nádegas de B..., ao mesmo tempo que disse: - “Já estás a ficar uma mulher e um dia destes já podes ter relações sexuais”.

- Que para além dos factos provados acima descritos ocorridos em dia não concretamente apurado do final do mês de Junho de 2011 o arguido ainda puxou o cortinado do duche, acariciou os seios e a zona vulvar da ofendida e disse-lhe para abrir as pernas e que esta abriu as pernas com receio que algum mal lhe viesse a suceder.

- Que os factos provados do ponto 8.º se passaram concretamente na cozinha.

- Que em dia não concretamente apurado do mês de Agosto de 2011, o arguido A... introduziu o pénis erecto na vagina da ofendida B....

- Que nessa ocasião, o arguido A..., deitado, colocou a menor B... sobre si, na zona púbica, virada para si e introduziu-lhe o pénis, erecto, na vagina.

- Que em dia não concretamente apurado do mês de Agosto de 2011, o arguido A... dirigiu-se à casa de banho onde a menor B... se encontrava a tomar banho, acto contínuo, o arguido entrou, nu, para o duche, após o que se abeirou da menor B... e lhe introduziu o pénis, erecto, na vagina.

- Que, no período de tempo compreendido a partir de finais de Agosto/ início de Setembro de 2011 e até 12 de Novembro de 2011, o arguido introduziu o pénis na vagina da ofendida mais vezes do que as cinco ocasiões referidas nos factos provados.

- Que no dia 19 de Novembro de 2011, mencionado nos factos provados, o arguido conseguiu introduzir o pénis na vagina da ofendida.

- Que o arguido A... agiu na convicção de estar a iniciar a ofendida B..., sua filha, na prática sexual e de lhe ensinar em que termos a mesma decorreria.

→ Factos Não Provados do Pedido de Indemnização Civil:

- Que em consequência dos factos praticados pelo arguido A... a menor B... sofreu dores.

- Que os factos cometidos pelo arguido A... provocaram na menor B... sentimentos de culpa, por lhe ter sido incutida responsabilidade nos mesmos.

- Que o apoio psicológico que a menor recebe não é por se sentir culpada da prática dos factos.

- Que a menor viu o seu pai, A..., no dia 20 de Novembro de 2011, quando se encontrava na paragem de autocarro, na ..., de regresso da Escola ... ao X... em ....

- Que no dia 24 de Janeiro de 2012, pelas 15:30 horas, aquando da realização da conferência para obtenção de acordo no âmbito do Processo de Promoção e Protecção a menor viu o seu pai.


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C) Motivação de Facto / Apreciação da prova

1. Meios de prova:

Para formar a convicção na decisão respeitante à matéria de facto o tribunal baseou-se na análise crítica do conjunto da prova produzida, com recurso às regras de experiência de vida e da normalidade, designadamente, na prova pericial de fls. 224 a 228 (relatório da perícia médico-legal de natureza sexual em direito penal do INML de 24/11/2011), documental de fls. 2 e 3 (auto de notícia), fls. 163 a 187 (cópia do requerimento inicial do processo de promoção e protecção), fls. 194 a 200 (cópia do despacho que confirmou a medida de promoção e protecção aplicada), fls. 203 (informação de serviço), fls. 322 a 349 (certidão proveniente do processo de promoção e protecção), fls. 368 a 369 (certidão do assento de nascimento da menor) e testemunhal ( I..., J..., C..., F...,G ..., H ..., L..., M...e N...), declarações do arguido A..., bem como, declarações para memória futura da vítima B... de fls. 213 a 215-A.


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2. Quanto aos factos da acusação (actuação do arguido sobre a ofendida, circunstâncias e contexto):
É incontroverso (o próprio arguido admitiu tais factos) que o arguido em determinadas ocasiões introduziu o pénis na vagina da sua filha menor.
A divergência principal (entre as declarações do arguido e da vítima) traduz-se no número de ocasiões em que tais factos aconteceram.
Importa referir que, em regra, os crimes de natureza sexual não costumam ser presenciados por testemunhas, ainda para mais, como no caso em apreciação, cometidos dentro da residência familiar pelo pai sobre a sua filha menor. Por isso mesmo, tais factos resultam essencialmente da análise directa dos depoimentos das próprias vítimas, e, por vezes, ainda em confronto com as declarações dos arguidos (caso estes aceitem prestar declarações). Deste modo, são bastante importantes, e por vezes até decisivos, o contexto, as circunstâncias e todos os comportamentos apresentados pela vítima e pelo agressor no momento e após a prática dos factos.
Volvendo ao caso em apreciação.
A detecção deste caso surgiu no seguinte contexto – porque os professores da menor B... notaram que nas aulas esta apresentava um comportamento diferente do habitual (caracterizado por apatia e tristeza), esta foi chamada à psicóloga de serviço na Escola Profissional (a testemunha F...), a qual, no âmbito das suas funções, conseguiu detectar a causa dessa tristeza e apatia apresentada após entrevistas/consultas com a menor (ou seja, a causa eram precisamente os factos acima descritos praticados pelo pai da menor).
Aliás, importa salientar que a referida testemunha ( F...) referiu que analisou cuidadosamente a “versão” apresentada pela menor, tomando nota dos detalhes dos episódios de que esta estava a ser vítima por parte de seu pai e pormenores contados pela menor e confirmando claramente que esta em cada consulta esta contava-lhe sempre exactamente a mesma versão dos acontecimentos, isto é, a psicóloga apercebeu-se imediatamente que a menor lhe contava a verdade dos factos, o que a levou a sinalizar a situação.
Por sua vez, o comportamento apresentado pela menor naquela ocasião foi confirmado até pela sua própria mãe, a qual confirmou que a mesma se encontrava mais calada que o normal (apesar do depoimento da mãe da menor – a testemunha C... – se apresentar completamente distorcido a tentar proteger o seu marido, o arguido).
E, na sequência da detecção do sucedido por parte da psicóloga, esta chamou a mãe da menor (a testemunha C...) para lhe dar conta dos acontecimentos, a qual, por sua vez, deu conhecimento da situação à G.N.R. – cfr. auto de notícia de fls. 2 a 3, o que foi igualmente confirmado pelo depoimento desta.
No referido contexto, a menor B... veio a prestar declarações para memória futura, que foram parcialmente confirmadas pelo próprio arguido.
Foram valoradas as declarações (prestadas para memória futura – de fls. 213 a 215-A) da menor B..., a qual relatou todos os factos de que foi vítima:
Relatou que a certa altura seu pai (o arguido) começou a tomar banho nu com ela e começou a ter certas conversas que não era costume ter, tais como, a perguntar-lhe se já tinha tidos relações sexuais com alguém;
Relatou o modo de actuação do seu pai (o arguido) em determinado dia não determinado de finais de Junho, como a agarrou, apalpou e introduziu o pénis na vagina, referindo o local dos factos, o contexto e o diálogo estabelecido entre ambos, bem como, que já depois do jantar o seu pai (o arguido) lhe disse para não contar a ninguém senão podia acontecer-lhe algum mal [correspondendo à primeira vez que seu pai lhe introduziu o pénis na vagina – 1.º acontecimento];
Relatou que um mês depois, em dia de finais de Julho, voltou a acontecer tudo de novo, ou seja, a introdução do pénis na sua vagina, referindo o modo de actuação de seu pai (o arguido), o diálogo entre ambos e como a agarrou [correspondendo à segunda vez que seu pai lhe introduziu o pénis na vagina – 2.º acontecimento];
Esclareceu ainda a existência de uma terceira ocasião no final do mês de Julho (que seria a segunda em Julho) em que tudo voltou de novo a acontecer mas não tinha bem a certeza desta vez e por isso esta ocasião deve considera-se como não provada, atento o princípio “in dubio pro reo”;
Referiu ainda que desde finais de Agosto/inícios de Setembro até 12 de Novembro de 2011, aconteceu tudo novamente, muitas vezes, umas vezes todas as semanas e outras vezes de 15 em 15 dias, umas vezes no quarto outras na casa de banho, ou seja, a introdução do pénis na sua vagina, referindo o modo de actuação de seu pai (o arguido), o diálogo entre ambos e como a agarrou – por isso considera-se provado que tais factos aconteceram, com toda a certeza, pelo menos de 15 em 15 dias, mas não todas as semanas, atento o princípio “in dubio pro reo” [ou seja, aquele período de tempo corresponde a cinco quinzenas, equivalentes a pelo menos cinco ocasiões em que o seu pai lhe introduziu o pénis na vagina – 3.º, 4.º, 5.º, 6.º e 7.º acontecimento];
Finalmente, relatou o último episódio ocorrido a 19 de Novembro, pelas 07:30 horas da manhã, desta vez com uma percepção melhor da data e hora atenta a sua proximidade, referindo o modo de actuação do arguido, como este tirou as calças da menor, começou a apalpar e tentou introduzir o pénis na vagina, só não o conseguindo porque a menor disse repetidamente que não, fez força e conseguiu fugir, o que se deveu também ao facto de sentir “apoio” da psicóloga a quem já tinha contado o sucedido (como acima já referido), o que lhe conferiu como que uma renovada energia para exercer uma maior resistência às investidas de seu pai (o arguido) [correspondendo a uma tentativa do seu pai introduzir o pénis na vagina da menor – 8.º acontecimento].
A menor ainda se referiu a uma ocasião anterior a estes acontecimentos em que o arguido a teria apalpado os seios e as nádegas (deduzimos que teria sido por cima da roupa) à frente da mãe e que a menor até disse à mãe para dizer ao pai para parar com aquilo, mas não foi possível apurar o contexto e circunstâncias envolventes para ter a certeza sobre tais elementos.
As referidas declarações da menor foram prestadas de modo claro, linear, isento e coerente, esclarecendo todos os pormenores que lhe eram questionados, mostrando-se nitidamente surpreendida e chocada com o sucedido, destacando-se ser patente que efectivamente a menor disse a verdade, não tinha qualquer razão para não dizer a verdade – merecendo assim toda a credibilidade.
Aliás, destaca-se que a menor foi bastante clara e peremptória a relatar os factos de que foi vítima, apenas não se demonstrando alguns pormenores ou algumas das ocasiões imputadas na acusação (melhor descritas nos factos não provados), porque foi a própria menor que, reflectindo isenção, disse não ter bem a certeza quanto a essas – o que revela que as demais ocasiões (melhor relatadas nos factos provados) ocorreram com toda a certeza.
Importa referir que era de todo impossível à menor evitar as investidas do seu pai porque os locais onde os factos ocorriam, no interior da residência familiar (casa de banho e quarto de dormir da menor), tinham de ser utilizados pela menor, esta não tinha grandes alternativas.
Aliás, a menor esclareceu que quando vinha da escola o pai (o arguido) entrava no seu quarto com a mesma finalidade e que a menor, por vezes, conseguia fugir porque saltava por cima da cama e ia para a sala para ao pé da sua mãe, mas por vezes não conseguia fugir (isto não significa que ficasse retida, mas mais propriamente sem reacção perante o ascendente de seu pai).
Importa esclarecer que ficou provado que o arguido agarrava a menor com força (porque a menor referiu tal facto) mas não ficou muito claro se o “agarrar” mesmo “com força” era de tal modo que a menor ficava mesmo retida (presa) ou impossibilitada de todo de fugir ou se simplesmente o arguido que a agarrava com a força necessária para concretizar tais intentos (conseguir introduzir o pénis na vagina) e esta simplesmente, pelo ascendente de ser seu pai, não oferecia uma resistência muito forte.
Ou seja, não ficou claro que a medida da “força” aplicada pelo arguido ao “agarrar” a menor extravasasse a força estritamente necessária para conseguir introduzir o pénis na vagina desta, ou seja, não ficou provado que “agarrar com força” implicava verdadeira retenção da menor de modo a que esta não conseguisse fugir de todo.
Com efeito, ficou demonstrado que quando a menor fez realmente força para resistir conseguiu fugir [o que sucedeu no 8.º acontecimento], o que se deveu também ao facto de sentir de certo modo um “apoio” da psicóloga a quem já tinha contado o sucedido (como acima referido), o que lhe conferiu como que uma renovada energia para exercer uma maior resistência às investidas de seu pai (o arguido). Da conjugação desse contexto com os factos resulta que das vezes que o arguido “agarrou a menor com força” não excedeu, todavia, a força necessária para a concretização da cópula.
Foram valoradas as declarações do próprio arguido A..., pai da menor, que acabou por admitir parcialmente os factos imputados:
Com efeito, importa salientar que, para além de admitir que tomaram banho juntos, ambos nus, em determinada ocasião em ..., o arguido admitiu ainda que introduziu o pénis na vagina de sua filha menor B..., mas referiu que tal sucedeu não em 17 ocasiões como descrito na acusação, mas apenas em três ocasiões (em alturas que não soube bem precisar, mas pelo menos em finais de Julho e em Setembro, ou na casa de banho ou no quarto de dormir da sua residência) e referiu-se a uma quarta situação em que a menor apenas lhe agarrou o pénis nada mais tendo feito.
O arguido apresentou ainda um diferente contexto e circunstâncias, pretendendo nitidamente inculcar no julgador a convicção de que tudo se passou com o consentimento desta, ou pelo menos com a sua não oposição expressa, uma vez que referiu que a menor é que queria ver o seu pénis e comentava isso abertamente, ou que nessas ocasiões o arguido lhe perguntava – “Queres alguma coisa?” e que a menor encolhia os ombros ou então o arguido perguntava – “Queres saltar para cima de mim?”, e a menor assentia, esclarecendo ainda que introduzia o pénis na vagina da menor sua filha por um curto intervalo de tempo, ou que a menor é que ia para cima de si e não o contrário – o que, para além de não merecer qualquer credibilidade (por contrariar toda a prova analisada) é revelador, sugestivo e caracteriza bem a sua postura na visão do seu relacionamento pai-filha.
Confrontado ainda com as suas declarações prestadas em sede de Primeiro Interrogatório Judicial (de fls. 89 a 91) foi possível verificar a existência de contradições entre essas e as declarações prestadas em Audiência, destacando-se que naquelas declarações o arguido admitiu a existência de quatro ocasiões em que introduziu o pénis na vagina de sua filha e agora reconhece apenas três ocasiões – de acordo com as regras da experiência é mais lógico considerar que em sede de primeiro Interrogatório (porque foi logo a seguir à prática dos factos) a sua memória estaria mais fresca do que em sede de Julgamento e assim sendo deve considerar-se que o arguido admitiu pelo menos quatro ocasiões e não apenas três como veio agora dizer em sede de Audiência de Julgamento.
Importa referir que em sede de Interrogatório Judicial referiu que o relacionamento sexual com sua esposa corria mal e agora veio dizer que era normal, entre outras contradições.
Foram analisadas e confrontadas as declarações da menor e as declarações do arguido.
O arguido admitiu que introduziu o pénis na vagina da sua filha B....
A divergência essencial entre as declarações do arguido e da menor B... traduz-se no número de vezes em que tal sucedeu e a existência ou não de consentimento na cópula – em sede de declarações no Primeiro Interrogatório Judicial o arguido tinha admitido quatro ocasiões e em sede de declarações na Audiência de Julgamento admitiu três ocasiões, mas em que teria existido consentimento da menor (ou pelo menos uma não oposição desta) enquanto que a menor referiu a existência, com certeza absoluta, de pelo menos 8 ocasiões (sete destas consumadas e uma tentada) e sem qualquer consentimento por parte desta.
As declarações do arguido foram incoerentes, contraditórias e contrariadas pelos restantes meios de prova (destacando-se as declarações da menor e o contexto e circunstâncias em que foi detectada a situação), por isso, a versão apresentada pelo arguido não mereceu qualquer credibilidade.
Além disso, se a menor tivesse dado o seu consentimento, ou seja, se as relações fossem realmente consensuais, não teriam as repercussões que tiveram do ponto de vista do seu comportamento na escola e seus relatos perante a psicóloga.
Foi valorado o depoimento da testemunha C... (esposa do arguido e mãe da menor), a qual não assistiu a qualquer dos factos, apenas se encontrava em casa nessas ocasiões, referindo não se ter apercebido de nada (o que não é de estranhar porque a casa era grande e os factos aconteceram em pisos diferentes), confirmou que a psicóloga da Escola ... a contactou para informar o que se estava a passar com a sua filha, altura em que a levou para casa da madrinha (a testemunha G ..., que entretanto confirmou tal facto).
No entanto, de modo algo ambíguo, estava nitidamente a tentar proteger o seu marido, o arguido, em detrimento da sua filha, porque referiu que esta dizia que queria ver o pai nu e tomar banho com ele – o que não mereceu qualquer credibilidade (basta analisar as declarações da menor), além de que, uma mãe ao ouvir tal afirmação nunca poderia achar normal (atenta a idade da menor – 15 anos);
Referiu ainda achar normal andarem nus em casa e que também ela própria andava nua em casa, bem como, que a culpa do sucedido era dos dois (do arguido e da menor) e referiu que o arguido, seu marido, lhe contava (já depois do início deste processo) que a menor é que o procurava e não o contrário (importa referir que o arguido podia dizer o que lhe apetecesse à sua esposa com o intuito de não piorar muito a sua situação e conquistar desse modo o seu apoio).
Mas confirmou que, nos meses de Julho a Novembro de 2011, notou que o arguido, seu marido, tinha um comportamento um pouco distante, não tinham relações sexuais um com o outro e que a menor andava mais calada.
Deste modo, o seu depoimento não mereceu qualquer credibilidade.
Foi valorado o depoimento da testemunha J.... (Inspector da Polícia Judiciária), o qual esclareceu as diligências efectuadas, as quais constam documentadas nos autos, nada acrescentando de muito relevante para além do que já resulta de outros meios de prova.
Foi valorado o depoimento da testemunha F ...(psicóloga da Escola ..., frequentada pela menor à data dos factos), a qual, como já referido supra, relatou de que modo os professores da menor B... notaram que nas aulas esta apresentava um comportamento diferente do habitual (caracterizado por apatia e tristeza), que esta foi chamada à psicóloga de serviço na Escola ... (a ora testemunha), a qual, no âmbito das suas funções, conseguiu detectar a causa dessa tristeza e apatia apresentada após entrevistas/consultas com a menor (os factos acima descritos praticados pelo pai da menor).
A testemunha F ...esclareceu que analisou cuidadosamente a “versão” apresentada pela menor, tomando nota dos detalhes dos episódios de que estava a ser vítima por parte de seu pai e confirmando claramente que esta em cada consulta contava-lhe sempre exactamente a mesma versão dos acontecimentos, isto é, a psicóloga apercebeu-se imediatamente que a menor lhe contava a verdade dos factos, o que a levou a sinalizar a situação e a chamar a mãe da menor (a testemunha C...) para lhe dar conta dos acontecimentos, a qual, por sua vez, deu conhecimento da situação à G.N.R.
Esta testemunha não se recordava com precisão, não tinha de momento presente, de quantas ocasiões é que a menor lhe disse que o arguido seu pai a penetrou com o pénis na vagina, apenas referiu que talvez fossem cinco ou seis vezes as ocasiões em que tal sucedeu – nesta parte o seu depoimento foi algo vago e genérico, no entanto, serviu para confirmar o contexto e circunstâncias dos factos em causa.
O seu depoimento foi isento e coerente, merecendo credibilidade.
Foi valorado o depoimento da testemunha G... (madrinha da menor) a qual relatou que a mãe da menor (a testemunha C...) lhe havia contado que o pai, ora arguido, tinha “abusado” da sua filha B... e por isso a própria testemunha ( G...) tomou a iniciativa de levar a menor para sua casa durante alguns dias, altura em que notou a menor triste, magoada e nervosa, acrescentando que ficou surpreendida com o sucedido por não achar que o arguido pudesse ter praticado tais factos.
O seu depoimento foi isento e coerente, merecendo credibilidade.
Foi valorado o depoimento da testemunha M...(vizinha do arguido, conhece a família), a qual apenas referiu que não se apercebeu de qualquer comportamento do arguido, que ouviu comentários sobre os factos e não queria acreditar nisso, bem como, que continuaram a relacionar-se normalmente, nada acrescentando de relevante para esclarecer os factos.
Foi valorado o depoimento da testemunha N... (conhece o arguido desde criança), o qual nada acrescentou de relevante para esclarecer os factos.

Foi valorado o teor objectivo do relatório da perícia médico-legal de natureza sexual em direito penal do INML de 24/11/2011, de fls. 224 a 228, refere, nas suas conclusões, que «– Não se observam sinais objectivos de lesões traumáticas ou seus vestígios a nível da superfície corporal e da região anogenital. – A examinada apresenta híman complacente, ou seja, permite a cópula sem se lacerar. – O exame não nos permite afirmar ou infirmar pelas práticas sexuais alegadas. – importa assinalar que a ausência de vestígios físicos e a colheita de vestígios biológicos está prejudicada, não significa que o abuso sexual não possa ter ocorrido, uma vez que num grande número destas situações não resultam vestígios» – Daqui decorre que a ofendida não apresenta vestígios de laceração porque apresenta híman complacente, ou seja, permite a cópula sem se lacerar.
A identificação, filiação, naturalidade e a idade da ofendida resultaram do teor objectivo da certidão do assento de nascimento de fls. 368 a 369, o que foi confirmado pelas declarações do arguido, seu pai, e pela testemunha C..., sua mãe.
Os factos atinentes ao elemento subjectivo resultaram da análise da prova acima mencionada em conjugação com as regras da experiência e da lógica.

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3. Quanto aos factos pessoais do arguido:
A ausência de antecedentes criminais resultou do teor do Certificado de Registo Criminal de fls. 428 e as condições pessoas resultaram do relatório social elaborado pela DGRS de fls. 430 a 434, em conjugação com as declarações do próprio arguido e do depoimento das testemunhas M...e N....
Sobre esta factualidade foi valorado ainda o depoimento da testemunha C... (esposa do arguido e mãe da menor), a qual referiu que o arguido andava muito em baixo e que até queria pôr fim à vida, teve necessidade de acompanhamento psicológico, por não ter a mulher e as filhas com ele – revelando que tal comportamento era devido mais às possíveis consequências do processo judicial do que propriamente porque este revelasse algum sentimento perante os factos que cometeu sobre a sua filha.
Foi valorado o depoimento da testemunha M...(vizinha do arguido, conhece a família), a qual apenas referiu que não se apercebeu de qualquer comportamento do arguido, que ouviu comentários sobre os factos e não queria acreditar nisso, bem como, continuaram a relacionar-se normalmente, nada acrescentando de relevante.
Foi valorado o depoimento da testemunha N... (conhece o arguido desde criança), o qual nada acrescentou àquilo que já consta do relatório social.
Importa salientar que, apesar do arguido ter verbalizado estar arrependido, das suas declarações não resulta qualquer efectivo arrependimento.
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4. Quanto aos factos atinentes à responsabilidade civil (consequências da conduta do arguido sobre a menor):
Os factos relativos às consequências da conduta do arguido sobre a menor resultaram das próprias regras de experiência comum, bem como, do teor objectivo dos seguintes documentos: de fls. 163 a 187 (cópia do requerimento inicial do processo de promoção e protecção), fls. 194 a 200 (cópia do despacho que confirmou a medida de promoção e protecção aplicada), fls. 203 (informação de serviço), fls. 322 a 349 (certidão proveniente do processo de promoção e protecção), fls. 368 a 369, em conjugação com o teor dos seguintes depoimentos:
Foi valorado o depoimento da testemunha F...(psicóloga da Escola ..., frequentada pela menor à data dos factos), a qual referiu que quando a menor lhe revelou os acontecimentos receava a destruição da família, estava muito preocupada com isso (o que demonstra a apatia e tristeza que caracterizavam a menor – porque estava a ser vítima de factos que pretendia nitidamente denunciar e simultaneamente estava preocupada com tais consequências na família, o que é perfeitamente compreensível), o que conduziu a que a menor chorasse muito e tivesse ficado muito triste com os factos e suas consequências, por ser muito complicado emocionalmente, que a menor continuava afectada com o sucedido, sentindo-se culpada apenas pela desestruturação familiar. Salientou que a menor não sentia que tinha agido mal (não atribuiu culpas a ninguém) mas sentia-se responsável pela família ter ficado desestruturada. Referiu ainda que a menor continua a beneficiar de apoio na Escola ... – prestou um depoimento isento e coerente, merecendo credibilidade.
Foi valorado o depoimento da testemunha G ... (madrinha da menor) a qual relatou que a mãe da menor (a testemunha C...) lhe havia contado que o pai, ora arguido, tinha “abusado” da sua filha B... e por isso a própria testemunha ( G...) tomou a iniciativa de levar a menor para sua casa durante alguns dias, altura em que notou a menor triste, magoada e nervosa, acrescentando que ficou surpreendida com o sucedido por não achar que o arguido poderia ter praticado tais factos – o seu depoimento foi isento e coerente, merecendo credibilidade.
Foi valorado o depoimento da testemunha H... (Técnica da Comissão de Protecção de Menores), a qual esclareceu a sua intervenção no caso em apreciação desde a sinalização pelo Ministério Público até ao seu contacto com a menor e a mãe desta, da qual resultou ter constatado que a menor se cruzara com o pai na rua e ficou em pânico, bem como, a menor estaria a ser pressionada para mentir (mas este último aspecto não foi bem explicado pela testemunha e por isso nesta parte não se considera provado);
Explicou ainda que aplicou o procedimento de urgência para Instituição, para ficar em ambiente protegido, destacando que a menor aceitou logo essa solução;
Também no âmbito da sua actuação, referiu ter falado com a mãe da menor sobre tudo o sucedido, mas esta estava mais preocupada com toda a situação relacionada com o arguido mas não estava preocupada com a institucionalização da menor e que lhe disse “a minha filha tem tanta culpa como o marido”, enquanto que a menor B... sentia-se desamparada, envergonhada e chorosa – prestou um depoimento isento e coerente, merecendo credibilidade.
O descrito comportamento da mãe da menor perante o quadro factual referido é revelador do seu comportamento e justifica também que a menor se tenha sentido sempre desamparada.
Foi valorado o depoimento da testemunha L... (Directora Técnica do X...) a qual esclareceu que recebeu a menor no X..., referiu como esta ficou afectada e que nunca manifestou qualquer sentimento de culpa – prestou um depoimento isento e coerente, merecendo credibilidade.
Foi valorado o depoimento da testemunha I... (Pedopsiquiatra do Hospital de ...), a qual caracterizou o estado da menor em consequência dos factos e que lhe receitou anti-depressivos – prestou um depoimento isento e coerente, merecendo credibilidade.
Não resultou dos meios de prova analisados que a menor B... que sofreu dores, que teve sentimentos de culpa ou que encontrou o seu pai nas datas concretas constantes da acusação.
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5. Os restantes factos não provados, acima não expressamente mencionados, resultaram da circunstância de não ter sido produzida prova sobre os mesmos ou de não ter sido produzida prova credível.

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3. O arguido questiona a matéria de facto dada como provada pelo tribunal recorrido relativa às situações que o Acórdão recorrido definiu como «3º a 7º acontecimentos». Com fundamento em que o único meio de prova foi o depoimento da vítima que “não conseguiu concretizar um número de vezes, sequer um número mínimo” -  cfr. conclusões 1 a 4.

Alegando ainda que “constituirá um erro notório o tribunal recorrido ter dado como provado que em todas as actuações a ofendida tivesse “dito que «não queria» ou que o arguido «a agarrava com força ou deitava-se por cima dela depois de a despir»” – conclusões 5 a 9.

3.1. Começando pelo invocado vício de erro notório na apreciação da prova

Nos termos do art. 410º n.º2 do CPP “Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: (…)

c) Erro notório na apreciação da prova.

Trata-se de vício [tal como os previstos nas alienas a) e b) do mesmo preceito] relativos à estrutura interna da sentença que há-de emergir do texto da decisão propriamente dito e/ou do mero confronto da decisão com as regras da experiência comum.

Repercutindo todavia os seus efeitos ao nível da decisão de mérito, uma vez que a sua consequência típica é o reenvio para novo julgamento - cfr. art. 426º do CPP.

Constituindo “vícios ao nível da lógica jurídica da matéria de facto, da confecção técnica do decidido, apreensíveis a partir do seu texto, a denunciar incoerência interna com os termos da decisão” – cfr. Ac. STJ de 07.12.2005, CJ-STJ, tomo III/2005, p. 224.

Daí que sejam de conhecimento oficioso – cfr. Acórdão do STJ de para fixação de jurisprudência 19.10.1995, publicado no DR, I-A Série de 28.12.95.

Em conformidade com a letra da lei, os aludidos vícios apenas se verificam quando “resultem do texto da própria decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum” – cfr. SIMAS SANTOS / LEAL HENRIQUES, in Recursos em Processo Penal, Ed. Rei dos Livros, 5ª ed., p. 68 e jurisprudência ali citada.

Constituindo o erro notório na apreciação da prova “um vício de raciocínio na apreciação das provas evidenciado pela simples leitura da decisão; erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio” – cfr. Ac. STJ de 03.06.1998, processo n.º 272/98, citado por SIMAS SANTOS / LEAL HENRIQUES, Recursos em Processo Penal, Ed. Rei dos Livros, 5ª ed., p. 68.

Verificando-se, por ex., quando se dão como provados factos que, face às regras da experiência comum e à lógica do homem médio, não se poderiam ter verificado ou são contraditados por documentos que fazem prova plena não arguidos de falsos – cfr. Ac. STJ 10-03.99, SASTJ n.º 29, p. 73. Ou quando se dão como provados factos que face às regras da experiência comum e à lógica corrente não se podiam ter verificado Ac. STJ 02.06.99, proc. 354/99, citado por Maia Gonçalves, em anotação ao art. 41º do seu C. Anotado, 13ª ed..

No caso, o recorrente invoca o vício de erro notório na apreciação da prova, relativamente à matéria dada como provada de que a ofendida “tivesse dito que «não queria» ou que o arguido «a agarrava com força»” na perspectiva de demonstrar que, em nenhum dos casos descritos, tivesse actuado contra a vontade da vítima.

Ora o próprio recorrente reconhece – porque incontroverso - que para que a prática do crime em questãoé irrelevante o consenso da vítima se ele for menor, como é o caso” – cfr. conclusão n.º5.

Por outro lado os fundamentos invocados pelo recorrente não são relativos à estrutura lógica ou ao texto da decisão ou á violação ostensiva das regras da experiência comum. Trata-se antes de argumentos relativos à “credibilidade” (termo utilizado na conclusão n.º5 e que encabeça todo o raciocínio subsequente) atribuída pelo tribunal aos depoimentos prestados em audiência.

Aliás o recorrente apenas invoca o vício de erro notório depois de manifestar (conclusões 1 a 4) a sua discordância com a valoração probatória material efectuada pelo tribunal recorrido, designadamente do depoimento da ofendida.

Sendo certo que nenhum meio de prova refere – nem o recorrente ousou afirmá-lo, em audiência, lugar adequado à produção da prova e ao exercício do contraditório – que a menor tivesse consentido na prática dos factos.

Trata-se de considerações de natureza puramente subjectiva do próprio recorrente – para além da sua formulação dubitativa, que não impositiva – cfr. conclusão 8ª onde o recorrente refere quenão será uma atitude comum e normal que esses actos se tivessem verificado sempre contra a vontade da vítima e, tendo-se eles passado na residência familiar, ela não os comunicasse pelo menos à mãe”.

Não estruturadas em qualquer critério legal ou objectivo de apreciação da prova.

Muito menos que possam emergir do texto da decisão ou de critérios impostos por elementares regras da experiência, como decorre do enunciado critério do art. 410º, n.º2 do CPP.

È pois manifesto que não se verifica o apontado vício.

*

3.2. O recorrente impugna os pontos da matéria de facto identificados na decisão recorrida como «3º a 7º acontecimentos».

Trata-se da seguinte matéria: “A partir de finais de Agosto/início de Setembro de 2011 até 12 de Novembro de 2011, em datas não concretamente apuradas, pelo menos em cinco ocasiões, no quarto de dormir ou na casa de banho do interior da residência acima mencionada, o arguido A..., agarrando-a com força ou deitando-se por cima dela depois de a despir, introduziu o pénis erecto na vagina da menor B...”.

Os tribunais da relação conhecem de facto e de direito – art. 428º do CPP.

A decisão da matéria de facto pode ser impugnada/sindicada com fundamento nos vícios do art. 410º, n.º2 do CPP ou com base na efectiva reapreciação dos meios de prova, nos termos previstos nos artigos 431ºdo CPP.

Os vícios do art. 410º evidenciam-se ao nível da lógica jurídica da matéria de facto, da confecção técnica do decidido, apreensíveis a partir do seu texto, a denunciar incoerência interna com os termos da decisão, sem necessidade de reapreciação da prova produzida, nos termos supra referidos acerca do vício de erro notório.

Já no que toca ao recurso com base na reapreciação da prova, postula o art. 431º do CPP: Sem prejuízo do disposto no art. 410º, a decisão do tribunal e 1ªinstância sobre matéria de facto pode ser alterada: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base; b) Se a prova tiver sido impugnada nos termos do art. 412º n.º3 do CPP.

No recurso com base na reapreciação dos meios de prova, ao contrário do que sucede com os vícios do art. 410º (aparentes, manifestos, de conhecimento oficioso) incide sobre o recorrente o ónus de identificar o erro apontado á decisão recorrida, como ainda o de o comprovar, especificando o conteúdo dos meios de prova tido por não valorado ou valorado erradamente pela decisão posta em crise, capaz de, numa apreciação conforme aos critérios legais em vigor, “impor” a revogação e/ou a substituição da decisão recorrida em conformidade com a pretensão formulada.

Com efeito, sobre a motivação do recurso com base na reapreciação da prova, dispõe o art. 412º do CPP (redacção introduzida pela Lei 48/2007 de 29.08):

(…)

3. Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

4. Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado em acta, nos termos do disposto no n.º2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.

O recurso não se confunde, como sucede na praxis diária, com um novo ou segundo julgamento da mesma coisa. Constituindo antes o instrumento para obter a correcção de erros de procedimento ou de julgamento – concretos, identificados e comprovados, com base numa argumentação minimamente persuasiva, na motivação do recurso – cometidos na decisão recorrida.

Com efeito, parafraseando Cunha Rodrigues (Jornadas de Direito Processual Penal, Centro de Estudos Judiciários, p. 387) “Como remédios jurídicos os recursos não podem ser utilizados com o único objectivo de melhor justiça. O recorrente tem que indicar expressamente os vícios da decisão recorrida. A motivação dos recursos consiste exactamente na indicação daqueles vícios que se traduzem em erros in operando ou in judicando. A pretensa injustiça imputada a um vício de julgamento só releva quando resulta de violação de direito material. Esta natureza dos recursos justifica, por outro lado, que se lhes aplique o princípio dispositivo e que se reconheça às partes um importante papel conformador”.

O recurso com base no disposto no art. 431º do CPP poderá ter como fundamento:

 - a atribuição, pelo tribunal recorrido, aos meios de prova convocados como suporte da decisão, de conteúdo diverso daquele que efectivamente têm ou daquele que foi realmente produzido em audiência; ou

 - a violação de critérios legais de valoração e apreciação da prova incorporada nos autos ou produzida oralmente em audiência): - pela valoração de meios de prova ilegais ou nulos; - pela violação de critérios de apreciação da prova vinculada (vg. prova documental e pericial) - pela violação de princípios gerais de apreciação da prova, designadamente o princípio da livre apreciação previsto no art. 127º do CPP e o princípio in dubio pro reo.

A reprodução da gravação dos depoimentos, no tribunal de recurso, como instrumento de garantia/comprovação da genuinidade dos mesmos e da eventual divergência entre o conteúdo material do depoimento prestado em audiência e o pressuposto na decisão recorrida, apenas tem sentido no caso de, segundo a motivação do recurso, a decisão recorrida ter atribuído, aos depoimentos prestados oralmente em audiência, conteúdo/afirmações relevantes, materialmente diversas daquelas que foram efectivamente produzido em audiência. Afinal quando o fundamento do recurso é o de que a testemunha ou o depoente afirmou em audiência “coisa” materialmente diversa daquela que é reportada/valorada como suporte da decisão recorrida e que, como tal, inquinou a decisão, impondo, por isso, a sua correcção pelo tribunal de recurso. Pois que, como instrumento de reprodução, apenas permite corrigir erros de “audição” do tribunal recorrido.

Competindo ao recorrente, em tal situação, especificar as “passagens” que confirmam a apontada desconformidade entre aquilo que foi dito em audiência e aquilo que foi valorado pelo tribunal recorrido como suporte da decisão impugnada.

A gravação (como instrumento de garantia da genuinidade dos depoimentos) nada adiantará quando o fundamento do recurso radica na violação de critérios de valoração – não reproduzidos pela gravação. Pois que, pela sua natureza, a gravação apenas reproduz e comprova o teor dos depoimentos gravados. Nada adiantando para efeito de apreciação da obediência aos critérios (legais) de ponderação/avaliação/valoração da prova - que resultam da lei e dos princípios gerais de direito processual penal.

Em termos de valoração material da prova, apesar da minuciosa regulamentação das provas efectuada pelo CPP, salvos os casos em que a lei define critérios legais de apreciação vinculada (vg. prova documental, prova pericial) vigora princípio geral de que a prova é apreciada de acordo com as regras da experiência e a livre convicção do julgador - art. 127º do Código de Processo Penal.

Liberdade de convicção não pode nem deve significar o impressionista-emocional arbítrio ou a decisão irracional “puramente assente num incondicional subjectivismo alheio à fundamentação e a comunicação” – cfr. Castanheira Neves, citado por Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 1, 43.

Pelo contrário, o princípio da livre apreciação da prova, conjugado com o dever de fundamentação das decisões dos tribunais, exige uma apreciação motivada, crítica e racional, fundada nas regras da experiência mas também nas da lógica e da ciência. Devendo ser objectivada e motivada, únicas características que lhe permitem impor-se a terceiros.

A livre convicção assenta na verdade prático-jurídica, mas pessoal, porque para a sua formação concorrem a actividade cognitiva e ainda elementos racionalmente não explicáveis como a própria intuição.

Esta operação intelectual, não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis) e para ela concorrem as regras impostas pela lei, como sejam as da experiência, da percepção da personalidade do depoente — aqui relevando, de forma especialíssima, os princípios da oralidade e da imediação — e da dúvida inultrapassável que conduz ao princípio “in dubio pro reo” - cfr. Ac. do T. Constitucional de 24/03/2003, DR. II, nº 129, de 02/06/2004, 8544 e ss..

A prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade: o juiz lança-se à procura do «realmente acontecido» conhecendo, por um lado, os limites que o próprio objecto impõe à sua tentativa de o «agarrar» e, por outro, os limites que a ordem jurídica lhe marca - derivados da(s) finalidade(s) do processo (Cristina Libano Monteiro, “Perigosidade de inimputáveis e «in dubio pro reo»”, Coimbra, 1997, pág. 13).

Sendo certo que a certeza judicial não se confunde com a certeza absoluta, física ou matemática, sendo antes uma certeza empírica, moral, histórica – crf. Climent Durán, La Prueba Penal, ed. Tirant Blanch, p. 615.

O princípio in dubio pro reo constitui um princípio de direito relativo à apreciação da prova/decisão da matéria de facto. Princípio atinente ao direito probatório, como tal relevante em termos da apreciação da questão de facto e não na superação de qualquer questão suscitada em matéria de direito – cfr. entre outros Cavaleiro Ferreira, Direito Penal Português, 1982, vol. 1, 111, Figueiredo Dias Direito Processual Penal, p. 215, Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal, 1967-1968, p. 58. Constituindo um princípio geral de direito (processual penal) cuja violação conforma uma autêntica questão-de-direito – Cfr. Medina Seiça, Liber Discipulorum, p. 1420; Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, 1974, p. 217 e segs.), criticando o entendimento contrário do STJ.

A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de convicção do Tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida ligeira, meramente possível, hipotética. Só a dúvida séria se impõe à íntima convicção. Esta deve ser, pois, argumentada, coerente, razoável – neste sentido, Jean-Denis Bredin, Le Doute et L’intime Conviction, Revue Française de Théorie, de Philosophie e de Culture Juridique, Vol. 23, (19966), p. 25.

De onde que o tribunal de recurso “só poderá censurar o uso feito desse princípio (in dubio) se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida insanável e que, face a esse estado escolheu a tese desfavorável ao arguido” – cfr. AC. STJ de 02.05.1996, CJ/STJ, tomo II/96, p. 177. Ou quando, após a análise crítica, motivada e exaustiva de todos os meios de prova validamente produzidos e a sua valoração em conformidade com os critérios legais, é de concluir que subsistem duas ou mais perspectivas probatórias igualmente verosímeis e razoáveis, havendo então que decidir por aquela que favorece o réu.

Assim, mais do que uma limitação da livre convicção pela dúvida razoável, o critério da livre apreciação e o critério da dúvida razoável é o mesmo, têm o mesmo cerne - que há-de orientar “o fio da navalha” da decisão judicial sobre a prova do facto: a livre apreciação exige a convicção para lá da dúvida razoável; e o princípio in dubio pro reo impede (limita) a formação da convicção em caso de dúvida razoável. Em ambos os casos, após a produção de toda a prova e da sua valoração em conformidade com os critérios de apreciação vinculada e, na falta deles, numa apreciação motivada, razoável, objectiva e racional.

No que toca à prova produzida oralmente em audiência assume ainda a maior relevância o princípio da oralidade e imediação, na plenitude do julgamento e do contraditório, a que só o tribunal de 1ª instância tem acesso. Princípio que enfatiza a constatação de que o tribunal de recurso não julga de novo a mesma coisa, mas apenas pode sindicar o julgamento efectuado, nos termos supra identificados. Sabendo-se a voz apenas representa uma perspectiva parcelar do processo global da comunicação entre pessoas.

Com efeito, “só os princípios da oralidade e da imediação permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais correctamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais. E só eles permitem uma plena audiência desses mesmos participantes, possibilitando-lhes da melhor forma que tomem posição perante o material de facto recolhido e comparticipem na declaração do direito do caso” – Cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, p. 233-234.

Pelo que os julgadores do tribunal de recurso, a quem está vedada a oralidade e a imediação, perante duas versões dos factos, só podem afastar-se do juízo efectuado pelo julgador da 1ª instância, naquilo que não tiver origem naqueles dois princípios, ou seja quando a convicção não se tiver operado em consonância com as regras da lógica e da experiência comum, reconduzindo-se assim o problema, na maior parte dos casos, ao da fundamentação de que trata o art. 347º, n.º2 do CPP – Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. II, p. 126 e 127, que por sua vez cita o Prof. Figueiredo Dias – jurisprudência uniforme desta Relação, designadamente acórdãos 19.06.2002 e de 04.02.2004, nos recursos penais 1770/02 e 3960/03; 18.09.2002, recurso penal 1580/02; 13.02.2008, recurso 76/05.4PATNV.C1 2º Juízo Torres Novas. Como decidiu, entre outros, o Acórdão da Relação de Coimbra de 06.03.2002, publicado na CJ, ano 2002, II, 44.... “quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear numa opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face ás regras da experiência comum”.

No caso em reapreciação, como fundamento da impugnação dos pontos da matéria de facto relativa aos “3º a 7º acontecimentos”, alega o recorrente que “Os únicos meios de prova da prática dos factos mormente quanto ao número de vezes em que teriam ocorrido, foram e são as declarações do arguido e as da vítima; afigura-se que aquelas merecem credibilidade, pela forma natural (ainda que obviamente constrangida) e espontânea com que foram prestadas quanto à vítima, esta não conseguiu precisar o número de vezes em que os acontecimentos tinham ocorrido”.

Alega assim, nuclearmente, que a decisão recorrida valorou exclusivamente o depoimento da vítima (afirmativo dos factos) em detrimento do depoimento do arguido (negatório dos mesmos) que, na perspectiva do recorrente “merece credibilidade” pela sua “forma natural e espontânea”.

Ora a decisão recorrida, relativamente à matéria questionada não assenta, exclusivamente, na afirmação dos factos impugnados pela vítima “contra” a sua negação pelo arguido.

Por outro lado, a credibilidade do depoimento do recorrente, para além de não estribado em qualquer elemento de prova que lhe confira sombra de verdade, é afastada pela contradição entre a versão apresentada em audiência e a apresentada no Primeiro Interrogatório Judicial (cfr. fls. 89 a 91).

Em contrapartida, o depoimento da queixosa é corroborado pelo depoimento da psicóloga escolar que detectou alterações no comportamento da menor na sequência do que a menor acabou por lhe relatar o sucedido, procedendo ainda a testemunha ao seu acompanhamento e estudo psicológico.
Com efeito a testemunha F ...(psicóloga da Escola ..., frequentada pela menor à data dos factos) relatou que os professores da menor notaram que nas aulas esta apresentava um comportamento diferente do habitual (caracterizado por apatia e tristeza) e – por isso – a criança foi chamada à psicóloga de serviço, a testemunha, a qual, no âmbito das suas funções, após múltiplas entrevistas/consultas, lhe relatou a causa - os factos praticados pelo pai que depois descreveu no âmbito dos presentes autos.
A mesma testemunha - F ... – analisou profissionalmente a “versão” apresentada pela menor, confirmando claramente que esta, nas múltiplas consultas relatava precisamente a mesma versão dos acontecimentos, apercebendo-se essa era a verdade dos factos, o que a levou a sinalizar a situação.

A que acresce a avaliação técnica efectuada pela mesma psicóloga, com formação técnica adequada, do perfil psicológico da ofendida, que afasta qualquer perspectiva de esta poder estar a efabular.

Ora, como enfatiza a decisão recorrida – “neste tipo de crimes, assume a maior relevância a contextualização dos factos e dos depoimentos”. Pois que se trata, no caso, de factos ocorridos na intimidade familiar, sob a penumbra da casa de família, impossíveis de presenciar por terceiros, estranhos às cumplicidades familiares.

Sendo certo que, objectivamente, a vítima não tem qualquer interesse em acusar falsamente o próprio pai, nem daí retira qualquer benefício relevante. Pelo contrário o recorrente, não podendo negar a totalidade dos factos, tem interesse em negar aqueles sobre os quais entende poder a prova não ser conclusiva. Pois que da sua prova decorrerá a condenação pela prática de múltiplos crimes que catapultam a gravidade dos factos para um nível muito superior.

Também a apreciação do depoimento da menor na sua globalidade aponta claramente para a verdade do mesmo, destacando-se que dele emerge a preocupação de rigor, constituindo um depoimento “defensivo” em relação aos pormenores que não recorda com todo o rigor, na perspectiva de somente apontar aquilo de que tem a certeza absoluta. Ao contrário da negação por parte do recorrente, desajustada da relação de “domínio” material, físico e psicológico sobre a menor, mais ajustado á repetição, múltipla do facto reconhecidamente praticado de forma repetida.

Acresce, em termos de valoração da prova, que, no caso, ainda que do depoimento da ofendida tenha resultado a existência de repetidas situações de aproveitamento sexual, durante o período de tempo a que se reporta a acusação – seguramente mais do que aquelas foram dadas como provadas - o tribunal apenas deu como provadas  aquelas em relação ás quais o depoimento da menor não deixou nem era possível de deixar qualquer margem possível (razoável) de dúvida quanto à sua efectiva verificação.  Quando confrontada com mais que uma versão probatória, a decisão recorrida acolheu-se ao princípio in dubeo pro reo – daí ter dado como não provada a matéria relativa a 9 (nove) crimes que vinham imputados ao arguido na causação e dos quais foi sumariamente absolvido. Precisamente por ter dado como não provada a matéria de facto correspondente -não ter ficado afastada de forma concludente a prática dos factos - que a menor ainda assim afirmou, apenas não conseguindo precisar as datas, precisas, de cada facto.  O que evidencia o rigor quer da vítima na descrição dos fatos quer do tribunal na apreciação do seu depoimento, apenas dando como provada a matéria sobre cuja ocorrência foi afastada qualquer dúvida razoável.

Assim, na matéria questionada o tribunal recorrido afirmou a sua convicção para lá de qualquer dúvida razoável, com base na análise crítica, exaustiva, da prova produzida.

Pelo que, concluindo, assentando a decisão recorrida em meios de prova legais, validamente produzidos e valorados em conformidade com os critérios legais em vigor, se impõe a improcedência do recurso da matéria de facto.

*

4. Já em matéria de direito, o MºPº questiona, em primeiro lugar, a qualificação jurídica dos factos descritos como “8º acontecimento”

Trata-se da seguinte matéria: - «o arguido entrou no quarto da menor B... sito no interior da residência acima mencionada, entrou na cama desta e tirou-lhe as calças do pijama, começou a apalpar os seios, as nádegas e a vagina enquanto perguntava – “Queres?” e tentava introduzir o pénis na sua vagina, o que não conseguiu porque a ofendida disse repetidamente que não, fez força e conseguiu fugir».

Este caso tem de diferente, em relação às 7 situações anteriores, a inexistência (ao contrário dos casos anteriores) de penetração sexual, por a ofendida ter conseguido libertar-se e fugir.

As múltiplas situações descritas vêm subsumidas aos artigos 172.º, n.º 1 do C.P. Preceito que postula: “Quem praticar ou levar acto descrito nos n.ºs 1 ou 2 do artigo anterior (…)”.

Por sua vez o art. 171º para que aquele remete para a descrição dos elementos do tipo, refere-se no n.º1 à prática com menor de “acto sexual de relevo”.

Enquanto o n.º2 prevê: “Se o acto sexual de relevo consistir em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos”.

Portanto, o crime do art. 172º, por remissão para o n.º1 ou 2 do art. 171º, abrange as duas situações previstas nos dois números do preceito: “acto sexual de relevo” ou “acto sexual de relevo que consista em cópula (…)”.

Parece assim evidente que o crime, recortado para o acto sexual de relevo, fica consumado ainda que não haja cópula. A cópula, não constituindo conditio sine qua non para o preenchimento dos elementos do tipo objectivo (acto sexual de relevo) e respectiva moldura abstracta da punição, relevará todavia ao nível da pena a aplicar em concreto.

Assiste pois razão ao MºPº na conclusão de que a matéria provada neste âmbito é suficiente para o preenchimento do crime previsto no art. 172º, nº1 do C. Penal na forma consumada e não apenas na sua forma tentada.

*

5. Questões relativas à medida da Pena

Neste âmbito, o arguido pede a redução da pena aplicada em cúmulo para pena “não superior a 9 anos de prisão”.

A aludida pretensão do recorrente tem por fundamento/pressuposto a procedência do recurso da matéria de facto e a (causal) absolvição dos 4 crimes não confessados, bem como o invocado erro notório de apreciação relativo ao suposto “consentimento” da vítima.

Ora, como resulta da apreciação daquelas questões supra efectuada, tais fundamentos foram julgados improcedentes. Pelo que, da improcedência das premissas resulta, como consequência lógica necessária, a improcedência da conclusão que nelas repousava.

Impondo-se, pois, a improcedência do recurso do arguido também neste ponto.

Por sua vez o MºPº sustenta que as penas aplicadas em concreto devem passar de 5 anos para 5 anos e 6 meses de prisão (cada um dos crimes 1 a 7) e de 3 para 4 anos de prisão (8º crime). E que a pena aplicada em cúmulo deve passar de 12 para 13 anos.

A pena aplicável ao crime previsto e punido pelo artigo 172.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, na forma consumada é de 1 ano e 4 meses a 10 anos e 8 meses de prisão.

Relativamente ao 8º crime, resulta da apreciação supra efectuada a alteração da respectiva qualificação jurídica – de crime tentado passou a crime na forma consumada – a que corresponde uma moldura penal mais elevada, obrigando, pois, à revisão da pena concreta.

Importando também reapreciar a medida das penas aplicadas aos 7 restantes crimes. 

O art. 71º do CP estabelece o critério geral segundo o qual a medida da pena deve fazer-se “em função da culpa do agente e das exigência de prevenção”. Critério que é precisado depois no nº2, que estabelece: na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuseram a favor do agente ou contra ele.

As circunstância a ter em conta são exemplificadas (“nomeadamente”) nas várias alíneas do citado nº2. Reconduzindo-se a três grupos ou núcleos fundamentais: factores relativos à execução do facto {alíneas a), b) e c) – grau de ilicitude do facto, modo de execução, grau de violação dos deveres impostos ao agente, intensidade da culpa, sentimentos manifestados e fins determinantes da conduta}; factores relativos à personalidade do agente {alíneas d) e f) – condições pessoais do agente e sua condição económica, falta de preparação para manter uma conduta lícita manifestada no facto}; e factores relativos à conduta do agente anterior e posterior a facto {alínea e)}.

O modo como estes princípios regulativos irão influir no processo de determinação do quantum da pena é determinado ainda pelo programa político-criminal em matéria dos fins das penas, que se reconduz a dois princípios, enunciados no art. 40º do C. Penal (redacção introduzida pela Reforma de 95): 1 A aplicação da pena... visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. 2. Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.

Disposição que consagra o entendimento mais recente do Prof. Figueiredo Dias sobre os fins das penas (cfr. Liberdade, Culpa e Direito Penal, Coimbra editora, 2ª ed., e Direito Penal Português, As Consequência Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, p. 227, este tendo já por referência o projecto que veio a ser plasmado no art. 40º da redacção actual do Código Penal): “A justificação da pena arranca da função do direito penal de protecção dos bens jurídicos; mas esta função de exterioridade encontra-se institucionalmente limitada pela exigência de culpa e, assim, por uma função de retribuição como ressarcimento do dano social causado pelo crime e restabelecimento da paz jurídica violada; o que por sua vez implica a execução da pena com sentido ressocializador – só assim podendo esperar-se uma capaz protecção dos bens jurídicos”.

Os princípios jurídico-penais da lesividade ou ofensividade, da indispensabilidade da tutela penal, da fragmentaridade, subsidiariedade e da proporcionalidade, quer os próprios mecanismos da democracia e os princípios essenciais do Estado de Direito são garantias de que, enquanto de direito, social e democrático, o Estado não poderá chegar ao ponto de fazer da pena uma arma que, colocada ao serviço exclusivo da eficácia, pela eficácia, do sistema penal, acabe dirigida contra a sociedade.

A prevenção geral, no Estado de Direito, por se apoiar no consenso dos cidadãos, traduz as convicções jurídicas fundamentais da colectividade, e coloca assim a pena ao serviço desse sentimento jurídico comum. A pena não pode ser aplicada apenas para intimidar os potenciais delinquentes, devendo, antes e acima de tudo, dar satisfação às exigências da consciência jurídica geral, estabilizando as suas expectativas na validade da norma violada.

Subordinada a função intimidatória da pena a esta sua outra função socialmente integradora, a pena preventiva (geral) nunca poderá ser pura intimidação mas, antes, intimidação limitada ao necessário para restabelecer a confiança geral na ordem jurídica ou, por outras palavras, intimidação conforme ao sentimento jurídico comum.

Assim, se por um lado, a prevenção geral positiva é a finalidade primordial da pena e se, por outro, nunca esta pode ultrapassar a medida da culpa, então a moldura penal aplicável ao caso concreto (“moldura de prevenção”) há-de definir-se entre o mínimo imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias e o máximo que a culpa do agente consente; entre tais limites encontra-se o espaço possível de resposta às necessidades da sua reintegração social.

No caso, pede o MºPº o aumento das penas relativas a cada um dos 7 primeiros crimes de 5 para 5 anos e meio de prisão e a elevação da pena relativa ao 8º crime de 3 para 4 anos de prisão.

No que toca ao 8º crime, não sendo agora valorada para efeito da definição da pena aplicável em abstracto, a não existência de cópula naquela situação (fundamento da qualificação como tentativa no acórdão recorrido) será valorada no âmbito da medida concreta da pena – nos termos do art. 71º são valoradas “as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime”.

A relação de parentesco constituiu circunstância agravativa especial, já valorada para a definição da pena aplicável em abstracto, não podendo ser valorada novamente (non bis in idem) na definição da medida concreta da pena.

Dentro dos elementos não valorados na definição do tipo legal (abuso sexual consistente não necessariamente em cópula, como se viu), verifica-se um mais elevado grau de ilicitude nos 7 primeiros crimes, em que houve. De onde resulta, além de tudo o que tal representa em termos de degradação dos valores ético-jurídicos tutelados pela punição, que podia ter resultado para a menor uma gravidez incestuosa, tendo em vista a sua idade (nasceu em Junho de 1996, tendo, portanto mais de 15 anos à data da prática dos crimes, de Junho a Novembro de 2011).

Por outro lado, além da violação, ao mais baixo nível, dos deveres inerentes à relação de parentesco, directo, no 1º grau, o arguido abusou do ascendente mora sobre a vítima. Resultando da sua conduta consequências dramáticos para a criança não só no momento da prática dos crimes como ainda no seu desenvolvimento futuro, na construção da sua personalidade e na forma de encarar a sexualidade, além trauma psicológico inerente aos múltiplos crimes praticados pelo arguido – cfr. pontos 30 a 41 e 42, 2ª parte, da matéria provada.

No que toca ao grau de culpa, o arguido actuou com o mais elevado (dolo directo), dentro dos tipos previstos no art. 14º do C.P.. Sendo certo que o arguido não demonstrou qualquer tipo de arrependimento ou censura do facto. E, embora tendo confessado 4 crimes, a confissão não assume relevo significante uma vez que se revela oportunista, no sentido de, com base na sua suposta “espontaneidade” pretende escamotear a prática dos restantes crimes, arrastando nessa “credibilidade” reclamada para a afirmação (cfr. motivação do recurso em matéria de facto) a credibilidade da negação.   

A circunstância de o arguido não ter antecedentes criminais, embora relevante, não assume especial relevo, uma vez que surge com frequência neste tipo de crime, cometido na intimidade da vida familiar.

Assim, tudo visto e ponderado, têm-se por mais proporcionadas e ajustadas ao efeito protecção dos bens jurídicos violados, prevenção geral positiva, elevado grau de ilicitude e de culpa, as penas propostas pelo MºPº (as relativas aos 7 primeiros crimes situadas ligeiramente acima e a relativa ao 8º ligeiramente abaixo do meio-termo da respectiva moldura abstracta) do que aquelas penas aplicadas pelo tribunal recorrido. Pelo que será dado provimento ao recurso neste ponto.

No que toca à pena aplicada em cúmulo, postula o artigo 77º do C. Penal:

1. Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.

2. A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais levada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.

Entende-se que o critério do n.º1 teve em conta, no dizer de Figueiredo Dias (Direito Penal, Consequências Jurídicas do Crime, p. 291) “a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é recondutível a uma tendência (ou eventualmente mesmo uma «carreira») criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no 1º caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente – exigências de prevenção especial de integração”.

Ora, no caso, a renovação sucessiva da resolução criminosa, ao longo de 4 meses, revela uma personalidade altamente deformada perante os mais elevados valores inerentes à paternidade e à educação e respeito pela individualidade no seu âmago mais íntimo.

Também aqui, visto conjunto da matéria de facto provada e a personalidade do agente revelada no conjunto da matéria provada, atento o limite mínimo (5 anos) e o limite máximo aplicável em qualquer circunstância (25 anos - art. 77º, n.º2 do C. Penal), se entende que é mais ajustada e proporcionada à avaliação global dos factos e da personalidade do agente, a pena proposta pelo MºPº (13 anos) do que a aplicada pela decisão recorrida que, por isso, será revista.


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III. Decisão

Nos termos e com os fundamentos expostos, decide-se:

1. Julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido, negando-lhe provimento. ---

2. Julgar parcialmente procedente o recurso do MºPº qualificando a matéria de facto descrita como “8º acontecimento”, como integrando o crime p e p no art. 172º, n.º1 por remissão para o art. 171º n.º1 do CP agravado nos termos do art. 177º, n.º1 do CP, na forma consumada, condenando o arguido, pela prática do aludido crime, na pena de 4 (quatro) anos de prisão. ---

3. Alterar a decisão recorrida relativamente às penas aplicadas pelos restantes 7 crimes p e p pelos art. 172º, n.º1 por remissão para o art. 171º n.º1 do CP, agravados nos termos do art. 177º, n.º1 do CP (correspondentes aos 1º a 7º acontecimentos descritos na matéria de facto provada) condenado o arguido nas penas de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão, por cada um destes crimes. ---

4. Condenar o arguido, em cúmulo jurídico das penas parcelares ora aplicadas, na pena única de 13 (treze) anos de prisão. ---

5. Manter o acórdão recorrido em tudo o mais não previsto nos pontos anteriores.

6. Condenar o arguido/recorrente nas custas do recurso por si interposto, sem prejuízo do instituto do apoio judiciário, fixando-se a taxa de justiça, vista a impugnação da matéria de facto e de direito, em 5 (cinco) UC.

Belmiro Andrade (Relator)

Olga Maurício