Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
244/17.6T9CTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: INÁCIO MONTEIRO
Descritores: FALSIDADE DE TESTEMUNHO
DEPOIMENTOS ANTAGÓNICOS NA FASE DE INQUÉRITO; REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO
ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
Data do Acordão: 07/10/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: REVOGADA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS 360.º, N.ºS 1 E 3, DO CP; ART. 311.º, N.ºS 2, AL. A), E 3, AL. D), DO CPP
Sumário:
I – Constando da acusação a descrição dos elementos objectivos e subjectivos, susceptíveis abstractamente de integrarem o crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo art. 360.º, n.ºs 1 e 3, do CP, não é necessário que se alegue o contrário daquilo que foi declarado, bastando imputar ao arguido as duas declarações prestadas no mesmo processo de inquérito, contraditórias e antagónicas que se excluem entre si e põem em causa, por si só, o princípio da verdade a que estava sujeito no seu depoimento enquanto testemunha, imposto pelo art. 132.º, n.º1, al. d), do CPP.
II – A acusação não tem de dizer em qual dos dois momentos temporais o arguido, na qualidade de testemunha, faltou à verdade, se quando foi inquirida pela Polícia Judiciária, se quando inquirida pelo Ministério Público, bastando alegar os dois depoimentos contraditórios e inconciliáveis, para se inferir que pelo menos um deles é necessariamente falso, isto é, que o arguido faltou à verdade, a que estava legalmente obrigado, nada obstando a que se considere indiciariamente preenchido o crime de falso testemunho que lhe é imputado na acusação.
III - A acusação só deve ser considerada manifestamente infundada, e consequentemente rejeitada, ao abrigo art. 311.º, n.ºs 2, al, a) e 3, al. d), do CPP, quando resultar evidente, que os factos nela descritos, mesmo que porventura viessem a ser provados, “não constituem crime”, isto é, que os factos não constituam crime quando, entre outras situações, se verifica uma qualquer causa de extinção do procedimento ou se a factualidade em causa não consagra inequivocamente qualquer conduta tipificada como crime.
Assim, o fundamento da inexistência de facto na acusação que constituam crime só pode ser aferido face ao texto da acusação, quando faltem os elementos típicos objectivos e subjectivos de qualquer ilícito criminal na lei penal ou quando se trate de conduta penalmente irrelevante, Cfr. anota Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, 2.ª Ed. UCE, pág. 791.
IV – A estrutura acusatória do processo penal foi acentuada com o adicionamento do n.º 3, do art. 311.º, do CPP, pela Lei n.º 59/98, de 25/8, a partir da qual alteração, o juiz de julgamento, no despacho saneador do art. 311.º, do CPP, não pode apreciar a prova indiciária do inquérito, pois a sua valorização apenas compete ao Ministério Público, bem como está impedido de fazer um juízo de prognose sobre a relevância criminal dos factos, alicerçado em determinado entendimento doutrinal ou jurisprudencial, optando por uma solução jurídica, quanto aos contornos da definição dos elementos objectivos do crime da falso testemunho, entendimento que deve ser ponderado apenas em sede de julgamento.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os juízes da 4.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

I- Relatório
No processo supra identificado, foi deduzida acusação pelo Ministério Público contra o arguido A..., filho de (…), solteiro, com domicílio actualmente detido no Estabelecimento Prisional de B....
*
É-lhe imputada, em co-autoria a prática de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo art. 360.º, n.ºs 1 e 3, do Código Penal, pelos seguintes factos na acusação:
«(…)».
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A Ex.ma Juíza, por manifestamente infundada a acusação, nos termos do art. 311.º, n.º 2, al. a) e 3, al. d), do CPP, proferiu o seguinte despacho de rejeição da acusação:
«Nos presentes autos a Digna Magistrada do Ministério Publico deduziu acusação contra A..., imputando-lhe a prática de um crime de falsidade do testemunho, p. e p. pelo art.º 360º nºs 1º e 3 do Código Penal.
Analisada a factualidade vertida na referida acusação e que aqui interessa, temos por um lado as declarações prestadas pelo arguido (enquanto testemunha) perante a Policia Judiciária e nas quais refere uma série de factos, e por outro lado temos as declarações prestadas pelo arguido, também enquanto testemunha, perante Magistrado do Ministério Publico nas quais refere de nada se lembrar, mesmo depois de confrontado com as suas anteriores declarações.
Dispõe o art.º 360º do Código Penal o seguinte: “1 - Quem, como testemunha, perito, técnico, tradutor ou intérprete, perante tribunal ou funcionário competente para receber como meio de prova, depoimento, relatório, informação ou tradução, prestar depoimento, apresentar relatório, der informações ou fizer traduções falsos, é punido com pena de prisão de 6 meses a 3 anos ou com pena de multa não inferior a 60 dias.
2 - Na mesma pena incorre quem, sem justa causa, se recusar a depor ou a apresentar relatório, informação ou tradução.
3 - Se o facto referido no n.º 1 for praticado depois de o agente ter prestado juramento e ter sido advertido das consequências penais a que se expõe, a pena é de prisão até 5 anos ou de multa até 600 dias.”
Sobre o tema, no Comentário Conimbricense, pág. 477, diz Medina de Seiça que caso a narração do declarante se afaste do acontecido, isto é, daquilo que o tribunal, em face da produção da prova, tenha dado por acontecido, ela é falsa.
Quer isto dizer que para se afirmar a falsidade do depoimento, o Tribunal tem que dar como provados determinados factos sobre os quais uma testemunha depôs de modo diferente, e que a testemunha conhecia a realidade que o Tribunal deu como provada e que, provando-se que essa realidade era a verdadeira, de livre vontade e intencionalmente, a ocultou.
Ora, nos presentes autos a acusação refere que num determinado momento a testemunha afirmou uma série de factos e que depois perante o Ministério Público afirmou não se recordar, nem sequer se recordar que tinha prestado declarações perante a Polícia Judiciária.
Acresce que o arguido e que naqueles autos prestou declarações como testemunha, fê-lo perante a Policia Judiciária depois de ter estado internado com perda de consciência e prognóstico reservado.
Perante esta factualidade não podemos afirmar a existência de dois depoimentos contraditórios, temos um depoimento com factos e outro em que se afirma ausência de memória.
Destarte, entendemos ainda que falta um outro elemento objectivo na acusação.
Conforme tem sido afirmado na jurisprudência a verdade que se busca para determinação do elemento típico do crime de falso testemunho não é a verdade formal, mas sim a que corresponde a um dado acontecimento histórico conhecido de quem depõe e que é intencionalmente negado, ou do conhecimento de um facto inexistente que intencionalmente se afirma como verdadeiro.
O art. 360.º, n.ºs 1 do Cód. Penal prescreve que, quem, como testemunha (…) perante tribunal ou funcionário competente para receber como meio de prova, depoimento, relatório, informação ou tradução, prestar depoimento (…) falsos, é punido…
Falso é, aqui, o contrário de verdadeiro, ou seja, para se dizer que um depoimento é falso é preciso confrontá-lo com os factos verdadeiros, não bastando que uma testemunha preste depoimentos contraditórios (um ou mais!!!) entre si: sem aquele confronto, há apenas depoimentos divergentes mas não necessariamente contrários à verdade.
Enquanto não se lhe demonstrar a verdade e que ele a conhecia, …não se pode dizer, com rigor, que fez um (ou mais) depoimentos contrários à verdade.
Em resumo: em qualquer situação (adira-se à teoria objectiva ou à subjectiva da falsidade, tanto importa), é sempre imperioso que se demonstre o contrário daquilo que foi declarado (de uma ou de todas as versões) e, mais que isso, que se alegue e demonstre que a testemunha, agindo intencionalmente, conhecia o contrário daquilo que declarou.
Pelo exposto rejeito a presente acusação ao abrigo do disposto no art.º 311º, nºs 2, alínea a) e 3 alínea d) do Código de Processo Penal, por manifestamente infundada, uma vez que os factos imputados ao arguido são insuficientes para se afirmar a existência de crime»
*
Inconformado, recorreu o Ministério Público, formulando as seguintes conclusões:
«1. No presente recurso pretende-se impugnar a decisão/despacho proferido nos presentes autos em 29-01-2018, pela qual foi rejeitada, com fundamento em ser manifestamente infundada a acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido A... pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de falsidade de testemunho, previsto e punido pelo art. 360.º, n.os 1 e 3 do Código Penal.
2. Porém, salvo o devido respeito, não podemos concordar com a rejeição da acusação nos termos em que foi decidida, para além de se discordar que não se encontram preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime de falsidade de testemunho, pelo menos de forma suficientemente indiciada.
3. Além disso, existe uma manifesta violação do disposto no art. 311.º, do C. P. Penal, uma vez que o Tribunal "a quo" fez um juízo de mérito da causa numa fase processual que a isso não se destina, sendo que o juízo de mérito sobre o bem ou mal fundada de uma acusação deve ser feito em audiência de julgamento, e nunca numa fase processual que se destina a sanear o processo.
4. Temos para nós que, dos indicias considerados suficientes pelo Ministério Público em sede de inquérito, constantes da factualidade imputada ao arguido na acusação, resulta que o arguido terá praticado o crime de falsidade de testemunho que se lhe imputa.
5. Senão, vejamos. O arguido foi ouvido em dois momentos diferentes em sede de Inquérito, perante a Policia Judiciária, e, mais tarde, perante Magistrado do Ministério Público. E, de acordo com os factos que lhe são imputados, existe uma contradição entre as duas versões apresentadas.
6. Aliás, do despacho recorrido, não fundamenta porque se conclui que existem duas versões contraditórias.
7. Apenas se diz que as versões são contraditórias porque numa o arguido relatou factos e na outra alegou falhas de memória.
8. O que ali se diz, e passa-se a citar é: "Ora, nos presentes autos a acusação refere que num determinado momento a testemunha afirmou uma série de factos e que depois perante o Ministério Público afirmou não se recordar, nem sequer se recordar que tinha prestado declarações perante a Polícia Judiciária. Acresce que o arguido e que naqueles autos prestou declarações como testemunha, fê-lo perante a Policia Judiciária depois de ter estado internado com perda de consciência e prognóstico reservado. Perante esta factualidade não podemos afirmar a existência de dois depoimentos contraditórios, temos um depoimento com factos e outro em que se afirma ausência de memória."
9. Se bem lemos a factualidade constate da acusação, não é isso que lá consta.
10. Basta atentar nos factos constantes nos pontos 1 a 13 da acusação supra citados, e nos factos constantes dos pontos 14 a 17 da mesma acusação.
11. O que consta são duas versões dos factos. A primeira é a versão detalhada e completa, e a segunda é a versão "não me lembro" que exclui a primeira.
12. Se é certo que não a nega ou contradiz frontalmente, a verdade é que é oposta à primeira.
13. Recordando o Ac. da Relação de Évora proferido no processo 49/13.3T3STC, in www.dgsi.pt, cujo sumário se passa a citar:": - A circunstância de o tribunal de julgamento nada ter apurado sobre a verdade do facto objecto da declaração, não impede que a conduta da testemunha, o ora arguido, possa ter preenchido os elementos objectivos e subjectivos do crime de falsidade de testemunho previsto no artigo 360.º do Código Penal, pois a falsidade de declaração a que se reporta este preceito corresponde à desconformidade entre a declaração emitida pelo agente e a realidade por ele apreendida, independentemente de a verdade ter sido apurada no processo e qual seja ela, de acordo com a conceção subjetivista que seguimos. II - Perante declarações contraditórias entre si, pois uma delas exclui necessariamente a outra, tendo o agente declarado com falsidade, é irrelevante que não se apure em que momento a testemunha faltou à verdade, visto que o seu comportamento como declarante no processo deve ser perspectivado na sua globalidade, pelo que essa falta de fidelidade à verdade, traduzida num desvio da declaração em relação à realidade apreendida pelo próprio declarante e descortinada através de uma visão integrada de toda a sua conduta processual, é por si só suficiente para implicar a prática de um ilícito-típico objetivo de falsidade de depoimento. III - Assim, não se impõe a sua absolvição por falta de prova de qual das declarações é falsa, e, subsistindo dúvida sobre o exato momento em que o agente faltou à verdade e essa dúvida tenha relevo penal ou processual penal, v. g. para efeitos de prescrição ou da agravação prevista no n.º 3 do artigo 360.º do Código Penal, tal dúvida não pode deixar de ser valorada a favor do arguido em obediência ao principio in dublo pro reo. IV- Mesmo as afirmações factualmente contraditórias proferidas em momentos distintos, o que implica ser pelo menos uma delas desconforme com a realidade, não significam necessariamente que o arguido saiba e queira faltar à verdade num daqueles momentos. V - Embora a dúvida razoável pressuposta pela aplicação do princípio in dubio pro reo não seja facilmente definível, pode dizer-se dela que será a dúvida séria, argumentada, coerente, a dúvida racional e positiva que se oponha à certeza contrária exigida pela livre convicção do tribunal."
14. Sem ser necessário grandes alongamentos, o que a Jurisprudência citada nos diz é que não se exije, para o preenchimento do tipo legal do crime de falsidade de testemunho, que se apure em que momento o arguido faltou à verdade, e o facto de o Tribunal não ter apurado sobre a verdade do objecto da declaração, não implica que a conduta do arguido não possa preencher o crime em causa.
15. Por outro lado, a circunstância de o arguido ter referido, num dos momentos em que depôs, que não se lembrava, pode e deve ser apreciada de forma mais concreta e circunstanciada, nomeadamente sobre se a alegada falha de memória é resultante dos problemas de saúde que o arguido sofreu, ou se é apenas uma forma de não querer comprometer os arguido indiciados de tráfico de estupefacientes no processo em que prestou declarações como testemunha.
16. Salvo o devido respeito, que é muito, entendemos que não existem fundamentos legais para considerar, como se considerou no despacho recorrido, que não existem duas versões contraditórias decorrentes das duas declarações prestadas pelo arguido como testemunha no processo em que foi ouvido.
17. Pelo menos, não poderia ter-se chegado a essa conclusão num simples despacho de recebimento da acusação e sem se produzir prova, a qual deverá ser feita em sede de audiência de julgamento.
18. Assim, afigura-se-nos que os factos em causa, que consubstanciam os elementos subjectivo e objectivos do tipo legal de crime de que o arguido vinha acusado - falsidade de testemunho - não poderão deixar de se considerar como suficientemente indiciados.
19. Por outro lado, de acordo com o teor do despacho recorrido, a acusação deduzida contra o arguido, além de ser manifestamente infundada, nos termos do disposto no art, 311.º, n.º 2, al, a) do C. P. Penal, a mesma ainda viola o disposto no n.º 3, al. d) do citado preceito legal.
20. Ou seja, entende a Meritíssima Juiz "a quo" que resulta claro, que os factos indicados não constituem crime.
21. Não podemos discordar mais de tal posição, sendo certo que, se bem vemos, a Meritíssima Juiz "a quo" faz um julgamento do mérito da causa quando tal julgamento, nesta fase processual, se lhe encontra completamente vedado.
22. Entende o Tribunal "a quo" que a factualidade imputada ao arguido não constituiu crime, porque, (e passa-se a citar): "Falso é, aqui, o contrário de verdadeiro, ou seja, para se dizer que um depoimento é falso é preciso confrontá-lo com os factos verdadeiros, não bastando que uma testemunha preste depoimentos contraditórios (um ou mais!!!) entre si: sem aquele confronto, há apenas depoimentos divergentes mas não necessariamente contrários à verdade. Enquanto não se lhe demonstrar a verdade e que ele a conhecia,...não se pode dizer, com rigor, que fez um (ou mais) depoimentos contrários à verdade. Em resumo: em qualquer situação (adira-se à teoria objectiva ou à subjectiva da falsidade, tanto importa), é sempre imperioso que se demonstre o contrário daquilo que foi declarado (de uma ou de todas as versões) e, mais que isso, que se alegue e demonstre que a testemunha, agindo intencionalmente, conhecia o contrário daquilo que declarou."
23. Ora, tal análise da factualidade é contrariada pela jurisprudência, nomeadamente pelo Ac. da Relação de Évora supra citado, quando refere expressamente: " I - A circunstância de o tribunal de julgamento nada ter apurado sobre a verdade do facto objeto da declaração, não impede que a conduta da testemunha, o ora arguido, possa ter preenchido os elementos objetivos e subjetivos do crime de falsidade de testemunho previsto no artigo 360.º do Código Penal, pois a falsidade de declaração a que se reporta este preceito corresponde à desconformidade entre a declaração emitida pelo agente e a realidade por ele apreendida, independentemente de a verdade ter sido apurada no processo e qual seja ela, de acordo com a conceção subjetivista que seguimos. II - Perante declarações contraditórias entre si, pois uma delas exclui necessariamente a outra, tendo o agente declarado com falsidade, é irrelevante que não se apure em que momento a testemunha faltou à verdade, visto que o seu comportamento como declarante no processo deve ser perspetivado na sua globalidade, pelo que essa falta de fidelidade à verdade, traduzida num desvio da declaração em relação à realidade apreendida pelo próprio declarante e descortinada através de uma visão integrada de toda a sua conduta processual, é por si só suficiente para implicar a prática de um ilícito-típico objetivo de falsidade de depoimento."
24. Mais, é preciso não esquecer que não estamos em sede de sentença mas de despacho de recebimento da acusação.
25. Ora, o Tribunal "a quo", ao dizer, taxativamente, que os factos não constituem crime, está a fazer um juízo de mérito que, salvo situações muito pontuais, em que, de forma ostensiva e evidente, os factos imputados a arguido não são puníveis ou não integram nenhum tipo legal de crime previsto e punido no nosso Ordenamento Jurídico, se encontra vedado ao Juiz que recebe a acusação.
26. Nesse sentido, ver o Ac. da Relação de Coimbra, de 29-11-2006, proc. 1784/00.1TAFIG, rel. Jorge Dias, e Ac. da RC de 14 de Fevereiro de 2004, proc. 3633/03 do mesmo relator, in www.dgsi.pt,
"Perece-nos claro que o Juiz não pode, no despacho a que se refere o art. 311°, sem mais, alterar a qualificação jurídica dos factos. Exige-o a estrutura acusatória do processo e a posição do juiz nesta fase processual. Nesta o juiz deve limitar-se a pronunciar-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa (art. 311.°, n.º 1) e não a pronunciar-se sobre o próprio mérito do objecto da causa, sendo certo que desta faz parte a qualificação jurídica. Tomar posição sobre ela será tomar posição como defensor ou como acusador, uma vez que ainda não exerce funções de julgador nem pode antecipar-se a elas. Nesta fase processual o tribunal não é livre na subsunção até porque desconhece ainda se ela efectivamente errada."
27. Sobre a questão da acusação manifestamente infundada, pronunciou-se o Ac. da Relação do Porto, de 9 de Janeiro de 1991, proc. 0310892, relator Judak Figueiredo, nos seguintes termos: "1- Manifestamente infundada é a acusação que, por forma clara e evidente, é desprovida de fundamento, seja por ausência de factos que a suportem, seja porque os factos não são subsumíveis a qualquer norma jurídico-penal, constituindo a designação de julgamento flagrante violência e injustiça para o arguido,"
28. No mesmo sentido o Ac. da RP de 16 de Março de 1994, proc. 9321389, relator Correia de Paiva, onde se diz que: "I - A acusação Só pode ser manifestamente infundada e por isso rejeitada quando "... por forma clara e evidente (no sentido que entra pelos olhos dentro), é desprovida de fundamento, seja pela ausência de factos que a suportem, seja porque os factos não são subsumíveis a qualquer norma jurídico-penal, constituindo a designação de dia para julgamento flagrante violência e injustiça para o arguido - art. 311.º do C. P. Penal,"
29. Assim, resulta que não se pode aceitar o decidido no despacho recorrido, na medida em que o Tribunal "a quo" não tem fundamentos legais ou outros para considerar que a acusação é manifestamente infundada, porque tal juízo se nos afigura precipitado, na medida em que a acusação contém todos os elementos de facto e de direito que permitem a imputação do crime em causa ao arguido, além de que tal juízo apriorístico deve apenas proceder em casos óbvios e evidentes em que os factos imputados não constituem a prática de qualquer crime.
30. Por outro lado, entendemos que, ao se considerar que a acusação viola o disposto no art. 311°. n.º 3. al. d) do C. P. Penal- os factos não constituem crime - o Tribunal "a quo" fez um juízo de prognose sobre o mérito da causa que lhe está vedado antes da apreciação dos factos e da prova, sendo por isso mesmo, um juízo que apenas poderá ser feito em sede de sentença judicial e não num despacho de recebimento da acusação, ou, como refere a epígrafe do artigo 311.° do C. P. Penal, um despacho de saneamento do processo.
31. Sanear não é o mesmo que julgar.
32. Uma coisa é o Tribunal "a quo entender que aqueles factos não vão levar a uma condenação, o que seria válido em sede de Instrução ou de sentença após produção de prova. Outra coisa é fazer esse mesmo juízo de prognose quando se está a receber a acusação e a "sanear" o processo, expurgando-o de nulidades, ilegalidades, questões prévias ou incidentais, entre outras que se encontram previstas no art. 311.º do C. P. Penal.
33. Assim, em nosso entender, a decisão recorrida viola o princípio do acusatório (que está vedado ao Juiz de Julgamento e que procede à fase de saneamento do processo), além de violar o disposto no art. 311.° do C. P. Penal, na medida em que, ao decidir da forma como decidiu, se substituiu ao Juiz do Julgamento, antecipando um juízo sobre o mérito da causa que se encontra vedado no momento em que é feito o saneamento do processo.
34. Pelo que, salvo melhor opinião, deve o despacho recorrido ser substituído por outro que receba a acusação contra o aqui arguido, nos termos em que o Ministério Público a deduziu, com aqueles factos e aquela qualificação jurídica e designe data para a realização da audiência de discussão e julgamento, nos termos do disposto no art. 312.º e seguintes do C. P. Penal».
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Nesta instância, os autos tiveram vista do Ex.ma Senhora Procuradora-geral Adjunta, para os feitos do art. 416.º, n.º 1, do CPP, o qual emitiu douto parecer no mesmo sentido da procedência do recurso.
Notificado o defensor do arguido, nos termos do art. 417.º, n.º 2, do CPP não respondeu.
Foi cumprido o art. 418.º, do CPP, e uma vez colhidos os vistos legais, indo os autos à conferência, cumpre decidir.
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II- O Direito
As conclusões formuladas pelo recorrente delimitam o âmbito do recurso.
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, conforme Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335 e Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, as quais deve conhecer e decidir sempre que os autos reúnam os elementos necessários para tal.

Questão a decidir:
Apreciar se há fundamento para rejeitar a acusação, por manifestamente infundada, ao abrigo do art. 311.º, n.º 2, al. a) e 3, al. d), do CPP, por os factos imputados ao arguido não constituírem o crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo art. 360.º, n.ºs 1 e 3, do CP e se é exigível que se alegue o contrário daquilo que foi declarado e que se alegue que a testemunha, agindo intencionalmente, conhecia o contrário daquilo que declarou.

Apreciando:
O arguido A... vem acusado da prática de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo art. 360.º, n.ºs 1 e 3, do CP.
O Ministério Público imputa-lhe aquele crime, pelo facto de no dia 30/4/2015, (…), ter sido ouvido na qualidade de testemunha, perante a Polícia Judiciária, relativamente aos factos que o levaram a perder a consciência e ao seu internamento de urgência com prognóstico muito reservado no Serviço de Urgência do Hospital C… no dia 26/4/2015 e na sequência de tais declarações esclareceu de forma circunstanciada a forma como a substância «xxx» ou «yyy» que consumiu tinha sido introduzida nesse mesmo dia por uma pessoa que visitou o recluso D… «X…», que estava na Camarata n.º *, que este a dissimulou no ânus e que se dirigiu à casa de banho, onde tirou o produto.
A acusação refere nos artigos 1º. a 13.º, os pormenores das declarações do arguido, prestadas enquanto testemunha naqueles autos de inquérito n.º 150/15.9JACBR, em que este explica com rigor a rede montada no EP para ali fazer entrar o produto estupefaciente e a forma como era distribuído pelos reclusos e o desempenho dos que intervinham em tal tarefa, referindo-se designadamente no artigo 13.º que “o arguido referiu que colaborava com o E…, distribuindo produtos por outros reclusos e efectuando outras tarefas, a troco de tabaco e cedência de algum produto estupefaciente para consumo”.
Ouvido depois em novas declarações como testemunha pelo Ministério Público em 2/7/ 2015, no DIAP de R… - Comarca de O…, no âmbito do mesmo inquérito, por videoconferência a partir da Procuradoria da então Instância Local da 1.ª Secção de Inquéritos da Comarca de Castelo Branco, depois de advertido de que estava obrigado a responder com verdade sob pena de incorrer em responsabilidade criminal e ter prestou juramento o arguido referiu que acordou ao fim de sete dias no hospital e que não se recordava de ter prestado depoimento à Polícia Judiciária no dia 30/04/2015, versão que manteve, apesar de lhe ter sido lido tal auto de inquirição.
Importa referir ainda que, depois nestes autos, em que é acusado por crime de falsidade de testemunho, conforme consta do auto de interrogatório de 10/7/2017, de fls. 96 a 98, o arguido não quis prestar declarações.
Remetidos os autos, para julgamento a senhora juíza proferiu despacho de rejeição da acusação, ao abrigo do art. 311.º, nºs 2, al. a) e 3 al. d) do CPP, por manifestamente infundada, uma vez que os factos imputados ao arguido são insuficientes para se afirmar a existência de crime.
E alicerça a sua fundamentação, sustentando que “para se afirmar a falsidade do depoimento, o tribunal tem que dar como provados determinados factos sobre os quais uma testemunha depôs de modo diferente, e que a testemunha conhecia a realidade que o tribunal deu como provada e que, provando-se que essa realidade era a verdadeira, de livre vontade e intencionalmente, a ocultou”.
Considera-se no despacho recorrido que referindo a acusação que num determinado momento do inquérito a testemunha afirmou uma série de factos e que depois perante o Ministério Público afirmou não se recordar, nem sequer se recordar que tinha prestado declarações perante a Polícia Judiciária, perante tal factualidade não podemos afirmar a existência de dois depoimentos contraditórios, mas que estamos perante um depoimento com factos e outro em que se afirma ausência de memória.
E por fim, no mesmo despacho entende-se que falta um outro elemento objectivo na acusação, considerando a verdade que se busca para determinação do elemento típico do crime de falso testemunho não é a verdade formal, mas sim a que corresponde a um dado acontecimento histórico conhecido de quem depõe e que é intencionalmente negado, ou do conhecimento de um facto inexistente que intencionalmente se afirma como verdadeiro.
Para concluir que enquanto não se lhe demonstrar a verdade e que o arguido a conhecia, não se pode dizer, com rigor, que fez um (ou mais) depoimentos contrários à verdade, sendo sempre imperioso que se demonstre o contrário daquilo que foi declarado (de uma ou de todas as versões) e, mais que isso, que se alegue e demonstre que a testemunha, agindo intencionalmente, conhecia o contrário daquilo que declarou.
Quanto à definição do tipo legal imputado ao arguido, dispõe o art. 360.º, do CP o seguinte:
«1 - Quem, como testemunha, perito, técnico, tradutor ou intérprete, perante tribunal ou funcionário competente para receber como meio de prova, depoimento, relatório, informação ou tradução, prestar depoimento, apresentar relatório, der informações ou fizer traduções falsos, é punido com pena de prisão de 6 meses a 3 anos ou com pena de multa não inferior a 60 dias.
(…)
3 - Se o facto referido no n.º 1 for praticado depois de o agente ter prestado juramento e ter sido advertido das consequências penais a que se expõe, a pena é de prisão até 5 anos ou de multa até 600 dias».
A propósito dos fundamentos em que se alicerçou o despacho recorrido, preceitua o artigo 311.º, do CPP, na redacção dada pela Lei 59/98, de 25/8, ao abrigo do qual a senhora juíza rejeitou a acusação:
«1 - Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.
2 - Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
(…)
3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
(…)
d) Se os factos não constituírem crime».
Para melhor compreender a questão em análise, isto é, saber em que termos o juiz de julgamento, pode rejeitar a acusação, importa trazer à colação a redacção do artigo 311.º, na versão anterior à Lei 59/98, de 25/8, que era do seguinte teor:
«1 - Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as questões prévias ou incidentais susceptíveis de obstar à apreciação do mérito da causa de que possa, desde logo, conhecer.
2 - Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
b) De não aceitar a acusação do assistente na parte em que ela representa uma alteração substancial da acusação do Ministério Público, nos termos do artigo 284.º, n.º 1».
Esta era uma norma genérica que previa a rejeição da acusação, por “manifestamente infundada”, que não prevendo a lei os casos típicos em que tal poderia acontecer, o preenchimento dos pressupostos ficavam ao critério do juiz.
E suscitando-se divergências quanto à questão veio o Assento do STJ n.º 4/93 – DR n.º 72, Série I-A, de 26/3/1993 fixar a seguinte jurisprudência obrigatória:
«A alínea a) do n.º 2 do artigo 311.º do Código de Processo Penal inclui a rejeição da acusação por manifesta insuficiência de prova indiciária».
À luz da lei em vigor, consideravam-se diversas situações, em número indeterminado de causas de rejeição da acusação, por se mostrar ao juiz manifestamente infundada, e conforme é sustentado naquele assento:
«O n.º 2, alínea a), do artigo 311.º respeitava assim a todas as causas de direito substantivo susceptíveis de inviabilizar a acusação, designadamente a insuficiência de indícios probatórios dos factos, a não punibilidade dos mesmos por variadas razões, inclusive, a inimputabilidade do acusado, a prescrição do procedimento criminal, etc. A fórmula usada nesse preceito tem a vantagem de abranger essas causas sem referir, concretamente, nenhuma delas, não se correndo, assim, o risco da omissão de alguma».
Ora, importa realçar que de uma mera leitura se verifica que o legislador na alteração da redacção do art. 311.º, do CPP, com a Lei 59/98, de 25/8, manteve a redacção da al. a), do n.º 2, no sentido de que o juiz na prolação do despacho de saneamento do processo, pode “rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada”, mas a quis introduzir alterações substanciais quanto à rejeição com este fundamento, precisando melhor o seu alcance e delimitando os casos em que se entende a acusação “manifestamente infundada”.
Havia que delimitar as competências e funções do acusador e do juiz de julgamento, ao proferir o despacho de saneamento, impondo limites a este no sentido de evitar intromissões desnecessárias e até abusivas que muitas vezes se traduziam em divergências de entendimento, designadamente quanto à existência ou não de elementos indiciários e quanto à qualificação jurídica dos factos.
E foi neste sentido que foi acrescentado o n.º 3, do art. 311.º, na actual redacção, que passou a prever expressamente:
«Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
a) Quando não contenha a identificação do arguido;
b) Quando não contenha a narração dos factos;
c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) Se os factos não constituírem crime».
Com a alteração introduzida caducou assim a jurisprudência fixada pelo Assento do STJ n.º 4/93, vindo agora o n.º 3, adicionado ao art. 311.º, esclarecer os casos concretos em que a acusação se considera manifestamente infundada.
Ora, entre os casos expressamente previstos de acusação manifestamente infundada, considerou a senhora juíza que os factos descritos no libelo acusatório não constituíam crime.
Face aos factos, como se encontram narrados na acusação, não se concorda com o caminho trilhado no despacho recorrido de que é imperioso que se demonstre o contrário daquilo que foi declarado e que se alegue e demonstre que a testemunha, agindo intencionalmente, conhecia o contrário daquilo que declarou, para nos termos do art.º 311.º, nºs 2, al. a) e 3 al. d) do CPP, fundamentar a rejeição da acusação, por manifestamente infundada, por “os factos imputados ao arguido serem insuficientes para se afirmar a existência de crime”.
Tal entendimento é no seguimento do Ac. do TRG de 29/6/2009 – Proc. 840/08.2TABRG.G1, in www.dgsi.pt/jtrg e de cujo aresto a senhora juíza transcreve no remate final do despacho recorrido.
Porém, diga-se que não vem a propósito, pois o mesmo respeita a recurso que incidiu sobre sentença que havia condenado o arguido por crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo art. 360.º, n.ºs 1 e 3, do CP e do qual acabou por vir a ser absolvido, por não se ter apurado que o depoimento prestado em audiência não era conforme a realidade.
E absolveu-se apesar de se ter dado como provada na sentença recorrida, a seguinte matéria de facto:
«5. O depoimento prestado em sede de inquérito e o prestado em audiência são contrários entre si, sendo um deles desconforme com a realidade.
6. O arguido sabia que um desses depoimentos não era conforme à realidade e, não obstante, quis mesmo assim prestá-lo nesses termos, no âmbito de um processo-crime, ciente que o fazia na qualidade de testemunha e perante a entidade competente.
7. Agindo livre voluntária e conscientemente». Ora, discorda-se de tal entendimento, uma vez havia matéria de facto, para que o arguido fosse condenado, por a mesma pessoa ter prestado dois depoimentos contraditórios no mesmo processo.
E discorda-se da tese defendida no despacho aqui recorrido, que foi beber os fundamentos àquele acórdão, porque para além de tal questão ter a ver com o mérito da causa, a mesma deve ser conhecida em audiência de julgamento e a que deve ser estranho o despacho de saneamento do art. 311.º, do CPP.
Voltemos à factualidade da acusação.
No dia 30/4/2015, no âmbito do inquérito n.º 150/15.9JACBR, o arguido ouvido pela Polícia Judiciária, na qualidade de testemunha, declarou de forma circunstanciada e pormenorizada a forma como a substância «xxx» ou «yyy» que consumiu tinha sido introduzida no EP (factos 1.º a 13.º).
No dia 2/7/2015, ouvido pelo Ministério Público o arguido declarou que acordou ao fim de sete dias no hospital e que não se recordava de ter prestado depoimento à Polícia Judiciária no dia 30/04/2015, versão que manteve, apesar de lhe ter sido lido tal auto de inquirição.
Nestes autos, conforme auto de interrogatório de 10/7/2017, de fls. 96 a 98, não quis prestar declarações.
Indicia-se nos autos que o arguido faltou à verdade, a que estava legalmente obrigado.
O arguido foi ouvido, como testemunha, relativamente aos factos que o levaram a perder a consciência e ao seu internamento de urgência com prognóstico muito reservado no Serviço de Urgência do Hospital C… no dia 26/4/2015.
No dia 30/4/2015, portanto depois de ser internado, prestou depoimento e recordou-se perfeitamente descrevendo em pormenor como ocorreram os factos.
E depois no dia 2/7/2015, provavelmente já mais restabelecido, já se não lembra?
O bem jurídico tutelado pelo crime de falsidade de testemunho p. e p. pelo art. 360.º, do CP, visa a boa administração da justiça, impondo designadamente a quem depuser como testemunha que deponha com verdade e não falte a tal dever de forma voluntária e consciente.
Conforme dispõe o art. 132.º, CPP, entre os diversos deveres da testemunha, a al. d), do n.º 1, impõe-lhe o dever de “responder com verdade às perguntas que lhe forem dirigidas”.
O arguido, enquanto testemunha, estava obrigado prestar um depoimento verdadeiro e o seu dever era não faltar à verdade, não mentir nunca (rectius, dizer sempre a verdade). Contudo faltou à verdade, pondo em causa o bem jurídico protegido, ocorrendo falsidade da declaração proferida no processo judicial em curso, no qual os depoimentos contraditórios incidem sobre a mesma realidade, e que visava a realização da justiça no caso concreto.
E o facto de o arguido ter prestado declarações em determinado momento e no segundo se limitar a dizer que não se lembra, prestou um depoimento, em termos indiciários, que o arguido sabe não corresponder à verdade, pois ou incriminou os arguidos do inquérito n.º 150/15.9JACBR injustamente ou no segundo depoimento ao dizer que não se lembra pretende desresponsabilizar os mesmos arguidos.
Conforme se decidiu no Ac. do TRC de 12/7/2017 – Proc. 319/14.3TAMGR.C1, in www.dgsi.pt/jtrc, a circunstância de não se ter provado o momento em que o agente, então na qualidade de testemunha, faltou à verdade – no âmbito do inquérito ou no decurso de audiência de julgamento – não impede a conclusão de a prestação de depoimentos divergentes nas duas fases processuais referidas integrar, ainda assim, todos os elementos do tipo de crime previsto no artigo 360.º, n.º 1, do CP (falsidade de testemunho).
Relativamente ao caso concreto diremos que a acusação não tem de dizer em qual dos dois momentos temporais o arguido, na qualidade de testemunha, faltou à verdade, nos dois depoimentos prestados durante o inquérito, se quando foi inquirida pela Polícia Judiciária, se quando inquirida pelo Ministério Público, quando é certo que os dois depoimentos por ele prestados são contraditórios e absolutamente inconciliáveis e, por isso, um deles é necessariamente falso, não obstando a que se considere preenchido o crime de falso testemunho que lhe é imputado na acusação.
Esta é a posição que seguimos, por aliás se mostrar mais conforme com os fins que se pretende com tal incriminação e o bem jurídico que se visa tutelar.
Assim se decidiu no Ac. do TRC de 30/10/2013 – Proc. 802/11.2TaPBL.C1, in www.dgsi.pt/jtrc e Ac. do TRG de 2/5/2016 – Proc. 787/14.3T9GMR.G1, in www.dgsi.pt/jtrcg.
Neste mesmo sentido o Ac. do TRP de 30/1/2008 – Proc. 0712790- 1.ª Secção, relado por José Alberto Vaz Carreto, in www.dgsi.pt/jtrp, que decidiu, com um voto contra, no sentido de que existe crime de falsidade de testemunho, quando estivermos perante dois depoimentos antagónicos da mesma pessoa e face à contradição entre os dois depoimentos, necessariamente se concluirá que se um é verdadeiro ou outro será falso ou ambos falsos.
Este mesmo acórdão foi comentado por Nuno Brandão, Assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (bem como em conjunto comentou o acórdão Ac. do TRG de 29/6/2009 – Proc. 840/08.2TABRG.G1, que decidiu em sentido oposto e foi seguido pela senhora juíza), in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, n.º 3/2010, pág. 477 a 504 e que defende a mesma posição, a qual nos parece mais em consonância com as várias situações em que pode ocorrer o crime de falsidade de testemunho, quando praticado por testemunha, que tem o dever de contar a verdade, escrevendo a propósito desta questão o seguinte:
«Temos assim que, devendo valer um conceito subjectivo de falsidade, com o conteúdo enunciado supra, no caso de declarações sucessivas de uma testemunha abertamente contraditórias entre si há seguramente motivo para considerar existir falsidade de depoimento no sentido previsto pelo tipo objectivo de ilícito do crime de falsidade de testemunho inscrito no n.º 1 do art. 360.º do CP. Com efeito, quando esse comportamento da testemunha seja perspectivado na sua globalidade resulta claro que ao longo do processo não transmitiu sempre aos destinatários das suas declarações a realidade por si percepcionada relativamente aos factos objecto da inquirição. Essa falta de fidelidade à verdade, traduzida num desvio da declaração em relação à realidade apreendida pelo próprio declarante e descortinada através de uma visão integrada de toda a sua conduta processual, é por si só suficiente para implicar a prática de um ilícito-típico objectivo de falsidade de depoimento, como também entendeu a Relação do Porto e contra o que decidiu a Relação de Guimarães. Assim sendo, o desconhecimento ou a falta de referência à realidade efectivamente ocorrida não constitui obstáculo ao perfeccionamento do tipo objectivo, dado que essa realidade não releva para a aferição do preenchimento do ilícito-típico objectivo.
Não quer isso significar, naturalmente, que sempre que existam discrepâncias entre versões produzidas por uma mesma testemunha durante um processo haja necessariamente o cometimento de um crime de falsidade de depoimento. Ponto é que as divergências espelhem sem margem para dúvidas um comportamento processual da testemunha que em determinado momento se manifestou num relato infiel daquilo que pessoalmente conheceu à altura dos factos sobre os quais é ouvida; e além disso, que os demais elementos do facto punível, desde logo o dolo, possam ser afirmados.
Por último, uma palavra só para manifestar a nossa discordância perante a objecção de que não se apurando especificamente em que momento a testemunha faltou à verdade impõe-se a sua absolvição por falta de prova de qual das declarações é falsa.
Estamos aqui perante uma perspectiva que pretende fraccionar a actuação do agente em tantos momentos quantos os que ele foi chamado a depor, quando uma correcta ponderação do seu comportamento pressupõe necessariamente que o mesmo seja visto unitariamente e em toda a sua amplitude. Quando assim seja, não subsistirá dúvida quanto à circunstância de que em alguma altura da sua participação processual o agente faltou à verdade e como tal incorre num facto típico de falsidade de testemunho; podendo quando muito subsistir dúvida sobre o exacto momento em que tal ocorreu.
Dúvida essa que, caso tenha relevo penal ou processual penal (v. g., para efeitos de determinação do momento da prática do facto e da prescrição do procedimento criminal ou para a agravação prevista no n.º 3 do art. 360.º do CP), não poderá deixar ser valorada a favor do arguido, como também entendeu o Tribunal da Relação do Porto, mas que, em princípio, não será suficiente para comprometer a imputação da falsidade ao depoente». Nesta conformidade, contrariamente ao despacho recorrido, a factualidade descrita na acusação deduzida pelo Ministério Público, mostra-se suficiente para se afirmar indiciariamente a existência de crime, constando respectivamente dos factos 1 a 19 os elementos objectivos e dos factos 20 e 21 os elementos subjectivos do crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo art. 360.º, n.ºs 1 e 3, do CP.
Se o crime de falsidade de testemunho se verifica ou não em concreto, é questão que pertence ao mérito da causa e que face à nova redacção do art. 311.º, n.º 3, do CPP, não cabe ao juiz de julgamento pronunciar-se sobre a mesma no despacho de saneamento do processo, por respeito à separação dos princípios da acusação e do julgamento.
Importa referir que a norma do artigo 311.º, n.º 3, do CPP, que veda ao juiz de julgamento a possibilidade de rejeitar a acusação manifestamente infundada por insuficiência da prova indiciária, no caso de não ter havido instrução, não viola as garantias de defesa do arguido e não atenta contra o princípio da presunção de inocência, nomeadamente por não proceder à inversão de qualquer ónus probatório em desfavor do arguido, não sendo por isso inconstitucional, Cfr. Ac. do TC n.º101/2001, DR, II Série de 6-06-2001.
Como já referimos o processo criminal assume, por imposição constitucional, uma estrutura acusatória que, no essencial, se revela no facto do julgador se circunscrever dentro dos limites estabelecidos por uma acusação deduzida por um órgão diferenciado, sendo que essa estrutura foi acentuada com o adicionamento do n.º 3, do art. 311.º, do CPP, pela Lei n.º 59/98, de 25/8, a partir da qual alteração, o juiz de julgamento não pode apreciar a prova indiciária do inquérito e que a sua valorização apenas compete ao Ministério Público.
Ora, deste modo, a acusação só deve ser considerada manifestamente infundada, e consequentemente rejeitada, ao abrigo art. 311.º, n.º 3, al. d), do CPP, quando resultar evidente, que os factos nela descritos, mesmo que porventura viessem a ser provados, “não constituem crime”, isto é, os factos não constituem crime quando, entre outras situações, se verifica uma qualquer causa de extinção do procedimento ou se a factualidade em causa não consagra de forma inequívoca qualquer conduta tipificadora do crime imputado.
«Assim, o fundamento da inexistência de facto na acusação que constituam crime só pode ser aferido diante do texto da acusação, quando faltem os elementos típicos objectivos e subjectivos de qualquer ilícito criminal na lei penal Portuguesa ou quando se trate de conduta penalmente irrelevante», Cfr. anota Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, 2.ª Ed. UCE, pág. 791.
E ainda segundo o mesmo autor, in ob. cit., pág. 801 «…o despacho de rejeição de acusação manifestamente infundada faz caso julgado formal, embora não faça caso julgado material, uma vez que o juiz não chega a proferir decisão sobre o mérito da causa, pronunciando-se apenas sobre a inadmissibilidade daquela acusação qua tale dada a existência de vícios estruturais na mesma».
Não podia assim a senhora juíza, no despacho saneador, fazer um juízo sobre a relevância criminal dos factos, alicerçado em determinado entendimento doutrinal ou jurisprudencial, optando por uma solução jurídica, quando, na situação concreta, a questão não é unânime, quanto aos factos constituírem ou não crime, pois só em sede de julgamento deve ser ponderado o entendimento a seguir.
Em conclusão: Constando da acusação a descrição dos elementos objectivos e subjectivos, susceptíveis abstractamente de integrarem o crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo art. 360.º, n.ºs 1 e 3, do CP, não é necessário que se alegue o contrário daquilo que foi declarado, bastando imputar ao arguido as duas versões dos factos contraditórios e antagónicos que se excluem entre si e põem em causa, por si só, o princípio da verdade a que estava sujeito no seu depoimento enquanto testemunha, no mesmo processo.
*
III- Decisão:
Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, e, em consequência se revoga o despacho que, ao abrigo do art. 311.º n.ºs 2, al, a) e n.º 3, al. d), do CPP, rejeitou a acusação por manifestamente infundada, o qual deve ser substituído por outro, que receba a acusação.
Sem custas.
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NB: O acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art. 94.º, n.º 2 do CPP.
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Coimbra, 10 de Julho de 2018
Inácio Monteiro (relator)
Alice Santos (adjunta)