Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
231/21.0T8CLD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TERESA ALBUQUERQUE
Descritores: DESCRITORES:
CASO JULGADO
DECISÃO PROFERIDA NO JULGADO DE PAZ
Data do Acordão: 02/28/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DAS CALDAS DA RAÍNHA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 227.º; 762.º, 2 E 1031.º, B), DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGOS 5.º, 3; 552.º, 1, D); 572.º, B); 581.º E 619.º, 1, DO CPC
Sumário: I –O caso julgado obtido na acção que pendeu nos Julgados de Paz, e de que resultou a condenação do aqui Autor a proceder às obras de conservação ordinária e extraordinária necessárias, dotando o locado de abastecimento de água potável canalizada e de ligação das águas residuais domésticas à rede colectora, projecta-se na defesa da Ré, justificando a não residência da mesma no locado até à sua efectiva execução.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I -  AA, propôs a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum, contra BB, pedindo que seja decretada a resolução do contrato de arrendamento respeitante ao imóvel sito na Rua ..., ..., ..., do qual é proprietário, condenando-se a Ré a despejar imediatamente o locado e entrega-lo livre de pessoas e bens.

Alegou, em síntese, que, adquiriu o prédio de uma tia, por partilha outorgada em 12/7/2013, sendo que a essa data o arrendamento com a Ré.  já existia há mais de 40 anos, pagando esta a no valor de 5,00 €. Teve conhecimento que a Ré, pelo menos desde Setembro de 2019, não reside, com carácter de permanência, no imóvel em causa, apresentando o locado um aspecto de desprezo e abandono, sempre fechado, pelo que lhe assiste o direito de resolver o contrato, ao abrigo do disposto nos arts 1083º/2 al d) e 1084º, ambos do CC.

A Ré contestou, alegando que tomou de arrendamento o referido prédio misto há mais de 60 anos, pagando de renda 5,00 €, não tendo sido feitas nesse prédio quaisquer obras de conservação, tendo sido ela a faze-las, nomeadamente, na cozinha, quando lhe caiu a chaminé, mais referindo que desde que foi habitar o arrendado que este não tinha água canalizada, tendo ela, quando dela necessitava para consumo doméstico, que ir busca-la a um tanque, que, por sua vez, era abastecido por uma captação subterrânea propriedade de um vizinho . Refere ainda que esta situação se foi agravando, porquanto o tanque em causa passou a estar coberto de vermes e objectos, tornando-se imprópria para o seu uso mais básico, como lavar a roupa. Acresce que o Autor mandou construir um curral para animais, cujo estrume é armazenado a céu aberto, amontoando-se as fezes  dos animais a curta distancia da porta de entrada da Ré, situação que levou a que um dos seus filhos denunciasse tal situação à Agência Portuguesa do Ambiente que, após vistoria, notificou o A. para dotar o arrendado com condições básicas de saneamento, consoante carta que juntou com a contestação. Refere ainda que foi apresentada uma Reclamação junto da ARST-OESTE Norte da Unidade de Saúde Pública das ..., cujo relatório de vistoria se pronunciou pela falta de condições de salubridade e habitabilidade, referindo existir perigo para a saúde dos seus habitantes por estarem a consumir água que, segundo as análises, está imprópria para consumo, juntando documento comprovativo. Alega ainda que, entretanto, foi vitima de atropelamento, tendo sido operada em 13/9/2019 e tido alta em 19/9/2019, conforme Relatório Médico do Centro Hospitalar ... que junta. Carecendo de recuperação e do apoio de terceira pessoa para a sua higienização, foi viver temporariamente com o filho, já que não podia transportar água do poço com baldes. Tem 76 anos, encontra-se lúcida e pretende regressar a sua casa, necessitando esta das condições mínimas higiénico-sanitárias, que tinha anteriormente, para poder regressar . Recebe uma pensão por velhice do CNP no valor de 344,44 €, conforme documento que junta, não tendo outros rendimentos, como comprova por declaração de IRS . Mais referiu que a falta de condições de habitabilidade do arrendado a levou a propor nos Julgados de Paz acção pedindo a condenação do ora Autor/senhorio, na realização das obras necessárias.  Terminou a contestação referindo que o A., nos termos do art 1101º do CC, não pode denunciar o contrato.

Foi entendido que a acção pendente nos Julgados de Paz configurava causa prejudicial relativamente à dos presentes autos, tendo as partes sido convidadas a pronunciarem-se a esse respeito.

Fê-lo o A., opondo-se à suspensão da instância, referindo que, pese embora exista identidade de sujeitos nas duas acções, não há identidade do pedido nem da causa de pedir.

Por despacho de 1/6/2021, foi determinada a suspensão da instância nesta acção, até ser proferida decisão naquela, o que veio a suceder em 24/11/2021, mostrando-se a mesma transitada, consoante resulta de certidão junta aos autos. 

Realizada audiência prévia, foi o Autor notificado para se pronunciar quanto à matéria de excepção invocada na contestação.

O que o mesmo fez, chamando a atenção, à cabeça, para a circunstância de a Ré subsumir os factos à matéria da denúncia do arrendamento e não à da resolução, como vem pedido, em função do que entende que se deve concluir pela falta de contestação, com todas as consequências legais. No entanto, e para o caso de assim não se entender, refere que a Ré não se defendeu com a invocação de qualquer das situações a que se reporta o nº 2 do art 1072º CC, fazendo notar que não demonstrou qual a sua doença, alegado apenas ter sido atropelada em 2019, mas na verdade encontra-se com excelente mobilidade. Refere ainda não ter qualquer forma de custear as obras, ter recebido de rendas desde a aquisição do imóvel 520,00 €, ter pago todos estes anos IMI de mais de 100 € por ano, e estimar o valor orçado das obras  acima dos 30.000,00, constituindo abuso de direito a defesa da Ré. em função da execução das obras.

A R foi ouvida a respeito desta excepção, nada tendo invocado de novo.  

Foi então entendido que, embora nem todos os factos em causa nos autos se mostrem provados, os que já o estão – em função  da sua não impugnação pelas partes e, bem assim, da certidão junta aos autos e respeitante ao Processo que correu termos entre estas nos Julgados de Paz -.permitem que se conheça de imediato do pedido, o que se fez, julgando-se improcedente a acção e  absolvendo-se a  Ré do pedido.

II- Do assim decidido, apelou o Autor, que concluiu as respectivas alegações, nos seguintes termos:

A) Pelo que, o Tribunal a quo ao considerar como operante a excepção do caso julgado, absolvendo a Recorrida da instância, violou o mais elementar direito do Recorrente de garantia de acesso aos tribunais previsto no artigo 2.º do CPC, negando o único meio processual ao seu dispor para efectivar os seus direitos e ver reconhecido o seu pedido em juízo;

 B) Tendo o processo transitado em julgado sem que exista identidade de pedido e causa de pedir com o actual processo, e concluindo este em sentença sem que tivessem sido apreciadas as pretensões das partes, é garantido ao Recorrente, ao abrigo do disposto no artigo 2.º do CPC, o direito de submeter à apreciação do Tribunal a quo a presente acção, de forma a que seja dirimido e reconhecido em juízo a sua pretensão sobre a Recorrida;

C) Assim e em face do exposto, deve a decisão proferida pelo Tribunal a quo que considerou verificada a excepção dilatória do caso julgado, ser revogada e substituída por Acórdão que considere como inexistente tal excepção do caso julgado, declarando a Recorrida como não absolvida da instância e, assim, admitindo ao Recorrente a possibilidade de ver peticionada em juízo a sua pretensão, sob pena de lhe ser negado o direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efectiva contido o artigo 2.º do CPC;

 D) A realização da justiça no caso concreto deve ser conseguida no quadro dos princípios estruturantes do processo civil, como são os princípios do dispositivo, do contraditório, da igualdade das partes e da imparcialidade do juiz, traves- mestras do princípio fundamental do processo equitativo proclamado no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República.

E) A decisão judicial, enquanto prestação do dever de julgar, deve conter-se dentro do perímetro objetivo e subjetivo da pretensão deduzida pelo autor, em função do qual se afere também o exercício do contraditório por parte do réu, não sendo lícito ao tribunal desviar-se desse âmbito ou desvirtuá-lo.

 F) O Recorrente requereu a resolução do contrato de arrendamento com fundamento na desocupação do imóvel;

G) Contestou a recorrida invocando a falta de requisitos para denúncia do contrato de arrendamento;

 H) Não contestando o pedido do recorrente;

I) Assim e em face do exposto, deve a decisão proferida pelo Tribunal a quo que considerou verificada a contestação e a excepção de justificação de não ocupação do locado, ser revogada e substituída por Acórdão que considere como inexistente tal excepção, declarando a Recorrida como não absolvida da instância e, assim, admitindo ao Recorrente a possibilidade de ver peticionada em juízo a sua pretensão.

A Ré não ofereceu contra-alegações.

III – O Tribunal da 1ª instância -  já se viu, que em função da  não impugnação dos factos pelas partes e, bem assim, da certidão junta aos autos e respeitante ao Processo que correu termos entre estas nos Julgados de Paz - julgou provada, a seguinte matéria de facto: 

A) A propriedade do prédio misto, sito na Rua ..., ..., ..., composto de terras de semeadura, morada de casas de rés do chão e cómodos, descrito na Conservatória de Registo Predial sob o nº...71/... e inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o art....96 e urbana ...98, da União de Freguesias ... - ... e ... encontra-se registada a favor do Autor, por sucessão hereditária de CC, por partilha efectuada em 12/7/2013;

B) Em data não apurada, mas há mais de 40 anos, CC deu de arrendamento à Ré, BB, que aceitou, o imóvel descrito em A);

C) A Ré paga renda mensal no valor de €5;

D) Desde 19/9/2019 que a Ré se encontra a residir em casa do filho;

E) Em 21 de Janeiro de 2020 a Ré propôs contra o ora Autor, junto dos Julgados de Paz, que aí correu termos com o nº19/2020-JPBBR, requerendo que este procedesse à realização de obras na casa sita na Rua ... – ..., ...;

F) Em 24/11/2021 foi proferida decisão no processo identificado em E), já transitada em julgado, que decidiu “condena-se o Demandado a proceder às obras de conservação ordinária e extraordinária necessárias, eliminando humidades e dotando o locado de abastecimento de água potável canalizada e de ligação das águas residuais domésticas à rede colectora”;

G) Na referida decisão foi dado como provado, entre outros factos, que: “5. Na data em que a Demandante foi viver no arrendado (em 1964), este não tinha água canalizada e esta provinha de um tanque, que por sua vez era abastecido por uma captação subterrânea propriedade de um vizinho. 6. A moradia sempre teve luz eléctrica. 7. Há cerca de 15/20 anos a Demandante fez obras na casa nomeadamente no telhado e nos tectos, colocou pavimento cerâmico no chão, obras nas janelas e portas e pinturas, com autorização da senhoria. 8. Há cerca de 20 anos a chaminé da moradia caiu e foram os filhos da Demandante que procederam à sua reparação. 9. O valor da renda nunca foi actualizado, quer pela primitiva Senhoria, quer pelo Demandado. 10. Desde a celebração do arrendamento, em 1964, jamais foram feitas, na casa arrendada à Demandante, quaisquer obras. 11. Em 2017 o filho da Demandante DD fez uma reclamação para a Agência Portuguesa do Ambiente, que verificou no local: a) que a moradia não se encontra dotada de rede de saneamento básico; b)a água de abastecimento à moradia é proveniente de um tanque, que por sua vez é abastecido por uma captação subterrânea, não licenciada, propriedade de um vizinho; c)a existência de um curral cujos estrumes são armazenados a céu aberto e em local não impermeabilizado, sendo a situação susceptível de contaminação dos recursos hídricos superficiais e/ou subterrâneos. 12. O Demandado foi notificado pela Agência Portuguesa do Ambiente para dotar a propriedade de condições básicas de saneamento de acordo com a legislação em vigor, mas não o fez. 13.Em 2017 a Demandante apresentou a reclamação n.º...17, junto da ARSACES-Oeste Norte, por falta de condições de habitabilidade da moradia, a qual, após vistoria conjunta com os serviços municipalizados de ... e Protecção civil, ao local, elaborou o relatório da Vistoria, no qual conclui que o espaço não reúne condições de salubridade e habitabilidade, existindo perigo para a saúde dos seus habitantes por estarem a consumir água que segundo as análises está imprópria para consumo humano e com os esgotos domésticos a céu aberto encaminhados para uma vala, e está junto aos autos a fls. 10 e 11, cujo conteúdo se dá integralmente por reproduzido 14.A Demandante, com 75 anos, foi atropelada pelo vizinho e, tendo sofrido traumatismo da bacia, foi operada em 13-09-2019. 15.A Demandante teve alta no dia 19-09-2019, necessitando de ajuda de terceiros para cuidados pessoais e transferências no domicilio por um período esperado de 1 a 2 meses, conforme Relatório Médico do Centro Hospitalar ... que se junta e dá por integralmente reproduzido como Doc. de fls. 12 e passou a residir na casa de seu filho DD. 16.A Demandante tem 77 anos, está perfeitamente lúcida e pretende regressar à sua casa. 17.Atualmente a casa da Demandante tem humidades generalizadas, e principalmente no quarto, cozinha e sala, a banheira está partida e não possui água canalizada. 18.A água que tem disponível continua a ser a proveniente de uma torneira sita fora da casa da Demandante, que vem por uma captação subterrânea, não licenciada, propriedade de um vizinho, a alguns metros e em mau estado de conservação, tendo que ser levada para a residência com baldes e aquecida. 19. Os serviços municipalizados dispõem de conduta de água a uma distância aproximada de 320 m e de rede coletora de águas residuais domésticas a 280 m; 20.A Demandante tem pertences na casa e vai à mesma regularmente, bem como o seu filho EE, que sempre residiu com a mesma.”

IV – Do confronto entre as conclusões das alegações e a sentença recorrida, resultam como questões a decidir no presente recurso,  correspondendo ao seu objecto - sem prejuízo do possível conhecimento de questões oficiosas, desde que os autos contenham os elementos necessários para tanto e as mesmas não tenham sido já decididas - as de saber, por um lado, se, considerar-se operante a (excepção) da autoridade do caso julgado na situação dos autos, implicou a violação do direito de garantia de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efectiva a que se reporta o art 2º CPC, e, por outro, se a circunstância de a Ré ter subsumido a sua defesa, do ponto de vista do direito, à denúncia do contrato, quando estava em causa a resolução do mesmo, deveria ter levado à conclusão da falta de contestação. 

Será por esta questão que se iniciará a apreciação do objecto do recurso.

È verdade, como resulta do relatório do presente acórdão, que a Ré, na contestação -  depois de ter referido pender  acção nos Julgados de Paz por ela proposta contra o aqui A., em que pediu a condenação deste  a proceder a obras no arrendado, tendo evidenciado  a necessidade destas, designadamente, no que se reporta às condições básicas de saneamento, e de ter referido que deixou de habitar no imóvel em Setembro de 2019 por ter sido atropelada e precisar de cuidados de terceiro, pelo que foi viver temporariamente com o filho, mas que, pretendendo regressar a sua casa, não o pode fazer por esta precisar das condições mínimas higiénico sanitárias - referiu a respeito “Do Direito”, não estarem preenchidos os requisitos legais para a denúncia do arrendamento, invocando as normas do art 1101º do C,C o art 107º do RAU e o art 26º do NRAU .

Como é evidente, há um notório desfasamento desta defesa relativamente ao pedido e à causa de pedir na acção, mas essa dissonância não pode conduzir, como o  pretende o Autor/Apelante, a que se tenha sem efeito a contestação.

Embora  o réu, tal como o  autor, deva, na contestação, como este na petição, expor as razões de direito por que se opõe à pretensão do autor e, aquele, as que servem de fundamento à acção, como resulta, respectivamente, da al b) do art 572º e da al d) do nº 1 do art 552º,  essas razões podem não ser referenciadas a concretas normas jurídicas, pois que «o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito», como resulta do nº 3 do art 5º CPC.

Equivalente à não menção dessas regras, é a menção incorrecta das mesmas.

O juiz conhece o direito e deverá aplica-lo aos factos alegados e que se vierem a provar.

Improcede, pois, a referida 2ª questão.

 Relativamente à 1ª, será necessário reverter-se para o corpo das alegações para se perceber de que modo, do ponto de vista do Autor/ Recorrente, a consideração da autoridade do caso julgado  para se absolver a Ré do pedido (e não da instância, como, por várias vezes, o mesmo refere) viola o referido direito.

Percebe-se desse corpo alegatório que o Recorrente afasta a referida autoridade do caso julgado  em função da falta da tríplice identidade a que alude o art 581º CPC entre a presente acção e a que pendeu nos Julgados de Paz, evidenciando que a sentença desses Julgados de Paz não apreciou o objecto do presente litigio, e que, «não tendo os fundamentos (desta) acção e da defesa (nela produzida) sido apreciados nos Julgados de Paz ..., não ficaram as mesmas cobertas pela autoridade do caso julgado formado pela sentença aí proferida, não se verificando o denominado “efeito preclusivo”.

Assim entendendo, é natural que o Autor/apelante pretenda que o Tribunal não deu resposta à pretensão que deduziu em juízo, e que, por isso, violou o direito à jurisdição na aspecto da garantia de acesso aos tribunais.

Mas assim não se deverá considerar, como se passa a explicar.

Em primeiro lugar, e tal como o fez a sentença recorrida, evidenciando, mais uma vez, que tal como tem sido salientado na doutrina e jurisprudência, o caso julgado  material –  de que resulta que a decisão sobre a relação material controvertida  fica a ter força obrigatória no processo em que foi proferida a decisão,  e também fora dele,  em processo distinto, ainda que com limites, como decorre do nº 1 do art 619 º CPC  -  se analisa em duas vertentes distintas, uma de natureza negativa, falando-se aí de excepção de caso julgado,  que obstaculiza a  que seja proferida nova decisão de mérito, outra de natureza positiva, aí impondo a primeira decisão como pressuposto indiscutível de segunda decisão de mérito [1] .

Nas palavras do Ac R C 26/2/2019 [2] , «o caso julgado não se limita a produzir um efeito processual negativo, traduzido na insusceptibilidade de qualquer tribunal,  mesmo aquele que é o autor da decisão, se voltar a pronunciar sobre essa mesma  decisão. Ao caso julgado deve também associar-se um efeito processual positivo: a vinculação do tribunal que proferiu a decisão e, eventualmente de outros tribunais, ao resultado da aplicação ao caso concreto que foi realizada por aquele tribunal, ou seja, ao conteúdo da decisão desse mesmo tribunal».

Como igualmente é acentuado nesse aresto, citando-se  Teixeira  de Sousa [3], numa vertente ou outra, «o caso julgado  constitui exigência da boa administração, da justiça, da funcionalidade dos tribunais e da salvaguarda da paz social, dado que dá expressão aos valores da segurança e certeza imanentes a qualquer ordem jurídica: a res judicata obsta a que a uma mesma acção seja  instaurada várias vezes, impede que sobre a mesma situação jurídica recaiam decisões contraditórias e garante uma composição, tendencialmente definitiva, dos litígios que os tribunais são chamados a resolver».   

Afirma Teixeira de Sousa [4], que «quando vigora como autoridade do caso julgado, o caso julgado manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada».

E, se é indiscutível que a excepção do caso julgado exige a identidade do pedido, da causa de pedir e de sujeitos – art 581º CPC– já no que se refere à autoridade do caso julgado, a questão, não sendo inteiramente pacífica, tem recebido resposta  dominante no sentido de não se impor aquela tríplice identidade [5], embora a não identidade total das partes ofereça reservas e a não identidade dos objectos postule entre eles necessárias relações de conexão.

Lebre de Freitas [6] sintetiza essas relações, salientando que o efeito positivo do caso julgado  «assenta numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida» .

Na situação da presente acção, a circunstância de nela ter sido suspensa  a instância até que a acção pendente nos Julgados de Paz fosse definitivamente julgada, por se ter entendido que esta «configura uma causa prejudicial quanto aos presentes autos»  - despacho de 1/6/2021 – salientando-se que os factos alegados numa e noutra acção,  «são os mesmos, ainda que o efeito jurídico pretendido seja diferente», pretendendo a Autora, ora Ré, na acção que interpôs nos Julgados de Paz, «a condenação do Réu, ora Autor,  na realização de diversas obras no locado, alegando que o mesmo se encontra sem condições de habitabilidade,  e  pretendendo na contestação da presente acção que a razão para não residir no locado é precisamente a falta de obras, cuja realização reclama no processo referido», já deixava perceber que o que viesse a ser decidido na acção pendente nos Julgados de Paz  se mostrava susceptível de  interferir com o resultado da presente acção.

O que há aqui de, porventura, menos frequente relativamente à análise comum  da autoridade do caso julgado, é que o caso julgado obtido na acção tida como prejudicial em relação à presente – a que pendeu nos Julgados de Paz - se vai projectar na defesa deduzida pela Ré na presente acção, não funcionando como excepção dilatória e conduzindo à absolvição do réu da instância, mas integrando a excepção de não cumprimento do contrato – excepção essa, peremptória  modificativa  - com que esta, em última análise, se defendeu.

Lembre-se que a Ré se defendeu relativamente à falta de residência permanente no locado invocando que saiu do mesmo por doença – foi atropelada, e depois de operada carecia do apoio de terceira pessoa para a sua higienização – e não voltou ao mesmo  depois de recuperada, apesar de ser esse o seu desejo, porque o locado não tinha condições higiénico- sanitárias para poder regressar.

Cabe aqui salientar, antes de se avançar, que não se afigura correcto, a coberto da utilização da autoridade de caso julgado, o procedimento utilizado pela Exma Juíza a quo de transpor  para os presentes autos a matéria de facto que resultou provada no processo que pendeu nos Julgados de Paz, sendo reiterado, como é, o entendimento, de que, «o caso julgado resultante do trânsito em julgado da sentença proferida num primeiro processo, não se estende aos factos aí dados como provados para efeito desses mesmos factos poderem ser invocados, isoladamente, da decisão a que serviram de base, num outro processo», pois que, «os  fundamentos de facto não adquirem, quando autonomizados da decisão de que são pressuposto, valor de caso julgado, de molde a poderem impor-se extraprocessualmente» - Ac STJ 11/11/2021[7]. Ou, por outras palavras, «os juízos probatórios positivos ou negativos que consubstanciam a chamada “decisão de facto” não revestem, em si mesmos, a natureza de decisão definidora de efeitos jurídicos, constituindo apenas fundamentos de facto da decisão jurídica em que se integram. V. Nessa medida, embora tais juízos probatórios relevem como limites objetivos do caso julgado material nos termos do artigo 621.º do CPC, sobre eles não se forma qualquer efeito de caso julgado autónomo, mormente que lhes confira, enquanto factos provados ou não provados, autoridade de caso julgado no âmbito de outro processo. VI. De resto, os factos dados como provados ou não provados no âmbito de determinada pretensão judicial não se assumem como uma verdade material absoluta, mas apenas com o sentido e alcance que têm nesse âmbito específico. Ademais, a consistência dos juízos de facto depende das contingências dos mecanismos da prova inerentes a cada processo a que respeitam, não sendo, por isso, tais juízos transponíveis, sem mais, para o âmbito de outra ação» - sumário do Ac STJ 8/11/2018.

Este entendimento, levando a que se excluam dos factos provados nesta acção os que a Exma Juíza a quo julgou provados no ponto  G) da decisão da matéria de facto, em nada compromete  o que foi decidido em sede de direito  nessa instância, visto que o A., no articulado de resposta à excepção, não impugnou os factos acima referidos integrantes da contestação da Ré e tão pouco impugnou os documentos que a mesma juntou com essa peça processual, com particular destaque aqui para os  documentos ... e ... juntos com a mesma.

Daquele, resultando que o filho da Ré denunciou em 2017 a situação à Agência Portuguesa do Ambiente que, após vistoria, notificou o Autor («proprietário da moradia»), «para dotar o arrendado com condições básicas de saneamento, de acordo com a legislação em vigor», consoante carta que juntou com a contestação, e deste resultando, que também em 2017, a aqui R.  apresentou a reclamação n.º ...17, junto da ARST-Oeste Norte, por falta de condições de habitabilidade da moradia, a qual, após vistoria conjunta com os serviços municipalizados de ... e Protecção Civil ao local, elaborou relatório da vistoria em que concluiu que o espaço não reúne condições mínimas Higiene Sanitárias, abastecimento de água para consumo humanos e esgotos ligados à rede pública.

Aqui chegados, vejamos de que modo se projecta a autoridade do caso julgado decorrente da aludida sentença proferida nos Julgados de Paz na defesa da aqui Ré, defesa esta, que, como já se referiu, se analisa na invocação da excepção de não cumprimento do contrato relativamente à não residência permanente no locado.

Utilizar-se-ão, para esse efeito, as considerações proferidas no Ac R L de  28/2/2013  [8], acórdão esse que se passa, por isso, a citar.

«Não está fora de causa que no contrato de arrendamento se admita correspectividade entre as prestações nele essenciais, que são, por um lado, da parte do senhorio, a obrigação de assegurar ao locatário o gozo da coisa locada para os fins a que se destina – art 1031º al b) CC – e por outro, da parte do arrendatário, a de habitar o locado de forma permanente.

È certo que é mais frequente ver-se admitido na doutrina e jurisprudência a correspectividade na locação entre as obrigações do senhorio de entregar ao locatário a coisa locada e de lhe assegurar o respectivo gozo, e a obrigação de pagamento da renda por parte deste, admitindo-se mesmo essa correspectividade – apesar das dificuldades a que pode dar lugar – em caso de incumprimento parcial ou de cumprimento defeituoso daquela obrigação do senhorio, falando-se então de “exceptio non rite adimpleti contractus” [9].

Mas já tem sido colocada a questão do sinalagma se verificar entre, por um lado, a obrigação do locatário habitar permanentemente o locado e a obrigação do senhorio de lhe assegurar correspectivamente o gozo do prédio com as qualidades que o mesmo revestia no início do contrato, de tal modo que, deixando este de ser habitável pela não realização de obras que a este competissem, se entenda justificada a ausência do arrendatário até que tais obras sejam realizadas .[10]

A ideia é, também aqui, a de que o inquilino pode recusar a realização da sua prestação – de habitar com carácter de permanência o locado - enquanto não ocorrer a prévia realização da prestação da contraparte – na situação em causa, a realização pelo senhorio das obras necessárias àquela habitabilidade.

Do funcionamento desta excepção, também dita suspensão da execução do contrato, resulta ser lícita a recusa do cumprimento, e, consequentemente, na aplicação da mesma que aqui está em consideração, o não poder ser valorada em termos de causa de resolução do contrato a falta de residência permanente do arrendatário no locado.

As considerações que normalmente se fazem a respeito do meio de defesa em apreço, são aqui também inteiramente pertinentes.

Ora, tem-se entendido que, para a excepção de não cumprimento do contrato poder ser invocada sem que haja contrariedade à boa fé ,[11] «se exige uma tripla relação entre o não cumprimento do outro contratante e a recusa de cumprir por parte de quem invoca a excepção, em termos de sucessão, causalidade e proporcionalidade entre uma e outra.

A relação de sucessão pressupõe que quem invoca a excepção não tenha sido o primeiro a cair em incumprimento, uma vez que a recusa em cumprir deve (em princípio) ser posterior e não anterior ao incumprimento da outra parte. A relação de causalidade pressupõe que a invocação da excepção vise exclusivamente compelir a outra parte à realização da sua prestação, sendo essa invocação ilegítima quando seja determinada por outros fins. Finalmente, a relação de proporcionalidade pressupõe que a invocação da excepção seja proporcional ao incumprimento que a legitima, não sendo admitido o recurso à excepção sempre que esse incumprimento for de escassa importância» [12].
            Referem Pires de Lima e Antunes Varela
[13] que a “exceptio” não funciona como uma sanção, mas apenas como um processo lógico de assegurar, mediante o cumprimento simultâneo, o equilíbrio em que assenta o esquema do contrato bilateral, sendo consensual que esta excepção vale tanto para o caso de falta integral do cumprimento, como para o de incumprimento parcial, ou defeituoso, ponto é que a sua invocação não contrarie o princípio geral da boa fé consagrado nos arts 227º e 762º/2 CC.

Deve salientar-se ainda, que, com a invocação da “exceptio”, aquela parte que é demandada a cumprir, não passa a negar ou limitar o direito do seu credor. Apenas recusa a sua prestação enquanto não for realizada ou oferecida simultaneamente a contraprestação. Portanto, o seu efeito prático – e daí que seja tida como excepção material dilatória – é justamente a obtenção de um efeito dilatório: o da parte que a utiliza, apenas realizar a sua prestação, no momento ulterior em que receba a contraprestação a que tem direito [14]».

Revertamos à concreta situação dos autos.

Na acção que correu termos nos Julgados de Paz condenou-se o aqui Autor a proceder no locado às obras de conservação ordinária e extraordinária necessárias, eliminando humidades e dotando o locado de abastecimento de água potável canalizada e de ligação das águas residuais domésticas à rede colectora.

Na situação dos autos verificam- se as acima apontadas condições para a utilização  por parte da R. da “exceptio non adimpleti contractus”.

Quem incumpriu a sua obrigação, em primeiro lugar, foi o aqui Autor, visto ter sido  notificado pela Agência Portuguesa do Ambiente  para dotar o imóvel de condições básicas de saneamento de acordo com a legislação em vigor , na sequência  da reclamação feita àquela entidade em 2017 pelo  filho da A, e de ter tido natural conhecimento da reclamação nº ...17 apresentada pela A., junto da ARS Norte, por falta de condições de habitabilidade da moradia.

 A invocação da excepção nos presentes autos, interpostos em 2021, visou  compelir o Autor à realização da sua prestação, tanto mais que já anteriormente a Ré interpusera acção contra o aqui Autor, pedindo a realização das obras que permitiriam que de novo passasse a residir no locado.

A  invocação da excepção mostra-se  proporcional ao incumprimento por parte do senhorio,  aqui Autor, por ser evidente a necessidade de água potável numa casa em que se mantenha residência permanente.

Donde se conclui pela procedência da excepção suspensiva invocada pela Ré, e consequentemente, pela improcedência da acção, como se concluiu na 1ª instância.

Nem se diga que poderia obstar a este resultado  - de se julgar justificada a falta de residência permanente da Ré no locado, enquanto o Autor não proceder às obras  de conservação ordinária e extraordinárias necessárias, dotando o locado de abastecimento de  água potável canalizada e de ligação das águas residuais domésticas à rede colectora,  – o abuso de direito com que este se defendeu na resposta a excepção, quando aí fez notar a discrepância do valor da renda que recebe, relativamente ao valor dos impostos que paga e ao custo das obras em questão.

È que, essa questão, exactamente com os mesmos contornos, foi especificamente julgada nos Julgados de Paz e tida como improcedente, pelo que essa improcedência se impõe nesta acção, também como efeito da autoridade do caso julgado decorrente da sentença aí produzida e transitada.

V – Pelo exposto, acorda este Tribunal em julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.

Custas pelo apelante.

Coimbra, 28 de Fevereiro de 2023
(Maria Teresa Albuquerque)
(Falcão de Magalhães)
(Pires Robalo)

(…)



               [1] – Assim se pronuncia Lebre de Freitas, «Código de Processo Civil Anotado», Vol. II, Coimbra Editora, 3.ª Edição, 1981, págs.354 4, referindo: «(..) a autoridade do caso julgado tem  o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito»..
               [2] - Relator, Fonte Ramos.
               [3]Estudos  sobre o Novo Processo Civil», Lex, 1997, p 568
               [4]O objecto da sentença e o caso julgado material», BMJ nº 325, p. 49 e ss
               [5]  - Cfr Lebre de Freitas, «Código de Processo Civil Anotado», Vol. 2º, 2001, págs. 260 e 318 e ss; Manuel de Andrade, ob. cit., págs. 304 e ss; Alberto dos Reis, «Código de Processo Civil Anotado», Vol. III, 4ª edição (reimpressão), Coimbra Editora, 1985, págs. 91 e ss; Anselmo de Castro, «Direito Processual Civil Declaratório», Vol. III, Almedina, 1982, págs. 383 e ss, e entre muitos outros, os Ac STJ de 26.01.1994, 19.5.2016,20.12.2017, 27.02.2018,18.9.2018,18.10.2018 e 13.11.2018, todo em www.dgsi.pt. ; Ac RC de 28.9.2010, 24.02.2015, 30.6.2015,14.11.2017 e 06.3.2018, tambem todos eles acessíveis em www.dgsi.pt
               [6] - Obra referida, p. 354
               [7] - Relatora, Rosa Tching. No mesmo sentido, também da mesma Relatora, Ac STJ  17/5/2018, 16/12/2021 ; Ac STJ  8/11/2018 e 31/11/2021 (Tomé Gomes); 11/5/2022 (Isaías Pádua), Ac R L 21/12/2021 (José Capacete.)
               [8] - Proc nº 2138/06.1TJLSB, relatado pela aqui Relatora
               [9]  - A respeito desta correspectividade e fornecendo e comentando várias situações jurisprudenciais a ela referentes, cfr Gravato Morais, «Falta de Pagamento da Renda no Arrendamento Urbano», p 203 a 214; ver também Menezes Leitão, «Arrendamento Urbano», 3ª ed, 19, nas referências que produz quanto ao carácter sinalagmático do contrato de arrendamento.
               Rejeitando essa correspectividade, Pinto Furtado, «Manual de Arrendamento Urbano», II , 4ª ed , p 1031 e 1032
               [10] - Assim, no Ac RC 16/1/1992 (Pais de Sousa), CJ I, 226 ; Ac RP 22/4/ 2008 (Rodrigues Pires), acessível em www.dgsi.pt.
               [11] - João Abrantes, «A excepção do não cumprimento do contrato» 1986, 39 e ss
               [12] - De novo, Menezes Leitão, «Direito das Obrigações», 7ª ed, II, 268 e ss

               [13] - Citados por Menezes Leitão, «Direito das Obrigações», 7ª ed, II, 268 e ss

               [14] - Cfr Ac R G 9/4/2003 em cujo sumário se lê, entre o mais: «A oponibilidade da excepção há-de nortear-se pelos princípios da boa fé e da proporcionalidade, devendo a defesa ser proporcional à gravidade da inexecução. O excipiente só pode recusar a parte proporcional à parte não executada e só pode servir-se da excepção se desejar a execução do contrato».