Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2672/07.6TBAGD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: EMPREITADA
DENÚNCIA
DEFEITOS
REGIME APLICÁVEL
VENDEDOR
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 05/31/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – JUÍZO DE GR. INST. CÍVEL DE ANADIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 914º E 1225º, Nº 4 DO C.CIVIL.
Sumário: I – A extensão do regime da empreitada de imóveis destinados a longa duração, quanto à denúncia de defeitos, ao vendedor que tenha promovido a construção de um imóvel (artigo 1225º, nº 4 do CC), tem na sua base a consideração da figura, muito comum no mercado imobiliário, do vendedor-construtor ou promotor imobiliário (alguém que exerce uma actividade lucrativa de construção e venda de imóveis);

II – Fora desta situação, estando em causa uma simples coincidência circunstancial entre quem construiu e quem vendeu o imóvel, quando a promoção dessa construção não era originariamente destinada à venda, não funciona a razão de ser (a teleologia) que subjaz à extensão do regime da empreitada ao vendedor-construtor, nos termos previstos no artigo 1225º, nº 4 do CC, na redacção neste introduzida pelo Decreto-Lei nº 267/94, de 25 de Outubro;

III – Esta asserção interpretativa colhe-se (justificando uma redução teleológica do âmbito de incidência do artigo 1225º, nº 4 do CC) tendo presente que o citado Diploma (o Decreto-Lei nº 267/94), ao compatibilizar, na redacção também introduzida no artigo 916º, nº 3 do CC, os prazos de denúncia dos defeitos na empreitada e na compra e venda de imóveis, incluiu nesta última, face ao aparecimento de defeitos no bem vendido, a relevância do elemento respeitante às particulares características de um imóvel destinado a longa duração, sempre que seja deste tipo o bem vendido;

IV – A demonstração pelo vendedor da ignorância sem culpa dos defeitos supervenientemente detectados no imóvel vendido, enquanto facto impeditivo do direito do credor a obter a reparação desses defeitos, assenta numa presunção de culpa do vendedor, referida ao conhecimento desses defeitos, decorrente do trecho final do artigo 914º do CC;

V – Nesse quadro, ocorre a alocação do ónus da prova desse desconhecimento sem culpa ao próprio vendedor, com a consequência, enquanto “regra de decisão”, de a ausência de dados sobre esse desconhecimento conduzir à atribuição a este (ao vendedor) da obrigação de reparação dos defeitos.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – A Causa


            1. Em 7 de Novembro de 2007[1], R… e mulher, M… (AA. e Apelados) demandaram O… (R. e aqui Apelante)[2] invocando terem adquirido a esta, em 05/04/2005, um prédio urbano (uma moradia), sendo que no início do ano de 2007 detectaram o surgimento de diversos defeitos nessa moradia (designadamente rachas, infiltrações e diversas manchas de humidade), tendo comunicado esses desvalores à R. por carta de 10/07/2007 (trata-se do documento de fls. 19), sem que esta tenha desencadeado a sua reparação. Em função desta omissão da R. formulam os AA. os seguintes pedidos:
“[…]
[S]er a R. condenada:
A) [a] Proceder a expensas suas às necessárias e urgentes obras de reparação do prédio […] eliminando todos os defeitos de construção denunciados […], ou à substituição do que não puder ser reparado;
B) Que essas reparações e substituições tenham início 15 dias após o trânsito em julgado da decisão da presente acção;
C) A pagar aos AA., a título de danos morais o valor de €1.500,00;
[…]
Ou, se não proceder à reparação ser a R. condenada a:
A) Pagar aos AA. a quantia de €26.800,00 acrescidos da taxa de IVA em vigor;
B) Pagar os demais prejuízos resultantes da actualização dos preços constantes no orçamento junto e nos demais prejuízos resultantes dos demais defeitos que entretanto ocorreram e que se apurarão em liquidação de sentença;
C) Pagar a quantia de €1.500,00, a título de danos não patrimoniais sofridos;
D) Pagar os juros moratórios legais das referidas quantias desde a data da citação até integral pagamento;
[…]”
            [transcrição de fls. 7/8]

            1.1. A R. apresentou o seu articulado de contestação (fls. 30/35), deduzindo nele, desde logo, um incidente de intervenção principal provocada [artigo 325º do Código de Processo Civil (CPC)] de J… e da Sociedade de Construção Imobiliária H…, Lda. (que, adiante-se, viriam a ser admitidos como Intervenientes acessórios a fls. 60/64), respectivamente empreiteiros da edificação (dito alvoramento) do prédio (o primeiro) e dos acabamentos e exteriores (a segunda), sendo que a R. funcionou, relativamente a estes dois intervenientes, aquando da construção da moradia, como dona da obra.

Paralelamente, quanto à venda do prédio aos AA., negou a R. qualquer responsabilidade pelos defeitos invocados e o conhecimento dos mesmos à data dessa venda.

1.2. Findos os articulados – incluíram estes um articulado próprio do Interveniente acessório J… (fls. 68/70)[3] –, foram os autos objecto de saneamento e condensação prosseguindo para o julgamento que se mostra documentado a fls. 169/174.

Findo este, depois de terem sido fixados os factos provados por referência às questões indicadas na base instrutória (despacho de fls. 175/176), foi a acção julgada parcialmente procedente através da Sentença de fls. 192/208 – esta constitui a decisão objecto do presente recurso – cujo pronunciamento decisório final se expressou nos seguintes termos:
“[…]
a) [C]ondenamos a R. a realizar as obras necessárias à eliminação dos defeitos descritos em II.10 a II.12 ou à substituição do que não for possível de reparação, no prazo de 15 dias após o trânsito em julgado da sentença.
b) [C]ondenamos a R. a pagar aos AA., a título de indemnização por danos não patrimoniais, a quantia de €1.500,00.
c) [A]bsolvemos no mais a R.
[…]”
            [transcrição de fls. 207]

           

1.3. Inconformada, interpôs a R. o presente recurso motivando-o a fls. 215/233, rematando tal peça processual com as conclusões que ora se transcrevem:
“[…]
            [transcrição de fls. 230/232]


II – Fundamentação


            2. Caracterizado que foi, no antecedente item, o processo nas suas incidências gerais, importa ter presente que as conclusões acima transcritas, formuladas pela Apelante, operaram a delimitação temática do objecto deste recurso (artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1, ambos do CPC).

            Visa a Apelante alcançar, por via deste recurso, o reconhecimento, enquanto elemento de bloqueio do direito dos AA. a obter dela (vendedora) a reparação dos defeitos supervenientemente detectados na moradia, da situação prevista no trecho final do artigo 914º do Código Civil (CC): “[o] comprador tem direito de exigir do vendedor a reparação da coisa […]; mas esta obrigação não existe, se o vendedor desconhecia sem culpa o vício ou a falta de qualidade de que a coisa padece” (sublinha-se aqui o trecho em causa).

             Para este efeito pugna a Apelante, por um lado, pelo acrescento de um facto ao elenco emergente do julgamento na primeira instância e, por outro lado, com ou sem essa almejada alteração dos factos, pela subsunção da situação ao desconhecimento, sem culpa do vendedor, dos defeitos da moradia, aquando da venda, integrando-se assim a facti species do indicado trecho final do artigo 914º do CC.

            Apresenta a apelação, pois, enquanto fundamentos distintos colocados à consideração deste Tribunal de recurso, uma dimensão fáctica e uma dimensão de subsunção à indicada previsão legal, sendo que esta última se nos apresenta como ligada mas não condicionada pela alteração dos factos pugnada pela Apelante, subsistindo, enquanto fundamento do recurso, mesmo sem o acrescento de qualquer facto.

            2.1. Assim, começando pela referida dimensão do recurso atinente aos factos, indicaremos, como ponto de partida expositivo, qual o elenco destes fixado na primeira instância:
“[…]
            [transcrição de fls. 195/200]

            2.1.1. Combina este elenco os factos primeiramente fixados na fase condensatória (fls. 77/81) – os factos logo provados a culminar o confronto de posições que teve expressão nos articulados – e os resultantes das respostas dadas em julgamento aos quesitos constantes da base instrutória (fls. 81/82 e 175/176), adrede elaborada na mesma ocasião, sendo que a Apelante, no que respeita a estes últimos factos (aos positivamente fixados), não pretende propriamente a alteração das respostas dadas pelo Tribunal a quo – intui-se do texto da motivação que a Apelante não contesta qualquer dessas respostas, não indicando provas que conduziriam a outras respostas a esses quesitos (v. artigo 690º-A, nº 1 do CPC) –, limitando-se a Apelante, pois, a pugnar pela consideração de uma determinada circunstância de facto não incluída nesse elenco: os AA. – afirmam-no eles próprios no recurso –, conforme decorreria do depoimento da testemunha (irmão da R.) P…, teriam ido habitar a moradia vendida alguns meses antes da formalização dessa venda (o contrato respectivo data de 05/04/2005, item 1. dos factos), devendo esta circunstância – defendem-no os Apelantes – ser adicionada por esta Relação ao rol dos factos (note-se que só assim seria possível a ponderação dessa circunstância)[4]

            Expressando-se nestes termos o fundamento do recurso respeitante aos factos – a saber: deve ser adicionada a estes a circunstância dos AA. terem ido habitar para a moradia alguns meses antes da celebração do contrato de compra e venda –, importa esclarecer a razão pela qual este elemento não constou do elenco fáctico considerado pela primeira instância, sendo que desse esclarecimento resultará clara a não verificação de qualquer desvalor procedimental ou decisório por parte do Tribunal a quo.

            Com efeito, tendo presente que os factos a ter em conta são – só podem ser – os alegados pelas partes, deparamo-nos com a completa ausência da invocação deste elemento em qualquer dos articulados existentes na acção, tanto no dos AA. como no da R. e, bem assim, do Interveniente, sendo em função desta omissão que se explica a não consideração de tal aspecto, como facto relevantemente alegado, na dialéctica argumentativa da acção, designadamente a sua não inclusão na base instrutória[5].

            Vale esta constatação pela afirmação da impossibilidade de consideração da apontada circunstância (ocupação da casa pelos AA. antes da escritura) nesta acção – onde não foi, repete-se, alegada no momento e em termos que permitissem tomá-la em conta.

            Todavia, para além de se tratar de facto não alegado[6] nem supervenientemente produzido (tratar-se-ia, aliás, ao invés, de facto pretérito relativamente à propositura da acção e, por se tratar de facto que lhe é pessoal, necessariamente conhecido pela R. à data dessa propositura)[7], não deixará de se sublinhar que uma afirmação isolada, algo desgarrada mesmo, produzida por uma testemunha, afirmação ostensivamente sugerida por uma pergunta indevida do Mandatário da R. a essa testemunha (por sinal, irmão da R.)[8], nunca equivaleria à prova segura de um facto que este Tribunal, face ao princípio da livre valoração dos depoimentos das testemunhas (396º do CC), pudesse considerar, no quadro do controlo dos factos, em substituição do julgamento realizado na primeira instância[9].

            Não existe, pois, fundamento algum para a consideração positiva deste primeiro argumento da Apelante, sendo os factos a considerar por esta instância exactamente os mesmos que foram fixados pelo Tribunal a quo, sem qualquer alteração, aqui dando-se por reproduzido o elenco acima transcrito no item 2.1.

            2.2. Interessa-nos agora – e assim entramos na apreciação do segundo fundamento do recurso indicado no item 2. supra – a afirmada integração, por via do mesmo elenco factual emergente do julgamento da primeira instância, do facto impeditivo do direito do comprador a obter a reparação ou substituição da coisa vendida com defeitos, facto impeditivo este contido no trecho final do artigo 914º do CC.

            2.2.1. Preambularmente, por constituir um elemento relevante no quadro consequencial do chamado cumprimento defeituoso[10], importa esclarecer qual o significado da situação contratual da qual resultou a transmissão, pela R. aos AA., da propriedade da moradia aqui em causa.

            Releva para este esclarecimento, enquanto ponto de partida, a afirmação de que existiu, nos termos expressos no item 1. dos factos, um contrato de compra e venda de um prédio em que o vendedor promoveu a construção desse imóvel, através da celebração de contratos de empreitada com os dois chamados que foram admitidos como intervenientes acessórios (a R. funcionou, quanto a estes Intervenientes, nessa circunstância, como dona da obra), embora esta incidência não conduza aqui, no entendimento que temos da situação, à aplicação do regime do contrato de empreitada – e só nos interessa no âmbito desta acção o relacionamento contratual entre a R. e os AA., a primeira como vendedora e os últimos como compradores do imóvel[11] –, através da projecção desse regime, operada pelo nº 4 do artigo 1225º do CC[12].

            Com efeito, situamo-nos aqui fora da razão de ser – fora da cobertura teleológica – que conduziu o legislador, no quadro da edição desse Decreto-Lei nº 267/94, de 25 de Outubro (v. o respectivo artigo 3º), a alterar a redacção dos artigos 916º e 1225º do Código Civil, projectando, com o acrescento a este último do nº 4, a aplicação do regime da empreitada às situações de compra e venda de um imóvel em que o vendedor tenha construído, modificado ou reparado esse mesmo imóvel, como se diz, precisamente, nesse nº 4 do artigo 1225º.

Nestes casos, embora a letra da lei (o nº 4 deste artigo 1225º) possa sugerir uma abrangência de todas as compras e vendas de imóveis cuja construção tenha sido promovida (directamente, construindo ele próprio, ou, indirectamente, construindo através de um empreiteiro) por quem vende, nestes casos, dizíamos, consideramos que se pretendeu tão-só abranger, através dessa extensão ou projecção do regime da empreitada numa situação que, formalmente, expressa uma compra e venda, uma realidade específica – a comercialização de imóveis por quem os construiu, num quadro económico que algumas ordens jurídicas qualificam como “promoção imobiliária”[13] –, realidade essa que é distinta das situações, como a que aqui se configura, em que alguém construiu uma casa – a sua casa (rectius, deu de empreitada essa construção e recebeu a obra, não originariamente destinada a comercialização) – e, posteriormente, por qualquer razão, a vendeu, vindo o comprador a detectar defeitos nesse imóvel. Em situações como esta, entendemos, coincidentemente com o Tribunal de primeira instância, que deve valer o regime geral da compra e venda – da venda de coisas defeituosas (artigos 913º e ss. do CC) –, cujos prazos de denúncia dos defeitos foram, no que toca à venda de imóveis, compatibilizados (precisamente pelo Decreto-Lei nº 267/94) com o regime da empreitada, conferindo-se assim um tratamento fundamentalmente unitário a situações que apresentam relevantes pontos de semelhança, no particular aspecto em que são válidos argumentos de identidade de razão entre a empreitada e a compra e venda. Embora nos pareça intuitiva esta asserção, sublinhamos que esses argumentos de identidade funcionam plenamente, como desde há muito era sublinhado entre nós pela Doutrina[14], quanto à projecção temporal da relevância do surgimento de defeitos, tratasse-se de contrato de empreitada ou de contrato de compra e venda, quando a coisa vendida ou o objecto da obra tivesse as características de um imóvel destinado a longa duração: esta incidência – a projecção, pela natureza da coisa, de uma longa duração – está, hoje em dia (desde o Decreto-Lei nº 267/94), integrada na lógica de funcionamento da empreitada e da compra e venda quanto a prazos de denúncia de defeitos supervenientemente detectados.   

           

Esta situação – a compatibilização dos prazos de denúncia dos defeitos do imóvel na compra e venda e na empreitada operada pelo Decreto-Lei nº 267/94 – é caracterizada por João Calvão da Silva, nos seguintes termos:
“[…]
[Q]uando, na compra e venda, o alienante tenha sido também o construtor do imóvel  (vendedor e construtor), mas inexista e apesar de inexistir empreitada entre ele e o comprador, aos defeitos da coisa transmitida deve aplicar-se o regime do artigo 1225º e não o dos artigos 916º e 917º – tenha-se presente, contudo, que o mesmo Decreto-Lei introduziu o novo nº 3 do artigo 916º, o qual em grande parte harmoniza com a empreitada os prazos no caso da coisa vendida (por alienante não construtor) ser um imóvel: a denúncia será feita até um ano depois de conhecido o defeito e dentro de cinco anos após a entrega do imóvel. Com a diferença de a acção dever ser proposta: dentro dos seis meses subsequentes à denúncia, no artigo 917º; dentro do ano subsequente à denúncia, no artigo 1225º, nº 2 e no artigo 1224º, nº 2 […].   
[…]”[15]

            Note-se que o entendimento que referimos da projecção, operada pelo nº 4 do artigo 1225º do CC, do regime da empreitada ao vendedor que construiu o imóvel destinado a longa duração, através da figura da promoção imobiliária, opera interpretativamente, dada a aparente abrangência desse nº 4 de todas as situações em que quem vende também construiu, com base numa “redução teleológica”[16] desta norma às situações em que se verifiquem os traços que conferem individualidade própria à ideia de promoção imobiliária. Referimo-nos – e seguimos aqui a argumentação constante do Acórdão do STJ de 18/05/2006[17]às situações de venda de imóvel de longa duração feita por um vendedor-construtor, ou seja, por alguém que exerça uma actividade lucrativa de construção e venda de imóveis[18].

            Sendo certo não ser esse o caso da R., desde logo por falta de elementos de facto, como acertadamente se observou na Sentença apelada, devemos recorrer às regras específicas da compra e venda no enquadramento das vicissitudes contratuais respeitantes à transmissão por aquela aos AA. da moradia aqui em causa.

            2.2.2. Assente a aplicação ao caso das regras da compra e venda, e assente que o imóvel vendido veio a apresentar defeitos dentro do período de cinco anos posterior à venda (ou, fosse esse o caso, posterior à entrega da coisa[19]) e que esses defeitos foram atempadamente denunciados à R. (v. o artigo 916º, nº 3 do CC), o mesmo sucedendo com a interposição da presente acção (artigo 917º do CC), assente tudo isto, dizíamos, resta-nos determinar, face aos factos apurados, se podemos dar por integrada, por banda da vendedora ora Apelante, a situação de ignorância sem culpa dos defeitos supervenientemente detectados no imóvel, enquanto obstáculo à pretensão de reparação deste pelo comprador, conforme prevê, in fine, o artigo 914º do CC – “[o] comprador tem o direito de exigir do vendedor a reparação da coisa ou, se for necessário e esta tiver natureza fungível, a substituição dela; mas esta obrigação não existe, se o vendedor desconhecia sem culpa o vício ou a falta de qualidade de que a coisa padece”.

            Constitui fundamento desta obrigação de reparação prevista no trecho inicial do artigo 914º a chamada “[…] garantia edilícia prestada pelo vendedor, no âmbito da qual resulta que ele garante tacitamente a inexistência de defeitos no bem vendido […]”[20], sendo que o aludido complemento restritivo do trecho final da mesma norma implica[21] que “[o] regime da garantia edilícia não assenta […], entre nós, numa responsabilidade objectiva do vendedor, mas apenas numa presunção de culpa relativamente à venda da coisa com defeitos, que pode ser elidida mediante demonstração de que o vendedor se encontrava numa situação de desconhecimento não culposo dos defeitos da coisa” (sublinhado acrescentado)[22].

            Com efeito – e trata-se de um elemento muito importante na abordagem do caso concreto –, emerge do indicado trecho final do artigo 914º do CC, uma alocação do ónus da prova da ausência de culpa no desconhecimento dos defeitos ao próprio vendedor, através da estruturação, contra este (porque estabelecida em favor do comprador), de uma presunção legal (artigos 349º e 350º do CC) de culpa quanto ao conhecimento desses defeitos supervenientemente detectados[23].

            Vale este enquadramento pela alocação do ónus da prova do facto impeditivo, contido no indicado trecho final do artigo 914º, ao vendedor e, consequentemente, pelo emergir de uma “regra de decisão” contrária à versão assumida por este, regra esta actuante na hipótese de um non liquet quanto aos pressupostos desse facto impeditivo afirmado, mas não demonstrado, pelo vendedor[24].

            Ora, no caso vertente – e tanto basta para responder à objecção da Apelante à Sentença recorrida –, não se colhendo no acervo dos factos qualquer informação quanto ao desconhecimento dos defeitos por parte da R., ou seja, emergindo a tal respeito, pura e simplesmente, um non liquet probatório, há que afirmar contra ela (R.) – é este o sentido da regra de decisão decorrente da alocação do ónus da prova emergente do trecho final do artigo 914º do CC – o direito dos compradores a obterem, dela enquanto vendedora, a reparação dos defeitos existentes no imóvel.

            2.3. Tendo sido este o sentido da Sentença recorrida – e assim culminamos o percurso argumentativo empreendido neste Acórdão –, nenhum reparo nos merece o decidido pela primeira instância. Resta-nos, pois, confirmar a decisão apelada, com a consequente improcedência do recurso, deixando aqui, antes, sumariado o presente Acórdão:
I – A extensão do regime da empreitada de imóveis destinados a longa duração, quanto à denúncia de defeitos, ao vendedor que tenha promovido a construção de um imóvel (artigo 1225º, nº 4 do CC), tem na sua base a consideração da figura, muito comum no mercado imobiliário, do vendedor-construtor ou promotor imobiliário (alguém que exerce uma actividade lucrativa de construção e venda de imóveis);
II – Fora desta situação, estando em causa uma simples coincidência circunstancial entre quem construiu e quem vendeu o imóvel, quando a promoção dessa construção não era originariamente destinada à venda, não funciona a razão de ser (a teleologia) que subjaz à extensão do regime da empreitada ao vendedor-construtor, nos termos previstos no artigo 1225º, nº 4 do CC, na redacção neste introduzida pelo Decreto-Lei nº 267/94, de 25 de Outubro;
III – Esta asserção interpretativa colhe-se (justificando uma redução teleológica do âmbito de incidência do artigo 1225º, nº 4 do CC) tendo presente que o citado Diploma (o Decreto-Lei nº 267/94), ao compatibilizar, na redacção também introduzida no artigo 916º, nº 3 do CC, os prazos de denúncia dos defeitos na empreitada e na compra e venda de imóveis, incluiu nesta última, face ao aparecimento de defeitos no bem vendido, a relevância do elemento respeitante às particulares características de um imóvel destinado a longa duração, sempre que seja deste tipo o bem vendido;
IV – A demonstração pelo vendedor da ignorância sem culpa dos defeitos supervenientemente detectados no imóvel vendido, enquanto facto impeditivo do direito do credor a obter a reparação desses defeitos, assenta numa presunção de culpa do vendedor, referida ao conhecimento desses defeitos, decorrente do trecho final do artigo 914º do CC;
V – Nesse quadro, ocorre a alocação do ónus da prova desse desconhecimento sem culpa ao próprio vendedor, com a consequência, enquanto “regra de decisão”, de a ausência de dados sobre esse desconhecimento conduzir à atribuição a este (ao vendedor) da obrigação de reparação dos defeitos.


III – Decisão


            3. Assim, na improcedência do recurso, confirma-se a Sentença apelada.

            Custas pela Apelante.


J. A. Teles Pereira (Relator)
Manuel Capelo
Jacinto Meca


[1] A indicação desta data evidencia que se aplica neste caso o regime processual recursório anterior ao Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto (v. os respectivos artigos 9º, alínea a). 11º, nº 1 e 12º, nº 1). Assim, qualquer disposição do Código de Processo Civil citada no presente Acórdão pressuporá a versão anterior ao DL 303/2007.
[2] Como adiante explicitaremos, foi admitida a fls. 60/64, como intervenção acessória (artigo 330º do Código de Processo Civil), a intervenção de J… e da Sociedade de Construção H…, Lda.
[3] No qual este referiu que os defeitos invocados pelos AA. não respeitariam à parte da edificação adjudicada ao Interveniente (note-se que a outra Interveniente não apresentou articulado algum).
[4] Entende a Apelante que esta circunstância alicerçaria a afirmação do respectivo desconhecimento, sem culpa, da existência dos defeitos posteriormente denunciados pelos AA.
[5] Embora isso seja irrelevante, dado tratar-se de facto não alegado por qualquer das partes e que, como tal, não poderia ser levado à base instrutória (como também não poderia, por falta de alegação, ser confessoriamente admitido), não deixará de se sublinhar que a Apelante nenhum reparo dirigiu à base instrutória, com base nessa suposta omissão.
[6] O que afastaria, desde logo, o uso por este Tribunal da possibilidade de quesitação adicional, com reenvio à primeira instância, ao abrigo do artigo 712º, nº 4 do CPC.
[7] O que nos situa fora da previsão do artigo 663º do CPC.
[8] A pergunta foi indevida – e o Exmo. Juiz a quo até a poderia ter impedido, como o fez noutros casos – porque não se referia a quesito algum. E, além disto, a resposta foi ostensivamente induzida (não resultou de uma afirmação espontânea da testemunha), porque, como constatámos ouvindo a gravação, o Exmo. Mandatário da R. limitou-se a dirigir à testemunha P… uma observação – “não é verdade que eles, 4, 5, 6 meses antes da escritura já estavam na casa…” –, tendo a testemunha assentido à afirmação.
Não tem, pois, qualquer sentido considerar aqui um facto não alegado e só introduzido, algo à “socapa”, diga-se, através de uma testemunha totalmente favorável à pretensão da R. (foi esta testemunha que tratou da venda da casa aos AA.). Aliás, sendo certo que a suposta antecipação do recebimento da moradia pelos AA., mesmo que de seis meses antes de Abril de 2005 se tratasse, não nos colocaria fora de qualquer dos prazos previstos no artigo 916º, nº 3 do CC [os defeitos só se manifestaram em 2007 (item 10 dos factos) e foram logo denunciados nesse ano (item 4 dos factos)], sendo isto certo, dizíamos, não se apresenta o facto ora pretendido introduzir, sequer, como facto relevante para a temática em causa na acção.
[9] “A valoração da prova testemunhal assenta no princípio da livre apreciação (artigo 396º do CC), expressando este a aceitação de uma inevitável margem de ponderação subjectiva do julgador directo, irrepetível num controlo por terceiros, não existindo fundamento prático ou legal, dentro da lógica própria de um acesso mediato aos factos, para que o Tribunal de recurso substitua a «livre apreciação» do julgador directo pela sua (mediata ou indirecta) «livre apreciação»” (Acórdão desta Relação de 25/05/2010, proferido pelo ora relator no processo nº 64/03.5TBTBU.C1, disponível no endereço: http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/fa3a4b35413c08ab8025774900505bc5.
[10] Damos por assente, até porque a Apelante não contesta esse elemento caracterizador da situação, que as incidências desvaliosas elencadas nos itens 10, 11 e 12 do elenco fáctico integram o conceito de defeitos, aqui referido à coisa vendida, correspondendo a desvios, não irrelevantes, relativamente à qualidade socialmente aceite como devida pela coisa vendida, sendo evidente que o surgimento de infiltrações e manchas de humidade numa construção constitui, paradigmaticamente, um defeito desta, ligado a um défice de isolamento, que se prefigura como defeito oculto até ao surgimento dos sinais que o evidenciam (v. a caracterização do que constitui defeito, por Pedro Romano Martinez, in Cumprimento Defeituoso Em Especial na Compra e Venda e na Empreitada, Coimbra, 2001, pp. 163 e ss.).
[11] O que, aliás, torna evidente o acerto do despacho de fls. 60/64, ao corrigir para intervenção acessória o que, erradamente, foi requerido como intervenção principal provocada. É evidente a inexistência de qualquer conexão obrigacional entre os AA. e os chamados e, paralelamente, a existência de um interesse da R., conexo com a situação aqui em causa, expresso numa possível acção de regresso desta contra os chamados (v. artigo 330º do CPC), seus empreiteiros, relativamente à responsabilização da vendedora por defeitos da obra adjudicada a eles, no quadro da extensão aos mesmos, nos termos do artigo 332º, nº 4 do CPC, do caso julgado que nesta acção se venha a formar. 
[12] Interessa-nos aqui a alteração global deste artigo introduzida pelo Decreto-Lei nº 267/94, de 25 de Outubro:

Artigo 1225.º

(Imóveis destinados a longa duração)


1. Sem prejuízo do disposto nos artigos 1219.º e seguintes, se a empreitada tiver por objecto a construção, modificação ou reparação de edifícios ou outros imóveis destinados por sua natureza a longa duração e, no decurso de cinco anos a contar da entrega, ou no decurso do prazo de garantia convencionado, a obra, por vício do solo ou da construção, modificação ou reparação, ou por erros na execução dos trabalhos, ruir total ou parcialmente, ou apresentar defeitos, o empreiteiro é responsável pelo prejuízo causado ao dono da obra ou a terceiro adquirente.

2. A denúncia, em qualquer dos casos, deve ser feita dentro do prazo de um ano e a indemnização deve ser pedida no ano seguinte à denúncia.

3. Os prazos previstos no número anterior são igualmente aplicáveis ao direito à eliminação dos defeitos, previstos no artigo 1221.º.

4. O disposto nos números anteriores é aplicável ao vendedor de imóvel que o tenha construído, modificado ou reparado.

[13] Como observa Pedro Romano Martinez:
“A construção e a transferência da propriedade de edifícios (em especial, andares e moradias) podem estar relacionadas com um contrato de promoção imobiliária.
Considera-se promotor imobiliário aquele que constrói, por conta própria ou mediante contrato de empreitada, o prédio e promove a sua venda, normalmente por andares, antes ou depois da respectiva construção” (Direito das Obrigações, Coimbra, 2000, p. 311).
A especificidade desta situação contratual, não obstante ela se expressar, algo indiferenciadamente, num simples contrato de compra e venda celebrado entre o “promotor” e o adquirente do imóvel, a especificidade desta situação, dizíamos, decorre da combinação na mesma pessoa (o promotor imobiliário), relativamente ao comprador, da qualidade, própria ou alcançada através de terceiro, de construtor com a de vendedor, sendo que, no que tange ao primeiro elemento circunstancial (ser o vendedor o construtor), o modelo da empreitada se apresentar, no caso de defeitos do imóvel, como o mais adequado. A tendência da jurisprudência portuguesa distanciou-se, na não consideração autónoma desta figura da promoção imobiliária, do caminho seguido noutras ordens jurídicas, sendo esta a razão da compatibilização dos prazos de garantia entre a compra e venda e a empreitada, estando em causa imóveis, nos termos decorrentes das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 267/94 aos artigos 916º e 1225º do CC (v. Pedro Romano Martinez, Direito das Obrigações, cit., pp. 311/314; cfr., do mesmo Autor, antes da edição do Decreto-Lei nº 267/94, Cumprimento Defeituoso…, cit., pp. 153/157).
[14] Referimo-nos ao já citado trabalho de Pedro Romano Martinez, Cumprimento Defeituoso Em Especial na Compra e Venda e na Empreitada, que corresponde a uma dissertação de doutoramento apresentada em 1992 (portanto, anteriormente ao Decreto-Lei nº 267/94).
Veja-se a nota explicativa da reedição de 2000 desta obra na seguinte passagem:
“[…]
Poder-se-ia ter aproveitado para proceder igualmente a uma actualização legislativa, jurisprudencial e bibliográfica; não se empreendeu essa tarefa porque tal actualização desvirtuaria a tese de doutoramento apresentada em determinado momento e que deve ser apreciada […] nesse contexto. Acresce que a nível legislativo, a principal alteração corresponde a uma projecção desta tese na vida real: de facto, uma das teses defendidas na presente dissertação respeita à necessidade de equiparação dos regimes do cumprimento defeituoso na compra e venda e na empreitada e essa equiparação, em particular no que respeita aos prazos de caducidade, foi praticamente estabelecida pelo Decreto-Lei nº 267/94, de 25 de Outubro, com as alterações introduzidas nos artigos 913º e 1225º do Código Civil.
[…]” [sublinhado acrescentado].
[15] Compra e Venda de Coisas Defeituosas. Conformidade e Segurança, 5ª ed., Coimbra, 2008, p. 107 [note-se, todavia, que, no caso presente, a opção entre o regime da empreitada e da compra e venda não levaria a resultados diversos, quanto ao accionamento dos vendedores subsequente à denúncia dos defeitos, sendo certo que a presente acção foi proposta (em Novembro de 2007) quatro meses depois da carta contendo essa denúncia, v. o item 4 do factos].
[16] “Qualificámos de lacuna «oculta» o caso em que uma regra legal, contra o seu sentido literal, mas de acordo com a teleologia imanente à lei, precisa de uma restrição que não está contida no texto legal. A integração de uma tal lacuna efectua-se acrescentando a restrição que é requerida em conformidade com o sentido. Visto que com isso a regra contida na lei, concebida demasiado amplamente segundo o seu sentido literal, se reconduz e é reduzida ao âmbito de aplicação que lhe corresponde segundo o fim da regulação ou a conexão do sentido da lei, falamos de uma «redução teleológica»” (Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, 5ª ed., Lisboa, 2009, pp. 555/556).
[17] Proferido no proc. nº 06A940 (Nuno Cameira), disponível na base do ITIJ, directamente, no endereço: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/63908919762f0263802571b1004cf395.
[18] No mesmo sentido, cfr. o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22/10/2009 (Deolinda Varão), proferido no proc. nº 1639/04.0TBGDM.P1, disponível na base do ITIJ, directamente, no endereço: http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/14109794a938b960802576640039cd9.
[19] V. o trecho sublinhado final da nota 9, supra.
[20] Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. III, 3ª ed., Coimbra, 2005, p. 121.
[21] No que há quem considere “[uma] solução questionável […] de iure condendo […]” (Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. III, cit., p. 122).
[22] Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. III, cit., p. 122.
[23] Esta situação é caracterizada por João Calvão da Silva nos seguintes termos:
“[…]
[E]sta obrigação [de reparação pelo vendedor, prevista na 1ª parte do artigo 914º do CC] não existe, se o vendedor desconhecia sem culpa, o vício ou a falta de qualidade de que a coisa padece (artigo 914º, 2ª parte). Esse desconhecimento tem de ser alegado e provado pelo próprio vendedor, visto tratar-se de facto impeditivo do direito contra si invocado pelo comprador (artigo 342º, nº 2) e estar obrigado a prestar a coisa isenta de vícios ou defeitos.
Equivale a dizer, noutra formulação, que o direito à reparação ou substituição da coisa repousa sobre a culpa presumida do vendedor, cabendo a este ilidir tal presunção mediante prova em contrário (artigo 350º, nº 2), isto é, a prova da sua ignorância, sem culpa, do vício ou da falta de qualidade da coisa, como facto impeditivo do direito invocado pelo comprador.
[…]” (Compra e Venda de Coisas Defeituosas, cit., p. 61, sublinhado acrescentado).
[24] “No caso de um non liquet – portanto: de não se ter podido apurar, afinal, o que aconteceu, com referência aos factos em litígio – o juiz ficaria, na falta de outra regra, impedido de proceder quer à aplicação positiva, quer à negativa. Mas a decisão não pode ser omitida. O ónus da prova torna-se, nessa altura, numa norma de decisão do caso. E a decisão cairá contra quem, invocando os factos decisivos, não logre demonstrá-los “ (António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo IV, Coimbra, 2005, p. 466).
Trata-se esta de uma construção ligada à chamada “teoria das normas”, que subjaz aos artigos 342º do CC e 516º do CPC, sendo adequado citar aqui a caracterização que Pedro Ferreira Múrias faz deste conceito de “normas de decisão”:
“[…] as normas do ónus da prova, em cuja facti species se encontra a incerteza processual sobre um elemento que preenchesse a previsão da norma material […, são] normas de decisão […], são «quanto à questão da [sua] eficácia», apenas um meio auxiliar da decisão de mérito que autoriza o juiz a decidir como se tivesse obtido um resultado positivo ou negativo quanto à verificação de certo facto, i. e., através da ficção […]” ( Por Uma Distribuição Fundamentada do Ónus da Prova, Lisboa, 2000, pp. 62/63).