Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
245/13.3TACTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL SILVA
Descritores: CRIME DE FALSIDADE DE TESTEMUNHO
RECUSA
DEPOIMENTO
TIPO OBJECTIVO
Data do Acordão: 04/30/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE CASTELO BRANCO (2.º JUÍZO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 360.º, N.ºS 1 E 2, DO CP; ARTIGO 311.º, N.ºS 2 E 3, ALS. B) E D), DO CPP
Sumário: I - O inciso “sem justa causa”, constante do nº 2 do art. 360.º do CP, integra o tipo objectivo do crime de recusa a depor.
II - Consequentemente, a acusação, para que não seja manifestamente infundada, nos termos do artigo 311.º, n.ºs 2 e 3, als. b) e d), do CPP, deve descrever os factos consubstanciadores daquela expressão.
Decisão Texto Integral: ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

I - HISTÓRICO DO PROCESSO

1.         O Ministério Público (de futuro, apenas Mº Pº) deduziu acusação, em processo comum e tribunal singular, contra A..., pela imputação de um crime de falsidade de testemunho, previsto e punido (de futuro, apenas p. e p.) pelo art. 360º nº 1 e 2 do Código Penal (de futuro, apenas CP), em conjugação com o art. 14º nº 1 e 26º do mesmo diploma.

Estribou a acusação nos seguintes termos:

«(...)



No dia 04 de Janeiro de 2013, pelas 14 horas e 20 minutos, no Estabelecimento Prisional de Castelo Branco, o arguido A... encontrava-se perante B..., Cabo da Guarda Nacional Republicana de Castelo Branco, a fim de ser inquirido, na qualidade de testemunha, no âmbito do Processo de Inquérito nº 287/12.6TAMGL, que correu seus termos nos Serviços do Ministério Público de Mangualde.


            Iniciada tal inquirição e depois de ter sido advertido do seu dever de responder com verdade às perguntas que lhe forem dirigidas e de que a recusa em prestar depoimento, o faria incorrer na prática de crime, o arguido A... recusou-se a responder a qualquer pergunta que lhe fosse dirigida.


O arguido voltou a ser advertido que a recusa em prestar depoimento o faria incorrer na prática de crime, no entanto, manteve a sua posição de se recusar a depor.


            Ao recusar-se a prestar depoimento, o arguido A... bem sabia do dever que sobre si impendia de responder com verdade às perguntas lhe fossem dirigidas, mas não obstante tal facto, agiu com o propósito concretizado de não responder a nenhuma pergunta que lhe fosse dirigida, bem sabendo que a recusa em prestar depoimento, o faria incorrer na prática de crime, o que representou, apesar da advertência que lhe foi previamente feita.


            O arguido actuou de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a sua descrita conduta era censurada, proibida e punida por lei penal. (...)».

2.         Apreciando tal acusação, a M.mª Juíza considerou-a manifestamente infundada, pelo que a rejeitou, com a seguinte fundamentação:

            «(...)

            Descendo ao caso dos presentes autos, verifica-se que a acusação não contém a descrição de todos os factos no que concerne ao elemento objetivo do ilícito.

            De facto, preceitua o artigo 360.º, n.º 2, que comete o crime imputado ao arguido quem, sem justa causa, se recusar a depor.

            Assim, faz parte do elemento objetivo do tipo de crime em apreciação a inexistência de justa causa, a qual terá de ser traduzida em factos na acusação, por exemplo, referindo que o arguido não apresentou qualquer justificação para se ter recusado a depor.

            Ora, analisada a acusação formulada, pese embora se descreva a recusa em depor, a advertência no caso de persistir com tal atitude e a intenção de agir tendo em vista a recusa a prestar declarações, nada se diz quanto à inexistência de justa causa e, sendo este um elemento típico, tem de obrigatoriamente constar da acusação, sob pena de o arguido não poder ser condenado. Não caberá certamente ao arguido o ónus de provar a existência de justa causa para evitar a condenação, pois, estruturando-se o nosso sistema penal no princípio do acusatório, é ao M.P. que compete alegar e provar todos os factos referentes aos elementos típicos.

            Todos os elementos essenciais do facto típico têm de ser conhecidos pelo agente.

            A descrição dos factos que integram o tipo legal de crime imputado, quer o tipo objetivo, quer o tipo subjetivo, é fundamental dada a circunstância de vigorar entre nós, em pleno, o princípio da legalidade. Portanto, quando a acusação seja omissa em elementos essenciais a consequência será a de rejeição por inadmissibilidade legal. É que o juiz não se pode substituir ao acusador e colocar, por sua própria iniciativa, os factos em falta, essenciais para a imputação do crime em questão. Se assim procedesse não só violaria os princípios da igualdade, imparcialidade e independência, mas também extravasaria os seus poderes de cognição, limitados pelo conteúdo da acusação.

            Donde se conclui que, segundo o estatuído no art.º 311, n.º 3, al. d), a acusação particular tem de ser considerada manifestamente infundada, em virtude de os factos nela descritos não constituírem crime.

            (...)

            Pelo exposto, e ao abrigo do disposto no artigo 311º, nº 2, alínea a) e nº 3, alíneas b) e d), considero a acusação pública manifestamente infundada e, consequentemente, rejeito a mesma. (...)»

            3.         Inconformado, recorre o Mº Pº de tal decisão, formulando as seguintes CONCLUSÕES:

            «1ª - Vem o presente recurso interposto do despacho proferido pela Meretíssima Juiz, no dia 25 de Novembro de 2013 que rejeitou a acusação pública deduzida contra o arguido A..., pela prática, em autoria material, de um crime de falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução, previsto e punido pelo artigo 360.°, nº 1 e 2, do Código Penal.

            2ª - A acusação deduzida pelo Ministério Público contém todos os factos que constituem os elementos essenciais do crime de falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução, previsto e punido pelo artigo 360.°, nº 1 e 2, do Código Penal.

            3ª - O crime aqui em apreciação é um crime de omissão puro, cuja consumação se verificou logo no momento em que o aqui arguido se recusou a prestar depoimento.

            4ª - A existência de justa causa teria o efeito de desresponsabilizar o aqui arguido pela prática do crime aqui em apreciação, mas só na eventualidade de ele ter invocado uma justa causa para se recusar a depor é que a acusação contra si deduzida continha factos que não constituíam crime, e aí sim, deveria ser considerada manifestamente infundada.

            5ª - Entendemos assim, que a inexistência de justa causa não faz parte do elemento objectivo do tipo de crime aqui em apreciação e não tem de ser traduzida em factos na acusação, porque a consumação do crime verifica-se, desde logo, com a recusa da testemunha em prestar depoimento.

            6ª - Os factos que constam da acusação deduzida pelo Ministério Público constituem a prática de um crime, pelo que a mesma devia ter sido recebida e devia ter sido designada data para a realização de audiência de discussão e julgamento.

            7ª - Ao ter decidido de forma diversa, violou-se no despacho a quo o disposto nos artigos 360.°, nº 1 e 2 do Código Penal e 311.°, nº 2, alínea a) e nº 3, alíneas b) e d), do Código de Processo Penal.

            8ª - Pelo que deverá o presente recurso ser julgado procedente, porque provado, devendo Vªs, Exªs. revogar o despacho recorrido e ordenar à Meritíssima Juiz a quo que o substitua por outro, no qual, receba a acusação deduzida pelo Ministério Público.»

4.         O arguido não usou do direito de resposta.

Já neste Tribunal da Relação, a Ex.mª Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta, emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

Cumprido o art. 417º nº 2 do Código de Processo Penal (de futuro, apenas CPP), o arguido não se pronunciou.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

            5.         O MÉRITO DO RECURSO

O objecto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art. 412º nº 1 do CPP. [[1]]

            QUESTÃO A RESOLVER: uma única, a de saber se a acusação contém os factos atinentes aos elementos objectivos do crime que nela se imputa ao arguido.

            5.1.      Como resulta da decisão recorrida, considerou-se que o Mº Pº não cumpriu com o ónus [art. 283º nº 3 al. b) do CPP] de alegação de todos os factos necessários ao preenchimento do tipo de ilícito; mais especificamente, que se omitiu completamente o substracto factual atinente à inexistência de justa causa.

            Já o Mº Pº entende que “a inexistência de justa causa não faz parte do elemento objectivo do tipo de crime”; o crime em causa é um crime de omissão puro, que se consumou com a simples recusa em prestar declarações e que, ao invés, a justa causa serviria para a conclusão de não cometimento do crime.

            Ou seja, não se discute propriamente que não foram alegados os factos pertinentes à inexistência de justa causa; a divergência entre ambos os entendimentos cifra-se em saber se a justa causa é ou não elemento objectivo do tipo de ilícito.

            Sucede que, justa causa não é um facto mas sim um conceito jurídico.

            Os factos (ocorrências e manifestações da vida) serão, pois, a alegação da inexistência de uma relação familiar ou equiparada, uma situação de dever de segredo profissional ou outro, bem como a invocação de que das respostas lhe pode advir responsabilidade penal.

Como refere A. Medina de Seiça, «Por justa causa entendem-se todos os fundamentos legítimos de recusa, maxime os privilégios consignados na lei processual para os familiares do arguido (cf. art. 134° do CPP; art. 618° do CPC), para os portadores de segredo (cf. art. 135° do CPP; art. 618° do CPC), para a não incriminação (cf. art. 132°, no 2, do CPP).». [[2]]

            Mas, para além destes especificamente consignados na lei, pode tratar-se de casos de outra índole, não especialmente previstos.

            “a expressão «justa causa», contida no nº 2, parece dever querer significar, por exemplo, que o juiz ou o funcionário poderão dispensar o agente, no caso concreto, da prestação e depoimento, não se referindo, pois, a qualquer causa de justificação do facto.». [[3]]

            Um caso interessante de recusa de depoimento foi já apreciado pela Relação de Évora, relativo à situação de “uma testemunha, em situação de reclusão, que, depois de transportada do estabelecimento prisional respectivo até ao tribunal, para prestar depoimento, aguardou até esse depoimento dentro da viatura celular e durante cerca de quatro horas, sem lhe ter sido facultada alimentação ou água para beber”, tendo-se considerado que “os seus deveres como testemunha não foram respeitados ponderado o cariz humanista de que se reveste todo o sistema penal português” e, por isso, assistir-lhe “justa causa para essa recusa”. [[4]]

            No caso, e porque se trata duma inexistência de justa causa, traduzir-se-ão em factos negativos (a não ocorrência de cada uma dessas situações).

            Mas, pelo simples facto de serem negativos, não deixam de ser factos a terem de ser alegados.

            É o que ocorre, aliás, nos vários tipos de ilícito de omissão pura, como por exemplo o crime de omissão de auxílio p. e p. no art. 200º do CP.

            Tendo em conta o princípio do acusatório, só ao Mº Pº compete a alegação dos factos integradores dos elementos objectivo e subjectivo do crime, sejam eles factos positivos ou negativos.

            5.2.      Visto isto, e como já se referiu, a dilucidação da questão em apreço passa mais por se apurar se a justa causa constitui ou não elemento objectivo do tipo de ilícito.

            Preceitua o art. 360º do CP:

            1 - Quem, como testemunha, (...), perante tribunal ou funcionário competente para receber como meio de prova, depoimento, (...), prestar depoimento, (...) falsos, é punido com pena de prisão de 6 meses a 3 anos ou com pena de multa não inferior a 60 dias.

             2 - Na mesma pena incorre quem, sem justa causa, se recusar a depor ou a apresentar relatório, informação ou tradução.

             3 - Se o facto referido no n.º 1 for praticado depois de o agente ter prestado juramento e ter sido advertido das consequências penais a que se expõe, a pena é de prisão até 5 anos ou de multa até 600 dias.

            Da simples leitura do texto resulta que a justa causa constitui elemento do tipo.

            Na verdade, poder-se-ia dizer apenas que na mesma pena incorre quem se recusar a depor; mas, ao consignar, entre vírgulas, que tal só ocorre quando a recusa for sem justa causa, tal significa que a existência de justa causa retira a ilicitude à recusa.

            Nesta medida, a existência de justa causa constitui um obstáculo à ilicitude da conduta.

            Ou, dito de outro modo, a falta de causa é que transforma a conduta/acção em ilícita.

            É a inexistência de justa causa que constitui a causa de justificação da ilicitude da conduta.

            Portanto, a expressão sem justa causa, constante do nº 2 do art. 360º do CP, só pode conceber-se como um elemento objectivo do crime de recusa a depor. [[5]]

            Pensamos ser este também o pensamento de A. Medina de Seiça quando refere, «Decisivo, para a realização do tipo, é não haver uma justa causa para a recusa. Por justa causa entendem-se todos os fundamentos legítimos de recusa, maxime os privilégios consignados na lei processual para os familiares do arguido (cf. art. 134° do CPP; art. 618° do CPC), para os portadores de segredo (cf. art. 135° do CPP; art. 618° do CPC), para a não incriminação (cf. art. 132°, no 2, do CPP).». [[6]] (negrito nosso)

            Numa perspectiva dogmática, refere Figueiredo Dias, ao abordar as diversas concepções das relações entre tipo e ilícito: «A referida concretização, (...) serve-se em todo o caso, para a sua realização, de dois instrumentos diferentes ou mesmo de sinal contrário, mas em todo o caso funcionalmente complementares. Um deles é o que aqui se chama tipos incriminadores, isto é, o conjunto de circunstâncias fácticas que directamente se ligam à fundamentação do ilícito e onde, por isso, assume primeiro papel a configuração do bem jurídico protegido e as condições, a ele ligadas, sob as quais o comportamento que as preenche pode ser considerado ilícito. O outro são os tipos justificadores ou causas de justificação que, servindo igualmente a concretização do conteúdo ilícito da conduta, assumem o carácter de limitação (“negativa”) dos tipos incriminadores. Também os tipos justificadores constituem, no seu modus particular, formas delimitadoras do conteúdo do ilícito (e, na verdade, formas que possuem os seus elementos constitutivos, os seus pressupostos, mesmo uma certa descrição fáctica e são assim elas próprias, em suma, susceptíveis de tipificação e podem por isso ser vistos como verdadeiros (contra)tipos, funcionalmente complementares dos tipos incriminadores.». [[7]]

            5.3.      Como já deixou referido a M.mª Juíza na sua decisão, a não ser assim, a não se considerar a expressão sem justa causa como um elemento objectivo do crime —— e, portanto, a necessitar de ser alegada e traduzida em factos pelo Mº Pº ——, chegaríamos à situação de se estar a cometer ao arguido o ónus da demonstração de que agiu com justa causa, como única forma de evitar a condenação.

            O que, como sabemos, violaria o princípio do acusatório.

            Para já não falar de qualquer outra causa que pudesse vir a ser considerada legítima, pelo menos no que toca àquelas em que é a própria lei a conceder a faculdade de recusa de depoimento, o juiz não pode ignorar a sua existência.

            Nessa perspectiva, não estando alegados os factos pertinentes e, por exemplo, usando o arguido o seu direito ao silêncio, sempre se imporia a sua absolvição, em obediência ao princípio da presunção de inocência (in dubio pro reo).

            Concluindo: a expressão sem justa causa, constante do nº 2 do art. 360º do CP, constitui um elemento objectivo do crime de recusa a depor, a necessitar de ser traduzida na alegação de factos.

            III.       DECISÃO

6.         Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso e manter integralmente a decisão recorrida.

Sem custas, atenta a qualidade do Recorrente.

Coimbra, 30 de Abril de 2014

 (Isabel Silva - relatora)



 (Alcina da Costa Ribeiro - adjunta)


      [[1]] Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), de 12.09.2007 (processo 07P2583), disponível em http://www.dgsi.pt/, sítio a ter em conta nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem: «III - Como decorre do art. 412.º do CPP, é à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, ou seja, o cerne e o limite de todas de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso estão contidos nas conclusões, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso.
                IV - As possibilidades de cognição oficiosa por parte deste Tribunal verificam-se por duas vias: uma primeira, que ocorre por necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida previstos no art. 410.º, n.º 2 do CPP, e uma outra, que poderá verificar-se em virtude de nulidade da decisão, nos termos do art. 379.º, n.º 2, do mesmo diploma legal.».

      [[2]] In Comentário Coninbricense do Código Penal, parte especial, Tomo III, Coimbra Editora, 1999, pág. 478.
      [[3]] Leal-Henriques e Simas Santos, O Código Penal de 1982, vol. 4º, Rei dos Livros, 1987, pág. 496, em anotação ao art. 402º do CP, correspondente ao actual 360º.

      [[4]] Acórdão da Relação de Évora, de 04.06.2013 (processo 207/11.5TAPSR.E1).

     [[5]] Neste sentido, o acórdão da Relação de Évora, de 14.05.2002 (processo 537/02-1) onde, a determinada altura se pode ler «O referido motivo fictício preenche, pois, a falta de justa causa, elemento constitutivo do crime imputado ao arguido».

      [[6]] In Comentário Coninbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, Coimbra Editora, 1999, pág. 478, § 43.
      [[7]] In Direito Penal, Parte Geral, Questões Fundamentais, A Teoria Geral do Crime, tomo I, 2ª edição, 2ª reimpressão, Coimbra Editora, pág. 269, § 56.