Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
533/16.7T8FND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: RECURSO
MATÉRIA DE FACTO
FACTO INSTRUMENTAL
CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS
RENÚNCIA
NULIDADE
Data do Acordão: 11/13/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO - FUNDÃO - JL CÍVEL 
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.5, 640 CPC, 809 CC, DL Nº 446/85 DE 25/10
Sumário: 1 – O Código de Processo Civil não permite que em sede de recurso da matéria de facto a parte possa provocar uma decisão do Tribunal da Relação no sentido deste tribunal emitir decisão declarando, pela primeira vez no processo, «provado» um facto instrumental que, segundo o recorrente resultará da instrução da causa, mas que não tinha sido alegado.

2 – Se a parte que subscreveu o contrato, eventualmente composto por cláusulas contratuais gerais, não invocou na petição, ou noutro articulado, factualidade suscetível de mostrar que tais cláusulas foram «cláusulas preformuladas» ou de uso geral imputáveis à contraparte, não pode aplicar-se ao caso o regime das Cláusulas Contratuais Gerais aprovado pelo Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de outubro.

3 – A cláusula, «com o recebimento do montante da indemnização, relativo a todos os danos e despesas, presentes e futuros, emergentes do sinistro, considera-se completo e definitivo o ressarcimento, concede-se quitação incondicional e exonera-se a (…) de quaisquer responsabilidades sub-rogando-os em todos os direitos, ações e recursos contra os responsáveis pela verificação dos danos», estabelecida entre uma seguradora e a vítima do acidente é nula, nos termos do artigo 809.º do Código Civil, quando entendida no sentido de que abrangeu danos cujos factos causadores não estavam formados no momento da sua fixação.

Decisão Texto Integral:




I. Relatório

a) A Autora, ora recorrida, instaurou a presente ação declarativa de condenação contra Ré, sob a forma de processo comum, com o fim de obter desta o pagamento de uma indemnização que fixou em €15.000,00, que a ressarcisse de todos os danos patrimoniais e não patrimoniais que padeceu na situação de pós-operatório até à presente data, em resultado do acidente que descreveu nos autos (queda em consequência de piso molhado, não sinalizado, nas instalações do hipermercado K.... do x... ), mais juros moratórios legais a contar da citação da Ré.

A Ré, demandada como seguradora relativamente à responsabilidade civil resultante do sinistro em causa, contestou alegando, em síntese, que já tinha indemnizado a Autora de todos os danos, consoante recibo de quitação assinado pela mesma, devendo a ação improceder.

No final foi proferida a seguinte decisão:

«Pelo exposto, julgo a acção parcialmente procedente e, consequentemente, condeno a requerida a pagar à autora as seguintes importâncias:

i) - Indemnizar (compensar) a Autora na quantia de €5.000,00 (cinco mil euros) a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros desde a data da sentença, até integral e definitivo pagamento;

ii) - Indemnizar a Autora a título de danos patrimoniais futuros, no valor de €8.000,00 (oito mil euros), acrescidos de juros vencidos a partir da data da citação, contados à taxa legal, e vincendos até integral e definitivo pagamento.

Custas a cargo da autora e da ré na proporção do decaimento (sem prejuízo do benefício do apoio judiciário de que beneficia a autora).

b) É desta decisão que vem interposto o recurso da Ré cujas conclusões são as seguintes:

(…)

c) A recorrida não contra-alegou.

II. Objeto do recurso

Tendo em consideração que o âmbito objetivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (artigos 639.º, n.º 1, e 635.º, n.º 4, ambos do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as questões que este recurso coloca são as seguintes:

1 – Em primeiro lugar, a Recorrente coloca várias questões relativas à impugnação da matéria de facto.

Pretende que sejam adicionados à matéria de facto os seguintes factos:

«Que os contactos encetados com a Seguradora e negociações envolvidas foram sempre, e unicamente, realizados pela mandatária da Autora».

«Que o conteúdo da declaração foi explicado à sinistrada pela sua mandatária».

«Que a Autora sabia que, ao assinar o referido documento e recebendo a indemnização correspondente, estava a exonerar a Ré de quaisquer ulteriores pagamentos quanto a danos patrimoniais futuros».

«Que o recibo de indemnização final assinado pela Autora valorou expressamente os danos patrimoniais futuros».

Pretende ainda que seja declarado não provado o facto provado sob o n.º 40 em que dá como assente que a Autora sente dificuldades acrescidas e limitações nas atividades do seu dia-a-dia, o que lhe provoca desgosto, irritação e perda do gosto de viver, devendo tal facto ser considerado como não provado.

2 - Em segundo lugar, argumenta que o tribunal a quo concluiu pela invalidade da cláusula inserida no recibo de indemnização final, pela qual a Ré se exonerava de qualquer ulterior indemnização à Autora, à luz do disposto no artigo 8.º als. a) e b), do DL n.º 466/85, qualificação que deve ser afastada por se tratar de cláusula que foi negociada com a Autora, através da sua advogada, além de que esta última não pode ser considerada «consumidora».

3 - Em terceiro lugar, cumpre verificar se a assinatura feita pela Autora no recibo de indemnização final constituiu uma remissão abdicativa, a qual, nos termos do artigo 863.º do Código Civil, teve e tem a virtualidade de extinguir todas as obrigações decorrentes da relação extracontratual em apreço, incluindo os danos patrimoniais futuros que a Ré pôde prever e considerar na contra proposta para a indemnização final.

Ou se tal cláusula padece de nulidade, como se refere na sentença recorrida, por contrariar o disposto no artigo 809.º do Código Civil.

4 - Em quarto lugar, analisar-se-á a argumentação da recorrente que sustenta que os danos não patrimoniais alegadamente sofridos pela Autora, nomeadamente «desgosto, irritação e perda do gosto de viver» perante uma mera queda num supermercado, não são objetivamente graves, como exige o disposto no artigo 496.º do Código Civil, porque não se retira da matéria de facto a gravidade, consequências, duração e dimensão do estado de «desgosto, irritação e perda do gosto de viver» da Autora.

III. Fundamentação

a) Impugnação da matéria de facto

(1) A recorrente pretende que sejam adicionados à matéria de facto os seguintes factos:

«Que os contactos encetados com a Seguradora e negociações envolvidas foram sempre, e unicamente, realizados pela mandatária da Autora».

Trata-se de um facto instrumental destinado a permitir a compreensão ou apreensão daquilo que ocorreu historicamente.

«Que o conteúdo da declaração foi explicado à sinistrada pela sua mandatária».

Trata-se de um facto essencial na perspetiva da sua relevância tendo em conta o regime das cláusulas contratuais gerais.

«Que a Autora sabia que, ao assinar o referido documento e recebendo a indemnização correspondente, estava a exonerar a Ré de quaisquer ulteriores pagamentos quanto a danos patrimoniais futuros».

Trata-se de um facto essencial na perspetiva da sua relevância tendo em conta o regime das cláusulas contratuais gerais.

Estes factos, nesta formulação, não constam da contestação ou outros articulados, muito embora se refira na contestação que do documento foi assinado pela Autora e que consta do mesmo a referida exoneração da Ré com base no recebimento daquela indemnização

Repete-se «nesta formulação» porque nos articulados não é feita referência à intervenção de uma senhora advogada como mandatária da Autora nos contactos com a seguradora Ré e que terá esclarecido a Autora quanto ao significado do documento.

Quanto aos factos complementares e instrumentais, o juiz pode declara-los provados ao abrigo do disposto no artigo 5.º, n.º 2, al. a), do Código de Processo Civil, onde se determina que «2- Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz: a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa; b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar;…».

A questão que se coloca é esta: na hipótese do juiz não ter declarado provado um facto, poderão as partes, mais tarde, em recurso, requerer que o Tribunal da Relação o considere provado, alegando que resulta da instrução da causa?

Afigura-se que a resposta deve ser negativa, pelas seguintes razões:

(I) Se se tratar de um facto essencial, imprescindível à decisão de mérito, o artigo 5.º do Código de Processo Civil veda ao tribunal a possibilidade de julgar provado na sentença um facto essencial não alegado, o mesmo valendo para a fase de recurso.

Se se trata de facto instrumental ou complementar, tal pretensão processual não cabe na previsão do artigo 640.º do Código de Processo Civil, relativa à impugnação da matéria de facto.

Com efeito, relativamente à impugnação da matéria de facto, o artigo 640.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, dispõe do seguinte modo:

«1- Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas».

Ora, no caso contemplado na pergunta acima formulada, se alguma falta processual existiu, consistiu numa omissão, isto é, o juiz devia porventura ter declarado provado um certo facto instrumental ou complementar, não alegado, mas não o fez.

Porém esta situação, eventualmente ([1]) omissiva, não preenche o conceito de «ponto de facto incorretamente julgado» referido na al. a), do n.º 1, do artigo 640.º do Código de Processo Civil, conceito que pressupõe apenas os factos declarados «provados» ou «não provados» exarados na decisão recorrida, únicos que poderão ter sido «incorretamente julgados».

A al. b), do n.º 2, do mesmo artigo, reforça esta ideia ao determinar que a parte deve especificar os meios de prova «que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida».

Pressupõe-se também aqui que tenha existido uma decisão sobre «algo».

No caso dos autos, há uma omissão e esta, por definição, salvo se fundamentada, não é uma decisão.

A decisão é aquela ação do juiz que necessariamente declara um facto ou como «provado» ou, então, como «não provado», e só nestes casos faz sentido a lei referir-se a decisão «diversa da recorrida».

Afigura-se, por conseguinte, que o Código de Processo Civil não permite à parte que, em sede de recurso da matéria de facto, possa provocar uma decisão do Tribunal da Relação no sentido deste tribunal emitir decisão declarando, pela primeira vez no processo, «provado» ou «não provado» um facto instrumental que, segundo o recorrente resultará da instrução da causa, mas que não tinha sido alegado ([2]).

 (II) Em segundo lugar, há que notar que os factos instrumentais não interessam, em regra, à decisão de mérito, mas apenas à formação da convicção relativamente aos factos essenciais, pelo que, tendo em conta o que fica dito, conclui-se pela inadmissibilidade da parte provocar no Tribunal da Relação o conhecimento de um (eventual) facto instrumental, no sentido de o considerar «provado», quando tal facto não foi alegado nos articulados, nem objeto de decisão por parte do juiz.

 (III) Quanto aos factos complementares, qualificação que não respeita aos factos acima mencionados, dada a sua relevância para a decisão do mérito da causa, admite-se que a parte possa recorrer solicitando a sua incorporação na decisão, porquanto podem ser levados em consideração pelo juiz em 1.ª instância e pela Relação, se esta considerar que a matéria de facto é insuficiente, nos termos da al. c), do n.º 2, do artigo 662.º do CPC.

(IV) Por último, se o Tribunal da Relação pudesse emitir decisão declarando, pela primeira vez no processo, «provado» ou «não provado» um facto instrumental, o Tribunal da Relação transformar-se-ia funcionalmente num tribunal de 1.ª instância, chamado a decidir, certamente com elevada frequência, pela primeira vez no processo, matérias factuais que, a terem alguma utilidade, já deviam ter sido objeto de exame na 1.ª instância.

Esta prática processual causaria, por isso, assinalável perturbação processual pela inversão de papéis que suscitaria, colocando os Tribunais da Relação a realizar o trabalho que logicamente devia ter sido efetuado na 1.ª instância e sujeito depois a eventual recurso para o Tribunal da Relação.

Além de constituir objetivamente um apelo a posturas de trabalho desmazeladas por parte de advogados e juízes de 1.ª instância, no sentido de deixar para o último momento, o do recurso, a tomada de decisões que deviam ter sido tomadas, muito antes, em 1.ª instância.

Pelo exposto, desatende-se a pretensão da recorrente quanto a estes factos.

(2) A recorrente pretende ainda que seja declarado provado «Que o recibo de indemnização final assinado pela Autora valorou expressamente os danos patrimoniais futuros».

É consensual entre as partes que a Autora assinou o referido recibo, isto é, o documento de quitação de fls. 30, e do mesmo consta que a indemnização se referia a todos os danos, incluindo os futuros.

Isto mesmo consta já dos factos provados n.º 6 e 41 da sentença os quais dão por reproduzido o documento n.º 7 da petição, a fls. 30.

Por conseguinte, declara-se improcedente esta pretensão por já constar dos factos provados.

3 - A Recorrente pretende ainda que seja declarado «não provado» o facto provado sob o n.º 40 em que dá como assente que a Autora sente dificuldades acrescidas e limitações nas atividades do seu dia-a-dia, o que lhe provoca desgosto, irritação e perda do gosto de viver, devendo tal facto ser considerado como não provado.

Vejamos.

Consta do relatório médico-legal relativo à Autora, datado de 29 de agosto de 2017, o seguinte:

«Discussão», no ponto «4», página 6 verso do relatório «– Repercussão Permanente da Actividade Profissional (…). Neste caso, as sequelas são compatíveis com o exercício da actividade habitual, mas implicam esforços suplementares».

«Conclusões», página 8 do relatório «As sequelas descritas são, em termos de Repercussão Permanente da Actividade Profissional são compatíveis com o exercício da actividade habitual, mas implicam esforços suplementares».

Estes elementos constantes do relatório médico-legal mostram, só por si, que deve manter-se como provado o segmento «40. A Autora sente dificuldades acrescidas e limitações nas atividades do seu dia-a-dia…».

Quanto ao restante segmento:«… o que lhe provoca desgosto, irritação e perda do gosto de viver».

 Afigura-se que se retira das regras da experiência que quem passa a ter dificuldades acrescidas e limitações nas atividades do dia-a-dia originadas por uma lesão sofrida num joelho, como é o caso da Autora, sente desgosto, pois é consensual que é preferível não ter essa limitação.

Quanto à «irritação» provocada por essa situação.

Nesta parte, muito embora seja apropriado ao caso que exista essa irritabilidade, a prova produzida não permite concluiu nesse sentido.

Relativamente à «perda do gosto de viver» afigura-se que estamos perante palavras que exprimem uma situação factual complexa que não pode ser respondida, pelas seguintes razões:

Em primeiro lugar, porque se trata de um conceito factual complexo. Por juízo de facto complexo entende-se o juízo que é formado a partir de juízos mais simples. Estes últimos são os que se encontram mais próximos da realidade, isto é, do objeto a que se referem, os quais são ocultados quando se elabora um juízo mais complexo (p. ex., o juízo «J(…) é alto» oculta que ele tem 1,90 metros).

Como já referiu o ora relator noutro local, «Os juízos de facto complexos tendem a ser expressos por conceitos portadores de elevado grau de abstração, ricos em extensão e pobres em compreensão, como, por exemplo: “trabalhava aquele terreno”, “não tem condições psicológicas para…”, “não educa de modo correto o filho”, “geriu mal a empresa”, “ia distraído”, “não estava no seu perfeito juízo”, “tinha dificuldades financeiras”, etc.

Tais conceitos geram, por isso, um défice de informação factual que prejudicará a parte contrária, pois não permitem à contraparte (nem ao juiz) saber quais as premissas factuais ocultas, para verificar, primeiro, se elas existiram ou existem; segundo, se, tendo ocorrido, suportam aquele juízo complexo.

Além disso, uma afirmação que não descreve a realidade de forma inequívoca pode ser inaproveitável como facto, caso a partir dela não seja possível construir, com a necessária segurança, os juízos de direito necessários à aplicação da lei» ([3])

Ora, a utilização destes juízos factuais complexos é praticamente idêntica à situação que ocorre quando há afirmações de direito exaradas no setor da sentença onde se indica a matéria de facto provada.

As afirmações de direito feitas na matéria de facto pressupõem certos factos, mas estes permanecem desconhecidos no processo.

Por exemplo, se se discute a propriedade de B e se se afirma apenas que A é proprietário de B, ficamos sem saber que factos sustentam a afirmação do direito de propriedade sobre B.

Daí que a solução deva ser a mesma em ambos estes casos, isto é, a desconsideração da afirmação factual complexa, tudo se passando como se ela não existisse, à semelhança com o que ocorre com os juízos de direito inseridos na matéria de facto ([4]).

Em segundo lugar, porque o conceito de «perda do gosto de viver» é um conceito já afastado da realidade e carece, para ser formulado, da prova dos factos mais simples e próximos da realidade quotidiana.

Ora, são estes factos simples, os que permitem formular o juízo complexo, que devem constar da matéria de facto e não o juízo complexo, ainda eu factual.

Por estas duas razões não se responde à parte «perda do gosto de viver».

Concluindo, o facto provado n.º 40 fica com esta redação: «A Autora sente dificuldades acrescidas e limitações nas atividades do seu dia-a-dia, o que lhe provoca desgosto».

(3) A Ré pretende que se se declare «Que o recibo de indemnização final assinado pela Autora valorou expressamente os danos patrimoniais futuros», pretensão contrária à que consta do n.º 33 dos factos provados onde se afirma que no recibo de indemnização não se valoraram os danos patrimoniais futuros.

Vejamos.

Na sentença refere-se que a resposta ao facto do n.º 33 se baseou (apenas) no documento de fls. 31 (cfr. fls. 13 da sentença).

Este documento de fls. 31 tem o título de «Valorização de Dano Corporal - Cálculo de proposta razoável».

Neste documento calcula-se a indemnização em EUR 4.161,50.

No documento n.º 7 da petição, que é o «recibo de Quitação/Indemnização, consta a quantia de EUR 5.500,00.

Parece, pois, que se atribuiu uma quantia extra para indemnizar algo diverso da valorização estrita do dano corporal verificado naquele momento.

Neste documento, logo após o título, existe este texto:

«Com o recebimento do montante da indemnização, relativo a todos os danos e despesas, presentes e futuros, emergentes do sinistro, considera-se completo e definitivo o ressarcimento, concede-se a quitação incondicional e exonera-se a …».

Verifica-se, porém, que este mesmo texto consta do documento de fls.140, que é um «Recibo de Quitação/Indemnização» idêntico, de onde consta o pagamento à Autora, por parte da Ré, de EUR 2.525,00 euros a título de indemnização parcial relativa ao mesmo sinistro.

Afigura-se, pois, que se trata de um texto inserido pela Ré de modo uniforme nos documentos de quitação por si elaborados e apresentados aos sinistrados a quem paga indemnizações.

Por isso, tal texto só tem validade se a Autora teve conhecimento dele e o compreendeu no que contém de relevante, caso contrário não passa de uma declaração unilateral e as declarações contratuais só adquirem validade quando são consensuais, queridas por ambas as partes.

Quanto a este aspeto, verifica-se que a Ré afirma que os contatos foram sempre feitos com uma senhora advogada que agiu como representante da Ré, não com a Ré e que teria sido esta senhora advogada a informar a Autora do teor da cláusula.

Ora, face aos factos, nada se sabe sobre se esta senhora advogada agiu no exercício de um mandato conferido pela Autora, com poderes de representação.

Se tivesse sido este o caso, os contactos havidos entre a Sra. advogada e a Ré equivaliam a contactos diretos tidos pela própria Autora com a Ré.

Mas não se sabe se foi esta a situação que existiu, pois podia ter ocorrido, em alternativa, que a referida Sra. advogada tivesse agido como mera auxiliar da Autora, sem a estar a representar, não dispensando a Ré, neste caso, de comunicar à Autora todo o conteúdo do documento de quitação.

Por isso, não se pode formar a convicção no sentido de saber se a Autora tomou consciência ou não tomou de que, com aquela indemnização, ficava encerrada definitivamente a questão da indemnização pelos danos causados por aquele sinistro, incluindo os futuros, mesmo que imprevisíveis nesse momento.

Mas procede em parte a pretensão da Ré, porque a fundamentação da convicção da 1.ª instância exarada na sentença refere que a resposta ao facto do n.º 33 se baseou, como já se referiu, apenas no documento de fls. 31.

Ora, afigura-se que tal documento é insuficiente para chegar a tal conclusão, tanto mais que desse documento consta um montante indemnizatório inferior ao que foi efetivamente atribuído à Autora, pelo que este excesso podia ter-se ficado a dever à indemnização de danos futuros.

Por conseguinte, muito embora não se declare provado que houve consenso entre as partes no sentido de que o documento de quitação respeitava a todos os danos indemnizáveis, incluindo os futuros, também não há elementos para declarar provado o contrário, ou seja, que não contemplava os danos futuros.

Retira-se, por isso, do facto em questão o segmento «…, não se valorizando aí danos patrimoniais futuros», ficando a questão em aberto em sede de matéria de facto, sem prejuízo da valoração que deva ser feita a partir da existência de tal documento.

b) Matéria de facto - Factos provados

1. No dia 12 de maio de 2014, a autora L (…) dirigiu-se ao hipermercado K... Hipermercados, S.A., segurado da Ré, sito na Rua (...) , na cidade do x... , para realizar as suas compras domésticas como era habitual na sua vida quotidiana.

2. No interior das instalações, mais precisamente no átrio que antecede as caixas registadoras e que permite o acesso às demais lojas instaladas no edifício, a Autora escorregou e caiu sobre o seu lado esquerdo.

3. A queda deveu-se ao facto do piso estar molhado.

4. No local do acidente não havia qualquer sinalização de interdição de passagem ou de sinalização de piso em manutenção mais conhecido por «Piso Escorregadio» que alertasse a Autora para o perigo iminente.

5. À data do acidente dos autos (12/05/2014), a E (…) SGPS havia transferido para a ora Ré, até ao limite de €50.000.000 (Cinquenta milhões de euros), a sua responsabilidade civil extracontratual emergente da sua atividade comercial e/ou industrial, bem como das empresas do seu grupo, entre as quais a M (…) S. A., nos termos do contrato de seguro titulado pela apólice n.º PA14CP0008, conforme melhor resulta das condições gerais e particulares da referida apólice junta aos autos a fls. 55 a fls. 77, cujo conteúdo se dá por reproduzido.

6. Entre os dias 03 de setembro de 2014 e 05 de março de 2015, a aqui Ré, após diversos contactos estabelecidos pela Autora, pagou a esta a quantia de €8.088.86 (oito mil e oitenta e oito euros e oitenta e seis cêntimos), a título de indemnização pelo sinistro ocorrido no estabelecimento comercial do seu segurado, parcialmente nos termos do documento patenteado nos autos a fls. 30 (numerado de doc. 7), cujo conteúdo se dá como reproduzido.

7. Na sequência da queda a que se alude em 2), a Autora não recorreu de imediato a cuidados médicos.

8. Nos dias seguintes a Autora sentiu dores no joelho esquerdo.

9. No dia 30 de maio de 2014, a Autora deslocou-se às urgências do Hospital (...) da (...) , onde foi submetida a radiografias e a medicação tendo tido alta médica nesse mesmo dia.

10. Apesar da medicação receitada a Autora não obteve melhoras, deslocando-se novamente às urgências do Hospital (...) da (...) .

11. Ulteriormente, a autora deslocou-se ao hipermercado K... do x... para realizar a participação do acidente, o que fez.

12. Na sequência, a seguradora encaminhou a Autora para uma consulta/avaliação na Clínica Médica (…), sita na (...) .

13. Do acompanhamento realizado na Clínica Médica (…) à Autora foi diagnosticado o seguinte: «Suspeita de lesão menisco interno» e prescrito uma ressonância magnética para estudo articular e decisão de terapêutica, conforme relatório médico junto aos autos a fls.11 a fls.13.

14. No dia 13 de agosto de 2014, em consulta de reavaliação, a ressonância magnética revela que a lesão da Autora é compatível com lesão no menisco interno e externo.

15. Desde o dia do acidente até ao dia 13 de agosto de 2014, a Autora sentiu limitações na realização das atividades diárias da sua vida e deixou de desempenhar a sua profissão de feirante.

16. A Autora exercia a sua profissão de feirante.

17. Por dificuldades económicas não logrou adquirir de imediato umas canadianas.

18. No dia 29 de agosto de 2014, a Autora foi submetida a artroscopia do joelho esquerdo na Clínica Particular de y (...) com alta médica a dia 30 de agosto de 2014.

19. Foi feita reparação de lesão do menisco interno e externo – «Lesão condral grau III faceta externa da rotula, lesão condral grau II côndilo interno e prato tibial interno, lesão condral grau III/IV prato tibial externo e côndilo externo».

20. Observada a 15 de setembro de 2014, foram prescritas à Autora 20 sessões de fisioterapia.

21. A Autora foi observada a 30 de outubro de 2014 na Clinica Médica (…)

22. No dia 26 de novembro de 2014, a Autora foi submetida a uma «avaliação final do dano corporal», nos termos do teor do relatório junto aos autos a fls.15 a fls.20, cujo conteúdo se dá por reproduzido.

23. No sobredito relatório exaram-se as seguintes conclusões:

a. A data da consolidação das lesões é fixável em 30 de outubro de 2014;

b. Período de Défice Funcional Temporário Total em 2 dias;

c. Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional - Total fixável em 165 dias.

d. Quantum Doloris fixável no grau 4/7;

e. Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica fixável em Quatro pontos;

f. As sequelas descritas são, em termos de Repercussão Permanente na Atividade Profissional, são compatíveis com a profissão de feirante;

g. Dano estético permanente fixável no grau 1/7;

24. Apesar da intervenção cirúrgica a que foi submetida e às 20 sessões de fisioterapia realizadas, no dia 4 de Abril de 2015, a Autora foi novamente observada na Clinica Médica z (...) tendo tido o seguinte parecer médico «No meu parecer a doente terá de ser submetida a artroplastia total do joelho esquerdo», nos termos do relatório médico patenteado nos autos a fls.11 a fls.14 (documento n.º 1 junto com a petição inicial), cujo conteúdo se dá por reproduzido.

25. Posteriormente, nos dias 1 de junho de 2015 e 30 de julho de 2015, deslocou-se à supra referenciada clinica, tendo-lhe sido diagnosticado: «Doente com gonalgia esquerdo pós acidente em superfície comercial. Doente com incapacidade permanente no joelho esquerdo a necessitar de marcha com canadianas para as actividades da vida diária» – nos termos dos relatórios médicos patenteados nos autos a fls.21 a fls.26 (documentos nº4 e 5 juntos com a petição inicial) – cujo teor se dá por reproduzido.

26. No período pós-operatório até ao presente, a Autora continua a ter dores localizadas no joelho esquerdo, apresenta limitação da mobilidade do joelho esquerdo na extensão 165º e na flexão 90º, sendo medicamente recomendado o uso de canadianas como auxiliares de marcha; apresentando dificuldades acrescidas em permanecer muito tempo de pé.

27. A profissão de feirante da autora implica deslocações em veículos e uma necessidade de estar em pé durante um período de tempo longo, o que lhe causa dores e desconforto.

28. Tal situação acima descrita limita, ainda, a Autora de fazer sozinha atividades básicas diárias como lavar a loiça, limpar a sua casa, fazer a sua higiene pessoal, implicando tais situações esforços suplementares, situação que a deixa desgostosa e perturbada.

29. À data de 05/03/2015, não era possível à autora prever as sequelas de que padece atualmente, mormente que:

30. Foi diagnosticado à autora que apresenta «…gonalgia esquerdo pós acidente em superfície comercial. Doente com incapacidade permanente no joelho esquerdo a necessitar de marcha com canadianas para as atividades da vida diária».

31. Na sequência de avaliação médica realizada no dia 4 Abril de 2015, entendeu-se que a Autora deveria ser submetida a artroplastia total do joelho esquerdo.

32. As diversas avaliações, fruto de queixas de fortes dores localizadas no joelho esquerdo, levaram a Autora a no dia 30/07/2015 e em 11/04/2016 a ser submetida a novas avaliações - com a seguinte conclusão clínica: «…a indicação de artroplastia total do joelho será de alto risco dadas condições de pele que a doente apresenta».

33. Na liquidação da indemnização/compensação alvitrada pela ré à autora, a mesma valorizou os aspetos patenteados no documento de fls.31, cujo teor se dá por reproduzido.

34. Como consequência direta e necessária do acidente supra descrito, a Autora apresenta as seguintes lesões e sequelas: gonalgia no joelho esquerdo. Ao nível do membro inferior esquerdo: apresenta limitação da mobilidade do joelho esquerdo na extensão 165º e na flexão 90º, a necessitar de marcha com canadianas para as atividades da vida diária, apresentando um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 10 pontos.

35. O que motivou quatro deslocações à Clinica Médica (…) sita na cidade da (...) no pós alta.

36. Posteriormente à alta de fisioterapia a Autora apresentou e apresenta queixas dolorosas e a limitação funcional no joelho esquerdo pós traumática a que se alude em 34).

37. Devido às fortes dores sentidas no joelho e a já aludida limitação na marcha, a Autora deixou de poder fazer as atividades normais do seu quotidiano sem esforço acrescido.

38. Necessitando do uso de canadianas.

39. As dores sofridas atualmente pela Autora traduzem-se num quantum doloris fixável no grau 4/7.

40. A Autora sente dificuldades acrescidas e limitações nas atividades do seu dia-a-dia, o que lhe provoca desgosto.

41. A autora assinou o documento patenteado nos autos a fls. 30 – intitulado de recibo de quitação/indemnização, datado de 05/03/2015, cujo teor se dá por reproduzido, constando do mesmo, entre o mais, que «com o recebimento do montante da indemnização, relativo a todos os danos e despesas, presentes e futuros, emergentes do sinistro, considera-se completo e definitivo o ressarcimento, concede-se quitação incondicional e exonera-se a AIG, o seu segurado (…) de quaisquer responsabilidades sub-rogando-os em todos os direitos, ações e recursos contra os responsáveis pela verificação dos danos.

Consta ainda como montante recebido €5.500,00 (cinco mil e quinhentos euros) e a menção de que é relativo a «indemnização final dos danos decorrentes do sinistro».

42. A assinatura do recibo de quitação resultou dos contactos encetados com a seguradora, no seguimento das avaliações médicas a que a sinistrada foi submetida.

Factos não provados.

Os alegados sob os artigos 10.º e 11.º da contestação

c) Apreciação das restantes questões objeto do recurso

1 – Vejamos se a cláusula inserida no recibo de indemnização final, pela qual a Ré se exonera de qualquer ulterior indemnização à Autora, deve operar no caso, por se tratar de cláusula que foi negociada com a Autora.

A Recorrente sustenta que a cláusula foi negociada com uma Sra. advogada que representava a Autora, a qual terá explicado à Autora o respetivo significado ou alcance.

Não assiste razão à Recorrente.

Da matéria de facto não consta que a Autora se tenha feito representar perante a Ré por uma Sra. Advogada.

E quanto ao facto da Sra. advogada não poder ser «consumidora», a questão fica prejudicada.

De qualquer modo, o que carateriza a cláusula contratual geral não é o facto de uma das partes ser um «consumidor», mas sim o modo como são inseridas nos contratos.

Com efeito, os n.º 1 e 2 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro (Regime das Cláusulas Contratuais Gerais - RCCG), não aludem a «consumidores» quando dispõem que «1 - As cláusulas contratuais gerais elaboradas sem prévia negociação individual, que proponentes ou destinatários indeterminados se limitem, respetivamente, a subscrever ou aceitar, regem-se pelo presente diploma.

2 - O presente diploma aplica-se igualmente às cláusulas inseridas em contratos individualizados, mas cujo conteúdo previamente elaborado o destinatário não pode influenciar».

Qual o valor da cláusula?

Só com a contestação e resposta da Autora (fls. 80 e 81) é que nos autos se colocou a questão da referida cláusula se encontrar, ou não, sob a alçada do regime das cláusulas contratuais gerais.

A matéria de facto provada não esclarece a questão de se saber o itinerário percorrido pela dita cláusula, desde a sua cogitação à inserção no texto contratual e respetiva assinatura por ambas as partes.

Face aos factos provados, não se pode afastar a hipótese do caso dos autos ser um caso, entre outros, em que a Ré utilizou um texto unilateralmente redigido com tal cláusula, que usa indistintamente com outros sinistrados, e apresentou ao lesado para este assinar, tendo sido negociado apenas o valor da indemnização.

Assim como não se pode colocar de parte a hipótese de tal cláusula ter sido discutida e negociada.

Os factos provados não permitem afirmar qual das duas hipóteses ocorreu.

Mas é certo que quando as cláusulas são negociadas, não podem ser classificadas como cláusulas contratuais gerais, pois estas são, justamente, como se diz no n.º 1 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 446/85, «As elaboradas sem prévia negociação individual…».

Sendo assim, ao pretenso aderente cabe o ónus de alegar e provar factualidade que permita concluir que determinada cláusula constante do contrato foi/é uma «cláusula preformulada» e de uso geral ([5]), imputável à outra parte ([6]).

Depois incumbe ao proponente provar que a cláusula foi negociada ou então que comunicou na íntegra ao aderente, nos termos legais, a cláusula ou cláusulas em questão.

Concluindo, se o autor é aderente, isto é, a parte que se limitou a subscrever o contrato, eventualmente composto por cláusulas contratuais gerais, mas não invocou na petição, ou noutro articulado, factualidade suscetível de mostrar que tais cláusulas foram «cláusulas preformuladas» ou de uso geral imputáveis à contraparte, não pode aplicar-se ao caso o regime das Cláusulas Contratuais Gerais aprovado pelo Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de outubro.

Face ao exposto, não se pode considerar no presente caso que estamos perante uma cláusula contratual geral e aplicar o respetivo regime.

Procede a argumentação recursiva nesta parte.

2 – Vejamos agora se a assinatura exarada pela Autora no recibo de indemnização final constituiu uma remissão abdicativa, a qual, nos termos do artigo 863.º do Código Civil, teve e tem a virtualidade de extinguir todas as obrigações decorrentes da relação extracontratual em apreço, incluindo os danos patrimoniais futuros que a Ré pôde prever e considerar na contra proposta para a indemnização final.

Ou se tal cláusula padece de nulidade, como se refere na sentença recorrida, por contrariar o disposto no artigo 809.º do Código Civil.

Nos termos do artigo 863.º (Natureza contratual da remissão), «1. O credor pode remitir a dívida por contrato com o devedor. 2. Quando tiver o carácter de liberalidade, a remissão por negócio entre vivos é havida como doação, na conformidade dos artigos 940.º e seguintes».

Não se trata, no caso, de uma remissão abdicativa, pois esta é, na realidade, um perdão de uma dívida que está definida nesse momento.

No caso dos autos não estamos perante um perdão por parte da Autora, mas sim perante um acordo acerca do montante indemnizatório considerado adequado por ambas as partes.

Cumpre, porém, analisar a factualidade em questão à luz do disposto no artigo 809.º do Código Civil, onde se determina que (Renúncia do credor aos seus direitos) «É nula a cláusula pela qual o credor renuncia antecipadamente a qualquer dos direitos que lhe são facultados nas divisões anteriores nos casos de não cumprimento ou mora do devedor, salvo o disposto no n.º 2 do artigo 800.º».

Acerca desta norma, Antunes Varela referiu que o credor pode renunciar em definitivo ao seu direito, mas só depois de verificado o incumprimento por parte do devedor. Aquilo que o credor não pode é abdicar antecipadamente aos direitos que a lei lhe confere face ao incumprimento da obrigação por parte do  devedor, porque, diz, «Esses direitos constituem a armadura irredutível do direito de crédito, neles reside a força intrínseca da juridicidade do vínculo obrigacional.

Querer seriamente constituir a obrigação e despojá-la à nascença dos meios coercitivos que dão vida à sua condição jurídica seria uma espécie de aliança do sim e do não, que o direito não pode sufragar» ([7]).

E, em nota, acrescenta que «A validade da renúncia antecipada equivaleria a retirar o carácter ilícito à conduta que a lei considera como tal. E nenhuma razão objectiva séria há para deixar enclausurar na prisão em que o credor a pretenda meter no momento da constituição da obrigação a sua vontade efectiva de reagir perante a violação do crédito cometido pelo devedor.

Que o credor renuncie à protecção que a lei lhe concede, depois de violada a obrigação, já nada ofende o juízo de ilicitude que a lei profere sobre a conduta do obrigado, porque esse juízo se substanciou no direito que o credor teve de usar às armas que a lei lhe faculta, qualquer que seja o uso que o titular faça delas» ([8]).

O presente caso, não é um caso que se acomode na razão de ser ou finalidade do preceituado no artigo 809.º, sem suscitar dúvidas, porquanto no caso concreto quando foi elaborado o documento relativo ao acordo sobre a indemnização o acidente já tinha ocorrido, já se sabia que existiam danos e foi fixada uma indemnização.

Assim, não se pode afirmar, de todo, que o credor renunciou à proteção que a lei lhe conferia perante a ilicitude, pulverizando desse modo os vínculos que as obrigações legais estabelecem entre credor e devedor, os quais permitem que tais relações existam como obrigações, pois nenhuma obrigação existe ou pode existir quando não há responsabilidade pelo incumprimento.

Tanto não renunciou, que recebeu uma indemnização.

Porém, o caso concreto tem a particularidade evidenciada no facto provado n.º 29, isto é, «À data de 05/03/2015, não era possível à autora prever as sequelas de que padece atualmente, mormente que: …».

Ou seja, na data em que foi estabelecido o acordo, a vontade das partes não previu, nem podia prever, esta factualidade porque ela não era previsível face aos factos danosos conhecidos.

Deste modo, verifica-se que muito embora parte do dano já fosse conhecido, ou seja, as lesões corporais geradas pela queda, o dano em causa ainda não era conhecido, nem se tinha tão pouco produzido ([9]).

Não se tendo ainda produzido o dano, nem sendo este previsível na altura da celebração do acordo, não se pode afirmar que o direito ao cumprimento, o direito a receber a indemnização por parte da Autora, por tais danos, já estava constituído nessa altura.

Se já estivesse constituído, ainda que ilíquido, mas não estava, seria renunciável; como não estava constituído, o mencionado acordo, interpretado como renúncia, cai na alçada do artigo 809.º do Código Civil, ou seja, não tem validade, uma vez que a lei o declara de nulo, nessa parte.

Dos factos não consta qualquer elemento que implique levar em conta, para descontar, qualquer parcela que haja sido atribuída tendo em conta danos nesse momento ainda não verificados, como os agora considerados.

Concluindo esta parte, a cláusula, «com o recebimento do montante da indemnização, relativo a todos os danos e despesas, presentes e futuros, emergentes do sinistro, considera-se completo e definitivo o ressarcimento, concede-se quitação incondicional e exonera-se a (…) de quaisquer responsabilidades sub-rogando-os em todos os direitos, ações e recursos contra os responsáveis pela verificação dos danos», estabelecida entre a seguradora e a Autora é nula, nos termos do artigo 809.º do Código Civil, quando entendida no sentido de que abrangeu danos cujos factos causadores não estavam formados no momento da sua fixação.

Improcede nesta parte a argumentação da Ré recorrente.

Passando à análise da última questão colocada.

3 – Montante da indemnização fixada a título de danos não patrimoniais.

A Ré argumenta que os danos não patrimoniais alegadamente sofridos pela Autora, nomeadamente «desgosto, irritação e perda do gosto de viver» perante uma mera queda num supermercado, não são objetivamente graves, como exige o disposto no artigo 496.º do Código Civil, porque não se retira da matéria de facto a gravidade, consequências, duração e dimensão do estado de «desgosto, irritação e perda do gosto de viver» da Autora.

Como resulta dos factos provados, provou-se que a Autora sente desgosto devido ao facto de necessitar de fazer esforços físicos acrescidos para desempenhava as mesmas funções que antes levava a cabo.

Ocorre que na fixação da indemnização não foi considerado apenas este «desgosto», mas também o facto da Autora ter padecido sofrimento físico e moral que determinou a fixação do quantum doloris por parte do perito médico-legal em 4 pontos, numa escala ascendente de 1 a 7 (cfr. pág. 28 da sentença), por conseguinte, acima do ponto médio.

Este quantum doloris e o desgosto que acompanha a Autora por sentir dificuldades acrescidas e limitações nas atividades do seu dia-a-dia, que antes não sentia justificam que seja atribuída uma indemnização?

A resposta é afirmativa.

Segundo o critério estabelecido no n.º 1 do artigo 496.º do Código Civil, só há que fixar indemnização quanto aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.

Não merecem essa tutela «...os prejuízos insignificantes ou de diminuto significado, cuja compensação pecuniária não se justifica, que todos devem suportar num contexto de adequação social, cuja ressarcibilidade estimularia uma exagerada mania de processar e que, em parte, são pressupostos pela cada vez mais intensa e interactiva vida social hodierna. Assim não são indemnizáveis os diminutos incómodos, desgostos e contrariedades, embora emergentes de actos ilícitos, imputáveis a outrem e culposos» ([10]).

Afigura-se que os danos não patrimoniais indicados mostram suficiente gravidade para merecerem tutela, tratando-se de situação em que não é socialmente exigível que sejam suportadas altruisticamente, com vista a promover a tolerância e a coesão social ou como algo que todos devam suportar num contexto de adequação social, como um tributo a pagar pela contrapartida dos benefícios que o cidadão retira da vivência em sociedade.

Não vem colocada em questão a valoração quantitativa, mas apenas a questão de saber se os danos assumiam gravidade suficiente para serem ressarcidos e, quanto a esta parte conclui-se que assumem gravidade suficiente para serem indemnizados.

Improcede também esta pretensão da recorrente, cumprindo manter a sentença recorrida.

IV. Decisão

Considerando o exposto, julga-se o recurso improcedente e mantém-se a sentença recorrida.

Custas pela Recorrente.


*

Coimbra, 13 de novembro de 2018

Alberto Ruço ( Relator )

Vítor Amaral

Luís Cravo



[1] Diz-se «eventualmente, na medida em que só depois de examinada pelo tribunal da Relação a prova produzida este poderia concluir pela existência (ou inexistência) de um facto instrumental que devia ter sido declarado provado e não o foi.
[2] Admitem-se como exceção, na qual não cai o presente caso, os casos em que o facto essencial não é suscetível de ser alegado diretamente e tem de resultar da alegação e prova de factos instrumentais.
[3] «Processo Civil – Matéria de Facto: conceitos, juízos …», in Estudos em Comemoração dos 100 Anos do Tribunal da Relação de Coimbra. Almedina, 2018, pág. 24-25.
[4] Ob. cit, pág. 28.

[5] «…a ocorrência de negociação, fazendo com que a cláusula deixe de ser regida pelo D.L n.º 446/95, é um facto impeditivo de que o interessado beneficie da tutela por ele conferida. Nos termos gerais do n.º 2 do art. 342.º, cabe, pois, ao utilizador da cláusula, contra quem o diploma é invocado, fornecer essa prova, para, desse modo, se furtar à sua aplicação.

Este regime processual permite-nos clarificar o verdadeiro significado do requisito, no quadro da utilização de ccg. Atente-se em que a existência de negociação prévia entre as partes só tem relevo exoneratório autónomo perante cláusulas que satisfazem as restantes características definidoras das ccg: tendo a contraparte provado tratar-se de uma cláusula preformulada e de uso geral, só resta ao utilizador excepcionar ter ela resultado de negociação, deixando, por isso, o seu conteúdo de lhe poder ser, naquele caso, unilateralmente imputado» - Joaquim Sousa Ribeiro. O Problema do ContratoAs Cláusulas Contratuais Gerais e o Princípio da Liberdade Contratual. Almedina, 2003 (Reimpressão), pág. 626-627.

[6] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25-05-2006 (Pereira da Silva), com referência ao n.º 06B1016, in www.dgsi.pt.:

«1. A prova da comunicação (efectiva, adequada e esclarecedora) e da informação ao aderente a que se reportam os art.s 5.º n.º 3 e 6.º do DL n.º 446/85, de 25 de Outubro, cabe, nos termos de tais normativos, ao contraente que submete àquele as respectivas cláusulas contratuais gerais.

2. Previamente à prova do expresso em 1., subsiste o ónus, por aquele que se quer valer da violação dos deveres consignados nos preditos normativos, da alegação de factualidade donde flua tal infracção».

A «Primeira condição da aplicabilidade deste regime é a de que se esteja perante cláusulas contratuais gerais elaboradas sem prévia negociação individual, conforme prescreve expressamente o n.º 1 do seu artigo. Ora, relendo a contestação, em nenhuma parte dela se concretiza esta importante particularidade» - Ac. Tribunal da Relação de Lisboa de 9 de Maio de 1996 (Ferreira Girão), Colectânea de Jurisprudência, ano XXI, Tomo III, pág. 86 (Tratou-se de um caso em que foi utilizado um impresso para firmar um contrato de arrendamento).

[7] Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7.ª Edição. Almedina, pág. 137.
[8] Ob. Cit., nota 1.

[9] Cfr. Revista n.º 2721/08 - 7.ª Secção - Ferreira de Sousa (Relator), com o seguinte sumário:

«I - Em finais de Março de 1989, a autora aceitou receber a indemnização total e final de 400.000$00 por todos os danos patrimoniais e não patrimoniais que lhe advieram ou possam advir em consequência do acidente de viação de que foi vítima. II - A declaração em apreço foi produzida na sequência da alta clínica, subsequente ao acidente, apresentando a recorrida em 19-10-1988 uma IPP de 8,5 %. III - Os recorrentes declaratários apenas poderiam e deveriam entender a declaração emitida enquanto reportada aos pressupostos dos danos já fixados, por ser este o sentido objectivo da mesma. IV - No momento em que a declaração foi feita não estava ainda definida a real extensão dos danos resultantes das lesões; com efeito, sete anos depois de ter assinado a declaração, a autora sofreu um agravamento das primitivas lesões, apresentando actualmente uma IPP de 20%. V - O agravamento dos danos foi não só superveniente e conhecido pela recorrida apenas em 1996, como também era tal agravamento imprevisível; assim, inexiste a apontada renúncia abdicativa, nomeadamente quanto ao ressarcimento dos danos futuros consequentes do aludido agravamento da IPP».

Cfr. ainda o acórdão do STJ proferida na Revista n.º 255/10.2TBVRL.P1.S1 - 1.ª Secção, Gabriel Catarino (Relator) «I. (…). II - O recibo de quitação em que se consignou que “com o recebimento da quantia acima, relativa a todos os danos patrimoniais e não patrimoniais supramencionados, exoneramos sem reserva a Companhia de Seguros (…), o segurado, o proprietário do veículo e motorista, renunciando expressamente aos direitos que nos correspondam em virtude do sinistro, de acordo com a legislação em vigor (…)”, não contém uma renúncia a uma qualquer outra indemnização a que as demandantes tivessem direito por força do contrato de seguro obrigatório, nomeadamente por danos não patrimoniais a que elas próprias tivessem direito pelos desgostos e afecção moral e emocional decorrente do decesso do marido e pai».

Ainda o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 26-02-2008 (Vieira da Cunha), in www.dgsi.pt,, identificado sob o número 0820734: «I - Se, no momento em que uma declaração de quitação e renúncia abdicativa é produzida, não se encontra ainda definida a real extensão do dano, vale integralmente o princípio que preside à cominação de nulidade do art. 809º do CC. II - De todo o modo, a declaratária ré seguradora apenas poderia ou deveria entender a declaração enquanto reportada aos pressupostos dos danos já fixados – é esse o sentido objectivo da declaração de quitação e renúncia, e não aquele que, subjectivamente, o declaratário lhe possa ter querido atribuir, nos termos dos arts. 236.º n.º 1 e 237.º do CC».



[10] R. Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade. Coimbra, Almedina, 1995, pág. 555/556, 1995.