Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2393/20.4T8VIS.1.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: AZEVEDO MENDES
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
JUNTA MÉDICA
VALORAÇÃO DA PROVA PERICIAL
PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO
Data do Acordão: 11/09/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DO TRABALHO DE VISEU DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 106.º DO CPT, 388.º E 389.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – Um relatório pericial na fase contenciosa do processo de acidente de trabalho, designadamente o da junta médica não tem que descrever necessariamente quaisquer lesões ou doenças incapacitantes de que o sinistrado padece e estabelecer as respectivas incapacidades de acordo com a TNI, mas quando muito terá de descrever as lesões relacionadas com o acidente em apreciação.

II – O art. 106.º do CPT distingue nos elementos do relatório pericial as “lesões” e as “sequelas”, dando assim uma referência para aquilo que os pareceres médicos devem conter; por conseguinte, sendo as sequelas as que têm potencial incapacitante e que subsistem depois da “cura ou consolidação”, ou seja, depois da “alta”, não podem elas deixar de ser identificadas no parecer perícia médica – sobretudo a colegial em junta médica –, incluindo-se nessa identificação o nexo causal entre as lesões e essas sequelas.

III – Na prolação da decisão para fixação da incapacidade, o juiz não pode deixar de servir-se da prova obtida por meios periciais, isto é, quer o exame feito pela junta médica, quer o exame médico singular, mas tal não significa que está vinculado ao parecer dos peritos, já que o princípio da livre apreciação da prova lhe permite que se desvie do parecer daqueles, seja ele maioritário ou unânime.

IV – O tribunal da Relação pode e deve controlar a convicção do julgador da 1.ª instância quando os elementos dos autos permitam dúvidas razoáveis sobre aquela formação, mas elas não se colocam no caso em que não há motivos para valorizar mais o exame médico singular em relação ao exame por junta médica em que intervieram peritos todos eles da pertinente especialidade, devendo assim dar-se acertado relevo à experiência dos médicos, sobretudo quando têm formação especializada.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
Apelação n.º 2393/20.4T8VIS.1.C1
(secção social)
Relator: Azevedo Mendes
Adjuntos:
Felizardo Paiva
Paula Maria Roberto

Autor: AA
Rés: V..., Lda.
        Fidelidade - Companhia de Seguros, SA

 
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
I. Em processo emergente de acidente de trabalho, o autor intentou contra as rés esta acção pedindo que: I- seja declarado que, em consequência de acidente sofrido em 25 de Novembro de 2019, (a) encontrou-se totalmente incapacitado para o trabalho entre 26 de Novembro de 2019 e 18 de Setembro de 2020 (298 dias); (b) tem uma incapacidade permanente parcial para o trabalho de 23%; c) tem dependência de tratamentos médicos regulares e acompanhamento médico constante; II- e, em consequência desses factos, sejam as rés condenadas a: (a) pagar-lhe o capital de € 31.290,74 da remição da pensão anual e vitalícia de € 2.225,0, com início a 19 de Setembro de 2020;  (b) pagar-lhe as diferenças e incapacidades temporárias no valor de € 6.865.82; (c) pagar-lhe despesas de transporte no valor de € 15,00; (d) pagar-lhe todas as despesas com consultas médicas e tratamentos que venha a necessitar no futuro em virtude das consequências do acidente de trabalho sofrido em 25 de Novembro de 2019.
Alegou para tanto, em síntese, que no dia 25-11-2019 sofreu um acidente quando trabalhava, exercendo as funções de montador de redes de telecomunicações, sob as ordens e direcção da sua empregadora, a ré V..., Lda., mas cuja responsabilidade emergente de acidentes de trabalho se encontrava parcialmente transferida para a ré seguradora. O acidente consistiu em um arame ter perfurado o seu olho direito, sendo que tais lesões o tornaram portador de incapacidades temporárias e incapacidade permanente. Por outro lado, em consequência do acidente teve despesas com transportes que lhe devem ser ressarcidas.
Contestou a ré seguradora (a única que apresentou contestação), pugnando pela improcedência da acção e alegando que, apesar de aceitar a existência de um contrato de seguro através do qual se encontrava transferida para si a responsabilidade emergente de acidentes de trabalho sofridos pelo autor por parte da retribuição, o mesmo ficou curado sem sequelas das lesões que sofreu no acidente, sendo que as queixas que apresenta decorrem de patologia pré-existente – retinopatia diabética evoluída.
Foi proferido despacho saneador, tendo sido seleccionada a matéria de facto assente e indicados os temas de prova.
Foi aberto apenso para fixação de incapacidade e nele foi proferida decisão de acordo com a qual o autor se encontra curado sem qualquer incapacidade, em consequência do acidente dos autos, tendo padecido de ITA desde 26-11-2019 a 07-01-2020.
Prosseguindo o processo veio a ser proferida sentença que no mais julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência, declarando-se que o acidente sofrido pelo autor em 25-11-2019 constitui um acidente de trabalho indemnizável e que em consequência de tal acidente não ficou a padecer de qualquer incapacidade permanente, tendo padecido de ITA de 26-11-2019 a 07-01-2020, data da alta, condenou a ré V..., Lda., a pagar ao autor a quantia de € 107,21 a título de indemnização por incapacidades temporárias, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% desde o vencimento de cada prestação mensal até efectivo e integral pagamento. No mais, absolveu as rés dos restantes pedidos contra elas formulados.
É desta sentença que o autor vem apelar. Alegando, concluiu:
«I. No âmbito do presente processo e havendo lugar à fixação de incapacidade do ora recorrente, foi aberto apenso com esse propósito nos termos do art.º 126º, n.º 1 e 132º, n.º 1 do Cód. Proc. Trabalho;
II. Realizada junta médica, e não obstante os senhores peritos médicos terem constatado a perda de visão por parte do autor, consideraram que a mesma devia-se a doença natural pré-existente, acabando por não determinar o grau de incapacidade do sinistrado;
III. Não obstante poder a junta médica pronunciar-se quanto a outras questões no âmbito do apenso para fixação de incapacidade, esta “verificará quais as lesões que o sinistrado apresenta, respectivos coeficientes de desvalorização, data da alta/cura clínica e eventuais tratamentos de que careça independentemente da existência, ou não, de nexo causal entre as mesmas e o acidente” – in acórdão da Relação do Porto de 11/04/2019, proferido no âmbito do processo 2107/15.0T8PNF.P1 e disponível em www.dgsi.pt;
IV. Dessa omissão por parte da junta médica resultou que a decisão proferida não se pronunciou quanto ao grau de desvalorização, não obstante os senhores peritos médicos terem verificado a existência de uma desvalorização, a qual poderia ou não vir a ser considerada como resultante ou agravada pelo acidente sofrido pelo ora recorrente em 25 de Novembro de 2019, sendo essa perda de visão do conhecimento do tribunal, ao qual se impunha a realização das diligências necessárias para que fossem reunidos os elementos necessários à fixação de incapacidade;
V. Tendo a decisão quanto à fixação do grau de incapacidade para o trabalho por parte do ora recorrente sido totalmente omissa quanto à fixação do mesmo, verifica-se um vício daquela decisão que determina a nulidade da mesma por omissão de pronúncia nos termos conjugados do art.º 118º, alínea b), art.º140º, n.º 2, art.º 77º, todos do Cód. Proc. Trabalho, art.º 615, n.º 1, alínea d) e com o art.º 608º, n.º 2, ambos do Cód. Proc. Civil, ex vi, art.º 1º, n.º 2 do Cód. Proc. Trabalho;
VI. No despacho saneador proferido pelo tribunal a quo, tendo em consideração os pedidos realizados pelo autor e a matéria controvertida, fixou os temas de prova, sendo o último deles “apurar se existindo doença prévia ao acidente a mesma foi agravada em consequência das lesões sofridas no acidente”;
VII. A junta médica não se pronunciou quanto a essa questão, a qual não lhe foi colocada pela ré seguradora que a requereu, nem pelo tribunal recorrido, sendo que, atentas as questões a decidir no âmbito dos autos, a isso estaria obrigado nos termos do art.º 139º, n.º 6 do Cód. Proc. Trabalho;
VIII. Podendo, no entanto, pronunciar-se quanto ao eventual agravamento de patologia em virtude do acidente em crise com base na restante prova produzida, o tribunal recorrido não o fez, não se pronunciando quanto a esta questão;
IX. Sendo um ónus do tribunal, nos termos do art.º 608º, n.º 2 do Cód. Proc. Civil, ex vi, art.º 1º, n.º 2 do Cód. Proc. Trabalho, resolver todas as questões que as partes tenham trazido aos autos, a violação deste dever tem como consequência a nulidade da sentença, que ora se invoca, nos termos conjugados do art.º 77º do Cód. Proc. Trabalho, conjugado com o art.º 615, n.º 1, alínea d) e com o art.º 608º, n.º 2, ambos do Cód. Proc. Civil, ex vi, art.º 1º, n.º 2 do Cód. Proc. Trabalho;
X. O tribunal a quo procedeu ao julgamento incorrectamente de diversa matéria de facto, de que resultou a decisão final em considerar que o autor não ficou a padecer de qualquer incapacidade permanente decorrente do acidente ocorrido em 25 de Novembro de 2019;
XI. O tribunal julgou incorrectamente, como não provados, os factos 26 e 29 a 32 da petição inicial, tendo por outro lado julgado provado o ponto 14 da matéria de facto dada como provada na sentença recorrida;
XII. O tribunal recorrido julgou os factos n.º 29 a 31 da petição inicial como não provados porquanto apenas valorou as declarações prestadas pelo autor em sede de audiência de julgamos na medida em que as mesmas suportadas ou conjugadas com outra prova;
XIII. Relativamente ao facto n.º 29 da petição inicial o recorrente declarou que “Não, graças a Deus via a 100%. Nunca tive problemas de visão” - cfr. gravação de declarações prestadas em audiência de julgamento em 30 de Maio de 2022 com início às 09:51 horas e termo às 10:02 horas, nomeadamente entre minutos 03:20 e 3:30 da mesma
XIV. Referiu ainda que “trabalhava nos telefones, metia postes de madeira, passava linhas de, vá, que já era fibra, para os clientes. Fazia tudo. Era tudo. Era o que aparecia. (…) Ligava os cabos dentro do cliente e, claro, cá fora, nas ruas. Fazia tudo. Todo o tipo de trabalho que aparecia para fazer eu fazia” - cfr. gravação de declarações prestadas em audiência de julgamento em 30 de Maio de 2022 com início às 09:51 horas e termo às 10:02 horas, nomeadamente entre minutos 04:50 e 5:50 da mesma.
XV. Após o acidente de 25 de Novembro de 2019 a visão do recorrente ficou gravemente diminuída, conforme resulta dos relatórios médicos juntos aos autos, nomeadamente, relatório médico elaborado pelo médico oftalmologista, Dr. BB, junto aos autos com o restante processo clínico do ora recorrente pela Unidade de Saúde ... (USF ...), bem assim como do relatório da perícia de avaliação do dano corporal em direito do trabalho realizado pelo Instituto Nacional de Medicina Legal (INML);
XVI. Por outro lado, e conforme consta do referido processo clínico enviado aos autos pela USF ..., o recorrente nunca se tinha deslocado àquela unidade de saúde, onde era assistido pelo seu médico de família, Dr. CC, com queixas de perda de visão;
XVII. Facto corroborado pela declaração médica redigida pelo Dr. CC junta aos autos em 18 de Abril de 2022;
XVIII. Considerando a gravidade da perda de visão do olho direito por parte do recorrente verificada após 25 de Novembro de 2019, não é minimamente plausível que, e verificando-se em momento anterior ao acidente, o autor, ora recorrente, nunca tivesse procurado consulta junto do seu médico de família, tanto para mais que o autor é diabético, não insulina dependente, há muitos anos;
XIX. As declarações do autor conjugada com a demais informação clínica junta aos autos determina que o facto n.º 29 da petição inicial devesse ter sido julgado como provado;
XX. O mesmo acontece relativamente ao facto n.º 30 do mesmo articulado, porquanto o autor declarou em sede de audiência de julgamento que no âmbito da sua relação laboral com a ré V..., Lda. “metia postes de madeira, passava linhas de, vá, que já era fibra, para os clientes. Fazia tudo. Era tudo. Era o que aparecia. (…) Ligava os cabos dentro do cliente e, claro, cá fora, nas ruas. Fazia tudo. Todo o tipo de trabalho que aparecia para fazer eu fazia” - cfr. gravação de declarações prestadas em audiência de julgamento em 30 de Maio de 2022 com início às 09:51 horas e termo às 10:02 horas, nomeadamente entre minutos 04:50 e 5:40 da mesma.
XXI. Essas declarações encontram reflexo nos vários relatórios médicos juntos aos autos, nomeadamente o processo clínico do recorrente enviado aos autos pela USF ... em 01 de Outubro de 2020 e a declaração do médico de família, Dr. CC, junta aos autos em 18 de Abril de 2022, dos quais não consta qualquer referência a perda de visão por parte do recorrente;
XXII. Pelo que, deveria ter sido também julgado como provado o facto n.º 30 da petição inicial;
XXIII. Dos diversos documentos clínicos juntos aos autos – entre eles os relatórios clínicos juntos à petição inicial sob designação doc. 5 e doc. 6, nota de alta do Centro Hospitalar ... (...), relatório da peritagem da área de oftalmologia elaborado pela Dr.ª DD, historial clínico junto aos autos pela USF ... – resulta inequívoco que o recorrente, após 25 de Novembro de 2019, perdeu a quase totalidade da visão do olho direito;
XXIV. Essa informação clínica encontra eco nas declarações do autor, o qual afirmou em sede de audiência de julgamento que “fazia tudo. Todo o tipo de trabalho que aparecia para fazer eu fazia. (…) Depois por causa da vista já tinha mais… Prontos, já não via tão bem como via de primeiro com as duas vistas para fazer a ligação, porque aquilo é um fio muito fininho e já num, por causa da vista já num,… Já eram os meus colegas que faziam” - cfr. gravação de declarações prestadas em audiência de julgamento em 30 de Maio de 2022 com início às 09:51 horas e termo às 10:02 horas, nomeadamente entre minutos 05:20 e 5:50 da mesma.
XXV. Pelo que as declarações do recorrente conjugadas com a demais informação clínica junta aos autos não deixam margem para dúvidas que o facto n.º 31 da petição inicial deveria ter sido julgado provado, o que ora se peticiona;
XXVI. O ponto 14 da matéria de facto julgada como provada na sentença final deveria ter sido julgado não provado e, ao invés, os factos n.º 26 (segunda parte) e 32 da petição inicial deveriam ter sido julgados provados, passando-se a expor quais os meios probatórios que impõem tal decisão;
XXVII. O tribunal recorrido refere na motivação vertida na sentença que quanto “quanto à matéria que consta do n.º 14, o tribunal teve em consideração o teor das respostas aos quesitos dos senhores peritos no auto de junta médica efectuada no apenso, que confirmaram tais factos, não resulta tal parecer pericial contrariado por qualquer outra prova produzida em audiência”, no entanto, existe prova pericial nos autos que contraria frontalmente, e de forma fundamentada, o auto de exame por junta médica;
XXVIII. O relatório elaborado pelo INML conclui que “os elementos disponíveis permitem admitir o nexo de causalidade entre o traumatismo e o dano atendendo a que: existe adequação entre a sede do traumatismo e a sede do dano corporal resultante, existe continuidade sintomatológica e adequação temporal entre o traumatismo e o dano corporal resultante, o tipo de lesões é adequado a uma etiologia traumática e o tipo de traumatismo é adequado a produzir este tipo de lesões”, acabando por atribuir uma incapacidade permanente parcial para o trabalho de 23%
XXIX. Este relatório foi realizado por perito médico com base na observação do sinistrado, da documentação junta aos autos e em perícia médica na especialidade de oftalmologia, fundamentando de forma cabal as suas conclusões;
XXX. Por seu lado, o auto de exame por junta médica responde aos quesitos que lhe foram formulados de forma confusa – contraditória até – em apenas nove linhas, referindo que o recorrente padece de retinopatia diabética proliferativa – patologia também já considerada no relatório do INML – e que a mesma “facilita o aparecimento de hemovítreos, mesmo espontâneos”, concluindo que “neste caso o hemovítreo foi reabsorvido não havendo lugar à atribuição de IPP, sendo que a perda de visão decorre da sua doença natural”, podendo-se concluir que os senhores peritos médicos acabam por não fundamentar a sua decisão, desde logo, porque não determinam qual a causa concreta da perda de visão do recorrente;
XXXI. Os meios de prova pericial são livremente apreciados pelo tribunal, sem que o juiz se encontre vinculado a nenhum deles e sem que algum deles tenha prevalência sobre os demais, pelo que, deve o tribunal apreciar a prova pericial em confronto com os demais elementos probatórios, os quais, no caso vertente, não encontram reflexo nas respostas aos quesitos formuladas pelos senhores peritos médicos que constituíram a junta médica – com excepção da informação clínica junta aos autos pela ré seguradora, a qual tem natural interesse no desfecho da causa, e que acaba por ser, inclusive, citado pelos senhores peritos médicos;
XXXII. Pelo contrário, o relatório pericial do INML é aquele que encontra reflexo, não só, nos diversos elementos probatórios juntos aos autos, nomeadamente, relatórios de episódio urgência, processos clínicos, notas de alta e relatórios médicos, como também nas declarações do recorrente;
XXXIII. Pelo que, julgando-se não provados o ponto 14 da matéria de facto que consta da sentença recorrida e provados os factos 26 e 29 a 31 da petição inicial, alterando-se em consequência a decisão recorrida, declarando-se que, decorrente do acidente sofrido em 25 de Novembro de 2019 o sinistrado ficou a padecer de incapacidade parcial permanente para o trabalho, com um grau de desvalorização de 23%.»

Nas contra-alegações ao recurso, a seguradora concluiu pela improcedência do recurso e idêntica posição foi manifestada, em parecer, pelo Ex.mo Procurador-Geral Adjunto.
*
II- Factos considerados provados e não provados:
Da decisão sobre a matéria de facto é a seguinte a factualidade que vem dada como provada:
1. O autor AA nasceu no dia .../.../1973 (cfr. doc. de fls. 39).
2. O autor é funcionário da ré V..., Lda., pessoa colectiva n.º ..., desempenhando as funções de montador de redes de telecomunicações e AT/CT, auferindo em Novembro de 2019 a remuneração de € 650,00 x 14, acrescida de € 5,86 x 22 x11 de subsídio de alimentação, € 143,00 x 14 de outras remunerações e ainda € 1.300,02 de média de ajudas de custo.
3. No âmbito dessa relação laboral, a responsabilidade decorrente de qualquer acidente de trabalho encontra-se transferida para a ré Companhia de Seguros Fidelidade – Mundial S.A., através da apólice n.º ...10, pela retribuição de € 650,00 x 14, acrescida de €5,86 x 242 e €143,00 x 14.
4. No dia 25 de Novembro de 2019, enquanto se encontrava a desempenhar funções sob ordens e direcção da sua entidade empregadora em ... (distrito ...), o autor sofreu um acidente de trabalho.
5. Tal acidente consistiu em ter sido atingido no olho direito com um arame.
6. Decorrente dos ferimentos sofridos foi necessário que o autor recebesse cuidados de saúde.
7. O autor recebeu inicialmente os cuidados de saúde no Hospital ..., de onde foi transferido para o serviço de oftalmologia do Hospital ..., em ....
8. O referido acidente foi objecto de participação à ré seguradora, a qual passou a acompanhar clinicamente o sinistrado, tendo considerado o acidente tendo considerado o acidente como ocorrido em serviço, atribuindo-lhe o n.º de processo interno ...23/00.
9. Tendo-lhe sido dado alta médica pela seguradora, em 07 de Janeiro de 2020, sem desvalorização.
10. O autor foi encaminhado por médico particular para o Centro Hospitalar ..., para ser observado por especialidade de oftalmologia no serviço de urgência, onde deu entrada no dia 18 de Junho de 2020.
11. Em 23 de Junho de 2020, o autor dirigiu-se a consulta no Hospital ..., em ..., tendo sido transferido para o Centro Hospitalar ..., onde esteve internado.
12. O autor continuou a ser seguido pelo serviço de oftalmologia do Hospital ....
13. O autor procedeu à participação do acidente de trabalho junto da Procuradoria do Ministério Público no Juízo de Trabalho de Viseu, tendo o sinistrado sido sujeito a perícia médica no Instituto Nacional de Medicina Legal no âmbito da fase conciliatória do competente processo de acidente de trabalho, onde foi elaborado o relatório constante de fls. 82 a 85 dos autos cujo teor aqui se dá por reproduzido.
14. As queixas que o autor apresenta actualmente decorrem de patologia pré-existente - retinopatia diabética proliferativa, doença natural.
15. A ré pagou ao autor a título de indemnização por incapacidades temporárias o valor de € 1.032,48.
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Da mesma decisão sobre a matéria de facto é a seguinte a factualidade que vem dada como não provada: da petição inicial a demais matéria dos artigos 3º, 7º, 9º, 10º, 11º, 12º, 26º, 29º, 30º, 31º, 32º, 33º e 36º que não consta dos factos provados, sendo que os artºs 8º, 20º a 25º, 27º, 28º, 34º e 35º “contêm apenas matéria conclusiva ou de direito ou sem interesse para a decisão”; da contestação, os artigos 1º a 4º, 7º, 8º, 10º, 11º, 12º, 14º, 15º, 17º a 25º “contêm apenas matéria de impugnação, conclusiva ou de direito”.
*
III- Apreciação
É pelas conclusões das alegações que se delimita o âmbito da impugnação.

Decorre do exposto que as questões que importa resolver se podem equacionar da seguinte forma:

- nulidade por omissão de pronúncia da decisão final do incidente apenso de fixação de incapacidade e, reflexamente, nulidade da sentença por omissão de pronúncia;

- se a decisão sobre a matéria de facto merece alteração, em resultado da impugnação no recurso.

1. A questão das nulidades da decisão sobre a fixação da incapacidade e da sentença:

a) Alega o apelante que, havendo lugar à fixação de incapacidade, foi aberto apenso com esse propósito nos termos do art.º 126.º, n.º 1 e 132,º, n.º 1 do Cód. Proc. Trabalho e, realizada junta médica, não obstante os senhores peritos médicos terem constatado a perda de visão por parte do autor, consideraram que a mesma devia-se a doença natural pré-existente, não determinando o grau de incapacidade de que padece, devendo fazê-lo. Considera, assim, que é verificável uma nulidade da decisão por aplicação do art. 615.º n.º 1, alínea d) do Código de Processo Civil.

Deve dizer-se que esta questão já tinha sido colocada em reclamação do exame pericial por junta médica e que o autor suscitou no dito apenso de fixação de incapacidade. Tal reclamação foi apreciada e indeferida pelo tribunal recorrido, o qual considerou que a junta médica tinha respondido a todas as questões que lhe foram colocadas, por unanimidade e com suficiente clareza.

No despacho saneador determinou-se o desdobramento do processo para a fixação da incapacidade e delimitaram-se como temas de prova entre outros o “apurar (…) se o autor padece de alguma IPP e em caso afirmativo em que medida”, o “apurar se as lesões e queixas de que o autor padece decorrem de doença natural prévia ao alegado acidente” e o “apurar se existindo doença prévia ao acidente a mesma foi agravada em consequência das lesões sofridas no acidente”.

Apenas a seguradora apresentou quesitos à junta médica. O autor/apelante não o fez.

No apenso mostra-se junta cópia com os temas de prova supraditos a que os Srs. peritos poderiam ter acesso.

E a nosso ver, os quesitos apresentados pela seguradora abrangiam suficientemente tais temas de prova. Foram eles:

«1. Considerando o acidente de trabalho dos autos, ficou o sinistrado portador de sequelas incapacitantes?

2. Considerando que o sinistrado é portador de patologia prévia - retinopatia diabética evoluída - que facilita o aparecimento de homovítreos, mesmo espontâneos, haverá lugar à atribuição de IPP, ao abrigo da TNI, pelo evento dos autos?

3. Em caso afirmativo, quantifique e justifique?

4. Há períodos de ITA e ITP a considerar?

5. Em caso afirmativo, quantifique e justifique?»

Os Srs.peritos responderam por unanimidade a tais quesitos do seguinte modo:

«Quesito 1.º - em consequência do acidente dos autos o sinistrado não apresenta sequelas;

Quesito 2.º- O sinistrado padece de patologia prévia (retinopatia diabética proliferativa) que facilita o aparecimento de hemovítreos, mesmo espontâneos. Neste caso o hemovítreo foi reabsorvido não havendo lugar à atribuição de IPP, sendo que a perda de visão decorre da sua doença natural.

Quesito 3.º- prejudicado.

Quesito 4.º e 5.º- O sinistrado padece das incapacidades atribuídas pela seguradora a fls. 20 ou seja, ITA desde 26-11-2019 a 7-01-2020, sendo esta a data da alta.

Na decisão final proferida no apenso, com base nesse mesmo parecer da junta médica, foi decidido que o autor sinistrado se encontrava curado sem qualquer incapacidade.

Diz o apelante, citando acórdão da Relação do Porto, que, não obstante poder a junta médica pronunciar-se quanto a outras questões no âmbito do apenso para fixação de incapacidade, esta deveria verificar “quais as lesões que o sinistrado apresenta, respectivos coeficientes de desvalorização, data da alta/cura clínica e eventuais tratamentos de que careça independentemente da existência, ou não, de nexo causal entre as mesmas e o acidente”.

Ora, o único preceito do Código de Processo do Trabalho que se refere ao formalismo de relatório pericial em acidentes de trabalho é o artigo 106.º, relativo à perícia na fase conciliatória do processo, cujo n.º 1 indica: “no relatório pericial, o perito médico deve indicar o resultado da sua observação clínica, incluindo o relato do evento fornecido pelo sinistrado e a apreciação circunstanciada dos elementos constantes do processo, a natureza das lesões sofridas, a data de cura ou consolidação, as sequelas e as incapacidades correspondentes, ainda que sob reserva de confirmação ou alteração do seu parecer após obtenção de outros elementos clínicos ou auxiliares de diagnóstico”.

Similarmente, portanto, não dando o legislador outro qualquer quadro, aquele que nos é dado pelo art. 106.º deve iluminar os pareceres médicos (singulares ou colegiais) na fase contenciosa, pois fornece os reais elementos habilitantes à decisão jurisdicional que haja que tomar no processo.

Contudo, um relatório pericial na fase contenciosa do processo de acidentes de trabalho não tem necessariamente que descrever quaisquer lesões ou doenças incapacitantes de que o sinistrado padeça e estabelecer as respectivas incapacidades de acordo com a TNI. Quando muito terá de descrever as relacionadas com o acidente em apreciação. Mas uma coisa são as lesões sofridas no acidente e outra coisa são as sequelas delas decorrentes. Por isso, o referido art. 106.º distingue nos elementos do relatório pericial as “lesões” e as “sequelas”.

Normalmente os problemas de nexo de causalidade colocam-se entre o evento lesivo e as lesões resultantes desse evento e é nesta dimensão que geralmente uma perícia médica não tem condições de dar uma resposta definitiva, uma vez que a sua ponderação depende de outros elementos de prova que só ao juiz, perante o conjunto a valorar e no âmbito dos seus poderes jurisdicionais, caberá apreciar. Já as sequelas das lesões sofridas são aquelas que têm potencial incapacitante e que subsistem depois da “cura ou consolidação”, ou seja, depois da “alta”. Quanto a estas, a perícia médica – sobretudo a colegial, em junta médica – não poderá deixar de dar o seu parecer, incluindo o que quanto ao nexo causal entre as lesões e essas sequelas disser respeito.

Aqui chegados, devemos dizer que se a junta médica emite parecer de acordo com o qual determinada lesão ou doença de que o sinistrado padece não tem relação com as lesões sofridas no acidente, é de aceitar que fica prejudicada a questão de saber se lhes corresponde qualquer desvalorização enquadrada na Tabela Nacional de Incapacidades.
No caso dos autos, não se manifestam dúvidas relativamente ao nexo causal entre o evento e as lesões sofridas pelo autor (atingido no olho direito com um arame). As dúvidas reportaram-se apenas quanto às sequelas que sobrevieram após a alta e sobre elas a junta tinha de se pronunciar, como fez, não lhe cabendo, porque prejudicado, estabelecer desvalorização quantificada sobre lesão ou doença não relacionada com as lesões sofridas em consequência do acidente.
Por consequência, não verificamos qualquer omissão de pronúncia que contamine de nulidade quer o parecer da junta médica, quer a decisão proferida no apenso de fixação de incapacidade que nele se apoiou.

b) Alega por outro lado apelante que, tendo o despacho saneador fixado como tema de prova o “apurar se existindo doença prévia ao acidente a mesma foi agravada em consequência das lesões sofridas no acidente” e não tendo havido pronúncia da junta médica sobre isso, o tribunal recorrido estava obrigado a colocar a questão aos peritos, por quesitos e nos termos do art. 139.º, n.º 6 do CPT. Não o fazendo, o tribunal teria acabado por não se pronunciar sobre a questão, pelo que a sentença padeceria de nulidade por omissão de pronúncia.

O art. 139.º, n.º 6 do CPT estabelece que é “facultativa a formulação de quesitos para perícias médicas, mas o juiz deve formulá-los, ainda que as partes o não tenham feito, sempre que a dificuldade ou a complexidade da perícia o justificarem”.

Já acima dissemos que foram formulados quesitos e que, a nosso ver, abrangiam suficientemente os temas de prova (designadamente os quesitos 1.º a 3.º).

E já dissemos também que a sentença se pronunciou quanto à questão das sequelas, colocada pelo autor, negando a sua existência (ainda que por agravamento de doença natural).

Por isso, não reconhecemos existir qualquer nulidade da sentença por omissão de pronúncia.

2. A questão da impugnação da decisão sobre a matéria de facto:

Das alegações e conclusões de recurso percebe-se que o recorrente considera incorrectamente julgados os seguintes pontos da matéria de facto:

- pontos não provados elencados nos artigos 26.º, 29.º, 30.º, 31.º e 32.º da petição inicial;

- ponto 14. da matéria provada;

Analisando:

a) Quanto à matéria alegada no art. 29.º da petição inicial:

Defende o apelante que deve ser considerado como provado o que ali alegou, ou seja, que “o autor, antes do acidente, trabalhava sem qualquer limitação”.

Na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, ficou consignado o seguinte:

«Os factos não provados resultam da ausência de prova que lograsse convencer o tribunal ou prova do contrário nos termos que ficaram expostos, sendo certo que apenas o Autor prestou declarações em audiência, não tendo sido apresentada qualquer outra prova , pelo que atento o natural interesse do Autor no desfecho da acção não foram valoradas as declarações do mesmo que não estivessem suportados ou conjugadas com qualquer outro elemento de prova, não logrando por isso as suas declarações convencido o tribunal quanto ao facto de antes do acidente não ter tido qualquer problema de visão, sendo certo que das respostas aos quesitos resulta que o mesmo padecia de patologia pré-existente ao acidente.

Assim, na ausência de outros elementos de prova ou prova do contrário foram os aludidos factos considerados não provados.»

Sustenta o autor no recurso que, ao prestar declarações de parte e questionado sobre se tinha problemas de visão anteriores ao acidente, respondeu “Não, graças a Deus via a 100%. Nunca tive problemas de visão”, questionado sobre se trabalhava normalmente, respondeu “sim, sim, sim. Trabalhava a 100%” e, questionado sobre se tinha conhecimento de que tinha diabetes, respondeu “diabetes já os tinha há muito tempo, só que, em termo de ver nunca tive problemas. Pelo contrário, via mesmo mesmo bem. Nunca tive problemas nenhuns. O problema que foi, foi quanto piquei a vista, ela cobriu logo com sangue e depois deixei de ver”. Por outro lado, diz que existem elementos no processo que corroboram tais afirmações como decorre dos exames médicos juntos aos autos, nomeadamente e entre outros, o relatório médico elaborado pelo médico oftalmologista, Dr. BB, junto aos autos com o restante processo clínico do ora recorrente pela Unidade de Saúde ..., bem assim como do relatório da perícia de avaliação do dano corporal na fase conciliatória dos autos que refere que o sinistrado não vê praticamente nada do olho direito, possuindo apenas percepção luminosa naquele olho. Indica ainda uma “declaração médica” elaborada pelo médico de família e junta aos autos em 18 de Abril de 2022, na qual se diz que “não consta do processo qualquer registo de perda de visão impeditiva da sua actividade diária, anterior ao acidente”.

Tratava-se de saber se o autor antes do acidente tinha limitação no trabalho.

A prova é fraca, como disse a Sr.ª juíza a quo. As declarações do sinistrado têm, à partida, o valor de uma parte que defende a sua causa e os elementos clínicos constantes do processo, colhidos na sua fase conciliatória, apenas dão conta do que foi verificado após o acidente. Já a “declaração médica” que refere não constar do processo um registo de perda de visão impeditiva de actividade tem o valor reduzido de dar conta de um testemunho virtual, sem o contraditório da audiência de julgamento.

A Sr.ª juíza teve a possibilidade de colher a imediação do depoimento do autor, o que no nosso caso não acontece. Daí que não possamos detectar com a necessária segurança qualquer erro de julgamento determinado pela irrazoabilidade da convicção formada.

Por conseguinte, uma vez que os elementos observados não conduzem inequivocamente a uma resposta diversa da dada em 1.ª instância, deverá prevalecer a resposta dada pelo tribunal a quo, no domínio da convicção que formou com fundamento no princípio da sua livre convicção e liberdade de julgamento.

Mantemos assim esta matéria como não provada.

b) Quanto à matéria alegada no art. 30.º da petição inicial:

Defende igualmente o apelante que deve ser considerado como provado o que ali alegou, ou seja, que “possuía uma capacidade de visão que não o impedia de trabalhar, nem tão pouco o limitava na execução das suas funções”.

Os meios de prova que apresenta na sua impugnação são os mesmos que no anterior ponto analisado e, aliás, os factos em causa são equivalentes.

Não nos merecem grandes dúvidas que o autor trabalhava na sua actividade normalmente, antes do acidente, não só perante as suas declarações que ouvimos, mas também porque não há registo nos autos que o não fizesse, estando mesmo provado que o fazia, ao menos nos pontos de facto 2. e 4.. Mas mais do que de tais factos resulta, não nos parece que se possa estabelecer com segurança, depois da convicção estabelecida pelo tribunal recorrido, na qual já dissemos que não encontramos manifesto erro de julgamento.

Deste modo, tal como fizemos em relação ao anterior ponto de facto analisado, mantemos quanto a este a resposta de não provado.

c) Quanto à matéria alegada no artigo 31.º da petição:

Tal facto é assim redigido “circunstância que sofreu grandes alterações após o acidente de trabalho sofrido, porquanto o sinistrado passou a ver menos do olho direito - aquele que foi perfurado pelo arame”.

Pressupõe essa formulação que antes do acidente o autor não tinha quaisquer problemas de visão no olho direito.

Por conseguinte, como já dissemos que não encontramos motivos para alterar a “resposta” dada pelo tribunal a quo aos anteriores pontos analisados, da mesma forma também o não podemos fazer quanto a este ponto, no mesmo plano em que não encontramos manifesto erro de julgamento.

Por conseguinte, mantemos a resposta de “não provado”.

d) Quanto à matéria alegada nos artigos 26.º e 32.º da petição e quanto ao ponto 14. da matéria provada:

O ponto 14. dos factos provados tem a seguinte redacção: “as queixas que o autor apresenta actualmente decorrem de patologia pré-existente - retinopatia diabética proliferativa, doença natural”. Este ponto, segundo o apelante, deveria ser dado como não provado.

Em seu lugar deveria ser provado um facto redigido a partir da alegação feita nos artigos 26.º e 32.º da petição, como seja: “não se encontra curado sem desvalorização, pois apresenta sequelas graves decorrentes do acidente de trabalho sofrido em 25 de Novembro de 2019, circunstância que determina uma incapacidade permanente parcial de 23%”.

Refere-se o apelante à fundamentação dada pelo tribunal a quo quanto a tal matéria (“quanto à matéria que consta do n.º 14, o tribunal teve em consideração o teor das respostas aos quesitos dos senhores peritos no auto de junta médica efectuada no apenso, que confirmaram tais factos, não resulta tal parecer pericial contrariado por qualquer outra prova produzida em audiência”), para sustentar que existe outro elemento de prova que deve ser considerado, como seja o relatório da perícia singular realizada na fase conciliatória do processo.
Como é jurisprudência pacífica, para fixar a natureza das lesões, as sequelas ou o grau de desvalorização deve o juiz lançar mão dos pareceres dos peritos médicos existentes nos autos, seja em exame singular, seja em junta médica, ou mesmo de exames e pareceres complementares que entenda mandar proceder ou requisitar, sendo certo que a força probatória desses pareceres periciais é fixada livremente pelo tribunal, conforme o disposto no art. 389.º do Código Civil.
O exame médico, quer singular, quer por junta médica, previsto no CPTrabalho inscreve-se no âmbito da denominada prova pericial, regendo-se para além do disposto naquela norma, também pelas que no Código de Processo Civil disciplinam este meio de prova. A prova pericial tem por fim, conforme art. 388.º do Código Civil “a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem” ou quando os factos “relativos a pessoas, não devam ser objecto de inspecção judicial”. Conforme escreveu o Professor Alberto dos Reis, “o verdadeiro papel do perito é captar e recolher o facto para o apreciar como técnico, para emitir sobre ele o juízo de valor que a sua cultura especial e a sua experiência qualificada lhe ditarem” (in Código do Processo Civil Anotado, vol. IV, p. 171).
Por conseguinte, o juiz não pode deixar de servir-se da prova obtida por meios periciais, isto é, o exame feito pela junta médica e o exame médico singular, e o princípio da livre apreciação da prova permite-lhe que se desvie do parecer daqueles, seja ele maioritário ou unânime. Porém, quer adira ou quer se desvie, por a ele caber na sua livre convicção decidir, é-lhe sempre exigido que deixe expressa a sua motivação, isto é, os fundamentos ou razões por que o faz.
E este tribunal pode e deve controlar a convicção do julgador da 1.ª instância quando os elementos dos autos permitam dúvidas razoáveis sobre aquela formação.
Mas no caso tais dúvidas não nos ocorrem, não merecendo acolhimento a posição do apelante.
No exame singular, o perito médico valorizou a situação actual do sinistrado com problemas de visão no olho direito, para admitir que existiria nexo de causalidade entre a lesão/traumatismo ocorrida no acidente e os ditos problemas.
No exame por junta médica, em que intervieram peritos todos eles oftalmologistas (conforme consta do respectivo termo de nomeação), estes pronunciaram-se de forma unânime pelo não agravamento, desvalorizando aquela outra apreciação sobre as queixas do sinistrado valorizadas na perícia singular, concluindo que a perda de visão resulta de doença natural, patologia pré-existente - retinopatia diabética proliferativa.
Neste caso deve naturalmente contar a experiência dos médicos, sobretudo daqueles que têm formação especializada como é o caso.
Uma junta médica reuniu e discutiu o caso, contando já nessa discussão com o exame médico singular realizado e desconsiderou o resultado deste.
Assim, na ponderação de tais elementos compreende-se bem que o julgador na formação da sua livre convicção não possua fundamento para deixar de aceitar o parecer da junta médica.
Por conseguinte, não encontramos motivos razoáveis para colocar em causa a apreciação do julgador da 1.ª instância.
E, assim, a impugnação da decisão sobre a matéria de facto deve improceder.
E improcedendo esta impugnação, bem como a apreciação das nulidades arguidas, dependendo o sucesso da apelação da procedência de uma e de outra, não há como não manter a sentença recorrida.

Em consequência, a apelação não pode proceder.


*
Sumário:
(…).

**

IV- DECISÃO
Termos em que se delibera julgar improcedente a apelação.

Custas pelo apelante.

                          Coimbra, 9 de Novembro de 2022

 
                                              (Luís Azevedo Mendes)
                                              (Felizardo Paiva)
                                              (Paula Maria Roberto)