Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
546/07.0TBCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FALCÃO DE MAGALHÃES
Descritores: INJUNÇÃO
ACÇÃO DECLARATIVA
PRESSUPOSTOS
TRANSACÇÃO COMERCIAL
Data do Acordão: 01/24/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VARA DE COMPETÊNCIA MISTA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: DL Nº 269/98, DE 01/09; DL Nº 32/2003, DE 17/02; DL Nº 107/2005, DE 01/07
Sumário: I – O D. L. nº 269/98, de 01/09, estabeleceu o regime jurídico dos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada do tribunal de 1ª instancia, mantendo, embora com alterações, o procedimento de injunção criado pelo DL 404/93, de 10/12, diploma este que veio a revogar.

II – O D. L. nº 32/2003, de 17/02, veio, entre o mais, alargar a possibilidade de recurso às injunções a todos os pagamentos efectuados como remuneração de transacções comerciais (artº 2º).

III – Neste diploma definiu-se “transacção comercial” como “qualquer transacção entre empresas ou entre empresas e entidades públicas, qualquer que seja a respectiva natureza, forma ou designação, que dê origem ao fornecimento de mercadorias ou à prestação de serviços contra uma remuneração” – artº 3º, al. a) -, tendo-se definido “empresa” como “qualquer organização que desenvolva uma actividade económica ou profissional autónoma, mesmo que exercida por pessoa singular” – artº 3º, al. b).

IV – De harmonia com o preceituado no artº 7º, nº 1 desse DL nº 32/2003 “o atraso de pagamento em transacções comerciais, nos termos previstos no presente diploma, confere ao credor o direito a recorrer à injunção, independentemente do valor da dívida” – artº 7º do DL nº 269/98, na redacção que lhe foi dada pelo DL 32/2003.

V – Por outro lado, estabeleceu-se no nº 2 desse artº 7º do DL nº 32/2003 que “para valores superiores à alçada do tribunal de 1ª instância, a dedução de oposição no processo de injunção determina a remessa dos autos para o tribunal competente, aplicando-se a forma de processo comum”.

VI – O artº 7º do Regime estabelecido em anexo ao DL nº 269/98 voltou a sofrer alterações com o DL nº 107/2005, de 01/07, pelo qual foi definido o que se considera ser uma injunção.

VII – A transmutação do procedimento de injunção, por via de oposição que seja deduzida, em acção declarativa de condenação, não legitima a utilização indevida daquele, derivada da falta de pressupostos que o possibilitariam.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I - A) - 1) - A..., residente em Coimbra, instaurou em 22/01/2007, nos Juízos Cíveis de Coimbra, contra “B..., LDA.” e os sócios desta, C..., D..., E... e F..., procedimento de injunção, pedindo o pagamento da quantia de € 34.164,27, correspondente à soma da quantia de € 240,00, respeitante à taxa de justiça paga, com a quantia de € 33.924,27 que disse respeitar ao capital do empréstimo que efectuou aos sócios da “ B..., LDA.”, para a realização de obras no seu estabelecimento comercial, empréstimo esse que se concretizou mediante a entrega um cheque de 2.500,00 €, em 14/07/2003 e de outro cheque de € 31.424,27, em 28/07/2003.

No Requerimento de injunção, à frente da expressão “Obrigação emergente de transacção comercial (DL n.º 32/2003, de 17 de Fevereiro)”, foi assinalado com “X” o espaço reservado ao “Não”.

2) - Todos os Requeridos deduziram oposição - o Requerido F..., autonomamente dos restantes -, tendo, entre o mais, arguido o uso indevido do procedimento de injunção, alegando quanto a isso, em síntese, que a obrigação pecuniária cujo cumprimento era peticionado tinha valor bem superior à alçada do Tribunal da Relação e não se tratava de uma transacção comercial na acepção do que está definido no artigo 3º. do Decreto Lei 32/2003, nem o A. o invocara.

3) - Em virtude de ter sido deduzida oposição os autos foram remetidos às Varas de Competência Mista de Coimbra, tendo aí sido distribuídos à 1ª Secção, onde se proferiu o despacho de fls. 78, em que, invocando-se o disposto no artº 16º do DL 269/98, e nos artºs 508º, nº 3 e 265º, nº 2, do CPC, se convidou o Autor a apresentar petição em conformidade com o disposto no artº 467º desse Código.

4) - Na sequência desse despacho veio o Autor a apresentar nova petição em que alegou ter efectuado o referido empréstimo no total de € 33.924,27, mediante a entrega dos mencionados cheques, empréstimo esse nulo, por inobservância da forma legal, não tendo os RR, apesar de ele, Autor, o ter tentado, restituído a correspondente quantia.

Terminou pedindo a condenação solidária dos RR a pagarem-lhe a quantia de € 34.164,27.

5) - Por despacho de 04/05/2007, invocando-se o oferecimento da nova petição e o disposto no artº 508, nº 4, do CPC, foi concedido o prazo de 10 dias para os Réus, querendo, se pronunciarem.

6) - Os RR “ B..., LDA.”, D... e E..., vieram deduzir resposta que terminaram pedindo que, por serem partes ilegítimas, se absolvessem da instância os RR D... e E..., absolvendo-se do pedido a Ré, ou, caso assim se não entendesse, que se julgasse a acção totalmente improcedente e se absolvessem os RR do pedido.

7) - Também o R. E... veio oferecer articulado, onde, para além de dar por reproduzido o alegado na oposição à injunção, veio arguir a sua própria ilegitimidade e negar que algum empréstimo tenha sido efectuado à ré “ B..., LDA.” ou aos respectivos sócios.

Terminou pedindo a sua absolvição do pedido ou, julgando-se procedente a excepção, a sua absolvição da instância.

8) - O Autor apresentou Réplica em que concluiu nos termos que havia feito na petição.

9) - Os RR vierem requerer que se desentranhasse a réplica ou, pelo menos, que se tivesse como não escrita parte da factualidade que nela se alegou.

10) - No despacho saneador que veio a ser proferido em 10/10/2008 (fls. 141 a 144), relegou-se para final o conhecimento da arguida ilegitimidade e, entre o mais, exarou-se o seguinte: «O processo é o próprio e não enferma de nulidades que o invalidem».

Fixaram-se os factos que se consideravam já assentes e elaborou-se a base instrutória.

11) - A Ré “B... LDA.” e os RR que com ela apresentaram defesa comum, notificados do despacho saneador, dos factos considerados assentes e da BI, vieram, através do requerimento de fls. 148 e ss., reclamar contra a selecção da matéria de facto e arguir a nulidade da omissão de notificação de várias peças processuais, respectivos documentos apresentados e, ainda, de despachos judiciais.

Nesse requerimento, afirmam, em síntese, que:

a)- Não lhes foram notificados:

«2.1.- A oposição de fls. 50 a fls. 65, que inclui o documento de fls. 59 a fls. 64;

2.2.-O douto despacho de fls. 78;

2.3- Os documentos de fls. 85 e de fls. 87;

2.4- O articulado de fls. 104 a fls. 111;

2.5.- Os documentos de fls. 116, 117 e fls. 118.»

b) - Em consequência dessa omissão e uma vez que a matéria que consta nos factos assentes e na base instrutória, especialmente os quesitos 11 a 21 provirão de articulados, alegações e documentos que os RR. D..., C... e Jazzanova ignoram em absoluto, estão estes completamente impedidos de exercer o direito do n°.2 do artigo 511°. do CPC.

Terminaram pedindo que se declarassem “…nulos os actos processuais praticados a partir da primeira irregularidade/nulidade cometida (cfr. supra 2.1.)”.

12) - A fls. 153, vieram estes mesmos RR, ainda, interpor recurso do despacho saneador.

13) - Sobre o requerimento de fls.148 pronunciou-se o despacho de 29/10/2008 (fls. 156), nele se tendo afirmado que, embora se reconhecesse a omissão, entendia-se que a mesma não interferia no exame e decisão da causa, nos termos em que o legislador se referiu no artº 201, do CPC.

Para além de tal entendimento, consignou-se nesse despacho:

«Porém, dando-se a possibilidade do exercício do contraditório à parte, quanto aos documentos juntos, por 10 dias, após essa resposta o Tribunal tomará posição mais detalhada sobre a questão e sobre a manutenção da selecção da matéria de facto, objecto do despacho de fls. 141 a 144 e sobre o despacho de fls. 153.».

14) - A fls. 176 vieram os requerentes de fls. 148 interpor recurso do despacho de 29/10/2008, recurso esse que, por despacho de 15/12/2008 (fls. 183 e ss.) - que também decidiu as reclamações contra a selecção da matéria de facto -, foi recebido como agravo, com subida diferida e efeito devolutivo.

15) - Por despacho de fls. 215 foi o recurso interposto do despacho saneador recebido como agravo, a subir nos termos do art.º 735 do CPC e com efeito devolutivo.

B) Efectuado o julgamento, com gravação da prova, veio a ser proferida sentença (em 04/05/2010 - fls. 370), que, julgando a acção parcialmente procedente, absolveu do pedido os RR C..., D..., E... e F... e condenou a ré “ B..., Lda.” a restituir ao autor a quantia de € 33.924,27 (trinta e três mil, novecentos e vinte e quatro euros e vinte e sete cêntimos), acrescida de juros de mora, contabilizados desde a citação e até integral pagamento, à taxa de 4%.

C) - Desta sentença recorreu a Ré “ B..., LDA.”, recurso esse que foi recebido como apelação, tendo a recorrente, nas respectivas conclusões, manifestado o seu interesse na apreciação dos agravos retidos.

D) - Nas alegações dos agravos foram oferecidas as seguintes conclusões:

1) - No Agravo interposto do despacho saneador:

[…]

Terminou pedindo que, no provimento do recurso, fosse anulado todo o processado posterior à primeira omissão de notificação legalmente devida e assim também anulando o despacho saneador de que se recorre, repetindo-se todo o processado posterior a fls. 37 dos autos.

2) - No Agravo interposto do despacho de 29/10/2008 (fls. 156):

[…]

Terminou requerendo que, no provimento do agravo, reconhecendo-se as nulidades arguidas no requerimento entrado em juízo a 23/10/2008, se revogasse o despacho impugnado e se anulasse “todo o processado posterior à primeira omissão de notificação legalmente devida até à prolação do despacho saneador inclusive, repetindo-se todo o processado posterior a fls. 37 dos autos.”.

E) - Nas alegações da Apelação, a Ré apresentou as conclusões que se seguem:

[…]

Terminou da forma que a seguir se reproduz:

«…deve dar-se total provimento ao presente recurso, e em conformidade ser a excepção dilatória inominada que aqui, mais uma vez, ficou alegada ser julgada procedente e em consequência ser a Ré absolvida da instância, julgando-se ainda nula a douta sentença recorrida por omissão de pronúncia, nos termos que acima ficaram alegados.

E, se assim não se entender, deverão Vossas Excelências Venerandos Juízes Desembargadores, em aplicação do disposto no artigo 712º./1, al. a) do Código de Processo Civil, alterar a decisão do Mmº. Tribunal de 1ª. Instância sobre a matéria de facto, dando como não provados os factos dos quesitos 2º), 3º), 5º) e 6º) e como provados os factos dos quesitos 10º), 14º), 15º), 16º), 17º), 18º), 19º) e 20º) da douta base instrutória.

E em consequência julgar improcedente a presente acção absolvendo a Ré do pedido formulado no requerimento injuntivo e na posterior petição inicial.».

II - Em face do disposto nos art. 684, nº 3 e 4 e 690, nº 1, do CPC[1], o objecto do recurso delimita-se, em princípio, pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo do conhecimento das questões que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 660, n.º 2, aplicável “ex vi” do art.º 713, nº 2, do mesmo diploma legal.

Nesta Relação, tendo-se afigurado ao Relator que seria de restringir o objecto da apelação, ordenou-se a notificação da recorrente, para cumprimento do contraditório, tendo esta vindo pugnar pela apreciação da questão atinente à indevida utilização do procedimento de injunção.

O entendimento subjacente à perspectivada restrição do objecto do recurso, por exclusão da questão da indevida utilização do processo de injunção - seja caracterizando-a como erro da forma de processo, seja entendendo-a como excepção dilatória inominada - prendia-se com a circunstância de esta questão não ter sido suscitada nas conclusões do recurso interposto do despacho saneador onde se afirmou que o processo era o próprio e não enfermava de nulidades que o invalidassem.

Há que reconhecer, porém, que a afirmação da propriedade do processo e da ausência de nulidades, foi tabelar, o que rechaça o caso julgado formal que obstaria à apreciação da questão (art.º 510º, nº 3 “a contrario”)[2].

Em face do ora exposto, apreciar-se-á, também, a questão da indevida utilização do procedimento de injunção, suscitada nos articulados dos RR e incluída nas conclusões da Apelação.

Assim, são as seguintes, as questões objecto do presente recurso:

- Saber se ocorreu indevida utilização do procedimento de injunção;

- Saber se é de revogar algum dos despachos que foram impugnados mediante os agravos que ficaram retidos e, em caso afirmativo, quais as respectivas consequências;

- Saber se é de alterar a factualidade em que assentou a sentença recorrida;

- Saber se, em face dos factos que se tenham como provados, é correcta a parcial procedência da acção decidida na 1ª Instância.

III - É a seguinte, a factualidade que a 1ª Instância deu como provada:

[…]

IV - Apreciemos, pois, as apontadas questões, começando pela atinente à indevida utilização do procedimento de injunção.

O DL 269/98, de 1 de Setembro, estabeleceu o regime jurídico dos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada do tribunal de 1ª instância, mantendo, embora com alterações, o procedimento de injunção criado pelo DL 404/93 de 10/12, diploma este que veio revogar.

O DL nº 32/2003 de 17/2, veio, entre o mais, alargar a possibilidade de recurso às injunções a todos os pagamentos efectuados como remuneração de transacções comerciais (artº 2º).

Nesse diploma - em consonância com a Directiva (nº 2000/35/CE do Parlamento Europeu e do Conselho) que, com ele, se pretendeu transpor para a ordem jurídica interna - definiu-se “transacção comercial” como “qualquer transacção entre empresas, ou entre empresas e entidades públicas, qualquer que seja a respectiva natureza, forma ou designação, que dê origem ao fornecimento de mercadorias ou à prestação de serviços contra uma remuneração” (artº 3º, alínea a)), tendo-se definido, “empresa” como “qualquer organização que desenvolva uma actividade económica ou profissional autónoma, mesmo que exercida por pessoa singular” (artº 3º, alínea b)).

De harmonia com o preceituado no artº 7º, nº 1, desse DL 32/2003 “o atraso de pagamento em transacções comerciais, nos termos previstos no presente diploma, confere ao credor o direito a recorrer à injunção, independentemente do valor da dívida.” (cfr. artº 7º do DL 269/98, na redacção que lhe foi dada pelo mencionado DL 32/2003).

Por outro lado, estabeleceu-se no nº 2 desse artº 7º do DL 32/2003, que “para valores superiores à alçada do tribunal de 1.ª instância, a dedução de oposição no processo de injunção determina a remessa dos autos para o tribunal competente, aplicando-se a forma de processo comum.”.

Ora, este artº 7º, por via do estabelecido no DL nº 107/2005, de 01/07 - que também alterou a redacção de vários preceitos do DL nº 269/98 -, mantendo inalterado o seu nº 1, passou, nos seus restantes números, a ter a seguinte redacção:

«2 - Para valores superiores à alçada da Relação, a dedução de oposição e a frustração da notificação no procedimento de injunção determinam a remessa dos autos para o tribunal competente, aplicando-se a forma de processo comum.

3 - Recebidos os autos, o juiz pode convidar as partes a aperfeiçoar as peças processuais.

4 - As acções destinadas a exigir o cumprimento das obrigações pecuniárias emergentes de transacções comerciais, nos termos previstos no presente diploma, de valor não superior à alçada da Relação seguem os termos da acção declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos.».

Tendo o presente procedimento injuntivo sido instaurado em 22/01/2007, aplica-se-lhe o regime estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 14/2006, de 26/04, e pelos diplomas que, precedentemente a esta lei, o vieram alterar, “maxime”, o DL n.º 107/2005, de 01/07, sendo também na versão dada por este diploma que se terá de considerar o estatuído no DL 32/2003.

Ora, de harmonia com o artº 7º do regime estabelecido em anexo ao DL 269/98, “considera-se injunção a providência que tem por fim conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento das obrigações a que se refere o artigo 1.º do diploma preambular, ou das obrigações emergentes de transacções comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de Fevereiro.”.

O artº 1º do diploma preambular, refere-se aos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada da Relação.

Assim, o procedimento da injunção, à data em que o ora Apelado dele lançou mão, era utilizável no caso do cumprimento das obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada da Relação, ou - independentemente do valor - no caso de respeitar a obrigações emergentes de transacções comerciais, que, não integrando os casos excepcionados no nº 2 do artº 2º do DL nº 32/2003, estivessem no âmbito da previsão dos artºs 2º, nº 1 e 3º, alínea a), desse diploma legal.

E o valor da alçada da Relação, à data da entrada do requerimento injuntivo, era o de € 14.963,94 (art. 24.º, n.º 1, da Lei n.º 3/99, de 13/1, na redacção que lhe foi dada pelo DL n.º 323/2001, de 17/12).

Assim, sendo o valor que se pretendia exigir mediante a injunção muito superior ao da alçada da Relação, logo se alcança que ao Apelado apenas seria lícito lançar mão do procedimento injuntivo caso este se pudesse entender abarcado no referido campo de aplicação do DL 32/2003.

Só que, não obstante o pendor conclusivo que se nota na descrição do negócio que se invocou no requerimento injuntivo, o certo é que, quer ele configure, como aí se referiu, um mútuo (previsto no artº 1142.º do CC)[3], quer integre um empréstimo mercantil (art. 394º do Código Comercial), não consubstancia “transacção comercial” tal como esta é definida no artigo 3º, alínea a), do DL 32/2003.

Na verdade, na definição relevante constante desse artigo 3º, alínea a), “transacção comercial” é qualquer transacção entre empresas ou entre empresas e entidades públicas, qualquer que seja a respectiva natureza, forma ou designação, que dê origem ao fornecimento de mercadorias ou à prestação de serviços contra uma remuneração.

Ora, no caso “sub judice”, a obrigação a que se reporta o requerimento injuntivo, não decorrendo da prestação de serviços, nem do fornecimento de mercadorias, não resultou de transacção entre empresas[4].

Nem o Requerente da injunção, nem, à excepção da ora Apelante, os Requeridos, merecem a qualificação de “empresa”, nos termos definidos no artº 3º, alínea b), do DL nº 32/2003, mesmo que se perspective este termo numa concepção ampla, conforme como tem sido usual na jurisprudência e na doutrina.[5]

Aliás, o próprio Requerente afastou, expressamente, a obrigação emergente de transacção comercial, enquanto fundamento do requerimento injuntivo, ao nele assinalar com “X” o espaço reservado ao “Não”, existente à frente da expressão “Obrigação emergente de transacção comercial (DL n.º 32/2003, de 17 de Fevereiro)”.

No caso de mútuo, nulo por inobservância da forma legal, a restituição consentida não é aquela que, por força do contrato - que é nulo - poderia exigir-se à sombra da obrigação de restituir consignada da segunda parte do art. 1142º do CC, mas sim a que se apresenta como efeito decorrente da declaração de nulidade, nos termos do nº 1 do artigo 289º, do CC - cfr. Assento n.º 4/95, de 28/3/95, publicado no DR, I série-A, de 17/5/95, agora com o valor de uniformização de jurisprudência.

O que significa que - sem prejuízo dos poderes oficiosos do tribunal e da doutrina do referido Assento - invocando-se a nulidade do mútuo, é o vício específico que se invoca gerador dessa nulidade (artº 498, nº 4, do CPC), e não o contrato e a respectiva violação, que constitui a causa de pedir legitimadora do pedido de restituição da quantia entregue ao “mutuante”.[6]

No caso “sub judice”, o ora Apelado, embora que no Requerimento injuntivo haja apenas fundado a sua pretensão no empréstimo que alegou ter efectuado aos sócios da “ B..., LDA.”, ora Apelante, veio, subsequentemente, na sequência de convite que lhe foi endereçado à sombra do disposto no artº 16º do DL 269/98, e nos artºs 508º, nº 3, 265º, nº 2 e 467º do CPC, oferecer petição em que alterou a causa de pedir em que fundou o requerimento injuntivo, passando a invocar a nulidade do contrato (artº 12º).

Os pressupostos que habilitam a utilização do procedimento da injunção devem ser aferidos em face do constante do requerimento injuntivo.

Por isso temos vindo a analisar a admissibilidade do requerimento injuntivo de acordo com a causa de pedir que foi transmitida no requerimento que, no caso “sub judice”, deu entrada em juízo em 22/01/2007.

Contudo, a conclusão diversa não chegaríamos se em consideração tivéssemos o fundamento em que o Requerente, na petição oferecida na sequência de convite, alicerçou o seu pedido, até porque, a acrescer aos óbices já apontados, nos parece duvidoso, no mínimo, que se possa entender como obrigação “emergente de transacção comercial”, nos termos da definição dada pelo artº artº 3º, alínea a), do DL nº 32/2003, a restituição decorrente da declaração de nulidade do contrato, resultante do disposto no art.º 289º, nº 1, do CC.

Resultando, assim, do exposto, que o procedimento injuntivo não poderia ser utilizado, uma vez que, o valor que dessa forma se pretendia exigir, não respeitando ao atraso no pagamento resultante de transacções comerciais, era superior ao valor da alçada da Relação, deveria aquele ter sido recusado (artº 10º, nº 2, g), e 11º, nº 1, g), do Regime dos procedimentos, anexo ao 269/98).

Ora, deduzida oposição e remetido o processo ao Tribunal competente, nos termos do nº 2 do artº 7º, transmutando-se, a injunção, em processo declarativo de condenação com processo comum, o Juiz a quem caiba assegurar os ulteriores termos do processo, deve, se for caso disso, respeitado o contraditório, julgar procedente alguma excepção dilatória ou nulidade que lhe cumpra conhecer, ou decidir do mérito da causa, situações estas em que, não tendo cabimento o convite a que alude o artº 17º, nº 3, do DL nº 269/98, o processo termina.

A transmutação do procedimento de injunção, por via de oposição que seja deduzida, em acção declarativa de condenação, não legitima a utilização indevida daquele, derivada da falta dos pressupostos que o possibilitariam.

De outro modo, diga-se, estava encontrado o meio para, com pensado propósito de, ilegitimamente, se tentar obter título executivo, se defraudar as exigências prescritas nas disposições legais que disciplinam o procedimento de injunção.

Como se diz no Acórdão da Relação de Lisboa, de 07 de Junho/2011 (Apelação nº 319937/10.3YIPRT.L1-1), “A possibilidade do processo de injunção se poder vir a transmutar em acção declarativa ordinária, trata-se apenas de uma mera vicissitude do processo de injunção, quando correctamente observado o seu regime legal, que como se viu tem que obedecer a várias especificidades.”.

Em caso semelhante ao que aqui se trata, embora respeitando a procedimento instaurado em 11/6/2003, para exigir o valor de € 7.481,97, a Relação do Porto, em Acórdão de 16/09/2008 (Apelação nº 2965/08 - 2) entendeu que ao recorrer-se inadequadamente ao procedimento de injunção se cometera erro na forma de processo, só não retirando daí consequências, pois que, entendeu que a publicação de novas normas legais - as do DL 303/2007 - que possibilitavam (o que aqui não ocorre) a utilização da forma processual que antes se havia adoptado erradamente (o procedimento de injunção), implicava a sanação da nulidade derivada de tal erro na forma de processo.

Já no citado Acórdão da Relação de Lisboa, de 07 de Junho/2011, entendeu-se que a utilização da injunção respeitando obrigação decorrente de transacções comerciais, sem que estivessem reunidos os requisitos legais exigidos para tal, ou seja, fora do restrito âmbito permitido pelos artigos 2º, 3º , 7º e 10º, todos do DL 32/2003, de 17 de Fevereiro, configurava, não um erro na forma do processo, mas antes uma excepção dilatória inominada que, obstando ao conhecimento de mérito e ao prosseguimento da própria injunção, não permitia qualquer adequação processual ou convite a um aperfeiçoamento.

O erro na forma de processo constitui numa nulidade de conhecimento oficioso que importa a anulação dos actos que não possam ser aproveitados (artºs 199º, 202º e 206º, nº 2 do CPC), gerando, todavia, como se observa no citado Acórdão da Relação de Lisboa, de 03 de Fevereiro de 2011 (Apelação nº 1076/09.0TBOER-A.L1-2), caso a própria petição inicial não seja aproveitável, por se revelar totalmente inadequada ao pedido formulado e à forma processual correcta, mais do que uma nulidade processual, “uma verdadeira excepção dilatória que acarreta, consoante a fase processual em que os autos se encontrem, o seu indeferimento liminar ou a absolvição da instância, em conformidade com o disposto nos artigos 288.º, nº 1, alínea e), 493.º, nºs 1 e 2, 494.º e 495.º, todos do Código de Processo Civil.”.

Afere-se, pois, a existência do erro em causa, mediante um juízo de adequação do pedido formulado pelo autor à forma de processo usada.

No caso em análise, havendo adequação do pedido ao procedimento utilizado, não estão é reunidos os pressupostos que permitiriam tal utilização, pelo que se nos afigura, tal como se entendeu no citado Acórdão da Relação de Lisboa, de 07/Jun/2011, estar-se perante uma excepção dilatória inominada que implica a absolvição da Ré da instância.

Ao mesmo resultado - absolvição da Ré da instância - nos conduziria, diga-se, o entendimento que afirmasse a existência de erro na forma de processo, já que, no caso, não seria possível, sequer, aproveitar o requerimento injuntivo.[7]

Como é sabido, a sanção prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 668.º do CPC, para a omissão de pronúncia, tem a ver com a inobservância do que se preceitua no n.º 2 do art. 660º, na parte que impõe ao juiz o dever de “...resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras...”.

A pronúncia sobre determinada questão suscitada pela parte, exigida pelo nº 2 do art. 660º do CPC, podendo ser implícita, há-de se inequívoca, o que só sucede quanto, através da fundamentação da sentença, seja possível reconstituir o pensamento do juiz sobre essa questão.

Embora no respectivo relatório se mencione a arguição da utilização indevida do procedimento de injunção, a sentença “sub judice” não contém, subsequentemente, v.g., na parte da fundamentação, qualquer referência de onde se possa inferir que a condenação da Ré passou pela ponderação e afastamento dessa arguição.

Contudo, de um modo ou de outro - ou seja, quer perspectivando-a como consubstanciando erro na forma do processo, quer considerando-a passível de integrar uma excepção dilatória inominada - na sentença, já que antes não fora emitida pronúncia concreta sobre a matéria, dever-se-ia ter abordado essa arguição e, se assim se se tivesse procedido, a conclusão a que se chegaria, seria, pelo que acima se expôs, a de que cumpriria absolver os RR da instância.

Não tendo abordado tal matéria, a sentença deixou de apreciar questão que havia sido suscitada no processo e que lhe cumpria conhecer, enfermando de omissão de pronúncia.

Cumprindo a este Tribunal suprir tal omissão (artº 715º, nº 1, do CPC), haverá, quanto a ela, que emitir decisão de harmonia com tudo o que acima se expôs e sem prejuízo da manutenção da decretada absolvição do pedido dos restantes RR, pois que, não tendo a sentença recorrida, nessa parte, sido objecto de recurso, o caso julgado obsta a que se modifique o assim decidido (artº 684º, nº 4, do CPC).

Assim, atento o que precedentemente ficou explanado, outra não pode ser a decisão deste Tribunal senão a da revogação da sentença, no que à condenação da Ré Apelante respeita, em face do reconhecimento da aludida excepção dilatória inominada que impõe a respectiva absolvição da instância.

O assim decidido dita, evidentemente, que se quede prejudicado o conhecimento do objecto dos agravos, bem assim como a apreciação das restantes questões atinentes à apelação e que acima se assinalaram.

V - Em face de tudo o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em, julgando procedente a Apelação, revogar a sentença recorrida na parte em que condenou a Ré “ B..., LDA.” e, julgando verificada a excepção dilatória inominada acima referida, absolver tal Ré da instância.

Custas pelo Apelado.


Luís José Falcão de Magalhães (Relator)

Sílvia Maria Pereira Pires

Henrique Ataíde Rosa Antunes



[1] Aqui aplicável na redacção que antecedeu aquela que foi introduzida pelo DL n.º 303/07, de 24/08.
[2] Não se poderá afirmar, por outro lado, pelo menos inequivocamente, a existência de omissão de pronúncia, já que, “mutatis mutandis” se perfilha o seguinte entendimento expresso no Acórdão da Relação do Porto, de 09/06/2009 (Apelação nº 0822741): “A circunstância de, no despacho saneador, ter sido omitido, sem justificação, o conhecimento de uma excepção peremptória alegada pelo réu não quer dizer que exista omissão de pronúncia, antes deve ser entendida como tacitamente relegado o seu conhecimento para a sentença, já que nesta se mantém o dever de pronúncia, nos termos do art. 660.°, n.° 2 do CPC.” (consultável, tal como os Acórdãos da mesma Relação que vierem a ser citados sem referência de publicação, em “http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf?OpenDatabase”). Por outro lado, ainda, afirmando a possibilidade de o Tribunal de recurso conhecer oficiosamente do erro na forma de processo, no caso de não ter havido sobre esta questão pronúncia concreta no despacho saneador, cfr. o Acórdão da Relação de Lisboa de 03 de Fevereiro de 2011 (Apelação nº 1076/09.0TBOER-A.L1-2, consultável, tal como os Acórdãos da mesma Relação que vierem a ser citados sem referência de publicação, em “http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf?OpenDatabase”).
[3] Na verdade, o empréstimo, desde que a coisa cedida se destine a qualquer acto comercial, pode considerar-se mercantil, ainda que celebrado entre não comerciantes (cfr. Acórdão da Relação de Lisboa de 04/Fev/2010, Apelação nº 5356/07.1TVLSB.L1-8, bem como o Acórdão dessa mesma Relação, de 11/Out/2011 (Apelação nº 50/08.0TBNRD.L1-7), em “http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf?OpenDatabase”).
De notar, no entanto, que, não obstante a natureza mercantil, aplicar-se-á a forma legal do mútuo civil, desde que uma das partes não seja comerciante  (cfr. artº 396º do Código Comercial e Acórdão do STJ, de 28-11-1996, Processo n.º 427/96, a cujo sumário se poderá aceder em “http://www.stj.pt/ficheiros/jurisp-sumarios/civel/sumarios-civel-1996.pdf”)
[4] Recorde-se, aliás, que no Requerimento injuntivo se referia que o empréstimo havia sido efectuado aos Requeridos, sócios da Requerida “ B..., LDA.”.
[5] Cfr. Acórdão da Relação do Porto de 12/10/2010 (Apelação nº 382410/09.6YIPRT.P1), e Cons. Salvador da Costa "A Injunção e as Conexas Acção e Execução", 6ª edição, págs. 171/172.
[6] São causas de pedir distintas uma da outra, embora tenham um elemento comum, que é a outorga do contrato de mútuo.

[7] Cfr. nesse sentido Acórdão da Relação de Lisboa, de 14/Abril/2005 (apelação nº 2661/2005-6 ).