Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
198/12.5GAOFR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HELENA BOLIEIRO
Descritores: INIMPUTABILIDADE; MEDIDA DE INTERNAMENTO;
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DO INTERNAMENTO;
OMISSÃO DE FUNDAMENTAÇÃO DO JUÍZO DE PERIGOSIDADE; NULIDADE
Data do Acordão: 05/23/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (J C GENÉRICA DE O. FRADES)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 20.º, 91.º E 98.º DO CP; ARTS. 374.º E 379.º DO CPP
Sumário:
I - O juízo de inimputabilidade depende da verificação cumulativa de dois requisitos: a) o elemento biopsicológico, que pressupõe que o agente seja portador de anomalia psíquica no momento da prática do facto; b) o elemento normativo, que se traduz na exigência de que, por força daquela anomalia psíquica, o agente tenha em tal momento sido incapaz de avaliar a ilicitude do facto ou de se determinar de acordo com essa mesma avaliação.
II - Processualmente, a decisão sobre a inimputabilidade ou imputabilidade diminuída pressupõe, em sede de apuramento factual, a realização de perícia psiquiátrica destinada a determinar a existência de um estado psicopatológico que integra o apontado conceito de anomalia psíquica, na medida em que o mesmo tem por base factos cuja percepção e/ou apreciação exige especiais conhecimentos técnico-científicos.
III - A declaração de inimputabilidade exclui a culpa do agente e, portanto, a possibilidade de lhe ser aplicada uma pena.
IV - Se o agente do facto ilícito típico declarado inimputável revelar um grau de perigosidade tal que a sociedade tenha de se defender, prevenindo o risco da prática futura de factos criminosos, haverá lugar à aplicação de uma medida de segurança, dentro dos pressupostos estabelecidos no artigo 91.º, n.º 1, do CP.
V - A aplicação de medidas de segurança deve subordinar-se estritamente ao princípio da subsidiariedade, no sentido de que uma medida não deve ser aplicada quando outras menos onerosas constituam uma protecção adequada e suficiente dos bens jurídicos face à perigosidade do agente.
VI - Nos casos em que os pressupostos formais enunciados no artigo 98.º do CP se mostrem preenchidos, deve o julgador privilegiar este regime que assegura a protecção comunitária face à perigosidade do agente, sempre que mostre verificada observada a exigência básica de ordem material correspondente à expectativa razoável de, com a suspensão, se lograr alcançar a finalidade contida na medida de internamento.
VII - A afirmação de que o arguido é inimputável constitui uma conclusão a extrair de factos concretos que consubstanciem, por um lado, o substrato biopsicológico de que aquele padece de anomalia psíquica e, por outro, que revelem a existência da relação causal entre a apurada anomalia psíquica e o acto do agente, em termos de ter praticado o facto por ser incapaz de avaliar a sua ilicitude ou de se determinar de acordo com essa avaliação, resultando tal incapacidade cognitiva e/ou volitiva da anomalia psíquica que o afectava no momento da prática do facto.
VIII - A ausência de fundamentação quanto ao juízo de perigosidade do arguido determina a nulidade da sentença prevista no artigo 379.º, n.º 1, alínea a), com referência ao artigo 374.º, n.º 2, ambos do CPP, a qual é susceptível de ser oficiosamente conhecida em sede de recurso, conforme decorre do disposto no n.º 2 do mesmo normativo.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 4.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:
I – Relatório
1. No Tribunal Judicial da Comarca de Viseu – Juízo de Competência Genérica de ..., o Ministério Público requereu o julgamento em processo comum com intervenção do tribunal singular do arguido AA, com os demais sinais dos autos, imputando-lhe a prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo, de cinco crimes de dano previstos e punidos pelo artigo 212.º, n.º 1 do Código Penal, seis crimes de ofensa à integridade física simples, previstos e punidos pelo artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal, um crime de ameaça previsto e punido pelo artigo 153.º, n.º 1 do Código Penal, e dois crimes de ameaça agravados, previstos e punidos pelos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alínea a), por referência ao artigo 131.º do Código Penal. Fazendo ainda constar na acusação que o arguido deveria ser considerado inimputável perigoso, nos termos do disposto no artigo 20.º do Código Penal, e sujeito a medida de internamento, nos termos previstos no artigo 91.º, n.º 1 do mesmo Código.
Pelos factos relativos aos inquéritos apensos com os NUIPC 213/13.5GAOFR, 214/13.3GAOFR, 104/13.0GAOFR e 198/12.5 GAOFR (apenas em relação ao crime de dano), vieram os ofendidos apresentar requerimento de desistência do procedimento criminal, e o arguido concordou com essa mesma desistência que foi, assim, homologada pelo tribunal a quo, o qual declarou extinto o procedimento criminal quanto aos imputados crimes de ofensa à integridade física simples e de dano.
Realizou-se audiência de julgamento e por sentença depositada em 24 de Julho de 2017, o tribunal a quo decidiu:
- condenar o arguido na medida de segurança de 8 meses de internamento por cada um dos três crimes de ofensa à integridade física simples, previstos e punidos pelo artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal, e pelo crime de dano, previsto e punido pelo artigo 212.º, n.º 1 do mesmo diploma.
- condenar o arguido na medida de segurança de 2 meses de internamento pela prática do crime de ameaça, previsto e punido pelo artigo 153.º, n.º 1 do Código Penal;
- condenar o arguido na medida de segurança única de 21 meses de internamento pela prática dos crimes supra referidos, em regime de efectividade;
- absolver o arguido da prática de dois crimes de dano e três crimes de ameaça agravados.
2. Inconformado com a decisão, dela recorreu o arguido, finalizando a motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
“1. O presente recurso vem interposto da douta sentença proferida nestes autos em 20.07.2017, e incide sobre três aspetos: o primeiro, tem que ver com a necessidade de correção de erros da sentença que, não constituindo nulidades, devem ser retificados nos termos do artigo 380º do CPP; o segundo, que se prende com o erro na determinação de uma medida de internamento fixa; e o terceiro, relativo ao erro na determinação da medida de internamento em regime de efetividade.
Quanto à correção da Sentença:
2. A terminologia utilizada na decisão, no que concerne à parte penal, deve ser alterada de modo a que sejam suprimidas expressões derivadas da palavra “condenação”, pois que, embora a sentença que aplique medida de segurança, como sucede in casu, equivalha a uma sentença condenatória para os efeitos previstos na 2ª parte do n.º 3 do artigo 376º do CPP, é para todos os demais efeitos uma sentença absolutória.
3. A decisão é omissa no que respeita à declaração do arguido como inimputável perigoso, o que, sendo matéria conclusiva, foi incorretamente exarada na factualidade provada.
4. Assim sendo, deve a sentença ser corrigida em ordem a constar na matéria de facto provada, a factualidade vertida nos pontos 48 e 49 da Acusação, com inteiro suporte probatório no relatório pericial de fls. 871-878, fazendo-se constar na decisão a declaração do arguido como inimputável perigoso.
Quanto ao erro na determinação de uma medida de internamento com prazo fixo:
5. A sentença, para além de tecer considerações sobre a culpa que não têm aplicação no caso, convocou erradamente a disciplina ínsita no artigo 77º do Código Penal, quando deveria ter feito aplicação do regime legal previsto para o internamento de inimputáveis, mais propriamente o disposto nos artigos 92º, nos 1 e 2 do Código Penal, e ainda no artigo 501º do Código de Processo Penal, que assim foram violados.
6. Estando em causa um concurso de crimes de ofensa à integridade física simples, ameaça e dano, deveria o Tribunal, por força da aplicação das sobreditas disposições legais, ter determinado um prazo de duração máxima, e nunca fixo, para a medida de internamento, o qual não pode exceder o limite máximo da pena correspondente ao crime mais grave, neste caso, 3 anos, não se fixando limite mínimo, porquanto não estão em causa crimes contra as pessoas ou de perigo comum puníveis com pena de prisão superior a 5 anos (cfr. artigo 91º, nº 2, a contrario, do CP).
7. A sentença deve ser alterada no segmento relativo à determinação da duração do internamento decretado ao arguido, em termos que lhe seja fixado um limite máximo não superior a 21 meses de internamento, respeitando-se assim o princípio da proibição da reformatio in pejus, consagrado no artigo 409º do Código de Processo Penal.
Quanto ao erro na determinação da medida de internamento em regime de efetividade:
8. Ao decretar o cumprimento da medida de internamento em regime de efetividade, o Tribunal fez uma avaliação incorreta e manifestamente insuficiente da situação concreta do arguido, nomeadamente ao nível da sua perigosidade, tendo, em virtude de tal erro, determinado um regime de internamento desproporcional e desnecessário ao caso.
9. O Tribunal a quo negligenciou que o verdadeiro contributo para a existência deste processo, ou, pelo menos, para a dimensão que o mesmo tomou, juntamente com o afirmado alarme social, foi o diagnóstico tardio da doença mental do arguido, que determinou que este estivesse, ao longo de meses a fio, sem acompanhamento médico, totalmente descompensado.
10. O arguido só foi aceite em sede de internamento compulsivo em 21.10.2013 (vd., entre outros, 2º relatório pericial, fls. 873), registando-se, antes dessa data, sucessivas tentativas de internamento, ainda antes do primeiro ‘crime’, que terminaram sempre com a devolução do arguido à comunidade em plena crise (vd. fls. 309, 310, 113, 116, 123, ainda informação contida no 1º relatório pericial de fls 535-538), sendo certo que os relatórios periciais de psiquiatria e saúde mental juntos aos autos, demonstram que o arguido cometeu os factos numa fase de nítida descompensação e numa altura em que puramente não beneficiava de qualquer acompanhamento médico-psiquiátrico.
11. Os atos violentos do arguido só aconteceram até ao exato momento em que este teve acesso aos devidos cuidados de saúde, no âmbito do internamento compulsivo, em 21.10.2013, não havendo notícia de que o arguido tenha praticado algum ilícito desde então, e já passaram 4 anos.
12. O facto-argumento em que o Tribunal alicerçou a sua convicção não é bastante para concluir que a finalidade da medida de internamento não será cumprida em regime de ‘ambulatório’.
13. Já antes do arguido ter confirmado os mencionados “incumprimentos” nas suas declarações, os Srs. Peritos de Psiquiatria e Saúde Mental, no último relatório pericial datado de 03.03.2016, davam conta desses desajustes e, apesar disso, concluíram em sentido favorável à manutenção do arguido em meio aberto, com o rigoroso cumprimento dos cuidados clínico-psiquiátricos atuais (fls. 871-878).
14. Ademais, perante os termos que os autos seguiram após as alegações produzidas em audiência, afigura-se que a opção pelo internamento efetivo assentou numa errada convicção de incapacidade de meios institucionais para garantir o cumprimento do plano terapêutico e de reabilitação a aplicar ao arguido no âmbito de uma inicialmente pretendida suspensão da execução do internamento (vd. Despacho de 25.05.2017, Ofício de fls. 1289, Despacho de 13.06.2017, Ofício de fls. 1298, Certidão de fls. 1295-1297).
15. Foram, ainda, desconsiderados todos os demais elementos informativos juntos aos autos que inculcam a expectativa razoável de, com um regime de suspensão adequado à situação, se lograr alcançar a finalidade contida na medida de internamento.
16. Na aplicação aos factos do regime previsto no artigo 98º do CP, deveria o Tribunal a quo ter ponderado o seguinte:
a. que os factos foram praticados num período de descompensação, numa altura em que o arguido não beneficiava de qualquer acompanhamento médico, nem de vigilância institucional, como agora sucede;
b. que mesmo numa tal fase, nenhuma das suas condutas foi particularmente grave;
c. que não há registo da prática de crimes desde que o arguido passou a ser tratado no âmbito do internamento compulsivo, e já passaram 4 anos desde então;
d. que o arguido beneficia do suporte familiar dos pais e tem condições para continuar a ser acompanhado em regime ambulatório;
e. quando o arguido frequentou o Fórum Sócio-Ocupacional na instituição ---, em …, mostrou um comportamento estável e adequado, em grande medida devido a ter ocupação e a referida instituição lhe assegurar a toma regular de medicação (Declaração da --- junta com a contestação, Relatório social de fls., pág. 5);
f. que os peritos médicos, mesmo constatando a existência de consumos e das dificuldades na toma da medicação, se pronunciaram em sentido favorável à sujeição do arguido a tratamento em meio aberto;
g. que desde que o arguido praticou os factos em apreço se mantém em liberdade e não colocou em causa a defesa da ordem jurídica e da paz social;
17. Que tais dados permitem concluir que:
a. se as medidas aplicadas no internamento compulsivo ambulatório têm, até agora, surtido eficácia no que toca à neutralização da perigosidade criminal do arguido, isso é um indicador expressivo de que a suspensão do internamento, com a sujeição do arguido a regras de conduta e tratamentos adequados e sob a vigilância apertada dos serviços da reinserção social, por maioria de razão, atingirá a finalidade pretendida, que é a proteção dos bens jurídicos através da reintegração do agente na sociedade, curado no que se refere à eliminação da perigosidade;
b. e que não está excluída, à partida, a possibilidade de, no seio da família, com a vigilância e tutela dos serviços de reinserção social e um apertado controle do Tribunal através da imposição de tratamentos adequados aos seus problemas (nomeadamente ao nível dos consumos), sujeição a exames e a regras de conduta (por exemplo, fazendo-se regressar o arguido à frequência do fórum sócio-ocupacional), ter o arguido necessário suporte para se reabilitar e manter-se afastado de comportamentos violentos ou de risco;
18. Para além de que os benefícios da manutenção do arguido integrado quer no meio familiar, quer na comunidade, para a sua recuperação, são sobremaneira superiores aos que decorrem do seu tratamento em regime fechado, com privação da convivência familiar e social e consequente perda de referências no mundo exterior, que dificulta a reintegração e potencia a estigmatização.
19. E ainda que, o regime da suspensão confere ampla margem de medidas que podem ser determinadas num plano de reinserção social adequado às dificuldades pessoais do arguido, já conhecidas, e que se este vier, entretanto, a mostrar-se insuficiente, pode o Tribunal alterar a medida para o internamento efetivo do arguido.
20. Perante o atrás exposto, deve a medida de internamento ser suspensa na sua execução, em termos e condições que sejam reputados adequados ao afastamento da perigosidade do arguido, por ser esse o meio mais apropriado ao cumprimento da finalidade precípua da medida, a ressocialização, tanto mais que a manutenção da liberdade do arguido não se mostra incompatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social.
NESTES TERMOS,
Se pede a procedência do presente recurso e, a final, a aplicação ao arguido de uma medida de internamento com limite máximo não superior a 21 meses, suspensa na sua execução, mediante a aplicação ao caso do regime previsto no artigo 98º do Código Penal”.

4. Admitido o recurso, o Digno Magistrado do Ministério Público apresentou resposta em que formula as seguintes conclusões (transcrição):
“1. O arguido, com a sua conduta, preencheu, no que seria um concurso efectivo, os elementos objectivos de três crimes de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art.º 143º, nº1º do Código Penal, e do crime de dano, p. e p. pelo art.º 212º, nº1º do Código Penal, tendo actuado em estado de inimputabilidade.
2. Atendendo ao princípio da proibição da reformatio in pejus, consagrado no artigo 409.º do Código de Processo Penal não poderá o arguido ser prejudicado com um prazo máximo de internamento de três anos, pelo que o mesmo deverá ter como limite os 21 meses.
3. O arguido é inimputável perigoso e por conseguinte deve ser-lhe aplicada a medida de segurança de internamento em estabelecimento adequado pelo período máximo de 21 meses.
4. Face aos factos apurados, [mormente por o recorrente padecer de esquizofrenia paranóide e transtorno de personalidade anti-social e comportamental e não cumprir a totalidade da medicação e restrições aplicadas no processo de internamento compulsivo, continuando a consumir “haxixe” e ingerindo bebidas alcoólicas nomeadamente cerveja], a execução da medida de internamento em regime de efetividade revela-se, na nossa perspetiva, indispensável para a cura, tratamento do arguido e segurança de terceiros.
5. O Tribunal “a quo” considerou todas as circunstâncias que depuseram a favor e contra o arguido na determinação da medida concreta da medida de segurança.
6. Nesta medida, a suspensão da execução do internamento revelar-se-ia inadequada, uma vez que, atento o comportamento refractário e perigoso do arguido, a mesma seria insuficiente para salvaguardar as necessidades de prevenção especial aqui reclamadas, que exigem o contacto do recorrente com o internamento hospitalar em regime fechado.
Nestes termos, apesar de assistir parcialmente razão ao recorrente, não há fundamento para revogar a douta Sentença proferida, devendo ser julgado improcedente o recurso ora interposto pela Recorrente na parte em que defende a suspensão da execução da medida de segurança de internamento aplicada ao arguido”.

5. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que alude o artigo 416.° do Código de Processo Penal (doravante CPP), emitiu parecer no sentido de que deve ser dado provimento ao recurso, invocando que a sentença recorrida deve ser corrigida, dando-se como provada a factualidade que consta dos pontos 48 e 49 da acusação, para além de que a decisão é nula por falta de fundamentação, nos termos do disposto nos artigos 379.º, n.º 1, alínea a), e 374.º, n.º 2 do CPP, já que dela não consta que perante a factualidade típica ilícita dada como provada existe fundado receio de que o recorrente venha a cometer factos da mesma espécie, nem se encontra apreciada e fundamentada a necessidade, subsidiariedade e proporcionalidade de aplicação da medida de segurança aplicada. Acresce que não deveria ser aplicada uma duração fixa de internamento, pois o artigo 92.º, n.º 2 estabelece um limite máximo que não pode exceder o que corresponde ao tipo de crime cometido pelo inimputável e o artigo 93.º, n.º 1 prevê que a medida pode cessar a todo tempo se ocorrer causa justificativa. Por fim, em relação à não suspensão da execução do internamento, sustenta que a sentença se encontra bem fundamentada e correctamente tomada.
6. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, não foi apresentada qualquer resposta.
7. Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Cumpre agora decidir.
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II – Fundamentação
1. Dispõe o artigo 412.º, n.º 1 do CPP que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Constitui entendimento constante e pacífico que o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões formuladas na motivação, as quais delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar Na doutrina, cf. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág.335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113. Na jurisprudência, cf., entre muitos, os Acórdãos do STJ de 25-06-1998, in BMJ 478, pág.242; de 03-02-1999, in BMJ 484, pág.271; de 28-04-1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, pág.193. , sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso Cf. Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 7/95, de 19-10-1995, publicado no Diário da República, Série I-A, de 28-12-1995.

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Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem de forma condensada as razões de divergência do recorrente com a decisão impugnada, são as seguintes as questões a decidir:
- Nulidade da sentença recorrida, por omissão de pronúncia e falta de fundamentação.
- Correcção da sentença, nos termos do disposto no artigo 380.º do CPP.
- Erro na determinação do quantum de duração da medida internamento.
- Suspensão da execução do internamento.
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2. A sentença recorrida.
2.1. Na sentença proferida pela 1.ª instância foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):
A.1.) Da culpabilidade
(NUIPC 198/12.5 GAOFR)
1 – Pelas 04.45H do dia 31 de Dezembro de 2012, na Rua …, em …, o arguido abeirou-se de ----, a correr, e sem que nada o fizesse prever, pontapeou-a nas costas, do lado direito, provocando a queda da mesma no solo.
2 – Em consequência do descrito, --- sofreu escoriações no cotovelo e na coxa do lado esquerdo, bem como dores nas costas do lado direito.
3 – O arguido agiu com o propósito concretizado de molestar o corpo de ---, bem sabendo que a sua conduta lhe causava ferimentos e dores.
(NUIPC 97/13.3GAOFR)
4 – No dia 9 de Maio de 2013, pelas 14.45H o arguido dirigiu-se ao “espaço Internet” pertencente à Câmara municipal de …, sito na praça ---, em …, e neste local utilizou um computador ali existente.
5 – A dado momento o arguido desferiu um murro no monitor do computador que utilizava e saiu para o exterior).
6 – Passados breves momentos, o arguido voltou a entrar naquele espaço e desferiu um novo murro no monitor provocando a queda do mesmo ao chão, bem como de outro que se encontrava atrás e ainda de um CPU causando danos no valor de 370.00€ (trezentos e setenta euros).
7 - O arguido quis agir no modo descrito com o propósito concretizado de causar estragos no referido material informático, apesar de saber que os mesmos não lhe pertenciam e que agia contra a vontade do dono, resultado esse que quis e representou, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
(NUIPC 125/13.2 GAOFR)
8 – No dia 17 de Fevereiro de 2013, pelas 14.00H o arguido dirigiu-se ao estabelecimento “---” sito na Rua ---, em … e pediu uma cerveja a ---, que ali se encontrava a trabalhar.
9 – Uma vez que --- se recusou a servir-lhe ta bebida, o arguido pegou num cinzeiro e atirou-o contra a parede.
10 – Acto continuo o arguido saltou para o espaço atrás do balcão do estabelecimento, onde a mesma se encontrava, agarrou-a e encostou-a contra a parede, assim lhe causando dores, apenas a tendo largado em virtude da intervenção de um dos clientes que ali se encontrava, ---.
11 – O arguido desejou agir com o propósito concretizado de molestar fisicamente o corpo de ---, bem sabendo que a sua conduta lhe causava dores.
(NUIPC 31/13.0 GAOFR)
14 – No dia 17 de Fevereiro de 2013, pelas 14.30H, o arguido dirigiu-se à pastelaria --- , em …, tendo entrado na respectiva zona de fabrico, local onde agarrou um pé de cabra que ali se encontrava.
15 – Após, o arguido bateu energicamente com o pé de cabra numa mesa e numa cadeira da pastelaria, onde se encontravam vários clientes, gerando o pânico dos mesmos.
16 – O arguido quis agir na forma descrita, bem sabendo que a sua conduta era susceptível de causar medo, receio e inquietação nos clientes da identificada pastelaria, como efectivamente causou, originando nos mesmos temor pelas suas reacções e pro aquilo que pudesse vir a fazer no futuro contra o seu corpo.
(NUIPC 133/13.3GAOFR)
17 – No dia 10 de Julho de 2013 pelas 23.30H o arguido empunhando uma garrafa de vidro na mão, dirigiu-se à esplanada do estabelecimento “---” sito na Praça --- em … onde se encontravam vários clientes.
18 – Depois de ter sido solicitado ao arguido que abandonasse o local, em virtude de estar a importunar a funcionária do estabelecimento e os clientes, o arguido desferiu uma pancada com a garrafa de vidro na cabeça de --- que alise encontrava.
19 – Em consequência do descrito, --- sofreu:
- na região temporal direita do crânio, na porção anterior, uma ferida contusa com cerca de 2 cm de extensão;
- na região malar direita da face, na porção anterior, uma ferida contusa com cerce de 2.5 cm de extensão;
20 – Em virtude das referidas lesões --- foi, no próprio dia transportado e assistido no Hospital de …, onde foi suturado com 4 pontos de seda em cada ferida;
21 – As referidas lesões determinaram para a sua cura um período de 10 dias, sem afectação do trabalho geral e profissional;
22 – O arguido agiu no modo descrito, com o propósito concretizado de molestar o corpo de ---, bem sabendo que a sua conduta causava ferimentos e dores.
A.2.) Da determinação da sanção
- O arguido tem os seguintes antecedentes criminais;
- no processo 15/05.3 GAOFR o arguido foi condenado na pena de 18 meses de prisão suspensa na execução por igual período com regime de prova pela prática de um crime de detenção de arma proibida e resistência e coacção sobre funcionário;
- no processo 51/14.8 TBOFR o arguido foi condenado na pena de 60 dias de multa à taxa diária de 5.50€ pela prática de um crime de consumo de estupefacientes;
- no processo 138/13.44 GAOFR o arguido foi condenado na pena de 12 meses de prisão pela prática de um crime de injuria agravada e um crime de resistência e coacção sobre funcionário;
- O arguido é inimputável perigoso, padecendo de esquizofrenia paranóide e transtorno de personalidade anti-social e comportamental;
- O arguido vive com os pais;
- O arguido não cumpre a totalidade da medicação e restrições aplicadas no processo de internamento compulsivo, continuando a consumir “haxixe” e ingerindo bebidas alcoólicas nomeadamente cerveja”.

2.1. Por sua vez, na sentença constam como não provados os seguintes factos (transcrição):
B) Matéria de facto não provada
(nuipc 97/13.3 GAOFR)
a – No dia 25 de Maio de 2013, cerca das 02.20H o arguido saiu do estabelecimento “---” e uma vez no exterior empregou um soco no vidro de um MUPI, pertencente à Câmara Municipal de …, sito no Jardim ---, em …, partindo-o e causando um estrado no valor de 155.23€:
b – O arguido quis agir no modo descrito com o propósito concretizado de causar estragos no referido MUPI, apesar de saber que os mesmos não lhe pertenciam e que agia contra a vontade do dono, resultado esse que quis e representou, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
(NUIPC 104/13.0GAOFR)
c - No dia 17 de Maio de 2013 pelas 22.30H o arguido, junto à pastelaria “---” em …, dirigiu a seu irmão --- a expressão “eu mato-te, eu mato quem for preciso”.
d – O arguido actuou sabendo que a expressão por si utilizada era susceptível de causa medo a ---, como efectivamente causou, originando no mesmo temor pelas suas reacções e por aquilo que pudesse vir a fazer no futuro contra o seu corpo e vida, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
(NUIPC 213/13.5 GAOFR e 214/13.3 GAOFR)
e – No dia 21 de Outubro de 2013, pelas 02.00H o arguido encontrava-se na residência de seus pais --- e ---, sita na Avenida …, e dirigiu-lhes a expressão “desta noite não passam, vou-vos matar”.
f - O arguido actuou sabendo que a expressão por si utilizada era susceptível de causa medo a seus pais, como efectivamente causou, originando no mesmo temor pelas suas reacções e por aquilo que pudesse vir a fazer no futuro contra o seu corpo e vida, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
(NUIPC 198/12.5 GAOFR)
g – No dia 31 de Dezembro de 2012, o arguido dirigiu-se à Rua … e pontapeou dois candeeiros decorativos de iluminação pertencentes à Câmara Municipal de ..., o que importou uma reparação no valor de 270.60€.
h - O arguido quis agir no modo descrito com o propósito concretizado de causar estragos nos referidos candeeiros, apesar de saber que os mesmos não lhe pertenciam e que agia contra a vontade do dono, resultado esse que quis e representou, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
(NUIPC 124/13.4 GAOFR)
i – No dia 19 de Junho de 2013, pelas 23.30H, na Rotunda..., o arguido utilizando um paralelo da calçada, desferiu várias pancadas na viatura de matrícula ---, de marca e modelo ---, pertencente a --- e habitualmente conduzido por ---, tendo em consequência partido o vidro frontal do veículo e amolgado o seu capot e tejadilho, o que importou um valor não concretamente apurada para a sua reparação-
– O arguido quis agir no modo descrito, com o propósito concretizado de causar estragos no mencionado veículo, apesar de saber que o mesmo não lhe pertencia e que agia contra a vontade do seu dono, resultado esse que representou”.
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2.3. Sob as epígrafes qualificação jurídica dos factos e medida concreta da pena, escreveu-se o seguinte na sentença recorrida (transcrição):
D.1.) Da qualificação jurídica dos factos
Dispõe o nº1º do art.º 143º do Código Penal que “Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.”
O bem jurídico protegido pela norma em causa é a integridade física da pessoa humana.
Estamos perante um crime de dano, uma vez que o resultado da conduta é a lesão do corpo ou da saúde (nos presentes autos está apenas em causa a lesão do corpo), devendo operar-se a imputação objectiva desse resultado à conduta do agente.
Do referido resulta que o tipo de ilícito tem como elemento objectivo, e mais uma vez referimos no que concerne ao caso sub judicie, a ofensa ao corpo.
Conforme refere Paula Ribeiro de Faria (in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 1999, pags. 202 a 222) “o tipo legal fica preenchido mediante a verificação de qualquer ofensa no corpo (…) independentemente da dor ou sofrimentos causados. (…) Não relevam para aqui os meios empregues pelo agressor, ou a duração da agressão. (…) Por ofensa ao corpo poder-se-á entender “todo o mau trato através do qual o agente é prejudicado no seu bem estar físico de uma forma não insignificante”
Dos presentes autos resulta que o elemento objectivo se encontra verificado uma vez que os factos praticados sobre ---, --- e --- são factos subsumíveis a ofensa do corpo, porquanto, resulta das regras da experiência comum que afecta o bem estar físico.
Dispõe o art.º 212º nº1º do Código Penal que “1 - Quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa ou animal alheios, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.”
Entendemos também que o arguido com a sua conduta praticou também o crime de dano sobre os computadores do espaço de internet do qual é responsável o Município de ....
Dispõe o art.º 153º, nº1º do Código Penal que 1 - Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias
Atenta a factualidade provada relativamente à factualidade ocorrida na pastelaria ---, entendemos que o arguido praticou também o crime de ameaça.
D.2) Da Medida concreta da pena
Feito pela forma descrita o enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido, importa agora determinar a natureza e medida da sanção a aplicar.
O crime de ofensa à integridade física simples e de dano é punível com pena de prisão até 3 anos ou pena de multa.
Não referindo a norma o limite mínimo da pena de prisão, nem os limites mínimos e máximos da pena de multa, importa pois definir esses mesmos limites.
Conforme resulta do nº1º do art.º 41º do Código Penal “A pena de prisão tem, em regra, a duração mínima de um mês e a duração máxima de vinte anos”, e dispõe o art.º 47º, nº1º do mesmo normativo que ”A pena de multa é fixada em dias, de acordo com os critérios estabelecidos no n.º 1 do artigo 71.º, sendo, em regra, o limite mínimo de 10 dias e o máximo de 360.”.
Do exposto se conclui que o crime é punível com pena de prisão de 1 mês a 3 anos ou pena de multa de 10 a 360 dias.
Já o crime de ameaça é punível com pena de prisão de 1 mês a um ano ou multa de 10 a 120 dias.
De acordo com o disposto no art.º 71º, nº1, do Código Penal, “A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”, sendo que a função da culpa se traduzirá, numa proibição de excesso, isto é, fixará o limite acima do qual, em caso algum, a pena se poderá situar, cabendo à prevenção geral de integração a tarefa de fixar o limite mínimo abaixo do qual a pena não poderá descer sob pena de se perderem as expectativas da comunidade, na validade da norma – função de defesa da ordem jurídica.
Dentro destes dois limites, funcionarão as exigências de prevenção especial de socialização que no caso se façam sentir, surgindo então a pena não como meio de defesa da ordem jurídica, mas também como meio de integração do agente na comunidade, ou, se for caso disso, de advertência individual.
Assim, no caso concreto importa considerar:
- o grau de ilicitude – é elevado, considerando que o arguido foi sobretudo motivado por razões fúteis e sobretudo por uma absoluta incapacidade de controlar os seus instintos, sendo que a factualidade apurada nos autos foi praticada num período de 10 meses, o que provocou grande alarme social sobre a população, atenta a intensidade temporal e o despropósito dos mesmos.
- o arguidos tem antecedentes criminais.
As necessidades de prevenção geral são elevadas, uma vez que os factos ocorreram num local público e tiveram na sua base discórdias familiares.
Relativamente às exigências de prevenção especial, considerando os antecedentes criminais do arguido entendemos que as mesmas são também elevadas.
Dispõe o art.º 91º do Código Penal que:
“1 - Quem tiver praticado um facto ilícito típico e for considerado inimputável, nos termos do artigo 20.º, é mandado internar pelo tribunal em estabelecimento de cura, tratamento ou segurança, sempre que, por virtude da anomalia psíquica e da gravidade do facto praticado, houver fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie.”
Atenta a factualidade considerada provada e considerando a inimputabilidade do arguido, bem como as molduras legais dos crimes praticados o tribunal determina a condenação do arguido em 8 meses de internamento, por cada um dos crimes de ofensa à integridade física simples (3) e pelo crime de dano (1) e a condenação em 2 meses de internamento pelo crime de ameaça praticado (1).
Constatamos ainda que os crimes praticados pelo arguido foram cometidos em concurso real e efectivo, relevando tal circunstância para efeitos do artigo 77º do Código Penal. Na realidade, dá-se o concurso real sempre que o mesmo ou diferentes tipos legais sejam realizados mediante acções ou omissões independentes umas das outras.
No caso sub judice, a medida de segurança única a aplicar ao arguidos terá, nos termos do n.º 2 do mesmo preceito legal, como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas, ou seja, 31 meses de internamento como limite mínimo, a mais elevada das penas concretamente aplicadas, in casu, 8 meses de internamento.
Impõe-se assim, aplicar ao arguido uma medida de segurança única. No entanto, para além destes critérios gerais de determinação da medida da pena, a lei estabelece ainda, na parte final do n.º 1 do artigo 77º do Código Penal que são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente. Esta avaliação deve centrar-se na ideia de “gravidade do ilícito global” que os factos analisados no seu conjunto nos ofereçam, bem como na resposta que os mesmos dêem “à questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade”(Figueiredo Dias, Direito Penal Português -As Consequências Jurídicas do Crime, Parte Geral II, Lisboa, 1993).
Não se trata aqui de valorar novamente os elementos já tidos em conta na determinação de cada pena concreta, mas antes extrair consequências de uma “visão de conjunto” de toda a factualidade.
Por isso, atendendo aos respectivos factos no conjunto (conexão entre os crimes cometidos e concreto contexto em que foram cometidos) e às personalidade do arguido, bem como a tudo o mais que acima já referimos quando foi determinada a medida concreta da pena aplicada por cada um dos referidos crimes cometidos (as exigências de prevenção geral e especial, as condições de vida, o contexto em que estes crimes foram praticados), julga-se justo e adequado fixar a pena única do concurso em 21 (vinte e um) meses de internamento.
Prevê o art.º 98º do Código Penal a suspensão da execução do internamento a qual deverá ser decidida em função de critérios de proporcionalidade e do princípio da menor intervenção possível, que é reconduzível ao princípio mais amplo da necessidade entendido de acordo com o art.º 18º n.º 2 da Constituição: se uma medida menos gravosa serve de finalidade de protecção comunitária, a mais gravosa há-de considerar-se desnecessária. [Cristina Líbano Monteiro, Perigosidade de inimputáveis e in dubio pro reo, p. 132]
Esta solução justifica-se tendo em vista as finalidades da medida de segurança ([F. Dias defende que, o art.º 91º n.º 2 do Código Penal, comunga da ideia de que nas medidas de segurança de internamento ao lado da finalidade principal de prevenção especial, releva ainda de forma autónoma uma finalidade de prevenção geral positiva. Já Maria João Antunes entende que esta última finalidade não tem qualquer intervenção neste campo e o período de duração mínima da medida de segurança se justificava através de uma presunção legal de duração de perigosidade, para os termos da polémica cfr. Maria João Antunes, Medida de Segurança de Internamento e Facto de Inimputável em Razão de Anomalia Psíquica, 2002, pág. 481 e autores aí referidos (164) e F. Dias Temas Básicos da Doutrina Penal, 2001, pág. 121]) e a consideração da proibição de excesso ou da proporcionalidade. Como refere F. Dias [Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, p. 446] a matéria relativa à aplicação de medidas de segurança deve subordinar-se estritamente ao princípio da subsidiariedade: uma medida de segurança não deve ser aplicada quando outras medidas menos onerosas constituam uma protecção adequada e suficiente dos bens jurídicos face à perigosidade do agente.
Nos presentes autos e considerando que decorreu do teor das declarações do arguido o incumprimento da medicação administrada em regime ambulatório no processo de internamento compulsivo e os contínuos consumos de drogas e álcool, que não só potenciam as consequências da sua esquizofrenia, como minimizam os efeitos da medicação, verificando-se a certeza de comportamentos perigosos quer para si, quer para os que o rodeiam, entendemos que a suspensão da execução do internamento parece-nos insuficiente, razão pela qual deverá o arguido cumprir o internamento em regime de efectividade”.
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3. Apreciando.
3.1. Nos presentes autos o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido AA imputando-lhe a prática de actos que integram os crimes elencados no relatório do presente acórdão (cf. supra I-1.) e sustentando que deverá ser considerado inimputável perigoso, em conformidade com o disposto no artigo 20.º do Código Penal, e sujeito a medida de internamento, nos termos previstos no artigo 91.º, n.º 1 do mesmo Código.
Na matéria provada constante da sentença recorrida o tribunal a quo escreveu que “o arguido é inimputável perigoso, padecendo de esquizofrenia paranóide e transtorno de personalidade anti-social e comportamental”.
Por sua vez, na fundamentação de direito o tribunal a quo considerou que, face à factualidade provada, o arguido praticou três crimes de ofensa à integridade física simples, previstos e punidos pelo artigo 143.º, n.º 1, um crime de dano, previsto e punido pelo artigo 212.º, n.º 1, e um crime de ameaça, previsto e punido pelo artigo 153.º, n.º 1, todos do Código Penal.
Seguidamente, determinou que, atenta a inimputabilidade do arguido e as molduras legais dos crimes praticados, aquele seria condenado em oito meses de internamento por cada um dos crimes de ofensa à integridade física simples e pelo crime de dano, e em dois meses de internamento pelo crime de ameaça.
Passou, depois, a efectuar a operação de cúmulo jurídico como se tratasse de um arguido imputável autor dos apontados crimes em concurso real e efectivo, formulando o juízo previsto no artigo 77.º do Código Penal, em resultado do que concluiu ser de aplicar uma medida de segurança única de vinte e um meses de internamento em regime de efectividade.
Conforme se infere do essencial da fundamentação de facto e de direito aduzida na sentença recorrida, em termos consonantes com o pretendido na acusação, o tribunal a quo formulou um juízo de imputabilidade do arguido AA e concluiu no sentido da sua perigosidade, tendo por conseguinte aplicado uma medida de internamento que entendeu não poder ser objecto de suspensão na respectiva execução dada a sua insuficiência para fazer face aos comportamentos perigosos que aquele revela, quer para si, quer para os que o rodeiam.
Estamos, pois, perante uma situação que o julgador considerou ser de inimputabilidade em razão de anomalia psíquica, prevista no artigo 20.º do Código Penal, a qual, como é sabido, obsta à condenação do agente com base na culpa, face à incapacidade de no momento da prática do facto avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com tal avaliação. Verificada a inimputabilidade, será aplicada medida de segurança quando por virtude da anomalia psíquica e da gravidade do facto praticado o agente revelar perigosidade consubstanciada no fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie (cf. artigo 91.º, n.º 1 do Código Penal).
Segundo o modelo consagrado no artigo 20.º, n.º 1 do Código Penal, o juízo de inimputabilidade depende da verificação cumulativa de dois requisitos: por um lado, o elemento biopsicológico, que pressupõe que o agente seja portador de anomalia psíquica no momento da prática do facto; por outro, o elemento normativo, que se traduz na exigência de que, por força daquela anomalia psíquica, o agente tenha em tal momento sido incapaz de avaliar a ilicitude do facto ou de se determinar de acordo com essa mesma avaliação.
Assim, para o apontado juízo de inimputabilidade não basta a comprovação do substrato biopsicológico de que o agente padece de anomalia psíquica, por mais grave que seja, tornando-se ainda necessário determinar a existência da relação causal entre aquela e o acto do agente, em termos de ter praticado o facto por ser incapaz de avaliar a sua ilicitude ou de se determinar de acordo com essa avaliação, resultando tal incapacidade cognitiva e/ou volitiva da anomalia psíquica que o afectava no momento da prática do facto.
Processualmente, a decisão sobre a inimputabilidade ou imputabilidade diminuída pressupõe, em sede de apuramento factual, a realização de perícia psiquiátrica destinada a determinar a existência de um estado psicopatológico que integra o apontado conceito de anomalia psíquica, na medida em que o mesmo tem por base factos cuja percepção e/ou apreciação exige especiais conhecimentos técnico-científicos.
Por sua vez, cabe ao tribunal efectuar a comprovação do elemento normativo da inimputabilidade, ajuizando da verificação do nexo de relação causal entre a anomalia psíquica detectada e o facto concreto praticado, a partir dos elementos científicos fornecidos pela perícia que constituem, assim, contributos essenciais para tal tarefa decisória. Cf. Pedro Soares de Albergaria, “Aspectos judiciários da problemática da inimputabilidade”, in RPCC, Ano 14 (2004), n.º 3, págs.384-385.
Neste contexto, como se assinala no Acórdão da Relação de Évora de 20-05-2010 Aresto proferido no processo n.º 401/07.3GDSTB-A.E1 e disponível na Internet em <http://www.dgsi.pt>., existe “consenso doutrinal quanto a caber à perícia psiquiátrica a percepção e apreciação dos elementos relevantes para a decisão sobre a verificação, ou não, do chamado elemento biopsicológico da inimputabilidade, ou seja, no essencial, a verificação de anomalia psíquica (ou anomalia psíquica grave não acidental, para efeitos do disposto no art. 20º nº2 do CP), cabendo ao tribunal decidir plenamente sobre a verificação do chamado elemento normativo da inimputabilidade, decidindo se o arguido é ou não inimputável por considerar, ou não, que, naquele caso concreto, o arguido não foi capaz de avaliar a ilicitude do seu acto ou de se determinar de acordo com tal avaliação mercê da anomalia psíquica de que padecia no momento do facto”.
Nas palavras de Figueiredo Dias, também citado no referido aresto, «na caracterização deste substrato biopsicológico, da sua gravidade e intensidade, a primeira e mais importante palavra pertence aos peritos das ciências do homem, sendo aí diminuta, para não dizer nula, a capacidade de crítica material por parte do juiz. (…) À luz do paradigma emergente nas ciências do homem, a distinção entre modos de actuação “compreensíveis” segundo o sentido” e modos de actuação só “causalmente explicáveis” é cientificamente aceitável e dominável pelos peritos. Por isso deve esperar-se destes um auxílio decisivo para o juiz também quanto à comprovação do elemento normativo; aqui, porém, a última palavra pertencerá sempre ao juiz e a sua capacidade de crítica material será irrestrita nesta parte e medida continuando a caber-lhe com justeza o cognome de peritus peritorum». Cf. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª ed., Coimbra Editora, 2007, págs.573-574.
Como acima foi dito, a declaração de inimputabilidade exclui a culpa do agente e, portanto, a possibilidade de lhe ser aplicada uma pena.
Contudo, se agente do facto ilícito típico declarado inimputável revelar um grau de perigosidade tal que a sociedade tenha de se defender, prevenindo o risco da prática futura de factos criminosos, haverá lugar à aplicação de uma medida de segurança, dentro dos pressupostos estabelecidos no artigo 91.º, n.º 1 do Código Penal, o qual dispõe o seguinte:
Quem tiver praticado um facto ilícito típico e for considerado inimputável, nos termos do artigo 20.º, é mandado internar pelo tribunal em estabelecimento de cura, tratamento ou segurança, sempre que, por virtude da anomalia psíquica e da gravidade do facto praticado, houver fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie.
Temos, assim, que a aplicação de uma medida segurança de internamento depende da verificação cumulativa dos seguintes requisitos:
- prática de um facto ilícito típico (crime);
- inimputabilidade por anomalia psíquica do agente; e
- formulação de um juízo de perigosidade, assente no fundado receio de que a anomalia psíquica do agente, na sua correlação com a gravidade do facto cometido, faça supor o cometimento de outros factos da mesma espécie.
Em relação ao último requisito indicado, assinalam Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques que o juízo de perigosidade corresponde a uma prognose desfavorável em que ocorre “uma acentuada possibilidade de que o agente volte a praticar factos típicos, derivada da consideração conjunta da anomalia psíquica, da natureza e da gravidade do facto típico praticado”. Cf. Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques, Noções de Direito Penal, 5.ª ed., Rei dos Livros, 2016, pág.319.
Por outro lado, como sublinhou a Comissão de Revisão do Código Penal, “uma medida de segurança só pode ser aplicada (imposta) para salvaguarda de um interesse público preponderante”, tendo presente que esta matéria é dominada por um princípio de proporcionalidade acolhido no texto constitucional e no Código português, pelo que a medida de internamento deve ter uma correlação com a gravidade do facto praticado. Gravidade essa a apurar, não em função de uma determinada moldura abstracta da pena, mas segundo o relevo da lesão social verificada. Em suma, a medida de segurança não se destina a casos insignificantes e exige-se sempre o respeito pela proporcionalidade. Cf. Código Penal, Actas e Projecto da Comissão de Revisão (Acta n.º 11, intervenção de Figueiredo Dias), Ministério da Justiça, Rei dos Livros, 1993, pág.121.
Dando concretização às apontadas exigências constitucionais de proporcionalidade, corolário do princípio da menor intervenção possível (cf. artigos 18.°, 27.° e 30.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa), o artigo 98.º do Código Penal estabelece no seu n.º 1 que o tribunal que ordenar o internamento determina, em vez dele, a suspensão da sua execução se for razoavelmente de esperar que com a suspensão se alcance a finalidade da medida. Neste caso a decisão de suspensão impõe ao agente regras de conduta, em termos correspondentes aos referidos no artigo 52.º do Código Penal, necessárias à prevenção da perigosidade, bem como o dever de se submeter a tratamentos e regimes de cura ambulatórios apropriados e de se prestar a exames e observações nos lugares que lhe forem indicados (artigo 98.º, n.º 3), para além de ser colocado sob vigilância tutelar dos serviços de reinserção social, sendo correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 53.º e 54.º do Código Penal, que prevêem, respectivamente, a suspensão com regime de prova e o plano de reinserção social (artigo 98.º, n.º 3).
A aplicação de medidas de segurança deve subordinar-se estritamente ao princípio da subsidiariedade, no sentido de que uma medida não deve ser aplicada quando outras menos onerosas constituam uma protecção adequada e suficiente dos bens jurídicos face à perigosidade do agente. Cf. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 2.ª reimp., Coimbra Editora, 2009, pág.446.
Assim sendo, quando a suspensão prevista no citado artigo 98.º é susceptível de oferecer uma possibilidade, ainda que mínima, mas necessariamente sustentável, de surtir efeito, constitui poder-dever do julgador determinar a sua aplicação, se for razoavelmente de esperar que assim se atinge a sua finalidade que é a protecção de bens jurídicos através da reintegração do agente na sociedade e da neutralização da sua perigosidade por via de adequada intervenção terapêutica em meio aberto (cf. artigo 30.º, n.º 2, in fine, da Constituição da República Portuguesa).
Ou seja, nos casos em que os pressupostos formais enunciados no artigo 98.º do Código Penal se mostrem preenchidos, deve o julgador privilegiar este regime que assegura a protecção comunitária face à perigosidade do agente, sempre que mostre verificada observada a exigência básica de ordem material correspondente à expectativa razoável de, com a suspensão, se lograr alcançar a finalidade contida na medida de internamento. Cf. Acórdão do STJ de 03-11-2003 proferido no processo n.º 03P2016 e disponível na Internet em <http://www.dgsi.pt>. Cf. ainda o Acórdão da Relação do Porto de 09-03-2011, proferido no processo n.º 44/07.1GABTC.P1 e disponível no mesmo sítio da Internet.
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3.2. Revertendo ao caso dos autos e tendo por referência o enquadramento acima exposto, em ordem a dar resposta às questões suscitadas no recurso, verificamos que da análise da sentença recorrida resulta que esta padece de vícios que integram a previsão contida no artigo 379.º, n.º 1, alíneas a) e c), do CPP e que comprometem a apreciação de tais questões.
Vejamos quais.
3.2.1. Na acusação deduzida pelo Ministério Público consta alegado que os autos indiciam suficientemente que:
“48. O arguido sofria, à data dos factos, e ainda sofre, de psicose esquizofrénica tipo paranóide em comorbilidade com transtorno de personalidade antissocial e perturbação mental e comportamental devido ao uso de múltiplas drogas e uso de outras substâncias psicoactivas, não tendo sido capaz, por força dessa anomalia psíquica, de avaliar a ilicitude dos factos acima descritos, bem como de se determinar de acordo com essa avaliação.
49. Em virtude da anomalia psíquica de que padece e da natureza dos factos praticados, existe uma probabilidade de o arguido vir a praticar outros factos da mesma espécie dos acima referidos”.
A este respeito o tribunal a quo fez constar no elenco de factos provados enunciado na sentença recorrida que “o arguido é inimputável perigoso, padecendo de esquizofrenia paranóide e transtorno de personalidade anti-social e comportamental”.
Ora, a afirmação de que o arguido é inimputável constitui uma conclusão a extrair de factos concretos que consubstanciem, por um lado, o substrato biopsicológico de que aquele padece de anomalia psíquica e, por outro, que revelem a existência da relação causal entre a apurada anomalia psíquica e o acto do agente, em termos de ter praticado o facto por ser incapaz de avaliar a sua ilicitude ou de se determinar de acordo com essa avaliação, resultando tal incapacidade cognitiva e/ou volitiva da anomalia psíquica que o afectava no momento da prática do facto.
Por sua vez, a afirmada perigosidade do arguido também constitui uma conclusão resultante do atrás referido juízo de fundado receio de que volte a praticar outros factos típicos da mesma espécie, juízo esse derivado da consideração conjunta da anomalia psíquica, da natureza e da gravidade do facto típico cometido e da demais factualidade apurada que contribua para a revelação da apontada probabilidade de recidiva.
A conclusão assim manifestada não devia, pois, figurar no enunciado de matéria provada, antes se impunha ao tribunal a quo apreciar a sua verificação (ou não) em sede de exposição dos motivos de direito que fundamentam a decisão tomada e que no caso se traduziu na aplicação de medida de segurança, a qual, como vimos supra, pressupõe sempre e necessariamente que o agente é considerado inimputável perigoso.
Para além da inclusão indevida no elenco factual de uma formulação conclusiva a extrair do conjunto de factos pertinentes, a sentença recorrida apenas enuncia como elemento factual apurado que “o arguido padece de esquizofrenia paranóide e transtorno de personalidade anti-social e comportamental”.
Ou seja, omite qualquer outra referência, quer no citado elenco provado, quer em sede de matéria não apurada, ao mais que consta nos mencionados pontos 48 e 49 da acusação, não se pronunciando, pois, quanto ao que ali se alega sobre:
a) a indicação que permite situar a existência da patologia psíquica no tempo (“sofria, à data dos factos, e ainda sofre”), essencial para aferir, quer a inimputabilidade, quer a perigosidade do agente;
b) a existência também de perturbação mental;
c) o uso de múltiplas drogas e de outras substâncias psicoactivas e a sua relação com as patologias reveladas;
d) o arguido não ter sido capaz, por força da apontada anomalia psíquica, de avaliar a ilicitude dos factos acima descritos, bem como de se determinar de acordo com essa avaliação; e
c) a existência de uma probabilidade de o arguido vir a praticar outros factos da mesma espécie dos acima referidos, em virtude da anomalia psíquica de que padece e da natureza dos factos praticados.
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Conforme dispõe o artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do CPP, a sentença é nula quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
O referido vício de omissão resulta da falta de pronúncia sobre questões que cabia ao tribunal apreciar, no sentido concretizado no artigo 339.º, n.º 4 do CPP, o qual estabelece que, sem prejuízo do regime aplicável à alteração de factos, a discussão da causa tem por objecto os factos alegados pela acusação, os factos alegados pela defesa e os factos que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, tendo em vista as finalidades a que se referem os artigos 368.º (questão da culpabilidade) e 369.º (questão da determinação da sanção).
E, realizada a discussão (na audiência de julgamento), as questões serão conhecidas e decididas na sentença, acto decisório que se divide em três partes: o relatório, a fundamentação e o dispositivo, sendo a fundamentação composta pela enumeração dos factos provados e não provados bem como pela exposição completa mas concisa dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal (artigo 374.º do CPP).
In casu, o tribunal a quo não se pronunciou sobre factos concretos da acusação que, como resulta do que acima se expôs, não só são relevantes como revestem carácter essencial para a decisão da presente causa.
Tratando-se de questão (de ordem factual) que o tribunal a quo tinha o dever de conhecer, a ausência de inclusão no elenco de matéria provada ou não provada vertido na sentença recorrida configura omissão de pronúncia e constitui, assim, causa de nulidade da decisão, nos termos previstos no artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do CPP.
É certo que o tribunal a quo fez menção, em sede de motivação da decisão sobre a matéria assente, que a prova dos factos relativos à inimputabilidade e perigosidade do arguido decorreu do teor do relatório pericial de fls.871 a 878, sendo que, face ao que dispõe o artigo 163.º, n.º 1 do CPP, o juízo técnico e científico inerente à prova pericial se presume subtraído à livre apreciação do julgador.
Contudo, tal não dispensa a concreta apreciação da apontada factualidade alegada na acusação, tanto mais que no assinalado facto indicado na sentença recorrida o tribunal a quo apenas refere o segmento “padecendo de esquizofrenia paranóide e transtorno de personalidade anti-social e comportamental”, deixando de fora outros aspectos clínicos contidos no sobredito relatório pericial que foram levados aos pontos 48 e 49 do despacho acusatório, o que torna legítimo questionar se essa omissão derivou da circunstância de o julgador os ter considerado irrelevantes para a decisão da causa (impondo-se, então, explicar porque assim entendeu) ou então como não provados (e impondo-se neste caso fundamentar a sua divergência, nos termos previstos no artigo 163.º, n.º 2 do CPP).
Acresce que a matéria alegada no ponto 49 da acusação não reproduz os exactos termos das conclusões exaradas no citado relatório pericial de fls.871 a 878, o qual apresenta como 3.ª conclusão psiquiátrico-forense que não se exclui a perigosidade do arguido, embora possa ser diminuída com o rigoroso cumprimento dos cuidados médicos-psiquiátricos actuais, o que significa, pois, que a prova destinada a suportar aquela matéria pressupõe não só o que resultou da sobredita perícia como outros elementos coadjuvantes não sujeitos ao regime probatório estipulado no artigo 163.º, n.º 1 do CPP.
Temos, assim, que a falta verificada é insusceptível de ser tomada como resultante de um mero lapso “suprível” através de outros elementos vertidos na fundamentação da sentença recorrida que revelem de modo indiscutivelmente evidente o pensamento do tribunal quanto à matéria em apreço.
Daí que, ao contrário do que vem sustentado no recurso, a omissão detectada não corresponde a um vício não previsto no citado artigo 379.º, n.º 1, alínea c), e que enquanto tal poderia ser objecto de correcção ao abrigo do disposto no artigo 380.º, n.º 1, alínea a), do CPP. Em causa está, antes, uma falta de indicação de factos sobre os quais o tribunal a quo não se pronunciou quando sobre ele impedia o dever de os apreciar na apontada sede factual, o que claramente se subsume no fundamento de nulidade descrito naquela alínea c).
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3.2.2. Na sentença recorrida o tribunal a quo considerou ser de impor ao arguido uma medida de segurança de internamento, tendo procedido à determinação do seu quantum, observando para tanto um procedimento cumulatório não isento de crítica, mas que não cumpre nesta fase apreciar pois que tal nos remeteria para a sindicância de erro de julgamento na aplicação do direito que, para ser efectuada, pressuporia uma sentença sem os vícios que afectam a sua validade nos termos analisados supra em 3.2.1. e também a apreciar no presente ponto.
Voltando, então, ao que importa agora avaliar, verifica-se que a sentença recorrida não contém o juízo de perigosidade a que acima nos referimos (cf. supra 3.1.), juízo esse que tem por base a matéria cuja apreciação o tribunal a quo omitiu, nos termos descritos em 3.2.1., mas que para além disso requer que em sede da exposição dos motivos de direito que fundamentam a decisão aquele proceda à prognose que o referido juízo supõe e que, como tal, não constitui um facto em si As prognoses não são factos, mas juízos de probabilidade – cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código do Processo Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (anotação 34 ao artigo 127.º), 4.ª ed., Universidade Católica Editora, 2011, pág.356., antes configura uma ponderação da medida da probabilidade da ocorrência de um dano, apoiada na análise à luz das regras da experiência dos dados fornecidos pela factualidade apurada, mormente de natureza médico-psiquiátrica e relativos ao concreto ilícito típico cometido, mas não só, como refere o aresto a seguir indicado.
Neste contexto, conforme se assinala no Acórdão do STJ de 03-10-2007 Aresto proferido no processo n.º 07P1779 e disponível na Internet em <http://www.dgsi.pt/>., “[o] juízo sobre a probabilidade é um juízo de prognose, cuja comprovação final não é possível, mas cuja correcção enquanto juízo ex ante deve ser avaliada face aos dados disponíveis em que se fundamenta no momento em que é formulado; o juízo de prognose deve ser razoável e fundado em sérias razões, certamente pelo cruzamento entre modelos clínicos e estatísticos, circunstâncias individuais do agente e ambientais do meio em que se insere. Mas, necessariamente, partindo sempre do facto que se revela e explica em função da anomalia psíquica do agente, e indagando, com o auxílio de todos os elementos envolventes, se persiste, e em que condições ou grau de intensidade, a potencialidade para a prática de novos factos”.
Temos, assim, que a matéria que vier a resultar da apreciação dos elementos contidos no ponto 49 alegado na acusação e que o tribunal a quo omitiu na sentença que ora se sindica não dispensa a apontada formulação do juízo normativo que o pressuposto perigosidade exige, consubstanciado no fundado receio de que o arguido venha a cometer factos da mesma espécie, que o julgador também não realizou.
Por outro lado, impõe-se também ao tribunal ponderar de forma fundamentada a necessidade, a subsidiariedade e proporcionalidade da aplicação da medida de internamento, em detrimento da solução não privativa da liberdade consagrada no artigo 98.º do Código Penal, atrás referida em 3.1.
Contudo, em relação a este último ponto verificamos que, embora sem grandes desenvolvimentos, o tribunal a quo indicou na sentença recorrida as razões pelas quais considerou que a suspensão do internamento se lhe afigurava insuficiente, devendo o mesmo ter lugar em regime de efectividade, referindo para tanto que das declarações do arguido resulta o incumprimento da medicação administrada em regime ambulatório no processo de internamento compulsivo e os contínuos consumos de droga e álcool, que não só potenciam as consequências da sua esquizofrenia, com minimizam os efeitos da medicação, verificando-se a certeza de comportamentos perigosos quer para si, quer para os que o rodeiam, indicação que, quanto a nós, satisfaz as exigências de fundamentação da decisão assim tomada, tendo em vista as finalidades intra e extra processuais a que adiante nos referiremos.
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Conforme resulta do disposto no artigo 374.º, n.º 2 do CPP, a fundamentação da sentença consiste na enumeração dos factos provados e não provados, bem como na exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
A exigência de fundamentação decorre do imperativo constitucional consagrado no artigo 205.º, n.º 1 da CRP e constitui uma garantia integrante do conceito de Estado de direito democrático, funcionando como condição de legitimação externa das decisões dos tribunais, ao permitir a verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor e motivos que as determinaram. Cf. Acórdão do STJ de 16-03-2005, proferido no processo n.º 05P662 e disponível na Internet em <http://www.dgsi.pt>.
Para além disso, assume no processo penal uma função estruturante das garantias de defesa do arguido, na medida em que assegura o conhecimento das razões de facto e de direito por que foi tomada uma decisão e não outra, de modo a facultar a opção reactiva (impugnatória ou não) adequada à defesa dos seus direitos, revelando-se, assim, essencial para o exercício do direito ao recurso. Cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 147/00, de 21-03-2000, disponível na Internet em <http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/>.
Consequentemente, serve também um propósito intraprocessual voltado para a reapreciação das decisões que caracteriza o sistema recursório, pois permite ao tribunal superior conhecer o modo e o processo de formulação do juízo lógico contido em tais decisões, para efectuar o seu próprio juízo no âmbito da sindicância que lhe cumpre realizar. Cf. Acórdão do STJ de 16-03-2005, atrás indicado.
Ora, a ausência de fundamentação quanto ao juízo de perigosidade do arguido, nos moldes acima descritos, determina a nulidade da sentença prevista no artigo 379.º, n.º 1, alínea a), com referência ao artigo 374.º, n.º 2, ambos do CPP, a qual é susceptível de ser oficiosamente conhecida em sede de recurso, conforme decorre do disposto no n.º 2 do mesmo normativo (“as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso”).
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3.3. A omissão identificada em 3.2.1. e a falta acabada de detectar em 3.2.2. são causas de nulidade da sentença recorrida, nos termos previstos, respectivamente, nas alíneas c) e a) do artigo 379.º, n.º 1 do CPP, em resultado do que se impõe proceder ao seu suprimento através da reformulação da sentença, de modo a nela constar, por um lado, a apreciação da apontada matéria de facto omitida e, por outro, a exposição dos motivos que fundamentam o citado juízo normativo de perigosidade.
Nestes casos não pode a Relação substituir-se ao tribunal recorrido e suprir as nulidades, pois se assim fizesse estaria a negar-se o único grau de recurso de que o arguido dispõe, violando-se por essa via o duplo grau de jurisdição exigido pelo artigo 32.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa. Cf. Acórdão da Relação de Lisboa de 27-01-2010, proferido no processo n.º 649/08.3PQLSB.L1-3 e disponível na Internet em <http://www.dgsi.pt/>.

Por fim, resta referir que face à sua natureza e consequências, a verificação das apontadas nulidades prejudica o conhecimento das restantes questões suscitadas no recurso e não apreciadas no presente acórdão.
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III – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação em declarar nula a sentença recorrida por omissão de pronúncia e por falta de fundamentação quanto aos aspectos acima indicados, respectivamente, em 3.2.1. e 3.2.2., e determinar a sua substituição por outra que supra as apontadas nulidades, nos termos enunciados.
Sem tributação.

Coimbra, 23 de Maio de 2018
(O presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pela primeira signatária — artigo 94.º, n.º 2 do CPP)

(Helena Bolieiro - relatora)

(Brízida Martins - adjunto)