Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
285/10.4TBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA PILAR DE OLIVEIRA
Descritores: AMEAÇA AGRAVADA
CRIME PÚBLICO
Data do Acordão: 06/25/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE VISEU (2.º JUÍZO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 253.º E 155.º, DO CP
Sumário: O crime de ameaça, agravado nos termos do disposto no artigo 155.º do CP, tem a natureza de crime público.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

No processo comum singular 285/10.4PBVIS do 2º Juízo Criminal de Viseu o arguido A... encontra-se acusado da autoria de um crime de ameaça agravado na forma continuada, p. e p. pelos artigos 153º, nº 1, 155º, nº 1, alínea a), 30º, nº 2 e 78º do Código Penal.

Por despacho proferido em 3 de Julho de 2013 foi homologada desistência de queixa e declarado extinto o procedimento criminal exercido por tal crime.

Tal despacho é do seguinte teor:

Compulsados os autos verifica-se que o aqui ofendido B... a fls.191 e 192 dos autos veio apresentar desistência da queixa apresentada contra o arguido A..., sendo que este declarou aceitar tal desistência.

 No que concerne ao crime de ameaça agravada imputado ao arguido entendemos que o artigo 155° do Código Penal constitui em relação ao crime de ameaça contido no artigo 153° do Código Penal uma mera agravação da moldura penal do tipo base ali previsto e não um tipo qualificado. E a ser assim, entendemos ser admissível e relevante a desistência de queixa apresentada.

Neste sentido vide o artigo escrito por Pedro Daniel dos Anjos Frias, publicado na Revista "Julgar". Edição da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, Janeiro-Abril de 2010 e também Américo Taipa de Carvalho in Comentário Conimbricense ao Código Penal, pág. 556-560, na sua edição mais recente.

Nestes termos, atenta a qualidade dos intervenientes, a disponibilidade do direito e a natureza semi-pública do crime em questão (crimes de ameaça agravada - artigos 143º n.º 1 e 153° n.º 1 e 155º n.1 a) do Código Penal) e ao abrigo do disposto nos artigos 113º, 116º nº 2, 143 n.º 2 e 153° n.º 2 do Código Penal e 48°, 49° e 51º todos do Código de Processo Penal, julgo válida e homologo a desistência de queixa e consequentemente julgo extinto o procedimento criminal em causa nos autos.

Sem custas.

Relativamente ao pedido cível de fls. 172 e seguintes, julgo os mesmos extintos, por impossibilidade superveniente da lide (artigos 287° alínea e) do CPP e 4° do CPP).

Sem custas.

Oportunamente, proceda ao arquivamento dos autos.

Inconformado com a homologação da desistência, recorreu o Magistrado do Ministério Público, extraindo da respectiva motivação do recurso as seguintes conclusões:

I. Ao arguido A... são imputados factos integrantes da comissão, com autor material, de um crime de ameaça agravada continuado, previsto e punido pelo artigo 153º, nº 1 e 155º, nº 1 a) do Código Penal e 30º, nº 2 e 78º do mesmo diploma legal;

II. Por despacho proferido nos autos a Mm.ª Juíza julgou válida a desistência de queixa formulada, homologando-a, e consequentemente declarando extinto o procedimento criminal que nestes autos era movido ao arguido;

III. Não o podia contudo fazer dado que a desistência de queixa apresentada é juridicamente irrelevante, atenta a natureza pública do crime imputado ao arguido;

IV. A natureza pública do crime de ameaça agravada decorre desde logo da técnica legislativa utilizada para a qualificação dos crimes, e ainda da inexistência no artigo 155º de normativo semelhante ao artigo 153º, nº 2 do Código Penal quanto ao crime de ameaça simples;

V. Trata-se de um modelo de sistematização técnica utilizada pelo legislador em quase toda a Parte Especial do Código Penal: depois de definir o crime matricial recorta seguidamente os elementos que determinam a qualificação, fazendo sempre quando, existindo um crime "simples" e outro "qualificado" ou "agravado", só pretende atribuir a natureza semi-pública ao "simples", sendo que, diferentemente, quando pretendeu atribuir natureza semi-pública a vários crimes do mesmo capítulo ou secção, independentemente da sua gravidade, colocou a norma no final, discriminando quais os crimes abrangidos (o que não sucedeu no caso vertente);

VI. A previsão do artigo 155º estabelece um tipo legal autónomo dos previstos nos artigos 153º e 154º e não apenas a agravação da moldura penal.

VII. Com a Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro - que alterou o Código Penal -, alterou-se, precisamente, o tipo-de-ilícito de ameaça: no artigo. 153º, nº 1, permaneceu o tipo simples e, em relação a ele, foi mantida a natureza semi-pública, no nº 2; e o tipo qualificado passou para o artigo 155°, tendo sido eliminada a ameaça qualificada do artigo 153º;

VIII. A solução legislativa de não manter a natureza semi-pública do tipo qualificado de ameaça é a mais harmónica com a opção de qualificar a ameaça pelas mesmas circunstâncias que qualificam a coacção.

IX. Neste sentido, depõe inequivocamente a Exposição de Motivos do Anteprojecto de Revisão do Código Penal de onde ressuma que o legislador pretendeu qualificar o crime de ameaça em circunstâncias idênticas às previstas para a coação grave, alargando uma solução contemplada para os casos de homicídio, ofensa à integridade física e coacção.

X. A desistência de queixa formulada pelo ofendido não é pois juridicamente válida e relevante, atenta a natureza de crime público do crime de ameaça agravado desde a revisão do Código Penal de 2007;

XI. Não ficando o tipo agravado sem campo de aplicação em face da redacção do artigo 153º, nº 1, desde logo pelos motivos decorrentes do AUJ nº 7/2013, do STJ;

XII. Decidindo da forma como decidiu, a Mm.ª Juiz “a quo” fez incorrecta interpretação da Lei, violando o disposto nos artº 48º do Código de Processo Penal, nos artº 116º, arts 153º e artº 155º, nº 1, a) do Código Penal.

Deve pois revogar-se o despacho recorrido, substituindo-o por outro que julgando ineficaz e juridicamente irrelevante a desistência de queixa apresentada, determine o prosseguimento dos autos com a marcação e a realização da audiência de julgamento atinente a tal factualidade.

Contudo, Vossas Excelências, como sempre farão a inteira e costumada Justiça

Foi proferido despacho admitindo o recurso.

Notificado, o arguido não apresentou resposta.

A Mmª Juiz “a quo” não proferiu expressa sustentação, nem reparou a decisão recorrida, como lhe era facultado pelo artigo 414º, nº 4 do Código de Processo Penal.

Nesta Relação o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não tendo sido exercido o direito de resposta.

Procedeu-se a exame preliminar e foram cumpridos os demais trâmites legais.

Colhidos os vistos legais e realizada conferência, cumpre apreciar e decidir.

***

            II. Apreciação

            Como é sabido o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas da correspondente motivação (artigo 410º, nº 1 do Código de Processo Penal).

Assim, o recurso interposto importa apenas resolução sobre se o crime de ameaça agravado p. e p. pelos artigos 153º e 155º do Código Penal tem natureza semi-pública, como se considerou no despacho recorrido, homologando desistência de queixa, ou tem natureza pública como invoca o recorrente.

O artigo 153º do Código Penal, na redacção anterior à que veio a ser introduzida pela Lei nº 59/2007 de 4 de Setembro, preceituava:

“1. Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.

2. Se a ameaça for com a prática de crime punível com pena de prisão superior a 3 anos, o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.

3. O procedimento criminal depende de queixa.”.

Após a revisão operada pela citada Lei nº 59/2007, o artigo 153º do Código Penal ficou com a seguinte redacção:

“1. Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.

2. O procedimento criminal depende de queixa.”.

Com a alteração legal, o tipo de crime agravado que se encontrava previsto no antigo deixou de constar do nº 2 do artigo 153º e passou a constar de um novo artigo; 155º, com a seguinte redacção:

“1 - Quando os factos previstos nos artigos 153.º e 154.º forem realizados:

a) Por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos; ou

b) Contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez;

c) Contra uma das pessoas referidas na alínea l) do n.º 2 do artigo 132.º, no exercício das suas funções ou por causa delas;

d) Por funcionário com grave abuso de autoridade;

o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias, no caso do artigo 153.º, e com pena de prisão de um a cinco anos, no caso do n.º 1 do artigo 154.º

2 - As mesmas penas são aplicadas se, por força da ameaça ou da coacção, a vítima ou a pessoa sobre a qual o mal deve recair se suicidar ou tentar suicidar-se.”.

O legislador manteve a natureza semi-pública do crime simples de ameaça, não se tendo pronunciado expressamente quanto ao tipo agravado, donde resulta a assumida intenção de lhe atribuir natureza pública; o que tem perfeita compreensibilidade por força da natureza dos comportamentos expressamente tipificados como integradores da agravação, seja por revelarem uma maior ilicitude da acção – als. a), b) e c) – seja por traduzirem uma maior culpa do agente – al. d), todas os nº 1 do artigo 155º.

A nosso ver esta conclusão é a única compaginável com o argumento interpretativo de ordem sistemática, pois não faria sentido que o legislador pretendesse manter a natureza semi-pública do crime agravado, tendo-o autonomizado em novo artigo e não o dissesse expressamente.

Com efeito, toda a sistematização do Código Penal vai no sentido de fazer referência expressa, sempre que os crimes tenham natureza particular e semi-pública, ao respectivo pressuposto de processibilidade e de omitir qualquer referência sempre o que o crime seja de natureza pública. E tal verifica-se em todo o Título I “Dos Crimes Contra as Pessoas”, como também no Título II “Dos crimes contra o património”, citando-se como exemplos os crimes de ofensa à integridade física (artigos 143º a 148º) e os crimes de dano (artigos 212º a 214º).

São, pois, as regras que presidem à interpretação da lei e que constam do artigo 9º do Código Civil, que tornam incontornável a conclusão de que o crime de ameaça agravado tem natureza pública.

No mesmo sentido se decidiu nos acórdãos desta Relação proferidos nos processos 1596/08.4PBAVR.C1 e 94/10.0GASAT.C1 (5ª secção criminal) subscritos pela ora relatora na qualidade de Adjunta e nos acórdãos citados pelo recorrente na sua motivação, bem como, mais recentemente, no acórdão de 2.4.2014 proferido no processo 222/12.1GCVIS.C1 publicado em www.dgsi.pt.

Assim, uma vez que o crime agravado de ameaça passou a ter natureza pública, é insusceptível de desistência da queixa, o recurso do M.P. merece provimento, devendo os autos prosseguir com a realização do julgamento.

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            III. Decisão

Pelo exposto decide-se conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, revogar o despacho recorrido quer deve ser substituído por outro que ordene o prosseguimento dos autos.

Não há lugar a tributação.

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Coimbra, 25 de Junho de 2014

 (Maria Pilar Pereira de Oliveira - relatora)
 (José Eduardo Fernandes Martins - adjunto)