Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1871/17.7T8CBR-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: EXECUÇÃO
VENDA
REMIÇÃO
BEM INDIVISO
SENTENÇA
NULIDADE
FUNDAMENTAÇÃO
Data do Acordão: 06/23/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - SOURE - JUÍZO EXECUÇÃO - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS 615 Nº1 B), 743, 842 CPC, 417 CC
Sumário: I - A sentença só é nula, por infundamentada – artº 615ºº nº1 al. b) do CPC - quando, de todo, mesmo por remissão, argumentos em seu abono não são aduzidos, ou os invocados são tão escassos que não permitem a sua compreensão e sindicância.

II - O remidor de bem indiviso com todas as quotas penhoradas e vendido por inteiro nos termos do artº 743º nº2 do CPC, tem de exercer o seu direito não apenas sobre a quota do seu familiar, mas antes sobre a totalidade do bem, tal como adquirido pelo proponente.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

A C (…) instaurou processo executivo contra “C (…), Unipessoal, L.da e outros.

Na tramitação dos autos foi vendido imóvel cuja propriedade estava compartilhada na proporção de 1/3 para cada um dos três comproprietários.

O filho de um deles, N (…),  apresentou-se para exercer o seu direito de remição.

Nesta sequência foi proferido o seguinte despacho:

«A Agente de execução, em 09-03-2019, decidiu:

“aceitar a maior proposta apresentada no fecho do leilão eletrónico, pelo proponente N (…), no valor de 98.449,17 € (noventa e oito mil quatrocentos e quarenta e nove euros e dezassete cêntimos), quanto ao prédio infra indicado, no seu todo:-

Tal decisão foi notificada às partes e ao proponente, tendo este efetuado o competente depósito do preço, estando assim a ora Agente de Execução em condições de proceder à concretização da venda pelo valor oferecido suprarreferido.-

CONTUDO, apresentou-se a exercer o direito de remição sobre uma terça parte do imóvel, cuja quota-parte respeita aos executados L (…) e M (…), casados entre si no regime da comunhão de adquiridos, o filho destes, a saber: S (…), residente (…) , o qual apresentou certidão de nascimento, resultando assim comprovada a sua competência de remidor, tendo o mesmo efetuado ainda o depósito do preço de 32.816,39€ (trinta e dois mil, oitocentos e dezasseis euros e trinta e nove cêntimos), respeitante a 1/3 do valor da venda supra indicada de 98.449,17 €.-

 Assim, face i) ao requerimento de exercício de direito de remição sobre 1/3, do qual foram as partes e o proponente notificados e ii) a venda do bem no seu todo no leilão eletrónico, a ora Agente de Execução submeteu a questão ao Juiz dos autos, resultando no seguinte despacho judicial: " É à AE que incumbe praticar todos os atos executivos, aqui se incluindo o requerimento a solicitar o exercício do direito de remição, e não ao juiz, pelo que não existindo qualquer questão a decidir judicialmente, nada temos a ordenar".-

Neste sentido cumpre DECIDIR:-

1. Nos termos do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 843º e artigo 842º ambos do Código de Processo Civil (CPC), é reconhecido ao requerente-remidor S (…) o direito de remir quanto à terça parte do bem, respeitante a seus pais e por uma terça parte do preço total de venda, cfr. infra exposto, pelo que e, tendo o mesmo já efetuado o competente depósito do preço, é o mesmo notificado, para no prazo de 10 (dez) dias, proceder à demonstração do cumprimento das obrigações fiscais - liquidação do IMT (Imposto Municipal Sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis) e IS (Imposto de Selo) (*) - e ao pagamento do emolumento predial respeitante ao registo de aquisição de 1/3 a seu favor.-

2. Com a consequente devolução ao proponente N (…) do valor depositado de 98.449,17 € (noventa e oito mil quatrocentos e quarenta e nove euros e dezassete cêntimos).

Adquirente: o Remidor supraindicado: S (…), residente (…);-

 Executados associados a 1/3 do bem L (…) e M (…)

Valor: 32.816,39€ (trinta e dois mil, oitocentos e dezasseis euros e trinta e nove cêntimos);-

BEM A SER ADJUDICADO: 1/3 (um terço) da fração autónoma designada pela letra C do prédio urbano composto de primeiro andar direito, destinado a habitação, de tipologia T-três, com uma garagem na cave identificada pela letra da fração, a terceira, do lado direito, a contar da entrada, sito na Urbanização (....), inscrito na matriz predial urbana sob o artigo nº 3256 e descrito na competente Conservatória do Registo Predial de x... sob o nº 2351-C.-

 Da presente decisão são as partes e o proponente N (…) notificados .-“.


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O proponente N (…) não apresentou reclamação dessa decisão da AE.

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A Exequente “C (…), S.A.” reclamou da decisão da AE, supra mencionada.

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 Cumpre apreciar e decidir.

Resultam provados, de acordo com o “histórico do processo” e com relevo para a decisão do presente incidente, os seguintes factos:

1. A presente execução hipotecária foi instaurada pela “C (…), S.A.” contra 1.“C (…) Unipessoal, Lda.”, 2. A (…), 3. A (…), 4. C (…), 5 L (…), 6. M (…), 7. M (…) e 8. M (…).

 2. Através do Auto de Penhora de 30-03-2017, foram penhoradas as duas frações hipotecadas, a saber:

a) fração autónoma designada pela letra A do prédio urbano composto de rés do chão direito, destinado habitação, de tipologia T-três, com uma garagem na cave identificada pela letra da fração, a quarta, do lado direito, a contar da entrada, sito na Urbanização (...) , inscrito na matriz predial urbana sob o artigo nº 3256 e descrito na competente Conservatória do Registo Predial de x... sob o nº 2351-A;

b) e a fração autónoma designada pela letra C do prédio urbano composto de primeiro andar direito, destinado a habitação, de tipologia T-três, com uma garagem na cave identificada pela letra da fração, a terceira, do lado direito, a contar da entrada, sito na Urbanização (...) , inscrito na matriz predial urbana sob o artigo nº 3256 e descrito na competente Conservatória do Registo Predial de x... sob o nº 2351-C.

3. O valor base de cada uma das frações foi fixado pela AE em, respetivamente: Verba 1- € 103.250,00

Verba 2 - € 105.900,00

4. Por decisão da AE foi determinado proceder-se à venda das duas Frações, não havendo lugar à constituição de lotes, através de leilão eletrónico, na plataforma www.e-leiloes.pt, nos termos do artigo 837.º do CPC.

5. Tais frações são pertença dos 5 executados: A (…), C (…), L (…), M (…) e M (…).

6. No fecho do leilão eletrónico, foi apresentada pelo proponente N (…), uma proposta de aquisição para a Fração C no valor de € 98.449,17 euros (noventa e oito mil, quatrocentos e quarenta e nove euros e dezassete cêntimos).

7. Esse proponente efetuou o depósito do preço antes referido.

8. Posteriormente, S (…), residente (…) , apresentou-se a exercer o direito de remição sobre uma terça parte da Fração C, cuja quota-parte respeita aos executados L (…) e M (…), o filho destes, que apresentou certidão de nascimento e efetuou ainda o depósito do preço de € 32.816,39 euros (trinta e dois mil, oitocentos e dezasseis euros e trinta e nove cêntimos), respeitante a 1/3 do valor da proposta antes admitida de € 98.449,17 euros.

9. A AE decidiu, em 09-03-2019, reconhecer ao requerente-remidor S (…) o direito de remir quanto à terça parte da fração C, por uma terça parte do preço total de venda acima mencionado.


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Do Direito

A decisão de VENDA, mediante leilão eletrónico, das duas frações “A” e “C” foi tomada pela AE sem qualquer reclamação.

 O que significa que a Venda anunciada/publicitada era para VENDA da TOTALIDADE da Fração “A” e “C”.

O artigo 842.º, do CPC, dispõe que : “Ao cônjuge que não esteja separado judicialmente de pessoas e bens e aos descendentes ou ascendentes do executado é reconhecido o direito de remir todos os bens adjudicados ou vendidos, ou parte deles, pelo preço por que tiver sido feita a adjudicação ou a venda.”.

 E o artigo 743, do CPC, estabelece que : “ 1 — Sem prejuízo do disposto no n.º 4 do artigo 781.º, na execução movida apenas contra algum ou alguns dos contitulares de património autónomo ou bem indiviso, não podem ser penhorados os bens compreendidos no património comum ou uma fração de qualquer deles, nem uma parte especificada do bem indiviso.

 2 — Quando, em execuções diversas, sejam penhorados todos os quinhões no património autónomo ou todos os direitos sobre o bem indiviso, realiza-se uma única venda, no âmbito do processo em que se tenha efetuado a primeira penhora, com posterior divisão do produto obtido.”.

Mercê do seu parentesco, comprovado documentalmente, o REMIDOR possui a faculdade de se fazer substituir ao adquirente do bem, assumindo a posição de comprador em igualdade de condições e circunstâncias que para aquele resultavam da venda e suportando o mesmo encargo que ele iria ter de suportar para adquirir o bem.

Assim, na situação em que o Bem Imóvel está a ser vendido por inteiro, como se não fosse indiviso, como é o caso destes autos, o direito de remição do familiar dos dois executados, acima mencionados, deve ter por objeto a totalidade do Imóvel à venda: a fração “C” e não apenas o quinhão indiviso dos executados no bem, pais do remidor1.

Deste modo, decido:

- revogar ou anular a decisão da AE, de 09-03-2019, quando reconhece o pedido de remição quanto a 1/3 (um terço) da Fração “C”, e, em consequência, ordena-se a notificação do remidor S (…)para, em 10 dias, esclarecer se pretende REMIR a fração “C” no seu todo, pagando o valor da proposta mais elevada que foi aceite de € 98.449,17 euros (noventa e oito mil, quatrocentos e quarenta e nove euros e dezassete cêntimos).

No caso de o remidor responder negativamente ou se nada disser no prazo estipulado, determino a notificação do proponente N (…) de que a sua proposta de aquisição para a Fração C no valor de € 98.449,17 euros (noventa e oito mil, quatrocentos e quarenta e nove euros e dezassete cêntimos) é aceite definitivamente, devendo a AE passar o título de adjudicação.»

O remidor invocou a nulidade deste despacho com o argumento de que não foi previamente ouvido.

A Srª Juíza ordenou a sua notificação para se pronunciar sobre a decisão da AE e da reclamação da Exequente C(…) sobre a mesma.

Após tal pronúncia, foi, por despacho, reiterado o teor da decisão supra arguida de nula, remetendo-se para o teor de tal decisão.

2.

Inconformado recorreu o remidor deste despacho

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

I. O presente recurso tem por objeto o douto despacho datado de 14/10/2019 (com a referência 81069603) ;

II. Tal despacho, na sua fundamentação, reiterou integralmente, o também douto, despacho de 17/04/2019 (com a referência 79814700), que recaiu sobre a reclamação apresentada pela exequente à decisão da AE, que reconheceu ao recorrente o direito de remir a terça parte da fracção “C”, de que os seus pais são proprietários, impondo-lhe o exercício do direito de remição pela totalidade do bem e não pela terçaparte;

 III. E foi proferido sem que tivesse sido dado ao aqui recorrente o direito ao contraditório, o que originou a arguição da sua nulidade;

IV. Não conhecendo expressamente da nulidade suscitada, o Tribunal “a quo” limitou-se a convidar o aqui recorrente a pronunciar-se sobre a dita decisão da A.E. e respetiva reclamação, o que este fez por requerimentos que apresentou em juízo nos dias 28/06 e 03/10/2019, onde expôs o seu ponto de vista sustentado em normas legais e entendimentos jurisprudenciais.

V. E sobre estes requerimentos incidiu o despacho de que se recorre, porque este se limitou a aderir aos fundamentos do despacho anterior (de 17/04/2019), que havia sido proferido antes do contraditório, fazendo tábua-rasa aos argumentos, de facto e de direito explanados, posteriormente pelo recorrente em pleno exercício desse contraditório a convite posterior do Tribunal “a quo”.

VI. E tendo sido proferido nos termos em que o foi, totalmente desprovido de fundamentação quanto ás razões aduzidas pelo requerente, está ferido de nulidade, nulidade essa que se invoca para todos os efeitos legais (artigo 154º 615º, nº 1, al. b) ex vi do disposto no artigo 613º, nº 3, do C.P.C.

VII. O direito de remição e a sua abrangência não se aferem da extensão da penhora, mas sim da extensão de propriedade (quota-parte) detida pelo executado, em função das relações familiares (cônjuge descendentes ou ascendestes) mantidas com o remidor

VIII. Pelo que, no caso concreto, sendo os seus ascendentes proprietários de uma terça-parte do imóvel penhorado nos autos (ainda que pela totalidade), o recorrente só tem direito a remir por essa quota-parte,

 IX. Nem lhe pode ser imposto o dever de remir pela totalidade; desde logo porque não há norma que o imponha, depois porque fazendo-o está a invadir a esfera dos que efetivamente detêm esse direito e, por ultimo, essa imposição lhe acarreta ónus e obstáculos desproporcionados à efetivação do seu direito, em razão dos valores envolvidos

X. Conforme defendeu o STJ (proc. 1629/13.2TBAMT, acórdão de 09/03/2017, em www.dgsi.pt) o direito de remição trata-se de um “direito legal de preferência, qualificado, na medida em que prevalece sobre os demais direitos de preferência, funcionalmente direcionado para a tutela do património familiar, obstando à sua transmissão a terceiros, adjudicatários ou compradores em processos de natureza executiva.

XI. Assim, existindo para garantir a preservação do património familiar, não se afigura razoável considerar o direito de remição como um instrumento vocacionado a aumentá-lo ou até mesmo a colocar termo a situações de compropriedade.

XII. Não tendo aplicabilidade ao caso concreto, nem por analogia, a norma constante do artigo 743º, do C.P.C.

 XIII. Deve, pois, ser revogado o despacho em crise, mantendo a decisão inicial da Ilustre AE que reconheceu ao aqui recorrente o direito a remir a fração em causa pela proporção de que os seus pais são proprietários – 1/3, por ser nessa quota-parte que radica o direito que pretende ver exercido.

XIV. Ao decidir como decidiu, o Tribunal “a quo” violou ou fez incorreta interpretação nomeadamente das normas constantes dos artigos, 154º, 615º, 613º, 743º e 842º, do C.P.C.

Contra alegou a exequente C (…), pronunciando-se pela inadmissibilidade do recurso ou pelo seu indeferimento, nos seguintes, finais, termos:

A. Sendo o despacho recorrido de mero expediente, não pode o Recorrente recorrer do mesmo.

 B. Assim, apenas poderá o presente requerimento ser indeferido nos termos da alínea a), do n.º 2, do artigo 641.º e artigo 630.º ambos do C.P.C..

C. Foi celebrado um contrato de empréstimo sob a forma de abertura de crédito à construção, com hipoteca e fiança ao qual foi atribuído o n.º PT 00350078003224091 entre a Exequente e a C (…) Unipessoal, Lda;

D. Para garantia do empréstimo concedido foi constituída hipoteca sobre o Prédio Urbano, composto por lote de terreno destinado a construção, designado por lote n.º 11, sito na Quinta (...) , descrito na CRP de y... sob o n.º 2351 e inscrito na matriz sob o art. 2278;

E. A propriedade das fracções A e C foram transmitidas a A (…), C (…), L (…), M (…) e M (…);

 F. Segundo o direito de sequela, a garantia acompanha a coisa;

 G. S (…), remidor e recorrente, é filho de L (…) e M (…), comproprietários do imóvel;

H. A remição permite quer ao remidor adquirir um bem pertencente ao seu núcleo familiar e ao credor a satisfação do seu crédito;

I. Todavia, esta situação não é salvaguardada quando o remidor apenas deseja remir relativamente a 1/3 do imóvel em causa;

J. A proposta recepcionada foi de aquisição da totalidade do imóvel;

 K. Tendo-se pronunciado o proponente no sentido de não pretender adquirir 2/3 do imóvel. L. O imóvel desvaloriza consideravelmente no mercado se o objecto de venda for apenas de 1/3 do imóvel.

M. A venda em causa tinha como objecto a totalidade do imóvel e não apenas 1/3 do mesmo.

N. Assim, o direito de remição só poderia ser exercido sobre a totalidade do imóvel.

 O. Pelo que, bem andou o Tribunal a quo, com a decisão proferida na sentença recorrida.

 Nestes termos e nos demais de direito deverá o presente recurso ser

a) Ser indeferido nos termos do disposto na alínea a), do n.º 2, do artigo 641.º e artigo 630.º do C.P.C., caso assim não se entenda,

b) Ser julgado improcedente, e, em consequência, ser mantida a decisão recorrida.

3.

Sendo que, por via de regra: artºs 635º nº4 e 639º  do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, as questões essenciais decidendas  são as seguintes:

1ª – Nulidade do despacho por falta de fundamentação.

2ª - Ilegalidade do despacho que considerou dever o direito de remição ser exercido sobre a totalidade do bem indiviso.

4.

Apreciando.

Liminarmente.

Da inadmissibilidade do recurso.

Versus o defendido pela recorrida, o recurso é admissível.

O despacho recorrido, não é, ou é mais do que, um despacho de mero expediente.

« Os despachos de mero expediente destinam-se a prover ao andamento regular do processo, sem interferir no conflito de interesses entre as partes-   artº 152º nº4 do CPC

Ora o despacho impugnado não se quedou nesta latitude meramente formal e inóqua.

Antes encerra foros de substância e «mexeu» com o objeto da lide.

O despacho recorrido remeteu para o despacho já proferido sobre o mesmo tema e reiterou o mesmo e os seus fundamentos.

Tal despacho foi proferido na sequência de arguição de nulidade por preterição do contraditório, o que, ao menos tacitamente, por notificação do remidor para se pronunciar, foi admitido.

Pelo que ele representa uma reiteração/repristinação do despacho anterior, e, assim, reitera-se, decidindo sobre o objeto/mérito desta questão.

Por conseguinte, ele é recorrível.

4.1.

Primeira questão.

4.1.1.

Clama o recorrente que o despacho recorrido é nulo por falta de fundamentação – artºs 154º e 615º nº1 al. b), ex vi do artº 613º nº3, do CPC.

Nos termos do artigo 205º, nº1 do Constituição:

«As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei».

E estatui o artº 154º do CPC:

1. As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas.

2. A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade.

A necessidade da fundamentação prende-se com a garantia do direito ao recurso e tem a ver com a legitimação da decisão judicial.

Na verdade a fundamentação permite fazer, intraprocessualmente, o reexame do processo lógico ou racional que lhe subjaz.

Ela é garantia de respeito pelos princípios da legalidade, da independência do juiz e da imparcialidade das suas decisões.

Porque a decisão não é, nem pode ser, um ato arbitrário, mas a concretização da vontade abstrata da lei ao caso particular submetido à apreciação jurisdicional, as partes, maxime a vencida, necessitam de saber as razões das decisões que recaíram sobre as suas pretensões, designadamente para aquilatarem da viabilidade da sua impugnação.

E mesmo que da decisão não seja admissível recurso o tribunal tem de justificá-la.

É que, uma decisão vale, sob o ponto de vista doutrinal, o que valerem os seus fundamentos, pois que estes destinam-se a convencer que a decisão é conforme à lei e à justiça, o que, para além das próprias partes a sociedade, em geral, tem o direito de saber – cfr. Alberto dos Reis, Comentário, 2º, 172 e Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, 1982, 3º vol., p.96.

Mas se assim é, dos textos legais e dos ensinamentos doutrinais se retira que apenas a total e absoluta falta de fundamentação pode acarretar a nulidade.

Na verdade a lei não comina com tão severo efeito uma motivação escassa, ou, mesmo deficiente. E onde a lei não distingue não cumpre ao intérprete distinguir.

Nem tal exigência seria de fazer considerando a «ratio» ou finalidade do dever de fundamentação supra aludidos.

O que a lei pretende é evitar é a existência de uma decisão arbitrária e insindicável. Tal só acontece com a total falta de fundamentação. Se esta existe, ainda que incompleta, errada ou insuficiente tal arbítrio ou impossibilidade de impugnação já não se verificam.

O que nestes casos apenas sucede é que a própria decisão pode convencer menos, dada a debilidade ou incompletude dos seus fundamentos. Mas pode ser sempre atacável e modificável.

Assim sendo, a grande maioria da nossa jurisprudência tem-se pronunciado no sentido de que só a carência absoluta de fundamentação e não já uma motivação escassa, deficiente, medíocre, incompleta ou errada, acarreta o vício da nulidade da decisão – cfr. Entre outros, Ac. do STA de 18.11.93, BMJ, 431º, 531 e Acs. do STJ de 26.04.95, CJ(stj), 2º, 57, de 17.04.2004 e de 16.12.2004, dgsi.pt.

4.1.2.

No caso vertente, e versus o defendido pelo recorrente, o vício não se verifica.

Certo é que a decisão não é um modelo a seguir no conspeto que nos ocupa.

Pois que decide aduzindo fundamentação por remissão.

O que constitui deficiente técnica decisória, já que a sentença, ou a simples decisão, deve valer por si própria;  para o que, e em função do que, nela devem constar todos os elementos dos quais se possa aquilatar da sua, substancial, curial subsunção e interpretação e, assim, justeza.

Não obstante, tal deficiência não basta para a fulminar de nula, por infundamentada.

Primus porque ela não é totalmente omissa e falha de fundamentação, antes esta, na sua vertente factual, nela constando, ainda que por remissão.

Ademais, constando nos autos a decisão para que se remete e sendo ela proferida pela mesma julgadora, esta deficiência formal evidencia-se muito leve e mitigada.

Não podendo, ex vi da boa fé, da colaboração, e da celeridade, ter os efeitos tão formalmente  (porque na prática, e a seu tempo, tudo iria dar ao mesmo) drásticos preconizados pelo insurgente.

Secundus porque o próprio recorrente intui tal fundamentação e, com base nela, contra o decidido se insurge.

O que demonstra que a decisão não é arbitrária, antes se assumindo como sindicável.

Tanto basta para se concluir pela inexistência do vício assacado.

4.2.

Segunda, e única, substancialmente, relevante, questão.

Na decisão a Srª juíza  aduziu  em seu abono o Ac. RP de 21.04.2016, p.1693/12.1T2AVR-D.P1 in dgsi.pt.

Este Aresto dilucida mui curialmente a questão, de um modo exaustivo e sistemático.

Merece, pois, uma alargada transcrição. A saber:

«O direito de remição não pode exceder a medida do direito do executado que foi objecto da penhora ou apreensão e venda: se o objecto deste direito é a propriedade plena e exclusiva do bem, é essa propriedade que o familiar por obter para si, substituindo-se ao adquirente mediante o pagamento do preço que este pagou; mas se o objecto deste direito é apenas uma fracção indivisa do bem, foi só isso que foi adjudicado e vendido ao terceiro e, como tal, é a fracção indivisa que o familiar pode adquirir para si através do direito de remição.

Esta situação altera-se em virtude do disposto no artigo 743.º, n.º 2, do Código de Processo Civil. Segundo este preceito legal, quando, em execuções diversas, sejam penhorados todos os direitos sobre o bem indiviso, realiza-se uma única venda, no âmbito do processo em que se tenha efectuado a primeira penhora, com posterior divisão do produto obtido…

 A afirmação normativa que se fará uma única venda não quer dizer apenas que a venda dos diversos direitos sobre o bem indiviso penhorados se fará na mesma ocasião, no mesmo acto, para que os interessados possam logo aí manifestar a sua intenção de adquirirem todos os direitos ou apenas parte deles. Essa afirmação quer antes significar que o bem é vendido por inteiro, em resultado da aglutinação da totalidade dos direitos penhorados para efeitos da sua venda em conjunto, como se o bem não fosse indiviso e os vários processos executivos tivessem sido apensados.

Esta solução tem diversas vantagens que constituem o fim social da norma.

 Desde logo, a vantagem de permitir que em resultado da venda se obtenha o maior produto possível uma vez que, como é razoável que aconteça, o valor económico da totalidade e exclusividade dos direitos sobre o bem supera a mera soma dos valores económicos dos vários direitos sobre o bem…ao eliminar a indisponibilidade parcial que advém da indivisão e da existência de outros contitulares.

Esta vantagem constitui um benefício para os credores que conseguem maior produto para satisfação dos seus créditos, mas também para o próprio devedor que vê o seu património mais rentabilizado, necessitando por isso de menos património para satisfazer o direito dos credores…

A solução tem ainda a vantagem de eliminar a situação de indivisão e, dessa forma, contribuir para a paz jurídica e social ao impedir ou eliminar os conflitos que são próprios da situação de indivisão ...

Sendo assim…tem de se entender que o familiar do executado que queira exercer o direito de remição terá de o fazer em relação a todo o bem, à totalidade dos direitos sobre o bem indiviso.

Com efeito, independentemente de possuir uma natureza e regime próprios, o direito de remição é um direito de preferência especial ou qualificado, no sentido em que funciona como uma preferência: o seu titular goza do direito potestativo de se fazer substituir ao adquirente do bem, assumindo a posição de adquirente em igualdade de condições e circunstâncias que para aquele resultavam da venda e suportando o mesmo encargo que ele iria ter de suportar para adquirir o bem.

O exercício do direito de remissão não pode importar uma substituição parcial, uma substituição pelo familiar apenas em parte do direito transmitida na venda.

Desde logo, porque não foi nesse pressuposto que o comprador se apresentou à venda e …se dispôs a pagar pela aquisição da totalidade desse direito…geraria prejuízo para o adquirente obrigá-lo, à revelia da sua vontade, a ficar apenas titular de parte indivisa do bem e numa situação de compropriedade...

Esta solução é ainda vantajosa para o próprio familiar que exerça o direito de remição, na medida em que conduz à imediata extinção da indivisão por efeito da venda executiva. Se a indivisão subsistisse apesar da remição, o familiar confrontava-se com o outro contitular do bem, o qual podia a qualquer altura instaurar uma acção de divisão de coisa comum, havendo o risco de o familiar, por efeito dessa acção, perder o direito que com a remição pretendeu manter na família ou para evitar essa perda ter de pagar um valor superior ao valor pelo qual tinha remido o direito do familiar executado.

É precisamente esta situação que nos conduz a considerar adequada e não desproporcionada a solução do artigo 743.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, e o seu reflexo sobre o direito de remição do artigo 842.º do mesmo diploma…

Não se descura que ao ter de adquirir mais que aquilo que pertencia ao executado, o seu familiar terá de despender uma quantia superior, o que pode agravar de facto a sua situação. Todavia, esse esforço acrescido é a contrapartida da aquisição de mais direitos, não havendo desproporção entre o que o familiar terá de pagar e aquilo que irá adquirir (com a vantagem de não ter de se submeter à disputa com os demais titulares indivisos), pelo que daí não advém qualquer tratamento desigual ou desproporcionado.

Por fim, refira-se que o direito de remição… se trata de um direito com consagração legal puramente ordinária que muito embora tenha na génese a preocupação da defesa das ligações das pessoas de uma família ao respectivo património familiar não se confunde nem faz parte da essência dos direitos fundamentais relativo à vida familiar. Tanto é assim que a lei não permite ao familiar remir o bem pelo seu “justo valor” ou pelo seu “valor de mercado”, mas sim pelo “produto da venda”, num sinal claro de que primeiramente se defende o direito dos credores à satisfação do seu crédito e só depois se tutelam, na medida do razoável, os interesses dos familiares do executado.»

E assim é.

No direito de remição são, ou podem ser, afetados, direitos ou interesses, de quatro, efetivos ou potenciais, intervenientes, a saber: o do remidor, o do credor, o do adquirente e o do próprio devedor.

Ora, admitir a remissão apenas pela quota parte do familiar do remidor no bem, apenas poderia beneficiar o remidor.

E tal benefício adviria, quando muito, em termos  meramente imediatos, por efeito de  dispêndio de preço menor; sendo que, no futuro, em caso de divisão da coisa que ficava em comum, e como se diz neste Aresto, o  remidor poderia ser obrigado a pagar preço maior, ou, inclusive, podendo ficar sem o bem, e, assim, se frustrando o fito da figura do direito de remição que visa proteger o património familiar.
Efetivamente, é de notar que O direito de remição não é reconhecido na ação de divisão de coisa comum em que haja lugar à venda da coisa comum -  Acs. do STJ de 17.04.07 e da  Ac. da RL de 03.04.08,  in dgsi.pt.

Depois, e como se vê, os restantes interessados apenas perderiam.

O adquirente porque, inopinadamente, seria confrontado com uma situação jurídica do bem com que não contava, e que o prejudica, pois que, como é consabido, a comunhão de direitos se assume, por via de regra, como um fator de redução do valor do bem.

Podendo, por este motivo, desistir da compra, direito que, ao menos com alguma justificação, lhe poderia/deveria ser concedido.

O credor porque, com as vicissitudes assim criadas e a redução do valor do bem, veria dificultada, quiçá, impossibilitada, a satisfação integral do seu crédito.

Finalmente, o próprio devedor, que veria reduzido o valor do seu património executado e, assim, porventura,  obrigado a disponibilizar outros bens.

Certo é que o direito do remidor não pode ser intoleravelmente restringido ou dificultado.
Tanto assim que o TC decidiu julgar inconstitucional, «por violação do direito de acesso aos tribunais e do princípio do processo equitativo, consagrados nos n.ºs 1 e 4 do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, a interpretação da norma do n.º 2 do artigo 912.º do Código de Processo Civil, na redação anterior ao Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de Março, segundo a qual só se considera validamente exercido o direito de remição, por um descendente do executado, no ato de abertura e aceitação das propostas em carta fechada, se for acompanhado do depósito da totalidade do preço oferecido na proposta aceite» -  Ac. nº 277/07.
Sendo que, nesta sequência, presentemente, o remidor, ao exercer o direito no momento da abertura das propostas de compra, apenas tem de garantir o seu direito com a entrega de cheque no montante de 5% do valor anunciado e pagar o remanescente no prazo de 15 dias – artº 824º, ex vi do artº 843º nº 2 do CPC

Mas a interpretação vertida na decisão, e que se corrobora, não se antolha, em função do expendido, como atingindo aquela intolerável desproporção.

Antes se alcança como a mais equilibrada para consecutir o justo equilíbrio e proteção de todos os interessados em presença.

 E, inclusive, o que não é de somenos, a mais adequada - através de uma definição  perene da totalidade da situação jurídica do bem e, tendencialmente, dos interesses em jogo - ao estabelecimento da paz jurídica e social, a qual, muitas vezes, é posta em crise precisamente por situações de indivisão ou comunhão.

Aliás, sendo o direito de remição, essencial e determinantemente, tanto na sua índole como teleologia, um direito de preferência qualificado, com prevalência sobre os demais direitos de preferência, esta ideia de o seu exercício, não dever, tanto quanto possível, fragmentar/dividir bens ou direitos, dimana  outrossim das  normas gerais desta figura jurídica, como seja o artº 417º do CC, com o seguinte teor:

  Venda da coisa juntamente com outras

1. Se o obrigado quiser vender a coisa juntamente com outra ou outras, por um preço global, pode o direito ser exercido em relação àquela pelo preço que proporcionalmente lhe for atribuído, sendo lícito, porém, ao obrigado exigir que a preferência abranja todas as restantes, se estas não forem separáveis sem prejuízo apreciável.

2. O disposto no número anterior é aplicável ao caso de o direito de preferência ter eficácia real e a coisa ter sido vendida a terceiro juntamente com outra ou outras.

No caso vertente, como se viu, a venda parcial do bem e o exercício parcial do direito de remição apenas atinente à quota do familiar do remidor, acarretaria este prejuízo relevante, não apenas para o valor de mercado do bem em si mesmo, como, inclusive,  posto que efetiva ou apenas potencialmente, para todos os interessados.

Por conseguinte, a conclusão final  vai no sentido de que tal direito tem de ser exercido sobre a totalidade do imóvel, nos temos e condições em que ele foi vendido no processo executivo, não se revelando tal exercício, tudo visto e razoável e sagazmente ponderado, intoleravelmente desproporcionado na afetação dos direitos/interesses do remidor.

Improcede o recurso.

5.

Sumariando – artº 663º nº7 do CPC.

I - A sentença só é nula, por infundamentada – artº 615ºº nº1 al. b) do CPC -  quando, de todo, mesmo por remissão, argumentos em seu abono não são aduzidos, ou os invocados são tão escassos que não permitem a sua compreensão e sindicância.

II - O remidor de bem  indiviso com todas as quotas penhoradas e vendido por inteiro nos termos do artº 743º nº2 do CPC, tem de exercer o seu direito  não apenas sobre a quota do seu familiar, mas antes sobre a totalidade do bem, tal como adquirido pelo proponente.

6.

Deliberação.

Termos em que se acorda julgar o recurso improcedente e, consequentemente, confirmar a decisão.

Custas pelo recorrente.

Coimbra, 2020.06.23.

Carlos Moreira ( Relator )

Moreira do Carmo

Fonte Ramos