Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
718/11.2PBFIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: RESERVA DA VIDA PRIVADA
PERTURBAÇÃO
VIDA PRIVADA
SMS
MENSAGENS ESCRITAS
Data do Acordão: 06/18/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 1.º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA FIGUEIRA DA FOZ
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: ALTERADA
Legislação Nacional: ARTIGO 190º Nº 2 CP
Sumário: 1.- Com introdução do n.º 2 do art.190.º do Código Penal, através da Reforma de 1995 - « Na mesma pena incorre quem, com intenção de perturbar a vida privada, a paz e o sossego de outra pessoa, telefonar para a sua habitação.» - e, posteriormente, com acrescentamento ao mesmo da expressão « ou para o seu telemóvel» através da Reforma de 2007, o legislador quis abranger todas as formas possíveis de comunicação tecnicamente permitidas através de telefone, sejam fixos ou móveis, incluindo a palavra escrita para os telefones móveis, que com a sua receção emitem um som de aviso.

2.- Uma vez que “telefonar” significa comunicar pelo telefone e que resulta dos factos dados como provados que o arguido, a partir do seu telemóvel enviou para o telemóvel do ofendido, as mensagens cujo teor consta da mesma factualidade, e que ao assim atuar quis e conseguiu perturbar a vida privada, a paz e o sossego do ofendido, conhecendo e querendo a realização daqueles factos antijurídicos e agindo com consciência da ilicitude, preencheu com a sua conduta todos os elementos constitutivos dos crimes de perturbação da vida .

Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, na 4.ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra.

       Relatório

            Pelo 1.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca da Figueira da Foz, sob acusação do Ministério Público, foi submetido a julgamento em processo comum, com intervenção de tribunal colectivo, o arguido

            A... , divorciado, encadernador, nascido a 12.04.1950, natural da freguesia de (...), concelho de Coimbra, filho de (...) e de (...), residente na Rua (...), Figueira da Foz, imputando-lhe a prática dos factos descritos na acusação de fls. 175 e ss., que se dá aqui por reproduzida, os quais consubstanciariam a prática pelo arguido em autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo de:

- um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, al. b) do Código Penal;

- um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal,

- dois crimes de perturbação da vida privada, p. e p. pelo artigo 190.º, n.ºs 1 e 2;

- um crime de perturbação da via privada qualificado p. e p. pelo artigo 190.º, n.ºs 1, 2 e 3 do citado diploma legal, e

- um crime de detenção de arma (munições) proibida, p. e p. pelo disposto no artigo 86.º, n.º 1, alínea d) da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro.

Realizada a audiência, o Tribunal Colectivo, por acórdão proferido a 20 de Dezembro de 2013, decidiu julgar parcialmente provada e procedente a douta acusação e, consequentemente:

- Condenar o arguido A..., pela prática em autoria material de um crime de ameaça agravado, previsto e punido pelos arts. 153º, nº 1 e 155º, nº 1, a), do Código Penal, na pena de cinco (5) meses de prisão;

- Suspender a execução desta pena de prisão pelo prazo de um (1) ano; e

- Absolver o arguido dos demais crimes por que vem acusado nos presentes autos.

           Inconformado com a douta sentença dela interpôs recurso o Ministério Público, concluindo a sua motivação do modo seguinte:

1.O acórdão dos autos absolveu o arguido dos dois crimes de perturbação da vida privada p. e p. pelo art.190.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal e do crime de perturbação da vida privada qualificado p. e p. pelos arts. 190.º, n.ºs 1, 2 e 3, do Código Penal, por entender que no tipo legal de crime não se incluem as mensagens escritas (cf. S.M.S.).

2. Acontece que as mensagens escritas devem ser incluídas no conceito de telefonar.

3. O art.190.º, n.º 2, do Código Penal, ao criminalizar a perturbação da paz e do sossego traduzida no ato de, com essa específica intenção, telefonar para a habitação ou para o telemóvel de outra pessoa, quis abranger todas as formas possíveis de comunicação tecnicamente permitidas através de tais aparelhos, incluindo a palavra escrita para os telefones móveis, que com a sua receção emitem um som de aviso.

4. O acórdão sob recurso violou assim, por errada interpretação, o disposto no art.190.º, n.º 2, do Código Penal.

5. O acórdão recorrido absolveu o arguido do crime de violência doméstica que lhe era imputado, p. e p. pelo art.152.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, por ter entendido que a relação entre arguido e vítima não chegou a ser uma relação análoga à dos cônjuges.

6. Acontece que se provou que a vítima foi amante do arguido, tendo essa relação perdurado por cerca de três anos, até abril de 2011, que o filho da vítima sabia e consentia nessa relação, que a vítima cozinhava em casa para o marido, de 91 anos, reformado e para o filho de ambos e, durante a noite, ia dormir com o arguido, a maior parte dos dias da semana, levando o jantar para ambos, saindo de manhã de casa do arguido, que os jantares que a vítima levava eram essenciais para o arguido, pois não tinha capacidade económica para fazer face a todas as despesas, ganhando apenas 278 euros, e que andavam juntos socialmente e com frequência, parecendo «um casal feliz», segundo a testemunha P....

7. O conceito de união de facto, mencionado no acórdão dos autos, não foi consagrado no art.152.º do Código Penal, mas sim o de relação análoga à dos cônjuges, entre pessoas de sexo diferente ou do mesmo sexo, mesmo sem coabitação.

8. A conduta do arguido, perpetuada no tempo, pela sua gravidade e reiteração, pôs em causa a dignidade da ofendida, afetou o seu bem-estar e saúde física e psíquica, com quem manteve uma relação afetiva durante tantos anos, não existindo qualquer motivo para excluir a vítima do direito à dignidade humana.

9. A relação semelhante à dos cônjuges encontra-se no facto de ter tido estabilidade duradoura, publicidade, dependência económica (cf. jantares), comunhão de cama e mesa, partilha de actividades sociais, ligação afetiva e de domínio do arguido sobre a vítima, razão pela qual as condutas provadas devem ser qualificadas como crime de violência doméstica.

10. Aliás, o acórdão recorrido qualifica a vítima como "ex-amante" do arguido.

11. O acórdão sob recurso violou assim, por errada interpretação, o disposto no art.152.º [por lapso manifesto menciona-se o art.150.º], n.º 1, al. b), do Código Penal, na redação da Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro.

12. Termos em que deve o acórdão ser alterado, condenando-se o arguido pelos crimes mencionados, pois que assim se fará a tão costumada Justiça.

            O Ex.mo Procurador-geral adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer  no sentido de que o recurso deverá proceder e, consequentemente, ser o arguido condenado pelos crimes de que foi absolvido.

            Foi dado cumprimento ao disposto no art.417.º, n.º 2 do C.P.P..

            Colhidos os vistos, cumpre decidir.

     Fundamentação

            A matéria de facto apurada e respectiva motivação constantes do acórdão recorrido é  a seguinte:

Factos provados:

C... e o arguido viveram uma relação de amantismo durante cerca de três anos, até Abril de 2011.

B... é filho de C....

C... e D... são conhecidos um do outro.

Em data e hora não concretamente apuradas, entre Abril de 2011 e 12 de Julho de 2011, na Figueira da Foz, o arguido dirigiu-se a B..., sabendo da relação familiar que este mantinha com a sua mãe e da relação de proximidade que o mesmo mantinha com D... e disse-lhe que, se encontrasse a sua mãe C... e D..., os matava.

Após o que, B..., com receio do que pudesse acontecer, avisou sua mãe das palavras proferidas pelo arguido contra esta.

No dia 12 de Julho de 2011, em hora não concretamente apurada, C... recebeu, em sua casa, sita na (...), na Figueira da Foz, a carta remetida pelo arguido, junta a fls. 12 dos autos apensos n.º 28/11.5PEFIG, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

Nessa missiva o arguido escreveu, além do mais, o seguinte:

“(…) mudaste de número de telefone, mas eu já o tenho, eu só não consigo ter aquilo que não quero. Nunca pensei que me enganasses desta maneira (…) mas como tu foste sempre uma mulher sem vergonha e até perdeste a tu dignidade, eu estou-te a escrever e até me estou a arrepiar todo, isto vai ter um fim, já andas a penar mas como Deus é divino ainda haverás de penar mais. Sabes quem sou? A... vai esta e a seguir se não tiver resposta vou aí. Adeus”.    

Com as afirmações que o arguido fez a C..., com a mensagem constante da carta que lhe remeteu, o arguido quis intimidar a ofendida e visou molestá-la psicologicamente, temendo esta pelo que lhe poderia acontecer, ficando, por isso, psicologicamente afectada pelos actos de que foi vítima.

Com as condutas descritas, o arguido causou a C... nervosismo, desgosto e medo.

Agiu sempre o arguido de forma livre, voluntária e deliberadamente, com plena consciência de que não lhe era permitido atingir, de forma como fez, a integridade psíquica de C..., fragilizando-a enquanto mulher e sua ex-amante.

Ao dizer a B... que matava C... e D..., quis o arguido criar no espírito destes a ideia que a conduta prometida se viria a concretizar, pretendendo causar naqueles um fundado receio de que um mal futuro sucederia, nomeadamente à vida destes, tendo agido com intenção de os amedrontar, de os perturbar no seu sentimento de segurança e na sua liberdade de determinação, mas não o conseguindo relativamente ao dito ofendido.

No dia 15 de Agosto de 2011, às 12h55m04s, o arguido, a partir do seu telemóvel com o n.º 96 (...) enviou para o telemóvel de D..., com o n.º 91 (...), uma mensagem com o seguinte teor:

“ D... tem esta mensagem o fim de te dizer o seguinte com respeito a tua queixa na polícia não quero que tu a tires porque siumes tens tu da mulher dos outros mas isso essunto para a ocasiao agora como tu me trataste como um canalha vais ter a resposta e então voute porna merda vais ficar sem emprego o teu escritório vai ser fechado e porque a corrupeçao activa epassiva sou eu mais os meus amigos os quais nao gostam de ti nem um bocado tenho comigo muitas provas e momes para acabar contigo quer na foztrafego quer no teu escritorio e assim que se lida com chivos traidores e corrupetos meteste te com o diabo aqui tens a resposta de um homem com os cmhoes no sítio”.

No dia 19 de Agosto de 2011, às 12h08m19s, o arguido, a partir do seu telemóvel com o n.º 96 (...) enviou para o telemóvel de D..., com o n.º 91 (...) uma mensagem com o seguinte teor:

“ D... mexeste com a minha honra e a minha dignidade isto tem um preco na minha lei preparate porque a minha mao jamais tdd escaparas”.

No dia 01 de Janeiro de 2012, às 02h36m01s, o arguido, a partir do seu telemóvel com o n.º 96 (...) enviou para o telemóvel de D..., com o n.º 91 (...) uma mensagem com o seguinte teor:

“Olha pahàco passasteum mptimo natal tum ano novo andaste a comer 6s meus restos (…) te juro pelos meus mortos terasa hora certa o local certo estas aqui a mais es um chivo e os chivos teem o lugar certo de trabalhos amaricanos eq um leigo ag6ra como nao vales tuma merda vai com isto ao ministerio publico porque de ti tenho um medo do caraho olha meu merda daz uma de altivo mas nada vales tdnh6 tento medo que como eu sei que vais du ate assino A... para ti que es unpato tenho que vais esperar por mim no inferno mais uma vez como nao tenho medo de chivos como tu assino A...”.

Com as descritas condutas, o arguido quis e conseguiu perturbar a vida privada, a paz e o sossego de D....

No dia 13 de Setembro de 2011, pelas 15:00 horas, foi realizada busca à residência do arguido, sita na Rua (...), na Figueira da Foz, no âmbito da qual foram apreendidas dez munições de arma de alarme, calibre 6 mm, de marca HILTI, em bom estado de conservação, possuindo todos os componentes para poderem ser disparadas em armas de fogo de classe G.

Tais munições pertenciam ao arguido que as guardava no armário que se encontrava no corredor, na citada residência, onde morava.

O arguido não é detentor de licença de uso e porte de arma ou de outra licença que lhe permita deter no domicílio tais munições.

Bem sabia o arguido que as munições com as características supra referidas eram susceptíveis de serem utilizadas em arma letal de agressão e que a sua detenção e guarda nos termos referidos não era permitida por lei, e mesmo assim não se inibiu de as deter e guardar, o que quis e conseguiu.

O arguido actuou livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei.

O arguido A... integrou até aos 9 anos de idade, o sistema familiar de origem, do qual faziam parte os progenitores e os 5 irmãos, um deles mais velho. Residiam em Coimbra, trabalhando o pai como pedreiro e a mãe como funcionária pública.

A instabilidade relacional que se vivia no agregado, tendo presente hábitos alcoólicos por parte de progenitor que o levavam a assumir comportamentos agressivos, levou a que o arguido fosse institucionalizado em Coimbra, no antigo COAS (Centro de Observação e Acção Social) e o processo educativo dos irmãos passou também a ser assegurado por familiares e instituições.

Mais tarde transitou para a Escola Profissional de (...), onde permaneceu cerca de 6 anos e meio. Aqui concluiu o 6º ano de escolaridade e recebeu formação profissional na área da encadernação.

Quando saiu da Instituição foi de novo residir para Coimbra, exercendo a actividade profissional de encadernador numa gráfica. Iniciou, entretanto, uma relação de namoro com N..., com quem casou aos 19 anos de idade, na sequência de uma gravidez não planeada. Tiveram 2 filhos e passados cerca de 10 anos de vida em comum, divorciaram-se e o relacionamento entre o arguido e os filhos passou a ser de fraca vinculação afectiva e afastamento.

Mais tarde conheceu E..., com quem viveu em união de facto cerca de 20 anos, tendo nascido um filho dessa relação.

O arguido enquadrava-se numa estrutura familiar coesa e o agregado beneficiava de uma vida estável, já que A... trabalhava como encadernador, por conta própria, para empresas, escolas e tribunais, tendo uma boa carteira profissional.

Em 1998 foi preso preventivamente e depois, por acórdão de 17/2/1999, transitado em julgado, foi condenado em cúmulo jurídico a 10 anos e 2 meses de prisão, sendo as penas parcelares de 10 anos de prisão pela prática do crime de homicídio simples, previsto e punido pelo artº 131º do Código Penal e de 5 meses de prisão devido à prática pelo arguido, em concurso real com o outro delito, de um crime de detenção de arma ilegal, previsto e punido pelo artº 6º da Lei nº 22/97, de 27/6.

O crime de homicídio foi interpretado como um acto de desforço, para defesa da sua honra, por o arguido, que tinha consumido bebidas alcoólicas, se sentir perturbado na sequência de desconfianças da manutenção de um caso amoroso entre a companheira e a vítima.

Ao longo do cumprimento da pena manteve bom comportamento, tendo sido libertado provisoriamente em Junho de 2005 e manteve-se em acompanhamento na Equipa de Reinserção Social até 8 de Novembro de 2008, data em que lhe foi concedida a liberdade definitiva, por decisão de 19/1/2009, com efeito retroactivo àquela data de término da pena.

Quando foi libertado, A... integrou o sistema familiar de origem, constituído pela companheira e pelo filho. Durante o período de reclusão veio o arguido a desenvolver patologia cardíaca grave, que não lhe permitiu retomar a actividade profissional de encadernador por conta própria, situação que introduziu algum desequilíbrio no seio da família e defraudou as expectativas criadas com a sua libertação.

A... veio assim a confrontar-se com dificuldades na sua organização familiar e no confronto com uma realidade e mudanças sociais para as quais não estava preparado.

No decurso de 2006 os problemas relacionais intensificaram-se e o casal separou-se, ficando o arguido a residir sozinho e dependente do Rendimento Social de Inserção.

Mais tarde estabeleceu uma relação C..., mas que ao longo do tempo se foi deteriorando.

O arguido refere que entrou num processo depressivo, com o agravamento da situação de saúde da progenitora, que veio a falecer há cerca de 14 meses e reconhece que a sua desorganização emocional teve repercussões negativas na relação.

Depois da separação, o arguido refere que C... procurou apoio junto de um seu amigo, D..., facto que este lhe ocultou, o que veio a desencadear junto do arguido sentimentos de alguma revolta e de vingança, considerando que aquele terá traído a sua confiança.

Actualmente o arguido vive sozinho, tendo como fonte de rendimento a pensão de reforma por invalidez no valor de €278. A despesa com a renda da casa, que é antiga, é mensalmente de 20 euros, pagando 27 a 30 euros de consumo de água e 23 a 24 euros de consumo de energia eléctrica, por mês, surgindo as despesas mais elevadas associadas aos gastos com a medicação.

Bastante fragilizado em termos de saúde, A... refere estar a maior parte do tempo em casa e as suas rotinas passam por ir à farmácia controlar a tensão arterial e pelo convívio com os amigos. A nível social a imagem do arguido é positiva.

Relativamente ao presente processo assume uma atitude conformista e reconhece que foi irreflectido nos comportamentos que assumiu, não tendo ponderado devidamente as consequências.

Reconheceu perante a técnica que elaborou o relatório social a desvantagem de uma acção/resposta desproporcionada e da necessidade de contenção de ressentimentos gerados com as percepções que faz da realidade.

Tenta justificar esses comportamentos com a fase depressiva que vivenciava, na sequência da doença da progenitora.

A... apresenta-se actualmente como um indivíduo fisicamente debilitado e com grandes fragilidades ao nível da saúde, não podendo conduzir automóveis devido ao seu problema das coronárias, razão por que toma o medicamento «Barfin».

Ao longo do tempo em liberdade tem traduzido as consequências de uma reclusão prolongada e parece atravessar um período de vida complexo e desprovido de motivações, encontrando-se vulnerável e com pensamentos de conteúdo depressivo.

Tem uma boa rede de amigos, estabelece com facilidade relações de amizade e não se registam problemas ao nível social, encontrando-se bem integrado.

Tem cinco filhos, mantendo contacto com todos eles, sobretudo por via telefónica, os quais vêm visitá-lo esporadicamente.

            Factos não provados:

C... e o arguido viveram em comunhão de leito, mesa e habitação, como se de marido e mulher se tratassem, durante cerca 4 anos, até data não concretamente apurada antes de Abril de 2011.

Após o fim de tal relação, em datas e horas não concretamente apuradas entre o início do mês de Abril de 2011 e 01 de Agosto de 2011, que o arguido contacta, por diversas vezes, C... dizendo-lhe que se não voltar para ele a mata.

C... e D... são amigos.

Entre os dias 01 de Abril de 2011 e 01 de Agosto de 2011, na Figueira da Foz, o arguido dirigiu-se a B... sabendo da relação familiar e de amizade que mantinha com D....

Após o que, B..., com receio do que pudesse acontecer, avisou D... das palavras proferidas pelo arguido contra este.

            Com a mensagem constante da carta que o arguido remeteu a C..., anunciou-lhe a intenção de a matar e de fazê-la temer pela sua saúde, integridade física e vida.    

As ameaças e humilhações de que foi vítima C... fizeram com que a mesma vivesse diariamente humilhada e aterrorizada, sofrendo por si.

Com as condutas descritas o arguido causou a C... sofrimento ao nível físico pela humilhação e constrangimento a que o mesmo a sujeitou ao tratá-la da forma supra relatada, tendo-lhe causado instabilidade emocional, que se reflectiu na sua vida do dia-a-dia.

Agiu sempre o arguido com plena consciência de que não lhe era permitido atingir, de forma como fez, a saúde de C..., submetendo-a a situações de violência psíquica, humilhando-a e fragilizando-a, enquanto sua ex-companheira.

            O arguido pretendendo causar naqueles, C... e D..., um fundado receio de que um mal futuro sucederia, nomeadamente à integridade física destes.

As munições eram de arma de fogo.

            Convicção

O Tribunal Colectivo estribou a sua convicção no conjunto da prova produzida, com relevo, desde logo para as declarações do arguido, dizendo que em 18/6/2008 começou a relação com a ofendida C..., sendo ela ainda casada, a qual terminou, segundo crê, em 5/4/2011. A ofendida confirmou ter mantido a relação com ele durante quase 3 anos (não se provando durasse cerca de 4 anos).

O arguido disse que ela partilhava umas horas consigo durante a noite, mas era casada, ainda tem marido - não era sua companheira.

Ela afirmou que gostava muito dele, tinha amor por ele e sofreu pelas ameaças e defeitos que ele lhe pôs.

Segundo o arguido, na altura da relação com a C... tinha outra namorada, com quem agora continua a relacionar-se e a ofendida confirmou que ele tinha uma senhora, sabia que de vez em quando ele ia ter com ela. Que até foi bom, para ele, ter quem o amparasse.

Cozinhava em sua casa para marido, de 91 anos, reformado e para o filho de ambos e, durante a noite, ia dormir com o arguido e levava-lhe o jantar, saindo de manhã.

O arguido disse ser ela casada com um pintor, ao tempo, com o qual tinha residência na (...). Além das refeições, tratava da roupa do marido.

A ofendida disse que presta apoio domiciliário ao marido, pois está desempregada há 2 meses. O marido diz que se ela tiver alguém, não se importa. É pintor, foi seu professor de belas artes.

O arguido demonstrou gabarolice ao afirmar que era ele que dava dinheiro para a comida que ela às vezes trazia e que sustentava a sua casa e a dela, pois disse a seguir que tinha uma pensão de reforma, que actualmente é apenas de 278 euros, tem um problema nas coronárias, gasta metade da pensão com medicamentos e nem sequer pode conduzir - quanto mais trabalhar, para poder sustentar tantas despesas!

É uma afirmação oca, provinda de quem sempre mostrou não conseguir controlar razoavelmente situações de frustração, assumindo por isso comportamentos criminosos, como ocorreu com o homicídio por que foi condenado e agora com as frases que comunicou ao filho da ofendida, para intimidar esta e o ofendido D..., mas apenas quanto à ofendida se mostrou ter sido comunicada a mensagem verbal ameaçadora de morte, não quanto ao ofendido, que não tal referiu ao ser ouvido, nem o mesmo foi confirmado quanto a ele pelo filho da C....

Tudo visto, não se provou uma relação de comunhão de leito, mesa e habitação, como se de marido e mulher se tratassem, o arguido e a ofendida.

Dormindo algumas vezes por semana com o arguido, a quem então levava o jantar, é pouco para considerar a existência de uma união de facto. Não se provou fizessem compras juntos, que a ofendida tratasse das outras refeições, da roupa e da limpeza da casa do arguido, que ali tivesse residência (embora a coabitação não seja exigida pelo tipo legal de violência doméstica), contas bancárias conjuntas, filhos comuns ou outras circunstâncias que adicionadas às que se provaram, demonstrassem que viviam como se de marido e mulher se tratassem.

Apenas a testemunha P..., divorciado, feirante, amigo há 30 anos do arguido, disse que era uma boa relação, constante, via-os sempre juntos, conviveu muitas vezes com eles e pareciam um casal feliz.

Mas ao classificar o caso, referiu que tiveram um «namoro» durante 4 ou 5 anos e conheceu a C... casada na altura, a qual vivia em casa do marido e o A... ia lá buscá-la muitas vezes. Ou seja, estavam juntos alguns dias, não todos e não viviam na mesma casa, tendo vidas independentes, mas mantinham uma relação íntima, partilhando algumas refeições.

No que respeita às frases ameaçadoras, nem a ofendida disse que pelo telefone, pessoalmente ou por outro meio, por diversas vezes, o arguido a tenha ameaçado de morte e sim que ouviu a ameaça de morte da boca do filho, que transmitiu à mãe o que o arguido lhe dissera.

Quanto à carta, o arguido explicou que «penar mais é porque Deus é divino», mas conjugando o texto da carta com a mensagem ameaçadora transmitida pelo filho e vistas as consequências para a ofendida que a mesma relatou em julgamento, conclui-se que ficou intimidada, temendo pelo que lhe pudesse suceder, ficando com nervosismo, desgosto e medo, mas não humilhada e constrangida a ponto de não fazer a sua vida normal.

O filho dela até referiu que o arguido lhe pediu depois que dissesse à mãe que queria falar com ela; o arguido encontrara-se com ela e C... não queria falar mais com ele, o que demonstra a vontade de o arguido reatar a relação amorosa com a ofendida, sem que o caso tivesse os contornos conclusivos ditos na douta acusação.

O arguido disse que, antes e depois da carta, se encontravam em cafés ele, ela e filho da ofendida, normalmente (mas normalmente não seria, pelo que disseram a ofendida e o filho; de todo o modo, daí a considerar – o que não se provou - que ficasse aterrorizada e com a vida constrangida, vai uma grande distância).

Aceita-se que a ofendida temesse a ameaça de morte transmitida por interposta pessoa, pois sabia que o arguido tinha sido condenado por homicídio numa situação de ciúme algo semelhante a esta. Mas não mais que o dado como provado.

Mostrou arrependimento perante a técnica que elaborou o relatório social, mas não o demonstrou em julgamento.

Reconheceu perante a mesma técnica que o argumento da situação de saúde da progenitora não deve servir como desculpabilizante das suas atitudes, porém, não reconheceu tal em julgamento.

Disse que a mãe estava em estado terminal, ele perdeu 14 kg, não andava bem psicologicamente, com uma depressão, tendo enviado mensagens de revolta a D... por ele ser seu amigo há 37/38 anos e estar a meter-se em assunto que não era dele.

Contraditoriamente, ao comentar o relatório social, disse que o seu sentimento de revolta é pelo que fez há anos e o levou à prisão. Vingança quanto ao D..., não disse, disse-se arrependido à técnica.

Ora, acredita-se no relatório e não na versão posterior e contraditória do arguido.

Sofreu um problema grave de saúde na cadeia; reformado com €278/mês, metade é para medicação, «Barfin», etc.

Gasta 20 euros de renda, 27/28/30 euros de água e de luz 23/24 euros.

Não pode conduzir pelo problema das coronárias.

Tem 5 filhos, mantém contacto com todos eles, mais por telefone; vêm vê-lo volta e meia.

C..., casada, prestando apoio familiar por conta própria, reside em Buarcos. Sempre tratou de tudo em casa para marido e filho, por respeito.

Disse que teve uma relação com o arguido durante quase 3 anos. Acabaram-na em Abril de 2011, mas ele procurou-a e falaram, admitindo serem contactos para reatamento da relação (daí não haver constrangimento com a ameaça).

Que a relação com o D... era só de amizade, mas este disse serem só conhecidos um do outro e foi o que se deu como provado.

Pediu socorro ao D... e à F..., trabalhava uma vez por semana em casa deles.

Só uma vez andou de carro com o D...; que saiba, ele nunca provocou o arguido.

Disse ao filho que a matava e ao D... que andavam juntos - e era mentira.

Conhecendo-o, acredita no que ele disse (ao filho).

Pelo telefone, até o partiu, nem aguentava mais chamadas, ele sempre a ligar, continuou o ano todo, no Verão, Ano Novo e ainda alguns meses do ano seguinte.

Ultimamente não a tem incomodado.

B..., solteiro, operário desempregado, residente em Buarcos, filho da ofendida, disse que a relação era boa de início, durou 3 anos, a mãe dormia em casa do arguido e levava-lhe comida, sendo casada com o pai dele. O pai nunca soube, ela dizia estar a trabalhar à noite.

Depois o arguido começou a dizer que o D... tinha uma relação com ela e se os apanhasse dentro do carro, matava os dois.

De início a testemunha tinha uma boa relação com ele, não pensou ele viesse a agir assim.

O arguido pediu-lhe que dissesse à mãe que queria falar com ela, encontraram-se e ela disse não queria falar mais com ele (portanto, nem a ofendida ficou aterrorizada, embora chegasse a dizer em julgamento que ficou psicologicamente aterrorizada, nem modificou o seu estilo de vida; há grande diferença entre medo e terror).

G..., casado, reformado, portuário, amigo do D... há anos, ajudou-o em tempos de crise e disse-lhe do problema, se o podia ir buscar aqui ou ali, foi contando a história, que este senhor o perseguia e ameaçava. Viu uma mensagem no telemóvel.

F..., solteira, TOC, residente em Guimarães, filha de D..., referiu ter ficado atemorizada a certa altura por ameaça ao pai. Este demasiado nervoso e magro (o que o mesmo não confirmou).

Há anos um irmão viu concretizadas ameaças dessas e ela agora ficou em pânico.

O pai sempre disse que não teve relação com a ofendida.

Pensa que o pai agora está sem receio; teve na altura, há cerca de dois anos e meio.

Para a proteger, sempre minimizou a situação.

O nome do arguido, ela sabia, porque estava nas mensagens, que falavam de vingança, eram nitidamente de ameaça; o arguido dizia-se atingido na sua honra (as frases, contudo, são demasiado genéricas para constituir ameaça, pelo que se constata nos autos).

O pai tinha companheira, depois separou-se, após viverem vários anos, pensa estarem separados há pouco tempo nessa altura.

I..., casado, trabalhador de artes gráficas, amigo do arguido, disse que, quando ele saiu da prisão, pediu-lhe para assinar papéis para adquirir um telemóvel, o que aceitou porque tinham trabalhado juntos.

Quando chamado à polícia, soube das chamadas – o titular do cartão era a testemunha.

J..., Chefe da PSP, participou nas buscas a casa do arguido, encontrando ali 10 munições, calibre 6 mm, de alarme.

O..., divorciado, tripulante de ambulância, amigo do arguido há 10 anos, abonou o seu comportamento.

Nunca assistiu a situações em que estivesse mais nervoso, a assustar alguém. Não o vê como pessoa agressiva, pelo que conhece dele, após o episódio (criminal).

Tem alguns problemas de saúde.

L..., casado, pedreiro, amigo do arguido à volta de 30 anos, disse que uma noite por outra ficava em casa do A... e era mais tida como namorada do A..., que agora tem uma relação, que já era muito antiga.

Que havia alturas em que ele se ausentava e estava com a outra namorada.

Chegaram a tomar café juntos e ele completamente à vontade. O arguido falava algumas vezes, mas nunca que matava.

Esta testemunha é conhecida do tribunal por ter sido condenada por lenocínio, não merecendo credibilidade.

M..., casado, empresário comércio de café, nesta cidade, disse que o arguido é cliente do seu café há muitos anos. Sabe que ele esteve preso, mas que tem andado muito doente. Não é o mesmo, muito sozinho, debilitado, não «desenvolve» como antes; muito sossegado, não frequenta pessoas que antes frequentava, lê o jornal, vê os amigos.

Completamente diferente, não faz balbúrdias como antigamente e vive com muitas dificuldades.

H..., casada, doméstica, desempregada, era escriturária, vizinha e amiga do arguido conhece-o há 20 anos, antes de preso.

O marido teve um café durante 2 anos e nunca teve qualquer problema com ele.

Achava o arguido e a ofendida como um casal feliz, de namorados, assim lhe foi apresentada. Ficou surpreendida ao saber que era casada.

Ultimamente tem-o achado muito doente, «em baixo», ficou preocupada com ele.

D..., divorciado, TOC, nesta cidade, disse que a ofendida passava a roupa a ferro e relacionava-se mais com a sua ex-companheira.

Nunca teve um relacionamento íntimo com ela.

Tem formação militar, capacidade de resistência, não se sente fisicamente muito afectado por isto, mas durante cerca de um ano foi perseguido pelo arguido, desejando não se encontrar com ele e se se cruzarem na rua, que cada um siga por um passeio e o outro pelo passeio contrário.

Achou não estar na razoabilidade dele, era pessoa bastante material.

Sempre lhe disse não era verdade a relação com a senhora, mas ele não acreditava.

A sua queixa por ameaça de morte foi arquivada.

Verifica-se, por este depoimento, que as mensagens foram enviadas a D... por ciúme do arguido, porventura infundado. Quanto à ameaça verbal de morte que envolvia a ofendida e D..., nem a testemunha mostrou tê-la conhecido, nem o filho da ofendida disse ter-lha comunicado.

Tivemos ainda em consideração os seguintes documentos:                             

- Auto de busca e apreensão das munições de fls. 48, referido pela testemunha J...;

- Fotogramas de fls. 21 a 22 e 78 a 80 (mensagens do arguido para D...), 49 e 51 (munições);

- Auto de exame das munições a fls. 50;

- Termo de autorização pelo arguido para a busca, de fls. 52;

- Informação da TMN de fls. 112, que se liga ao depoimento de I...;

- Informação da PSP de fls. 145 de que o arguido não tem licença de uso e porte de arma.

*
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            O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. ( Cfr. entre outros , os acórdãos do STJ de 19-6-96 [1] e de 24-3-1999 [2] e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques , in Recursos em Processo Penal , 6.ª edição, 2007, pág. 103).
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar [3], sem prejuízo das de conhecimento oficioso .

No caso dos autos, face às conclusões da motivação do recorrente Ministério Público as  questões a decidir são as seguintes:

- se o acórdão recorrido ao absolver o arguido da prática de dois crimes de perturbação da vida privada, p. e p. pelo artigo 190.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal e da prática de um crime de perturbação da via privada qualificado, p. e p. pelo artigo 190.º, n.ºs 1, 2 e 3, do mesmo Código, violou, por errada interpretação, o disposto no art.190.º, n.º 2 do Código Penal, devendo o mesmo arguido ser condenado pela prática destes crimes; e

- se o acórdão sob recurso violou ainda,  por errada interpretação, o disposto no art.152.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, na redacção da Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, devendo o arguido ter sido condenado pela prática de um crime de violência doméstica.


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            Passemos ao conhecimento da primeira questão.

O douto acórdão recorrido absolveu o arguido A... da prática de dois crimes de perturbação da vida privada, p. e p. pelo art.190.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal e de um crime de perturbação da via privada qualificado p. e p. pelo artigo 190.º, n.ºs 1, 2 e 3 do mesmo Código, essencialmente com os seguintes fundamentos:

O nº 2 do artº 190º do Código Penal prevê a punição da perturbação da vida privada, da paz e do sossego de outra pessoa, relativamente a quem «telefonar» para a habitação ou para o telemóvel da pessoa ofendida, não relativamente àquele que, mediante o uso de telemóvel, enviar mensagens escritas para o telemóvel da pessoa visada.

Se o legislador, quando pela Lei nº 59/2007, de 4/9, deu guarida a este tipo legal no art.190.º, n.º 2, do Código Penal, previu apenas o acto de «telefonar», numa época em que, há muito, eram comuns as mensagens escritas através de «SMS», não teria deixado de acrescentar ao tipo legal «ou enviar mensagens para o seu telemóvel». No sentido proposto, já o Prof. Costa Andrade escrevia no Coment. Conimb. ao Cód. Penal, 1999, I, 702, em anotação ao artº 190º, nº 2, que este só incriminava o acto de telefonar e não o envio de mensagens.

O envio de mensagens por carta, bilhete ou através de outro suporte físico, tem virtualidade idêntica às mensagens enviadas por «SMS» para perturbar a pessoa que as receba. Não estando prevista penalmente a punição dessas condutas se a mensagem for transmitida por suporte físico, para o qual a pessoa visada pode ou não olhar, não há razão para punir semelhante comportamento mediante envio de mensagens por telemóvel, que o destinatário pode ou não «abrir» para a sua leitura.

No caso concreto, os actos praticados pelo arguido A... consistiram no envio de mensagens ofensivas de “SMS” por telemóvel, para o telemóvel de D..., pelo que deve aquele ser absolvido dos crimes de perturbação da vida privada. 

O Ministério Público, como recorrente, defende, por sua vez, que o art.190.º, n.º 2, do Código Penal, deve ser interpretado de outra forma: o preceito quis abranger no acto de « telefonar para a habitação ou para o telemóvel de outra pessoa » todas as formas possíveis de comunicação tecnicamente permitidas através de tais aparelhos, incluindo a palavra escrita para os telefones móveis, que com a sua recepção emitem um som de aviso. 

No sentido da interpretação que tem como correcta do tipo penal, observa o recorrente, nomeadamente, o seguinte:

- a Lei n.º 3/73, de 5 de Abril, que foi revogada pelo art. 6.º do DL n.º 400/82 de 23 de Setembro, e que contemplava na sua Base III a tutela da paz e sossego, quando contemplava a punição das mensagens escritas não se referia às mensagens por SMS, trocadas entre telemóveis, dado o estado de desenvolvimento das comunicações da época, pelo só podia dizer respeito ao envio de mensagens por carta.    

- No preâmbulo do D.L. 400/82 de 23/9 diz-se a propósito que « Outra questão que suscitou particular interesse foi a da protecção da vida privada É de todos sabido que a massificação no acesso a meios e instrumentos electrónicos veio a favorecer a intromissão na vida alheia e ilegítima na esfera da vida privada das pessoas. A isto há que atalhar, para protecção dos últimos redutos da privacidade a que todos têm direito, pela definição de específicos tipos legais de crime que protejam aquele bem jurídico.».

- Apesar da anunciada intenção, nem no art.176.º, nem no art.180.º do Código Penal , cuidou o legislador de 1982 de eleger como específico bem jurídico a paz e o sossego e tipificar os ataques ao mesmo através dos meios electrónicos existentes na altura, o que levou o Cons. Maia Gonçalves a dizer, em anotação art.178.º do C.P. na redacção dada pelo D.L. 400/82, que “ Este artigo mostra-se de algum modo incompleto e desactualizado, ao não contemplar o caso, muito frequente, do uso do telefone ou do envio de mensagens, ou ainda da apresentação diante do domicílio de outrem ou em lugar privado, sem justa causa e com o propósito de importunar as pessoas, que já constava da Lei n.º 3/73 de 5 de Abril”.

 - Apenas com a Reforma penal de 1995, aprovada pelo DL 48/95, de 15 de Março, o tipo legal, - agora art.190.º sob a epígrafe de “Violação de domicílio” voltou a tutelar o bem jurídico paz e sossego, estabelecendo para o efeito no seu n.º 2: «Na mesma pena incorre quem, com intenção de perturbar a vida privada, a paz e o sossego de outra pessoa, telefonar para a sua habitação.», o que foi apresentado no preâmbulo como neocriminalização.

Finalmente a Reforma penal de 2007, efectuada pela Lei 59/2007, de 4 de Setembro, aditou à epígrafe do artigo a expressão perturbação da vida privada passando a constar “Violação de domicílio ou perturbação da vida privada”, e acrescentou ao texto legal o termo: «ou para o seu telemóvel.».

- De acordo com o dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, telefonar é comunicar ou fazer comunicação pelo telefone, fazer uso do telefone.

- Salvo os telefones fixos já dotados de capacidade de recepção de mensagens ( SMS), a comunicação por eles faz-se apenas através da troca directa da palavra falada entre os interlocutores, ou através de mensagem de voz deixada na caixa do correio do destinatário, se este não atende ao som de chamamento. Ainda que o receptor da tentativa de comunicação de outrem no telefone fixo, não atenda a chamada, o crime p. e p. pelo art.190.º n.º 2 do C.P. fica preenchido, se o agente se limita a dar toques para o telefone fixo instalado na habitação de outra pessoa, sem pretender com ela estabelecer qualquer conversa, apenas com a intenção de a incomodar.

- Quando alguém pretende comunicar com outrem, seja pelo telefone fixo, seja pelo telefone móvel, estes aparelhos emitem um som de aviso, que também é accionado com a recepção da palavra falada em mensagem, no fixo e no móvel, e ainda com a recepção da palavra escrita/mensagem no telefone móvel.

- Ainda que o receptor decida não tomar logo conhecimento do conteúdo da mensagem, o certo é que a dita mensagem, sobretudo se for insistente, persistente e em número incontável, não deixa de perturbar a paz e sossego do respectivo destinatário, maxime se ocorrer em dias festivos, em momentos de reunião familiar ou de repouso e durante o gozo de férias.

Entre as interpretações seguidas no douto acórdão recorrido e a explanada pelo recorrente, aderimos à apresentada pelo Ministério Público, que foi também a que foi seguida, designadamente, nos acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 22-06-2011 e de 7-11-2012 ( in www.dgsi.pt/trp) e do Tribunal da Relação de Lisboa, de 13-12-2012 ( in CJ., 2012, tomo 5, pág. 138) e de 15-10-2013 ( in CJ., 2013, tomo 4, pág. 149).

Efectivamente, a Lei n.º 3/73, de 5 de Abril, ao estabelecer na sua Base III que «Será punido com prisão até seis meses e multa correspondente aquele que, sem justa causa e com o propósito de importunar alguém, se lhe dirija pelo telefone, ou através de mensagens ou se apresente diante do seu domicílio ou de outro lugar privado.», não visava incriminar a perturbação da paz e do sossego dos cidadãos através das mensagens por SMS (Short Message Service) trocadas nomeadamente entre telefones móveis, por o estado das comunicações técnicas ainda não ter consagrado a sua existência. Aquelas mensagens serão mensagens escritas entregues nomeadamente em mão ou remetidas por outros meios, como por carta.

Em 1982 também o desenvolvimento das comunicações não passava ainda pela existência e troca de SMS através de telefones móveis ou fixos. Assim, com a revogação da Lei n.º 3/73, de 5 de Abril, cremos que o legislador não tomou qualquer posição sobre a despenalização da perturbação da paz e sossego dos cidadãos através do envio de mensagens escritas através de telefones móveis ou fixos.   

Com introdução do n.º2 do art.190.º do Código Penal, através da Reforma de 1995 - « Na mesma pena incorre quem, com intenção de perturbar a vida privada, a paz e o sossego de outra pessoa, telefonar para a sua habitação.» - e, posteriormente, com acrescentamento ao mesmo da expressão « ou para o seu telemóvel» através da Reforma de 2007, entendemos que o legislador quis abranger todas as formas possíveis de comunicação tecnicamente permitidas através de telefone, sejam fixos ou móveis, incluindo a palavra escrita para os telefones móveis, que com a sua recepção emitem um som de aviso.

Uma vez que “telefonar” significa comunicar pelo telefone e que resulta dos factos dados como provados que o arguido A..., nos dias 15 de Agosto de 2011, 19 de Agosto de 2011 e 1 de Janeiro de 2012, a partir do seu telemóvel enviou para o telemóvel do ofendido D..., as mensagens cujo teor consta da mesma factualidade, e que ao assim actuar quis e conseguiu perturbar a vida privada, a paz e o sucesso do D..., conhecendo e querendo a realização daqueles factos antijurídicos e agindo com consciência da ilicitude, o Tribunal da Relação considera que o arguido A... preencheu com a sua conduta todos os elementos constitutivos dos crimes de perturbação da vida privada pelos quais vinha acusado.  

Assim, julgando procedente esta questão impõe-se revogar a decisão recorrida na parte em que absolveu o arguido da prática dos crimes de perturbação da vida privada e, consequentemente, condenar o mesmo nas respectivas penas criminais. 


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Segunda questão: da verificação do crime de violência doméstica.
            O crime de maus tratos, do art.152.º, n.ºs 1 e  2 do Código Penal,  na versão de 1995, punia com pena de prisão de 1 a 5 anos, « quem infligir ao cônjuge, ou a quem com ele conviver em condições análogas às dos cônjuges, maus tratos físicos ou psíquicos. ».
Nesta redacção do art.152.º do Código Penal, os sujeitos passivos eram o cônjuge, ou quem convivia com o agente em condições análogas às dos cônjuges.
Para efeitos de tutela penal no crime de maus tratos, defendia então a Dr.ª Catarina Sá Gomes que a convivência análoga à dos cônjuges se verificava desde que o relacionamento fosse estável, com comunhão de cama e habitação, ficando excluídas da tutela as relações momentâneas, fortuitas, ainda que vividas intensamente.[4]  
Através da Revisão do Código Penal, levada a efeito pela Lei 59/2007, de 4 de Setembro, o legislador procedeu, entretanto, a alterações na repressão da criminalidade ligada à violência doméstica, reforçando a tutela penal dos crimes de violência doméstica, de homicídio qualificado, p. e p. na al.b), n.º2 do art.132.º do Código Penal e, ainda, de ofensas à integridade física qualificada, dada a remissão do art.145.º, n.º2, do mesmo Código.
O crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.152.º, do Código Penal, introduzido no Código Penal pela Lei 59/2007, de 4 de Setembro, passou a estatuir, designadamente, o seguinte:

« 1 – Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:

      a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;

      b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;

(…) é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se perna mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.».

O bem jurídico protegido no crime de violência doméstica, agora autonomizado do crime de  maus tratos a que alude o art.152-A, do Código Penal, continua a ser plural, complexo, abrangendo a integridade corporal, saúde física e psíquica e a dignidade da pessoa humana, em  contexto de relação conjugal ou análoga e, actualmente, mesmo após cessar essa relação.

No círculo das vítimas de violência doméstica surgem, na al. b), n.º1 do art.152.º do Código Penal, a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação.

Com a Revisão de 2007, deixa de ser necessária a coabitação e, consequentemente, de se exigir a ideia de comunhão de cama e habitação, mas não pode deixar de se exigir, no tipo objectivo, um carácter mais ou menos estável de relacionamento amoroso, aproximado ao da relação conjugal de cama e habitação.

Neste sentido, o Dr. André Lamas Leite, sustenta que se exige no crime de violência doméstica a existência de “ uma proximidade existencial efectiva”. “ Do mesmo passo, meros namoros passageiros, ocasionais, fortuitos, flirts, relações de amizade, não estão recobertas pelo âmbito incriminador do art.152.º, n.º1, al. b).” Por outras palavras, sublinha este autor, que “ ter-se-á de provar que há uma relação de confiança entre agente e ofendido, baseada em fundamentos relacionais mais ou menos sólidos, em que cada uma deles é titular de uma «expectativa» em que o outro, por via desse laço, assuma um dever acrescido de respeito e abstenção de condutas lesivas da integridade pessoal do parceiro(a).”.[5]    

Ainda a este propósito, o Dr. Plácido Conde Fernandes, após sustentar que « a estabilidade relacional de afectos e sentimentos e o projecto de vida em comum, que caracterizam grosso modo a conjugalidade, hão-de revelar-se mesmo que em menor grau, no laço efectivo mantido entre o agressor e a vítima”, acrescenta, com elevado acerto, que “ deverão ser suficientemente indiciados em inquérito, indicados na acusação e provados em julgamento, os factos concretos que forma exteriorizando esse vínculo ao longo da relação, perante o outro e perante terceiros, na medida estritamente necessária à sua demonstração probatória”.[6]  

Com este sentido decidiu o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 24 de Abril de 2012, com o mesmo relator do presente acórdão.[7]

Com as alterações introduzidas pela Lei n.º 19/2013, de 21 de Fevereiro, ao art-152.º do Código Penal, a alínea b), do seu n.º 1, passou a ter a seguinte redacção:

    « A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação.».

Com esta nova redacção do preceito o tipo objectivo alargasse agora ao simples namoro.

O arguido A... vinha acusado pelo Ministério Público da prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.152.º do Código Penal, na redacção que lhe foi dada na Revisão de 2007, que era a vigente à data dos factos.

O Tribunal a quo decidiu absolver o arguido A... com a seguinte fundamentação de direito:

« Não se provou que o arguido vivesse em união de facto com a ofendida C..., não havendo entre eles comunhão, provada, de leito, mesa e habitação, como se de marido e mulher se tratassem, sendo amantes um do outro e não mais que isso.

A actual redacção da al. b) do nº 1 do artº 152º do Código Penal refere a mera relação de namoro como suficiente para a verificação do crime de violência doméstica, se estiverem presentes as circunstâncias previstas no nº 1 do mesmo artigo, só que a aplicação dessa nova redacção à situação do arguido, trazida pela Lei nº 19/2013, de 21/2, que entrou em vigor 30 dias depois da sua publicação, nos termos do seu artº 6º, está vedada pelo artº 2º, nº 4, do Código Penal, dado que a situação de «namoro» não estava prevista na al. b) do nº 1 do artº 152º do Código Penal à data da prática dos factos pelo arguido e este terá de beneficiar da aplicação da lei que lhe seja concretamente mais favorável, isto é, da lei anterior, que só previa no tipo legal «uma relação análoga à dos cônjuges» que, de facto, neste caso nunca existiu. Arguido e ofendida eram «amantes», numa relação de concubinato e não «companheiros», numa relação de união de facto.».

O Ministério Público defende que esta parte do douto acórdão deve ser revogada e o arguido A... ser condenado pela prática do crime de violência doméstica que lhe era imputado, p. e p. pelo art.152.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, alegando para o efeito e em síntese, o seguinte:

- provou-se que a vítima foi amante do arguido, tendo essa relação perdurado por cerca de três anos, até Abril de 2011; que o filho da vítima sabia e consentia nessa relação; que a vítima cozinhava em casa para o marido, de 91 anos, reformado e para o filho de ambos; que  durante a noite, ia dormir com o arguido, a maior parte dos dias da semana; que levava o jantar para ambos, saindo de manhã de casa do arguido; que os jantares que a vítima levava eram essenciais para o arguido, pois não tinha capacidade económica para fazer face a todas as despesas, ganhando apenas 278 euros; e que andavam juntos socialmente e com frequência, parecendo «um casal feliz», segundo a testemunha P....

- O conceito de união de facto, mencionado no acórdão dos autos, não foi consagrado no art.152.º do Código Penal, mas sim o de relação análoga à dos cônjuges, entre pessoas de sexo diferente ou do mesmo sexo, mesmo sem coabitação.

- A conduta do arguido, perpetuada no tempo, pela sua gravidade e reiteração, pôs em causa a dignidade da ofendida, afectou o seu bem-estar e saúde física e psíquica, com quem manteve uma relação afectiva durante tantos anos, não existindo qualquer motivo para excluir a vítima do direito à dignidade humana.

- o acórdão recorrido qualifica a vítima como “ex-amante” do arguido e a relação semelhante à dos cônjuges encontra-se no facto de ter tido estabilidade duradoura, publicidade, dependência económica (cf. jantares), comunhão de cama e mesa, partilha de actividades sociais, ligação afetiva e de domínio do arguido sobre a vítima, razão pela qual as condutas provadas devem ser qualificadas como crime de violência doméstica.

Vejamos.

O primeiro parágrafo da acusação do Ministério Público deduzida contra o arguido A... tem a seguinte redacção:

« C... e o arguido viveram em comunhão de leito, mesa e habitação, como se de marido e mulher se tratassem, durante cerca 4 anos, até data não concretamente apurada antes de Abril de 2011. ».

O Tribunal a quo deu esta matéria como não provada.

Em lugar daquela factualidade constante da acusação deu o Tribunal Colectivo como provado o seguinte facto:

« C... e o arguido viveram uma relação de amantismo durante cerca de três anos, até Abril de 2011. ».

Da leitura da fundamentação da matéria de facto parece que esta alteração factual terá resultado, designadamente, das declarações do arguido A... – o que dispensa a sua comunicação ao arguido, nos termos do art.358.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Penal e que efectivamente não se mostra efectuada.

Consignar-se que a “ C... e o arguido viveram uma relação de amantismo” é dizer-se que viveram como amantes. “Amantizar-se” é manter uma relação amorosa com outra pessoa, fora do casamento.

O que fica por esclarecer são os concretos termos desse “amantismo”, para o tribunal de recurso poder decidir com segurança se entre a C... e o arguido existiu ou não uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação.

O grau e a interdependência de vida entre os “amantes” pode chegar a integrar, normativamente, uma relação análoga à dos cônjuges, tudo dependendo dos factos concretos que suportam essa relação.

O Ministério Público refere, a este propósito, que se provou que o filho da C... sabia e consentia na relação de “amantismo” entre sua mãe e o arguido; que a vítima cozinhava em casa para o marido, de 91 anos, reformado e para o filho de ambos; que durante a noite, ia dormir com o arguido, a maior parte dos dias da semana; que levava o jantar para ambos, saindo de manhã de casa do arguido; que os jantares que a vítima levava eram essenciais para o arguido, pois não tinha capacidade económica para fazer face a todas as despesas, ganhando apenas 278 euros; e que andavam juntos socialmente e com frequência, parecendo «um casal feliz», segundo a testemunha P....

Acontece, porém, que tal factualidade embora possa ter sido aflorada na audiência de julgamento, não consta dos factos dados como provados, que se limita a dar como verificada , como já dissemos, a existência de uma conclusiva relação de “amantismo” entre a C... e o arguido A....

O presente recurso mostra-se restringido à matéria de direito, mas o art.410.º n.º 2 do Código de Processo Penal, estatui que mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter por fundamento, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
     a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
     b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; ou 
     c) O erro notório na apreciação da prova.
Estes vícios que têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem que seja possível a consulta de outros elementos constantes do processo, são de conhecimento oficioso.[8]
O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto na al. a) do n.º2 do art. 410.º do C.P.P., existe quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem dados e elementos para a decisão de direito, considerando as várias soluções plausíveis, como sejam a condenação (e a medida desta) ou a absolvição (existência de causas de exclusão da ilicitude ou da culpa), admitindo-se, num juízo de prognose, que os factos que ficaram por apurar, se viessem a ser averiguados pelo tribunal a quo através dos meios de prova disponíveis, poderiam ser dados como provados, determinando uma alteração de direito.

A insuficiência para a decisão da matéria de facto existe se houver omissão de pronúncia pelo tribunal sobre factos relevantes e os factos provados não permitem a aplicação do direito ao caso submetido a julgamento, com a segurança necessária a proferir-se uma decisão justa.[9]

No caso em apreciação entendemos que a factualidade vertida na decisão recorrida, ao consignar, apenas e conclusivamente, que a « C... e o arguido viveram uma relação de amantismo durante cerca de três anos, até Abril de 2011. », sem concretizar os respectivos factos, não permitem uma decisão segura e justa sobre a existência do crime de violência doméstica.
Uma vez que os factos dados como provados não permitem a aplicação segura do direito ao caso submetido a julgamento, com o preenchimento ou não, pelo arguido, daquele elemento constitutivo do crime de violência doméstica de que vem acusado pelo Ministério Público, e do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, vislumbra-se que os concretos factos relativos à relação de “amantismo” poderão ser apurados, temos por verificado o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

Nos termos do art.426.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, verificando-se o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e não sendo possível decidir a presente questão, impõe-se determinar o reenvio do processo para novo julgamento que se circunscreve ao apuramento dos concretos factos que integram a “relação de amantismo” dada como provada no douto acórdão recorrido.

Para o efeito deverá ter-se em consideração o disposto no art.426-A do Código de Processo Penal.

Em face do reenvio parcial, fica prejudicada a decisão sobre esta questão objecto de recurso.

  

           Decisão

       

             Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em:

- conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e revogando a douta decisão recorrida na parte em que absolveu o arguido A... da prática dos três crimes de perturbação da vida privada, decide-se que o mesmo deverá ser condenado pela prática dos mesmos crimes, nas respectivas penas; e

- nos termos dos artigos 426.º e 410.º, n.º2, alínea a), do C.P.P., determinar o reenvio do processo para novo julgamento, relativamente ao apuramento dos concretos factos que integram a “relação de amantismo” dada como provada no douto acórdão recorrido, decidindo-se posteriormente em conformidade.

             Sem custas.

                                                                         *

                                                                                               *

Orlando Gonçalves (Relator)

Alice Santos


[1]  Cfr. BMJ n.º 458º , pág. 98.
[2]  Cfr. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247.
[3]  Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350.
[4]O crime de Maus-tratos Físicos e Psiquicos Inflingidos ao Cônjuge ou ao Convivente em Condições Análogas às dos Cônjuges”, in AAFDL, 2002, pág. 65 e seg.s.
[5] Revista Julgar, n.º12 Especial, “ A violência relacional íntima: reflexões cruzadas entre o direito penal e a criminologia”, pág. 52. Em igual direcção, o Dr. Plácido Conde Fernandes, defendendo que se impõe “ afirmar a estabilidade do relacionamento, em fluxo simétrico, com a relação conjugal, que excluirá do âmbito da norma ligações de natureza afectiva, ou mesmo sexual, meramente fortuitas ou ocasionais” – in “Jornadas sobre a Revisão do Código Penal”,  Violência Doméstica, Novo Quadro Penal e Processual Penal,  Revista do CEJ, 1.º semestre de 2008, n.º 8, págs. 310 e 311.

[6] Obra citada, pág. 311.
[7] In www.dgsi.pt.
[8] Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 19 de Outubro de 1995, in DR, I-A Série de 28 de Dezembro do mesmo ano.
[9] – Neste sentido, entre outros, os Acórdãos do STJ de 7/04/2010 ( proc. n.º 83/03.1TALLE.E1.S1, 3ª Secção, in www.dgsi.pt) de 6-4-2000 (BMJ n.º 496 , pág. 169) e de 13-1-1999 (BMJ n.º 483 , pág. 49) e os Cons. Leal- Henriques e Simas Santos , in “Código de Processo Penal anotado”,  vol. 2.º, 2ª ed., pág.s 737 a 739.