Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
65/06.1GHCTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EDUARDO MARTINS
Descritores: RECONSTITUIÇÃO DO FACTO
DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO
Data do Acordão: 09/22/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CASTELO BRANCO – 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 71.º, DO C. P., 150º, 369.º A 371.º, DO CPP
Sumário: 1. Só nos casos em que tenha sido colocada em causa a legalidade da reconstituição dos factos é que esta não deverá ser valorada de modo positivo.

2. Quando haja motivo para condenar em 2ª instância, após ter existido absolvição em 1ª instância, deve-se proceder à devolução a este último tribunal para, em audiência complementar, proceder à determinação da medida concreta da pena a aplicar.

Decisão Texto Integral: I – Relatório:                                                             

No processo comum (tribunal colectivo) n.º 65/06.1GHCTB, do Tribunal Judicial de Castelo Branco 2º Juízo, o arguido J... foi acusado pela prática, em autoria material, de um crime de incêndio, p. e p. pelo artigo 272.º, n.º 1, al. a), do C. Penal, na redacção anterior à dada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro e, actualmente, p. e p. pelo artigo 274.º, n.ºs 1 e 2, al. a), do C. Penal.

 O arguido contestou, oferecendo o merecimento dos autos.

Efectuada audiência de julgamento, foi proferida, em 10/2/2010, a seguinte Decisão:

           “ Por todo o exposto, julgando a acusação improcedente e não provada, decide-se:

           Absolver o arguido J... da prática do crime de incêndio, p. e p. pelo artigo 272.º, n.º 1, al. a), do C. penal, que lhe vem imputado.

           Sem custas.

           Deposite.”

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         Inconformado com essa decisão, dela recorreu, em 26/2/2010, o Ministério Público, defendendo a sua revogação e substituição por outra que condene o arguido pela prática do crime de incêndio, ou por outra que determine a repetição do julgamento, rematando a correspondente motivação com as seguintes CONCLUSÕES:

1. Por se impugnar matéria de facto, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, al. a), do CPP, indica-se que os pontos que, concretamente, se reputam incorrectamente julgados são os factos dados como não provados nos pontos 1 a 4 da alínea B) de fls. 222 do acórdão recorrido.

                2. O arguido J... foi absolvido da prática do crime de incêndio, p. e p. pelo artigo 272.º, n.º 1, al.), do C. Penal, actualmente p. e p. pelo artigo 274.º, n.ºs 1 e 2, al. a), do C. Penal, pelo qual vinha acusado.

                3. A apreciação da prova feita pelo tribunal, que conduziu à matéria provada e não provada, com especial relevo para a apreciação da prova constituída pelo auto de reconstituição do crime, na sua conjugação com os demais elementos de prova produzidos, deveria merecer uma diferente conclusão.

                4. Considerou o tribunal recorrido, no que respeita à reconstituição do facto, que esta só teve lugar após a tomada de declarações ao arguido, nessa qualidade e que, a ser valorado na parte confessória, era uma forma de ludibriar a proibição de prova prevista no artigo 356.º, n.º 7, do CPP.

                5. Ora, o meio de prova previsto no artigo 15º.º, do CPP, tendo um valor de prova permitida em julgamento, com autonomia, pode contar com a colaboração do arguido e pode seguir-se à confissão deste. Tem, ainda, a vantagem de materializar e objectivar o carácter pessoal da confissão, prevenindo alterações de estratégia de defesa em audiência. (Simas Santos e Leal Henriques, no CPP anotado, 2ª edição, 1999, I volume, pág. 794).

                6. O Supremo Tribunal de Justiça tem considerado a reconstituição do facto como um meio de prova autonomizado que, não impondo a participação do arguido, não a exclui, quando este se disponha a participar, não estando os órgãos de polícia criminal que tenham acompanhado a diligência impedidos de prestar declarações sobre o modo como decorreu e os termos em que decorreu. Tais declarações do arguido ou de outros intervenientes no acto não estão abrangidas na proibição do artigo 356.º, n.º 7, do CPP. (Ac. do S.T.J., de 5/1/2005, processo n.º 04P3276, in www.dgsi.pt).

                7. No mesmo sentido se pronunciou o Supremo Tribunal, em acórdão de 20/4/2006, processo n.º 06P363, in www.dgsi.pt, especificando que os contributos verbais do arguido, para o modo como a reconstituição é feita, não se reconduz ao estrito conceito processual de declarações, por serem instrumentais em relação à recriação do facto. Mesmo que prestadas a solicitação do órgão de polícia criminal, não são informações prestadas pelo arguido à margem do processo, nem conversas informais, pois que se destinam a esclarecer o auto de reconstituição, meio de prova previsto no artigo 150.º, do CPP, de acordo com o mesmo acórdão.

                8. Não podia o tribunal recorrido considerar que o depoimento prestado pelo Inspector da PJ, M..., em audiência, não podia ser valorado, sob pena de estar a valorar um meio de prova proibido nos termos do artigo 356.º, n.º 7, do CPP, nem por esta via desvalorizar o meio de prova constituído pelo auto de reconstituição, realizado nos termos do artigo 150.º, do CPP.

                9. À luz das regras da experiência comum, a realização de um auto de reconstituição, com contributos do arguido, sempre corresponderá a uma certa e determinada confissão a apreciar pelo tribunal, de acordo com as regras do artigo 127.º, do CPP.

                10. Nos autos, e concretamente em audiência, foram apresentados como meios de prova, designadamente, o auto de reconstituição, de fls. 61 a 64, do auto de diligência externa de fls. 35 a 42, os depoimentos das testemunhas M..., Inspector da PJ, C..., Mestre Florestal, A... e R....

                11. O auto de reconstituição foi confirmado e explicitado nos pormenores da sua execução, com a colaboração do arguido, pela testemunha M..., da PJ, em audiência. (Sessão de 9/2/2010 – L..., em sua substituição, M... -, ao minuto 1 a 5).

                12. Desse modo, da conjugação das diversas provas apresentadas em audiência, quer entre si, quer com as regras da experiência comum, evidencia-se a possibilidade da reconstituição do crime efectuada pelo arguido, não estando o tribunal em presença de um auto de reconstituição de incêndio que não ocorreu ou que não podia sequer ter ocorrrido.

                13. Por acórdão de 2/4/2008, processo n.º 1541/06.1PBAVR, o Tribunal da Relação de Coimbra aceitou depoimentos de órgãos de polícia criminal que tinham recolhido declarações, cuja leitura não seja permitida, quando estes tenham também participado em auto de reconstituição e o depoimento se reporte a este meio de prova, pois que a participação do arguido no auto de reconstituição não envolve a repetição de declarações do arguido.

                14. O auto de reconstituição, tendo sido legalmente realizado, nos termos do artigo 150.º, do CPP, e não tendo sequer sido questionado pela defesa que o arguido tivesse sido determinado “a participar por qualquer forma de condicionamento ou perturbação da vontade, seja por meio de coacção física ou psicológica, que se possa enquadrar nas fórmulas referidas como métodos proibidos enunciados no artigo 126.º, do CPP”. (Ac. do S.T.J., de 5/172005, atrás citado), não estamos perante provas que não sejam permitidas em audiência, nos termos dos artigos 355.º, n.º 2 e 356.º, n.º 1, al. b), do CPP.

                15. O depoimento da testemunha M..., da PJ, ao depor sobre a matéria constante do auto de reconstituição, bem como sobre a participação do arguido no mesmo auto, não é uma forma de contornar ou de ludibriar o que dispõe o artigo 356.º, n.º 7, do CPP.

                16. Ao valorar de forma diferente, o Tribunal recorrido violou o que dispõem as referidas normas processuais penais e, ainda, o disposto nos artigos 150.º e 127.º, do mesmo diploma legal.

                17. O tribunal, na sua motivação, apresenta um raciocínio que, ao fazer a apreciação das provas para obter os factos provados e não provados, exclui o valor do auto de reconstituição por ter sido feito apenas a tomada de declarações do arguido, nesta qualidade, bem como do depoimento do elemento de polícia criminal que neles participou, o que, a ser valorado na parte confessória, consubstanciaria uma violação do disposto no artigo 356.º, n.º 7, do CPP.

                18. Não fez, desse modo, a nosso ver, o tribunal uma correcta apreciação ou exame crítico da prova, sempre na conjugação do auto de reconstituição com a globalidade da demais prova produzida, em violação das normas citadas, ainda em conjugação com o disposto no artigo 374.º, n.º 2, do CPP, sendo nulo o acórdão, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, al. a), do mesmo diploma legal.

                19. Desta forma, mostram-se incorrectamente julgados todos os factos dados como não provados nos pontos 1 a 4 da alínea B), indicados no acórdão recorrido, a fls 222 (dos autos), os quais, de acordo com o nosso entendimento, deverão ser dados como provados e

                20. O acórdão substituído por outro que considere tais factos provados e que condene o arguido pela prática do crime de incêndio pelo qual está acusado, estando provados os demais elementos do crime, ou, então, se determine a repetição do julgamento nesta conformidade.

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         O arguido, em 23/3/2010, veio apresentar resposta ao recurso, defendendo a sua total improcedência, terminando com as seguintes Conclusões:

         1. A Exma. Juiz a quo, na Douta Decisão, respeitou os ditames referentes ao princípio do in dubio pro reo;

                2. Consequentemente, não concorda o Arguido com o parecer do Digníssimo Magistrado do Ministério Público, pois coloca em causa os direitos deste, com a possível alteração da pena.

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O recurso foi admitido, em 15/4/2010.

Nesta Instância, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu, em 27/4/2010, douto parecer, segundo o qual “o recurso deve proceder, alterando-se a matéria de facto como vem proposto e condenando-se o arguido pelo crime referido.”

Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, o arguido, em 5/5/2010, exerceu o direito de resposta, tendo mantido a sua anterior posição.

         Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, foi designada data para conferência.

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II – Decisão Recorrida:

A) Julgam-se provados os seguintes factos:

Da  acusação pública:                                                                                                            1) No dia 10 de Junho de 2006, cerca das 11 H30, ocorreu um incêndio florestal que consumiu uma área de pelo menos 2 hectares de pasto, oliveiras e vinha, numa propriedade denominada XX..., pertença do ofendido B..., sita junto à estrada 555, estrada antiga que liga as localidades de Mata a Escalos, área desta comarca, causando um prejuízo de, pelo menos, € 1 000,00.                                                                                                             2) O referido criou perigo para, pelo menos, 150  oliveiras,  com um valor  unitário  de, também pelo menos, €50, 00,  e 50  pés de videiras, com um valor  unitário de, pelo menos, €5, 00.                                                                                                                                    3) O referido incêndio não tomou maiores proporções em virtude de ter sido combatido por bombeiros, designadamente fazendo uso de meio aéreo.                                                 4) Foi diagnosticada ao arguido “reacção depressiva em personalidade esquizóide” e a sua imputabilidade é atenuada.                                                                                                                                                                                *                                                                                  Outros  Factos:                                                                                                                   As  características do  tipo de  perfil do arguido  são a introversão, isolamento, perda de interesse, dificuldades  de  concentração  e  fadiga, sentimentos  de inferioridade, insegurança  e  inadequação, obsessões e pouca  habilidade  para  estabelecer  relações  interpessoais.                                                                                                                                            O processo de socialização do  arguido é desconhecido, sabendo-se que foi muito novo viver para a zona de Lisboa, onde casou e desenvolveu o seu percurso profissional como GNR.   Ao nível afectivo viveu com a esposa vários anos, tendo pelo menos uma filha dessa relação. Em virtude dos problemas desencadeados pelo alcoolismo crónico, veio a ocorrer a ruptura da relação conjugal, deixando de ter contactos com a filha e mulher desde essa data, há aproximadamente duas décadas.                                                                                                        Ao nível profissional, a patologia do arguido conduziu a um processo de expulsão da função pública, do qual resultou uma reforma compulsiva.                                                                       Na sequência destes factos, o arguido veio viver para os Escalos de Baixo, onde durante algum tempo contou com o apoio dos dois irmãos, nomeadamente na colaboração e acompanhamento numa desintoxicação alcoólica. Contudo, após alguns anos sem consumir álcool, veio a retomar o mesmo, situação na qual se encontra, tendo a família optado pelo afastamento e distanciamento afectivo.                                                                                            O arguido reside sozinho, em casa própria, no centro da aldeia de Escalos de Baixo.         A residência é uma moradia, que se encontra em estado de degradação, em virtude da ausência de cuidados na manutenção e limpeza da mesma, situação que tem originado alguma perturbação aos moradores residentes nas imediações do imóvel.                                       Ao nível económico, o arguido subsiste da reforma que aufere, de valor concretamente não apurado.                                                                                                              Durante vários anos trabalhou ao dia, por conta de outrem, desenvolvendo trabalhos na agricultura. Actualmente, em virtude do agravamento da sua patologia, não tem qualquer actividade profissional nem ocupação de tempos livres, refugiando-se em casa, de onde raramente sai, vivendo quase sem interacção social. Adopta uma postura de isolamento, evitando qualquer situação que o obrigue a comunicar.                                                                      A situação de abandono, de isolamento, e a ausência de factores de protecção, têm conduzido ao agravamento da sua saúde física e psíquica, afectada pelo quadro de dependência alcoólica.                                                                                                                         O  arguido  apenas sabe escrever  o seu  nome, não sendo  capaz sequer de ler.


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B) Não se provou (à excepção  dos  que  se  encontram  em  contradição  com os  assentes e dos prejudicados por estes):                                                                                                            1) No dia I0 de Junho de 2006, cerca das 11 H30, o arguido dirigiu-se a uma propriedade denominada XX..., pertença do ofendido B.... sita junto à estrada 555, estrada antiga que liga as localidades de Mata a Escalos, área desta comarca.               2) E uma vez ali, fazendo uso de um isqueiro que trazia consigo, o arguido ateou o fogo à vegetação ali existente, provocando, dessa forma, o incêndio florestal referido na matéria assente.                                                                                                                                       3) Ao atear o fogo da forma descrita, o arguido criou perigo para as pessoas e bens patrimoniais não pertença do primeiro, com o valor seguramente não inferior a € 20.000,00, o que sabia e queria.                                                                                                                                 4) O arguido actuou de modo livre e voluntário, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.                                                                                                                           5) No referido dia 10 de Junho de 2006, momentos antes da prática dos factos supra descritos e a cerca de 800 metros do local acima mencionado, na berma da referida estrada, o arguido já ateara, da mesma forma, o fogo, tendo apenas em consequência de tal conduta ardido algumas ervas secas, não criando dessa vez o citado perigo, e igualmente em data não concretamente apurada, mas seguramente no período compreendido entre finais do ano de 2005 e princípios de 2006, o arguido ateou, por três vezes e fazendo sempre uso de um isqueiro, o fogo a umas ervas secas existentes numa zona próxima do campo de futebol de Escalos de Baixo, provocando prejuízo insignificante e atingindo área que não foi possível determinar em concreto.

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III) O Tribunal fundou a sua convicção:                                                                                O  arguido negou  a prática  dos  factos  que  lhe  vêm  imputados, pronunciando-se – com  notória  dificuldade de expressão e depois  de  muita  insistência, por  banda do  tribunal, para que o arguido  compreendesse o que   estava  em causa,  nos seguintes  moldes: “Nunca deitei fogo a ninguém”, “Nunca ardi nada”, “Tinha vergonha”, reportando-se ao  comportamento  que   lhe  é  imputado  na acusação pública.                             Confrontado  com o  auto de reconstituição  de  fls. 61-64,  alegou  recordar-se  de  ter  estado com elementos da Polícia  Judiciária,  na sequência de uns  incêndios nos Escalos de  Baixo,  afirmando   que  tais  elementos   foram ter  consigo, limitando-se as  informações que  lhe prestou e  a que  se  refere  a reportagem  fotográfica de fls. 62-64 à  indicação  dos locais  onde trabalhou nessa altura, uma certa   «Tapada  da Rita», salvo equívoco  de  audição, atenta  a dificuldade de  verbalização por  parte deste  arguido.                                     Ouvido um dos Srs. Inspectores da Polícia Judiciária  que esteve presente   na  dita reconstituição – M… -, pelo mesmo foi  dito  ter  o arguido  indicado  os   locais  onde ateou  os  incêndios, sendo  um  próximo  da estrada de alcatrão  e o outro  num caminho de terra  batida.                                                                                                                              Como resulta de fls. 48, o arguido foi constituído como tal a 10 de Janeiro de 2007, altura em que, também, foi interrogado nessa qualidade.                                                                      Por seu lado, a reconstituição dos factos data de 23.04.2007.                                       A  este  respeito, importa  considerar  o  que  segue.                                                        Vem sendo considerado que o afirmado por qualquer pessoa perante uma   testemunha   do  processo, relacionado  com a  investigação,  com os meios de prova  obtidos  e  com as   diligências  efectuadas, desde que a  testemunha  não  refira,  como  prevê a lei, quaisquer  declarações  do arguido  ou de testemunhas que  não possam ser lidas  em  audiência de  julgamento, sobretudo  aquelas   que  importem a confissão por  parte do arguido  dos ilícitos  imputados, decorra  ou não  tal assunção de  culpa  de  declarações  formais  ou de conversas informais, pode  ser   valorado   processualmente.                                           O  Ac.  do STJ, de 23.09.1995 (BMJ, 445, 279) ajuizou no sentido de que  as   conversas informais  no  decurso de  uma  investigação  com diversas pessoas,  designadamente  com o arguido,  e as informações daí resultantes, podem ser  valoradas e não  são  uma  forma  de  contornar  o disposto  no  art.  356º, n.º 7  do C.P.Penal, a menos  que  se provasse  que  o agente  investigador  agiu deliberadamente  escolher  aquele  meio  para  evitar a proibição da leitura  das  declarações em  audiência.                                                    Por  seu lado,  o mesmo  STJ, no Ac. de 22.04.2004[1],  decidiu:                                               “(…)  as circunstâncias descritas  permitem o  enquadramento  legal  da  actividade   investigatória  dos  órgãos  de polícia  criminal – no caso, os  agentes da  GNR -  pois o que  se  mostra   ter  acontecido  - e  é o mais  natural -  é  que os  agentes  em causa  não tenham  crido  logo na primeira declaração  confessória  do  suspeito sem a  terem testado  nomeadamente  por  confronto  com outros meios de prova, maxime a reconstituição dos  factos, pois  é  do conhecimento  comum que  há “confissões   espontâneas” que, sem, mais,  desacompanhadas  de  outros  elementos  probatórios,  não merecem a menor  credibilidade, isto  é, não  são  o  bastante  para  fundar suficientemente  a  suspeita.                                                 Daí  que,  certamente  só  depois de  realizadas  tais  diligências  lhes tenha  surgido  “fundadamente” a suspeita  da  autoria  do(s) crime(s), tal como é   exigido pelo n.º 1, do  artigo  59º, do CPP.                                                                                                                         E, a ser assim, só a  partir  desse momento  - isto é,  do momento  em que a  suspeita  passou a ser  razoavelmente  fundada -  se  impunha, legalmente,  a suspensão “imediata”  do acto e a constituição  formal do   recorrente, até  então mero  suspeito, como  arguido, o que  foi  feito.                                                                                                                                     Até  então, o processo de  obtenção  das   diversas declarações, incluindo  as  do então  suspeito e ora  arguido,  logrou  cobertura  legal, nomeadamente, nos artigos 55º, n.º 2, 249º, n.os  1 e 2 al. a) e b)  do  CPPenal.                                                                                                          Porém, no caso vertente, a diligência de reconstituição do facto teve lugar  após   o arguido ter  sido  constituído  como  tal, logo, numa fase  em que a Polícia  Judiciária  já  não  tinha  dúvidas sobre a  culpabilidade  do arguido.                                                                      Eis  porque, ao ser inquirido o referido agente  da  Policia  Judiciária sobre o acontecido  na dita diligência de reconstituição do facto, tenha  deposto  sobre  matérias  proibidas – factos  que foram transmitidos pelo arguido -, e não sobre o resultado  da  sua  percepção directa,  colhida  durante a  realização do  auto respectivo[2] [3].                                                   Por outro lado, nos termos do art. 150º, do C.PPenal, “quando houver  necessidade de determinar se um facto poderia  ter  ocorrido de certa  forma, é admissível a sua  reconstituição. Esta consiste na reprodução, tão  fiel  quanto possível,  das  condições  em que se  afirma ou  se  supõe  ter  ocorrido o  facto e na  repetição do   modo da realização do mesmo”[4].                                                                                                                                       Ora, no caso  dos  autos, a  diligência de prova  em apreço  não se  justificou por  uma questão  de necessidade, mas  antes  para documentar, sob  essa  forma, a  confissão do arguido, pois  que   não  se tendo  descoberto  qual   o  foco  do incêndio,  qualquer ponto  da  área  ardida poderia  ser  considerado  como tal.                                                                                           De referir, ainda, que, face às manifestas  dificuldades  de  expressão  e  compreensão  do  arguido,  ficam-nos  sérias dúvidas  acerca da  capacidade  do mesmo   para  entender  o que  lhe  havia  sido questionado.                                                                                                      Refira-se, também, que  este  arguido  já  nem consegue  ler, limitando-se a  escrever o seu  nome.                                                                                                                                             Nos termos do n.º 1 do artigo 355.º, do C.P.Penal, não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formar a convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência. O n.º 2 ressalva as provas contidas em actos processuais cuja leitura em audiência seja permitida, nos termos dos artigos seguintes.                        O artigo 356.º, do mesmo diploma, regula a leitura permitida de autos e declarações, estatuindo o n.º 7 que os órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações cuja leitura não for permitida, bem como quaisquer pessoas que, a qualquer título, tiverem participado da sua recolha, não podem ser inquiridas como testemunhas sobre o conteúdo daquelas.                                                                                                                                       Ponto é que não fossem valorados como provas as revelações do arguido, nessa qualidade, feitas durante a realização dessas diligências.                                                                  E não se diga que o direito de defesa do arguido sofre qualquer redução com a produção da referida prova testemunhal, dado que esta teve lugar em audiência de julgamento, onde o arguido a pode contrariar[5].                                                                         Portanto, não se pode considerar inconstitucional, por violação das garantias de defesa do arguido, a norma constante do n.º 1, do artigo 32º, da Constituição da República[6], tomar  em conta as declarações feitas pelo arguido extraprocessualmente, em "conversas informais" ou no decurso de uma "reconstituição do facto", porque se trata de valorar depoimentos de testemunhas em audiência de julgamento.                                                             Porém, no caso dos  autos, a diligência probatória teve lugar, exclusivamente,  após  a  tomada de  declarações  ao  dito  arguido, nessa qualidade, o  que, a ser valorado, na parte  confessória, consubstanciaria   uma  forma  de   ludibriar  a proibição de  prova  prevista  no  art.  356º, n.º 7, do  C.P.Penal.                                                                                                         Como  se  decidiu  no acórdão  da RC, de  01.04.2009[7], certo que a reconstituição prevista no artº 150º, pela sua própria natureza, pode envolver a participação activa dos arguidos que a tal se disponham livremente, mormente através da verbalização ou gesticulação sobre o que entende dever ser replicado no acto processual, para que corresponda fielmente ao sucedido, sendo que essa condição não descaracteriza o acto, nem o transforma em prova por declarações.                                                                                           Como refere o STJ: «são diligências diferentes, ainda que possam ser complementares, as declarações prestadas e a reconstituição dos factos. Na primeira, é o discurso do declarante, de teor eminentemente verbal, que está em foco e é valorado; na segunda é o modus faciendi que está em causa e nele a pessoa que procede à reconstituição mostra como fez, refazendo no próprio local todos os passos da sua acção e se a reconstituição é reduzida a auto, esse auto não é um auto de declarações, não obedece à lógica dele nem a ele se reconduz. A reconstituição é uma revivescência do facto e da sua realização e se, de uma forma geral, não prescinde de palavras, estas não constituem o ponto crucial da reconstituição, visto que a linguagem gestual e corporal assume aqui uma primacial relevância»[8].                                                                                                                Porém, daí  não decorre  necessariamente que a reconstituição efectuada ofereça valor probatório autónomo relativamente ao arguido[9], porquanto, no caso  concreto, aparece  desacompanhada de qualquer outro elemento de prova objectiva  que ligue, incontornavelmente, o  arguido à  prática dos factos: ao  que acresce, como  já  dito,  que  temos muitas  dúvida acerca da  fiabilidade   da expressão e  compreensão do  arguido,  no   referido  acto  documentado  a  fls.  61-64. Portanto,  fica a dúvida  séria  acerca da   autoria dos  factos por parte  do arguido.                                                                                                                          A não se decidir, em termos de facto, desta  forma,  violar-se-ia  o princípio in dubio pro  reo,  consubstanciado  nestes termos:  «O Tribunal a quo chegou a um estado de dúvida insanável e, apesar disso, escolheu a tese desfavorável ao arguido»[10].                                                                                                                                          Como se refere no Ac. RPt. de 28-01-2009[11], certo é que a convicção do tribunal tanto pode assentar em prova directa do facto como em prova indiciária da qual se infere o facto a provar.                                                                                  É legítimo o recurso a presunções simples ou naturais, uma vez que são admissíveis em processo penal as provas que não forem proibidas por lei (artigo 125.º do Código de Processo Penal) e o artigo 349.º do Código Civil prescreve que as presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido, sendo as presunções judiciais admitidas nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (artigo 351.º do Código Civil).                                                                                                                                                                           Depois, as presunções simples ou naturais (as aqui em causa) são simples meios de convicção, pois que se encontram na base de qualquer juízo. O sistema probatório alicerça-se em grande parte no raciocínio indutivo de um facto conhecido para um facto desconhecido; toda a prova indirecta se faz valer através desta espécie de presunções.                      “As presunções simples ou naturais são, assim, meios lógicos de apreciação das provas; são meios de convicção. Cedem perante a simples dúvida sobre a sua exactidão no caso concreto”[12].                                                                                               A prova indiciária é uma prova indirecta, de suma importância no processo penal, pois são mais frequentes os casos em que a prova é essencialmente indirecta do que aqueles em que se mostra possível uma prova directa. Da prova indiciária induz-se, por meio de raciocínio alicerçado em regras de experiência comum ou da ciência ou da técnica, o facto probando. A prova deste reside fundamentalmente na inferência do facto conhecido – indício ou facto indiciante – para o facto desconhecido a provar, ou tema último da prova. É do facto indiciante que se infere um facto conclusivo quanto ao facto probando, juridicamente relevante no processo.                                                                                                                            Não se pode ignorar, porém, que o recurso a este tipo de prova consente erros, na medida em que a convicção terá que se obter através de conclusões baseadas em raciocínios e não directamente verificadas e, por outro lado, um indício revela, com tanto mais segurança o facto probando, quanto menos consinta a ilação de factos diferentes. Ou seja, quando um facto não possa ser atribuído senão a uma causa – facto indiciante –, o indício diz-se necessário e o seu valor probatório aproxima-se do da prova directa. Quando o facto pode ser atribuído a várias causas, a prova de um facto que constitui uma destas causas prováveis é também somente um indício provável ou possível. Para dar consistência à prova será necessário afastar toda a espécie de condicionamento possível do facto probando menos uma. A prova só se obterá, assim, excluindo hipóteses eventuais divergentes, conciliáveis com a existência do facto indiciante.                                                    Ora, o princípio in dubio pro reo, enquanto expressão, ao nível da apreciação da prova do princípio político-jurídico da presunção de inocência, traduz-se, precisamente, na imposição de que um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido – a dúvida resolve-se a favor do arguido.                                                                                 Tal princípio[13], como regra de decisão da prova, é solução que resulta de um conjunto de factores em verificação cumulativa:                                                                                                                                                                    - Necessidade de pôr fim ao processo, com decisão definitiva que não represente, do ponto de vista da paz jurídica do arguido, uma demora intolerável;                                                                                                                                  - A inadmissibilidade da pena de suspeição;

- A opção pelo modus probandi de livre apreciação da prova ou livre convicção do tribunal, necessariamente objectivável e motivável.

- A possibilidade do surgimento de dúvidas, resistentes à prova e impeditivas da tal convicção, na verificação dos enunciados factuais abrangidos pelo objecto do processo;

- A consciência da diferença entre o processo criminal e a lide civilística, que impede a transferência para o primeiro da solução do ónus de prova, típica de um processo de partes;

- A convicção de que o Estado não deve exercer o seu ius puniendi quando não obtiver a certeza de o fazer legitimamente.

Daí que o princípio in dubio pro reo deve ser perspectivado e entendido, como remate da prova irredutivelmente dúbia, destinado a salvaguardar a legitimidade da intervenção criminal do poder público. O Estado não deve exercer o seu ius puniendi quando não obtiver a certeza de o fazer legitimamente.

Partindo de tais considerações, entendendo-se não ter sido produzida prova indiciária (sendo certo que a prova directa se encontra totalmente arredada) necessária ou suficientemente consistente, coerente e sólida de forma a poder o Tribunal, com recurso às ditas presunções naturais, concluir pela culpabilidade do arguido, arredando as dúvidas existente sobre a mesma, pairando uma séria incerteza quanto à sua participação/autoria dos factos. Tal estado de incerteza terá de ser valorado a favor do arguido, com aplicação do princípio in dubio pro reo[14].                                                          No que tange aos  danos decorrentes do incêndio, valorámos  também o relatório de fls. 65-66, confirmado pela  testemunha C…, mestre   florestal (SEPNA), que  afirmou terem  sido  feitas  as  contas de   acordo com tabelas que  vêm sendo  seguidas para  este   tipo de  avaliações.                                               Esta testemunha, porém, não  procedeu à  contagem precisa das espécies ardidas, nem  daquelas  que   ficaram em perigo de arder, acabando por  reconhecer  que o  valor    dado («não inferior  a  €20 000, 00) o foi  por    aproximação, como  é  feito geralmente.                                                                                                                De qualquer modo, o  conteúdo  útil  deste  depoimento   traduziu-se  na  informação  acerca do   valor de  mercado dos pés de oliveira  ardidos, que  situou precisamente  no  mínimo  consignado  na matéria  assente. Considerando a experiência da testemunha a este respeito, reputamos   este   valor  mais   consentâneo com a realidade, mesmo por  confronto com o  depoimento da testemunha  R…. Com efeito, esta  testemunha   revelou  muitas   dúvidas acerca do valor das ditas espécies, não já quanto  à contagem do  número de  espécies, que referiu serem, pelo menos,  150  espécies e as  ardidas , no  mínimo,  80.                           Quanto aos pés de videira  e seu  valor, considerámos o depoimento da testemunha  R..., não  contraditado.                                                                                                                                                                   Relativamente ao  estado  de  sanidade   mental  do arguido, também  valorámos o relatório de observação psicológica de fls. 101 e 102.                                                                                                                 Atendeu-se, igualmente,  às fotografias de fls. 36 a 42 e 44 a 45.                                                                            A  testemunha  A…  limitou-se  a referir,  de  útil,  que  se apercebeu  da presença  do  arguido nas imediações  do local onde,  mais   tarde, veio a saber ter   tido  origem  o incêndio de  que   curamos  neste  processo.                                                                                                                                              A  testemunha  N... apenas  se  recordava  de ter  chamado  atenção  da testemunha  anterior   para um foco de  incêndio  menor  de que se apercebeu junto  à oficina  daquela.                                                                                                                                                                                                           As  testemunhas E… e D… nada  viram, nem relativamente a  episódios alegadamente antigos, de  incêndio  deflagrado  pelo arguido.                                                   A testemunha G…, militar  da  GNR,   fez a participação  do   incêndio  em  11.06, confirmando  a área  ardida  (1, 7ha), composto  de . oliveiras, videiras e pasto.                                                        A  ausência de  antecedentes  criminais  conhecidos, resulta  do  CRC de  fls. 148.                                          Quanto  à  situação pessoal do  arguido,  além das suas declarações, valorámos, também, o  relatório  social de   fls.  186-188.


*

B) O Direito:

Vem imputada ao arguido a prática de factos susceptíveis de integrar, a previsão do tipo legal de crime de incêndio, previsto e punido pelo artigo 272.º/1, a), do C.Penal, na  versão   anterior  à  revisão ocorrida   com a  Lei   n.º 59/2007.

Aí se  dispõe:

“Quem provocar incêndio de relevo, nomeadamente pondo fogo a edifício ou construção, a meio de transporte, a floresta, mata, arvoredo ou seara e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, será punido com pena de prisão de 3 a 10 anos”.

Tipifica esta norma a acção dolosa e criação, também, dolosa, de perigo: quer-se e provoca-se um incêndio, desejando-se e aceitando correr o risco do perigo que está associado à acção[15].

Estamos perante um tipo legal de crime inserido no capítulo dos crimes de perigo comum.

A Lei penal relativamente a certas condutas que envolvem grandes riscos, basta-se com a produção do perigo (ponto 31 do Preâmbulo do Código Penal de 1982), punindo-se logo o perigo, porque tais condutas são de tal modo reprováveis que merecem imediatamente censura ético-social.

A conduta do agente nos crimes de perigo comum, de acordo com as regras da experiência comum e os conhecimentos existentes, há-de criar uma situação ou traduzir-se num comportamento, que possa originar um dano, não controlável e causador de alarme social.

A protecção dos bens jurídicos começa, aqui, logo que o perigo se manifesta, não podendo o legislador esperar que o dano se produza, pelo que a protecção do bem jurídico tem de recuar para momentos anteriores, ou seja para o momento em que o perigo se manifesta, não se exigindo para a caracterização deste tipo legal a existência concreta de qualquer dano.

Não deixa, no entanto, de se exigir, para a sua consumação, que o agente produza, no caso, de forma intencional, um resultado, qual seja o incêndio de relevo.

Elementos constitutivos deste tipo legal, são:

- a provocação de incêndio de relevo;

- que crie perigo;

- para a vida ou integridade física de outrem ou em bens patrimoniais alheios de valor elevado.                                                                                                                                  O conceito “incêndio de relevo”, introduzido através do Decreto-Lei n.º 48/95, nem sempre será fácil de fixar, dada a sua indeterminabilidade.

No entanto, a própria norma contida no artigo 272.º/1 do Código Penal, dá-nos a possibilidade de o caracterizar, através da enumeração exemplificativa, do provocar incêndio, em edifício ou construção, meio de transporte, floresta, mato arvoredo ou seara.

Incêndio de relevo, será o que causa alarme social, o que, que não consiga ser extinto senão pela intervenção dos bombeiros e que esta intervenção seja determinante no evitar a sua propagação.

Não bastará, no entanto, a mera intervenção dos bombeiros, será necessário que essa intervenção se justifique, que seja determinante no evitar da propagação[16].

No incêndio de relevo, para além da ocorrência perigosa, terá de se desenhar uma potencialidade perigosa, para se concluir se é ou não de relevo, terá o Tribunal de avaliar em cada caso concreto da relevância ou não do incêndio[17].

Como se refere no Ac. do STJ de 12-09-2007[18], o critério do «relevo», como resulta da verificação empírica das regras de experiência, é um critério quantitativo; a qualificação do incêndio como «de relevo» partirá de um critério de dimensão e extensão e pressupõe «em definitivo uma tónica de excesso»[19]. Por isso, as modalidades de acção que a lei indica – incêndio em edifício, meio de transporte, floresta, mata ou arvoredo ou seara; incêndio será o fogo que lavra com intensidade ou extensão. Diversamente, não será incêndio, no sentido conceitual-normativo, mas uma outra realidade do mundo das coisas, uma combustão de elementos que, embora volátil, não se apresenta, no contexto, como indomável ou incontrolável.                                                                                         O entendimento a dar à expressão “bens patrimoniais de valor elevado”, que veio substituir a antiga fórmula “bens patrimoniais de grande valor”, resulta agora claro, face à noção contida no artigo 202.º/a) Código Penal, “aquele que exceder 50 UCs., no momento da prática do facto”[20].

No que diz respeito ao crime de incêndio dos autos, o valor  apurado excede o  necessário para  perfazer o mínimo   consignado  no  tipo penal  em apreço, na  redacção  anterior à Lei  n.º  59/2007.

Com efeito,  sendo a unidade de conta    vigente  até   31 de Dezembro de  2006  de  €89, 00,  o   valor  elevado  teria   que  exceder   os  €4450, 00. Ora, tendo os prejuízos  reais  e potenciais   ascendido a, pelo  menos, €7750, 00, tal  condição  legal estava  preenchida.

Porém, no  caso vertente, depara-se-nos o desconhecimento  da autoria dos  factos.

Assim sendo, não se tendo apurado o cometimento, pelo arguido, de acto punido criminalmente, desde logo há que afastar a possibilidade de aplicação ao mesmo de uma pena.”

                                                                       ****                                                                                      

III. Apreciação do Recurso:

Poderes de cognição deste tribunal. Objecto do recurso. Questões a examinar:

O objecto de um recurso penal é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso – artigos 403.º e 412.º, n.º 1, ambos do C.P.P. e Ac. Do Plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de Outubro.

Está bem delimitada a questão a conhecer:

- Saber se há erro de julgamento relativamente aos factos dados como não provados nos pontos 1 a 4 da alínea B), de fls. 222 do acórdão recorrido, e se, por isso, os mesmos devem ser dados como provados, por haver provas que impõem diversa decisão de facto, daí decorrendo a condenação do arguido.

                                               ****

Há duas formas de impugnação da matéria factual: por um lado, a invocação dos vícios previstos no artigo 410º, n.º 2, alíneas a). b) e c), e, por outro, os requisitos da impugnação – mais ampla - da matéria de facto a que se refere o artigo 412º, n.º 3, alíneas a), b) e c), todos do CPP.                                                                                                                                                      ****                                                           Estabelece o art. 410.º, n.º 2, do CPP, que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:                                                                                             a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;                             b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;                                                                                                            c) Erro notório na apreciação da prova.                                                               Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.                                                                                                             A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito.                                                      A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.   Tal ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.                                                             Finalmente, o “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do artigo 410.º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.                                                                                  O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes).          Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cf. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341).                                                                                               Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cf. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74).                                                    Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.        

                                                       ****                                                            Por sua vez, o erro de julgamento, consagrado no artigo 412º, nº e, do CPP, ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.                                                                            Aqui, nesta situação de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância, em conjugação com os restantes elementos probatórios existentes nos autos.                          Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.º 3 e 4 do art. 412.º do CPP.                                                                                                                    Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.              E é exactamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, é que se impõe a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artigo 412.º, n.º3, do C.P.Penal:                                              «3.Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:                                                                             a)- Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;               b)-As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;                          c)-As provas que devem ser renovadas».                                                             A dita especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados, só se satisfazendo tal especificação com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.

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Pois bem, o recorrente aponta, claramente para um erro de julgamento, na medida em que indica que a reconstituição do facto constante dos autos e o depoimento da testemunha M... impõem decisão diversa da obtida.

Na verdade, a circunstância do recorrente discordar da valoração da prova feita pelo tribunal recorrido pertence ao domínio da impugnação da convicção do tribunal a quo, questão a ser analisada de acordo com o disposto  nos termos do artigo 412.º, n.º 3 e n.º 4, do CPP.

Como se observa no Acórdão do S.T.J. de 26/1/2000, publicado na Base de Dados da DGSI (www.dgsi.pt) sob o n.º SJ200001260007483: “Não são os sujeitos processuais (nem os respectivos advogados) quem fixa a matéria de facto, mas unicamente o Tribunal que apura os factos com base na prova produzida e conforme o princípio da livre convicção (artigo 127.º, do Código de Processo Penal), aplicando, depois, o direito aos mesmos factos, com independência e imparcialidade”.

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No caso em apreço, a decisão recorrida apresenta uma incorrecta apreciação da prova, no que tange à credibilidade que mereceu o depoimento prestado durante o julgamento por um elemento da Polícia Judiciária, em conjugação com o valor que não foi atribuído à reconstituição do facto, como pretende o recorrente?

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O Tribunal a quo desvalorizou, em absoluto, a reconstituição do facto constante dos autos (auto de reconstituição de fls. 61 a 64), assim como o depoimento da testemunha M..., pelas seguintes razões:

a) a diligência de reconstituição do facto teve lugar após o arguido ter sido constituído como tal, numa fase em que a Polícia Judiciária já não tinha dúvidas sobre a sua culpabilidade;

b) a dita diligência não se justificou por uma questão de necessidade, mas antes para documentar a confissão do arguido;

c) o tribunal a quo ficou com dúvidas sobre a capacidade do arguido entender o que lhe foi perguntado, durante tal diligência;

d) a partir do momento em que se valorizassem as declarações de M..., estaria a ser ludibriado o previsto no artigo 356.º, n.º 7, do CPP.

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Importa, liminarmente, reter que o artigo 150.º, do Código de Processo Penal consagra o seguinte:                                                                                 “1 — Quando houver necessidade de determinar se um facto poderia ter ocorrido de certa forma, é admissível a sua reconstituição. Esta consiste na reprodução, tão fiel quanto possível, das condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido o facto e na repetição do modo de realização do mesmo”.                          Daqui decorre que a reconstituição é uma aproximação ao real acontecido, através de uma tentativa de reconstrução do facto ilícito praticado com intuitos indiciários ou probatórios. É um meio de prova e, como tal, com objectivos potencialmente incriminatórios.                                                                       Como se concilia a pretensão punitiva do Estado através do uso deste meio de prova e o privilégio contra a auto-incriminação?                                             Como todos sabem, a reconstituição não é uma diligência em que o arguido tenha a obrigação de colaboração.                                                        E, precisamente, na medida em que supõe uma participação activa do arguido na reconstrução do ilícito, passa ser um facere que pode contrariar o privilégio contra a auto-incriminação, sendo certo que o mesmo se encontra na sua inteira disponibilidade.

Revertendo ao caso dos autos, bastante conciso sobre a questão suscitada no recurso, entendemos ser o Ac. do S.T.J. de 14/6/2006, Processo P06P1574, in www.dgsi.jstj, em que se considerou o que a seguir se transcreve:     

Nos termos do n.º 1 do artigo 355.º do Código de Processo Penal, não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formar a convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência. O n.º 2 ressalva as provas contidas em actos processuais cuja leitura em audiência seja permitida, nos termos dos artigos seguintes.                                                                                                                         O artigo 356.º regula a leitura permitida de autos e declarações, estatuindo o n.º 7 que os órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações cuja leitura não for permitida, bem como quaisquer pessoas que, a qualquer título, tiverem participado da sua recolha, não podem ser inquiridas como testemunhas sobre o conteúdo daquelas.                            No que concerne ao inspector da Polícia Judiciária e ao funcionário da Guarda Florestal, trata-se de depoimentos que, diversamente do que alega o recorrente, não reproduzem quaisquer declarações do recorrente prestadas em inquérito, antes incidem sobre a reconstituição dos factos, em que o recorrente colaborou, sendo um meio de prova que não se confunde com a prestação de declarações.                                                                          É inequívoco que as referidas testemunhas não podiam ser inquiridas sobre o conteúdo de quaisquer declarações do arguido prestadas na fase do inquérito, dado que a sua leitura não era permitida, face ao disposto no artigo 357.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, tendo o tribunal colectivo consignado no acórdão a impossibilidade de valoração dessas declarações.                                                                                                                                 E, na mesma linha, estava vedada a valoração de revelações feitas pelo arguido em conversas informais, por decorrência do princípio da legalidade do processo consagrado no artigo 2.º do Código de Processo Penal.                                                                                      Mas nada impedia que as testemunhas fossem ouvidos sobre outras diligências realizadas no inquérito para apuramento da verdade, designadamente sobre a reconstituição dos factos, meio de prova admitido no artigo 150.º do Código de Processo Penal.                        A circunstância de o arguido ter participado na reconstituição dos factos não tem o efeito de fazer corresponder esse acto a declarações suas para se concluir pela impossibilidade de valoração daquele meio de prova.                                                                              Na verdade, a reconstituição dos factos, como meio de prova, tem por finalidade verificar se um facto poderia ter ocorrido nas condições em que se afirma ou supõe a sua ocorrência e na forma e na forma da sua execução – Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, pg. 196.                                                                                     Ponto é que só fossem valorados como provas das testemunhas sobre o que observaram, e não as revelações do arguido feitas durante a realização dessas diligências, inculcando a fundamentação da decisão da matéria de facto que esse princípio foi observado.            E não se diga que o direito de defesa do arguido sofreu qualquer redução com a produção da referida prova testemunhal, dado que esta teve lugar em audiência de julgamento, onde o arguido a poderia ter contrariado.                                                             No sentido de que os agentes da Polícia Judiciária que procederam à reconstituição do crime podem depor como testemunhas sobre o que se terá passado nessa reconstituição, pronunciaram-se os acórdãos deste Supremo Tribunal de 11-12-1996, BMJ 462, pg. 299, de 22-4-2004, CJ, STJ, XII, tomo II, pg. 165, e de 30-03-2005, proc. n.º 552/05. Este, sendo do mesmo relator, foi seguido de perto. (…)                                                                                              Porque os depoimentos das referidas testemunhas não incidiram sobre declarações prestadas pelo arguido, não estava vedada pelo n.º 7 do artigo 356.º do Código de Processo Penal, a inquirição das mesmas e, consequentemente, a valoração dos depoimentos.”                                                                                                                              ****

Aliás, tal acórdão encontra-se na esteira de um outro do S.T.J., de 20/4/2006, Processo n.º 06P363, in www.dgsi.jstj, em que pode ser lido o seguinte:

“…os órgãos de polícia criminal só não podem depor em julgamento relativamente ao conteúdo de declarações que tiverem recebido e cuja leitura não seja permitida, como será o caso das declarações anteriormente prestadas pelo arguido quando ele opte pelo silêncio no julgamento, tudo nos termos dos artigos 356.º, n.º 7, 357.º e 343.º, n.º 1, todos do CPP, mas não já relativamente a factos de que tenham conhecimento directo obtido por meios diferentes das declarações de arguido no decurso do processo.                                                                     Assim, entre outros, os Acórdãos de 11/12/96, Proc. n.º 780/96 - 3.ª (relator: Relator: Cons. Flores Ribeiro); de 22/5/97, Proc. n.º 152/97 - 3.ª (Cons. Abranches Martins); de 22/4/04, Proc. n.º 902/04 - 5ª (Relator: Cons. Pereira Madeira); de 15/1/05, Proc. n.º 3276/04 - 3.ª, este relatado pelo Conselheiro Henriques Gaspar, tendo já sido referido a propósito de recurso interlocutório da arguida e, na parte que aqui interessa, dizendo o seguinte: «Vista a dimensão da reconstituição do facto como meio de prova autonomamente adquirido para o processo, e a integração (ou confundibilidade) na concretização da reconstituição de todas as contribuições parcelares, incluindo do arguido, que permitiram, em concreto, os termos em que a reconstituição decorreu e os respectivos resultados, os órgãos de polícia criminal que tenham acompanhado a reconstituição podem prestar declarações sobre o modo e os termos em que decorreu; tais declarações referem-se a elementos que ganham autonomia, e como tal diversos das declarações do arguido ou de outros intervenientes no acto, não estando abrangidas na proibição do art. 356.º, n.º 7 do CPP.»

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Não conhecemos jurisprudência do S.T.J mais recente que se desvie da orientação acima mencionada.

Mais recentemente, este Tribunal da Relação de Coimbra, por Acórdão de 2/4/2008, Processo n.º 1541/06.1PBAVR, relatado pelo Juiz Desembargador Fernando Ventura, in www.dgsi.pt, decidiu no mesmo sentido, conforme consta do respectivo Sumário:                                                                                             “(…)                                                                                                         II. - Os órgãos de polícia criminal que recolham declarações cuja leitura não seja permitida não ficam inibidos de deporem como testemunhas mas sim, e apenas, relativamente ao conteúdo daquelas declarações. Excluídas do impedimento constante do artº 356º, nº7, do CPP ficam as percepções obtidas em todos os actos processuais que não sejam interrogatórios ou inquirições, mesmo que neles tenham participado arguidos ou testemunhas. Assim acontece, como tem reconhecido a jurisprudência do STJ, com a reconstituição do facto, em que o testemunho do referido agente da Polícia Judiciária resulta de conhecimento directo sobre o que se passou nesse acto, ganhando assim autonomia, pois nessa parte não envolve a repetição de declarações do arguido.

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Por consequência, devemos afirmar que só nos casos em que tenha sido colocada em causa a legalidade da reconstituição dos factos é que esta não deverá ser valorada de modo positivo.                                                                       Saliente-se que a defesa do arguido, ao longo do processo, nunca afirmou que este tivesse sido determinado a participar naquela “por qualquer forma de condicionamento ou perturbação da vontade, seja por meio de coacção física ou psicológica, que se possa enquadrar nas fórmulas referidas como métodos proibidos enunciados no artigo 126.º, do CPP”, pelo que nenhuma razão há para desvalorizar a reconstituição dos factos constante dos autos e o depoimento da testemunha M....

Aliás, não se percebem as dúvidas do Tribunal a quo, no que diz respeito á capacidade do arguido entender o que ocorreu durante a reconstituição dos factos.

Tais dúvidas só teriam razão de ser caso fosse colocada em causa a credibilidade da testemunha M..., o que não aconteceu.

É preciso ter presente que o processo penal não pode ser visto apenas sobre o prisma dos direitos do arguido, o que é, muitas vezes, esquecido. Tem de ser analisado, antes, como um todo, destinado à boa administração da justiça.

E aqui entronca o princípio de que os intervenientes na investigação criminal desempenham as suas funções com respeito pelo princípio da legalidade e de acordo com as regras deontológicas inerentes à sua função.

Tal é a regra, sob pena de nenhuma segurança existir no sistema jurídico e deste ser, por essa via, completamente desvalorizado.

Logo, a menos que seja demonstrado que a investigação se guiou por más práticas (leia-se, violação dos direitos do arguido, nomeadamente através de “prova fabricada”), não há razão para colocar em dúvida o depoimento de um agente da autoridade, ajuramentado nos termos legais, só porque o arguido, em julgamento, nega os factos ou se exprime com dificuldade.

Enfatize-se que o arguido nunca sequer suscitou tal questão ao longo do processo.

Aliás, se repararmos nas fotografias de fls. 62 a 64, obtidas na reconstituição dos factos, no que tange à indicada na foto 1, consta “J... a indicar o local onde colocou o 1º foco de incêndio, cujas fotografias se encontram a fls. 26 e 27”, no que diz respeito à foto 2, consta “Idem”, no que toca à foto 3, consta “J... a indicar o local onde colocou fogo na propriedade de R...”, no que concerne à foto 4, consta “Idem”.

Todavia, já quanto à foto 5, consta “Local onde existiu uma oliveira que ardeu e no qual o J... tem dúvidas se colocou ou não incêndio”, e, relativamente à foto 6, consta “Idem”.

 Como se verifica do que é referido a propósito das duas últimas fotografias, não está sequer implícito o desejo de, sem mais, “obter uma confissão”. 

Se assim fosse, não seria feita alusão a “dúvidas”…
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O Tribunal a quo entendeu que já não havia sequer necessidade do auto de reconstituição, pois a entidade policial estava já convencida da culpabilidade do recorrente, sendo verdade que o mesmo havia sido antes constituído arguido.

Ora, a lei não impede que haja reconstituição do facto, após a constituição de arguido – ver, nesse sentido, Simas Santos e Leal Henriques, CPP anotado, 2ª edição, 1999, I Volume, pág. 794.  

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É manifesto, assim, que a prova constante dos autos impõe decisão diversa da constante da decisão ora em crise.

Pelo exposto, nos termos do artigo 431.º, als. a) e b), do CPP, face ao reexame das provas efectuado, há que dar como provados os pontos 1 a 4 da alínea B), indicados no acórdão recorrido, à excepção do montante dos bens patrimoniais em relação aos quais foi criado perigo, aceite pelo recorrente na Motivação, conforme resulta expressamente de fls. 260.

 Diga-se, ainda, que não vislumbramos qualquer nulidade do acórdão, nos termos apontados pelo recorrente, na sua conclusão n.º 18.

Com efeito, à decisão recorrida não falta a exposição dos motivos que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

Simplesmente, a prova existente não foi devidamente valorada, como acima ficou expresso.

Vejamos, pois, as alterações a introduzir.

O facto provado n.º 1 passará a ter a seguinte redacção:                             1) No dia I0 de Junho de 2006, cerca das 11 H30, o arguido dirigiu-se a uma propriedade denominada XX..., pertença do ofendido B.... sita junto à estrada 555, estrada antiga que liga as localidades de Mata a Escalos, área desta comarca.

Por sua vez, o facto provado n.º 2, passará a ser o seguinte:                                         2) E uma vez ali, fazendo uso de um isqueiro que trazia consigo, o arguido ateou o fogo à vegetação ali existente, provocando, dessa forma, o incêndio florestal referido na matéria assente.

Além disso, o facto provado n.º 3 passará a ter o seguinte teor:                                            3) Ao atear o fogo da forma descrita, o arguido criou perigo para, pelo menos, 150 oliveiras, com um valor unitário de, também pelo menos, cinquenta euros, e 50 pés de videiras, com um valor unitário de, pelo menos, cinco eu ros.

Por fim, o facto provado n.º 4 será o seguinte:                                                                 4) O arguido actuou de modo livre e voluntário, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.                                   

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Em consequência do exposto:
a) Os actuais factos provados n.º 3 e n.º 4 passarão a ser, respectivamente, os n.º 5 e 6;
b) O actual facto não provado n.º 5 passará a ser o n.º 1.
c) Haverá um novo facto não provado, com o n.º2, cujo teor será “o valor dos bens susceptíveis de virem a ser atingidos era seguramente não inferior a 20.000 euros”
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Aqui chegados, dúvidas não há de que o arguido incorreu na prática de um crime p. e p. pelo artigo 272.º, n.º 1, al. a), do C. Penal, na redacção anterior à Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro.                                                                           Portanto, impõe-se agora proceder à determinação da medida da pena concreta a aplicar ao arguido, e, assim sendo, importa, antes de tudo o mais, questionar sobre se caberá a este Tribunal proceder a tal determinação.              A jurisprudência dos tribunais superiores, sobre tal matéria, não é unânime.

Quanto a esta matéria, leia-se o recente Acórdão do TRL, de 21/1/2010, Processo 98/05.5JELSB.L1-9, relatado pelo Exmo. Desembargador Abrunhosa de Carvalho, in www.dgsi.pt.jtrl:

 A maioritária defende que a determinação da espécie e da medida concreta da pena a aplicar incumbe ao tribunal a quo, argumentando que só assim se pode cumprir o princípio do duplo grau de jurisdição acolhido no art. 32º/1 da CRP.                                                                                                                                                           Outra, alheando-se desta tese, mesmo sem apontar qualquer outra, procede às operações necessárias para aquele fim.                                                                                                                                                 Outra, ainda, a que perfilhamos, entende que o direito ao recurso em matéria penal (duplo grau de jurisdição), inscrito constitucionalmente como uma das garantias de defesa, significa e impõe que o sistema processual penal deve prever a organização de um modelo de impugnação das decisões penais que possibilite, de modo efectivo, a reapreciação por uma instância superior das decisões sobre a culpabilidade e sobre a medida da pena.                                                                                                                                                                Assim, ao tribunal ad quem, ao reexaminar a causa, tal como lhe assiste a faculdade de passar de uma decisão condenatória para uma decisão absolutória, assistir-lhe-á a de passar de uma decisão absolutória para uma decisão condenatória e, neste último caso, dispondo dos necessários elementos, fixar a espécie e medida da pena.                                                                                                                                               No sentido que perfilhamos, cf. a declaração de voto subscrita pelo Sr. Desembargador Ernesto Nascimento, junta ao Ac. do TRP de 05/03/2008, processo 0746465, in www.dgsi.pt, donde citamos: “O direito ao recurso em Processo Penal tem que ser entendido em conjugação com o duplo grau de jurisdição e, não, perspectivado, como uma faculdade de recorrer – sempre e em qualquer caso – da 1ª decisão condenatória, ainda que proferida em via de recurso.                                                                                                                   Este entendimento não colide com o estatuído no artigo 32º, nº 1 da Constituição da República, pois que a apreciação do caso por 2 tribunais de grau distinto é de molde a tutelar de forma suficiente as garantias de defesa constitucionalmente consagradas.                                                                                                                          De resto, referira-se que o artigo 2º do protocolo nº. 7 à Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, aprovado para ratificação pela Resolução da Assembleia da República 22/90 de 27.9, e ratificado pelo Decreto do Presidente da República 51/90, da mesma data, dispõe que: qualquer pessoa declarada culpada de uma infracção penal por um tribunal tem o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade ou a condenação. O exercício deste direito, bem como os fundamentos pelos quais ele pode ser exercido, são regulados por lei; este direito pode ser objecto de excepções em relação a infracções menores, definidas nos termos das lei, ou quando o interessado tenha sido julgado em primeira instância pela mais alta jurisdição ou declarado culpado e condenado no seguimento de recurso contra a sua absolvição.                                                                                                            Esta tese foi defendida no Ac. Tribunal Constitucional 49/03, relatora Maria Beleza, que com a devida vénia vimos seguindo de perto, com transcrição. Tal como na 1ª instância o arguido teve a oportunidade de se defender, exercendo o direito ao contraditório, perante a acusação deduzida pelo MP, também, nesta instância de recurso, teve a mesma possibilidade de se defender, exercendo o mesmo direito do contraditório, porventura com mais 1 oportunidade (a do artigo 417º/2 C P Penal) perante a motivação do recorrente. Também na tese que fez vencimento se ponderou que ao determinar a espécie e medida da pena em via de recurso, se estaria a impedir o arguido de participar na escolha de algumas penas de substituição, que reclamam o seu consentimento. Não cremos relevante tal argumento, pois que o tribunal de recurso, para quem entenda que a sua opinião tem que ser dada pessoalmente, sempre podia determinar a comparência em audiência, ao abrigo do artigo 421º/1 C P Penal.                                                                               Assim, cremos que no caso, fora o caso de falta de factos provados que permitam - com justeza e adequação - a determinação da espécie e medida da pena, nos termos dos artigos 70º e 71º C Penal, sempre o tribunal de recurso pode e deve, na consideração da verificação dos elementos constitutivos do tipo legal, condenar o agente, que vinha absolvido.                                                                                                                                                No caso, esta falta de factos – elementos a ponderar naqueles termos, não se verifica, o que a ocorrer, justificaria, então se determinasse a reabertura da audiência, nos termos dos artigos 369º, 370º e 371º C P Penal.”.E o citado Ac. n.º 49/2003 do Tribunal Constitucional, in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos, relatado pela Sr.ª Conselheira Maria dos Prazeres Beleza, donde citamos:                                                                                                                                                                                    “Por outras palavras, o acórdão da relação, proferido em 2ª instância, consubstancia a garantia do duplo grau de jurisdição, indo ao encontro precisamente dos fundamentos do direito ao recurso. Dir-se-á – como faz a recorrente – que, tendo havido uma decisão absolutória na primeira instância, o direito ao recurso implicaria a possibilidade de recorrer da primeira decisão condenatória: precisamente o acórdão da relação.                                                                                                                                                 Tal entendimento, não só encara o direito ao recurso desligado dos seus fundamentos substanciais (como resulta do que já se disse), mas levaria também, em bom rigor, a resultados inaceitáveis, como se passa a demonstrar.                                                                                                                           Se o direito ao recurso em processo penal não for entendido em conjugação com o duplo grau de jurisdição, sendo antes perspectivado como uma faculdade de recorrer – sempre e em qualquer caso – da primeira decisão condenatória, ainda que proferida em recurso, deveria haver recurso do acórdão condenatório do Supremo Tribunal de Justiça, na sequência de recurso interposto de decisão da Relação que confirmasse a absolvição da 1ª instância. O que ninguém aceitará.                                                           A verdade é que, estando cumprido o duplo grau de jurisdição, há fundamentos razoáveis para limitar a possibilidade de um triplo grau de jurisdição, mediante a atribuição de um direito de recorrer de decisões condenatórias.                                                                                                                        Tais fundamentos são a intenção de limitar em termos razoáveis o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, evitando a sua eventual paralisação, e a circunstância de os crimes em causa terem uma gravidade não acentuada. Esta segunda justificação, aliás, explica a diferença entre as alíneas e) e f) do nº 1 do artigo 400º do Código de Processo Penal; com efeito, se ao crime em causa for aplicável pena de prisão "não superior a oito anos" (alínea f)) – não sendo hipótese abrangida pela alínea e), naturalmente –, só não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão condenatório proferido pela Relação se este confirmar "decisão de 1ª instância".                                                                                                  Não se pode, assim, considerar infringido o nº 1 do artigo 32º da Constituição pela norma que constitui o objecto do presente recurso, já que a apreciação do caso por dois tribunais de grau distinto tutela de forma suficiente as garantias de defesa constitucionalmente consagradas.                                                A concluir, refira-se o artigo 2º do protocolo nº 7 à Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (aprovado, para ratificação, pela Resolução da Assembleia da República nº 22/90, 27 de Setembro, e ratificado pelo Decreto do Presidente da República nº 51/90, da mesma data), cujo texto é o seguinte:                                                                                                  Artigo 2º                                                                                                                                 1 – Qualquer pessoa declarada culpada de uma infracção penal por um tribunal tem o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade ou a condenação. O exercício deste direito, bem como os fundamentos pelos quais ele pode ser exercido, são regulados por lei.                         2 – Este direito pode ser objecto de excepções em relação a infracções menores, definidas nos termos da lei, ou quando o interessado tenha sido julgado em primeira instância pela mais alta jurisdição ou declarado culpado e condenado no seguimento de recurso contra a sua absolvição.                                                 Como se vê, a parte final do nº 2 ressalva, precisamente, a hipótese que está em apreciação no presente recurso.»                                                                                                                               Tal como na 1ª instância o Arg. teve a oportunidade de se defender, exercendo o direito ao contraditório, perante a acusação deduzida pelo MP, também, nesta instância de recurso, teve a mesma possibilidade de se defender.                                                                                                                                                  Com excepção das situações em que a factualidade provada não permita, com o rigor exigível, a determinação da espécie e medida da pena, nos termos dos art.ºs 70º e 71º do CP, o que a ocorrer, justificaria, então que se determinasse a reabertura da audiência, nos termos dos art.ºs 369º, 370º e 371º do CPP, o tribunal ad quem pode e deve, na consideração da verificação dos elementos constitutivos do tipo legal, condenar o Arg., que vinha absolvido.”                                                                                                                                                                     ****                                                          Pois bem, sempre com o maior respeito pela orientação seguida no acórdão acabado de citar, tanto mais que nos movemos num campo de difícil definição em termos absolutos, no qual os argumentos são fortes para um e outro lado, aderimos à posição que defende, como princípio geral, quando haja motivo para condenar em 2ª instância, após ter existido absolvição em 1ª instância, a devolução a este último tribunal para, em audiência complementar, proceder à determinação da medida concreta da pena a aplicar (artigos 369.º a 371.º, do CPP, e artigo 71.º, do C. Penal).

Como exemplo dessa jurisprudência, cite-se o Acórdão do TRP, de 5/3/2008, Processo 0746287, relatado pelo Exmo. Desembargador Custódio Silva, in www.dgsi.pt.jtrp:

Tendo, portanto, o arguido sido autor desse crime, tem de lhe ser aplicada uma pena (à partida, de prisão ou de multa).                                                                                                                                                                   Uma questão irrompe, de imediato: será que se deve proceder a essa aplicação neste momento, exactamente por força do princípio (acolhido, se bem vemos, no art. 403º, n.º 3, do C. de Processo Penal) de que se devem tirar todas as consequências jurídicas da procedência do recurso?                                                          O art. 32º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, é taxativo: o processo criminal assegura o recurso, como uma das garantias de defesa.                                                                                                                   O recurso, neste âmbito, significa que se assegura o direito a ver reapreciada por uma segunda jurisdição, para o que ora importa, a decisão de condenação.                                                                                 Nos dizeres do Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 24 de Setembro de 2003, in Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, n.º 171, ano XI, tomo III/2003, Setembro/Outubro/Novembro/Dezembro, pág. 178, «a definição do direito como integrante e componente do direito fundamental de defesa relativamente a uma acusação penal, impõe que a lei assegure um regime (no sentido de um duplo grau de jurisdição), prevendo e tornando efectiva tanto a modelação processual de um sistema coerente e acessível de recursos, como os tipos organizatórios adequados e suficientes para concretizar as imposições constitucionais.                                                                                                                               Por isso, toda a modelação processual do regime dos recursos em processo penal tem de ser compreendida na perspectiva da injunção constitucional, com uma dupla ordem de pressupostos e consequências. A modelação (pressupostos; prazos; conformação estritamente processual ou procedimental) supõe regras, e, mesmo, porventura, regras objectivas estritas e objectivas, para o exercício do direito; mas, também, por outro lado, as dúvidas de interpretação sobre os pressupostos devem ser, sempre, consideradas em favor do direito (e da garantia de defesa) e, não, contra o titular do direito. No domínio dos direitos e garantias é a regra do favor reo e o princípio favorabilia amplianda, odiosa restringenda.                                      O processo penal, por outro lado, tanto na estrutura dos modelos, como em cada situação concreta, deve apresentar e representar a realização de concordâncias práticas entre finalidades e meios, mediadas sempre pela realização, na maior amplitude possível, dos princípios estruturantes e constitucionais.                  Entre os princípios estruturantes do processo penal democrático deve salientar-se o princípio do processo equitativo, integrado pelos elementos de densificação enunciados no artigo 6º, § 1º, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e também no artigo 14º do Pacto Internacional Sobre os Direitos Civis e Políticos, e que comanda toda a formulação das garantias inscritas no artigo 32º da Constituição.                       O processo equitativo, como “justo processo”, supõe que os sujeitos do processo usem os direitos e cumpram os seus deveres processuais com lealdade, em vista da realização da justiça e da obtenção de uma decisão justa.                                                                                                                                                                                       Mas determina, também, por correlação ou contraponto que as autoridades que dirigem o processo não pratiquem actos no exercício dos poderes processuais de ordenação que possam criar a aparência confiante de condições legais do exercício de direitos.                                                                                                         A lealdade, a boa fé, a confiança, o equilíbrio entre o rigor das decisões do processo e as expectativas que delas decorram são elementos fundamentais a ter em conta quando seja necessário interpretar alguma sequência que, nas aparências, possa exteriormente apresentar-se com algum carácter de disfunção intraprocessual».                                                                                                                                                    Ora, e então, uma resposta positiva àquela pergunta, e no caso de essa pena ser não privativa da liberdade, convocaria uma imediata consequência, qual seja a de que estaria vedado ao arguido (e não só …) o exercício do direito de recurso, e isto pela singela razão de que o presente acórdão seria irrecorrível (art. 400º, n.º 1, al. e), do C. de Processo Penal).                                                                                                                     Consequência, portanto, claramente violadora do tal princípio do processo equitativo e do mencionado direito ao recurso.                                                                                                                                                 Logo, inaceitável e, daí, insusceptível de ser, aqui, concretizada ou assumida.                                               Mas não só por estas razões (que seriam, já, essenciais ou decisivas).                                                Na verdade, se assim pudesse ser, estar-se-ia, no âmbito da determinação da sanção, a afastar a possibilidade de aplicação das normas contidas nos arts. 369º, n.º 2, e 371º, n.ºs 1, 2 e 3, do C. de Processo Penal (se bem vemos, não está esta possibilidade acautelada no art. 424º, n.º 2, do C. de Processo Penal, exactamente porque a determinação da sanção não se constituía como objecto do recurso).                                              E estar-se-ia, igualmente, a impedir que o arguido, no exercício de direitos de defesa, participasse na determinação da sanção quando esta está dependente da sua vontade (que ocorre na aplicação de certas penas de substituição); nos dizeres de José Manuel Damião da Cunha, in O Caso Julgado Parcial - Questão da Culpabilidade e Questão da Sanção num Processo de Estrutura Acusatória, 2002, pág. 410, «os direitos de defesa do arguido, no âmbito da determinação da sanção, assumem, também, uma função positiva, dentro das actuais possibilidades de sancionamento que estejam dependentes da sua livre vontade».                           Isto dito, há que dizer, também, que a consequência a extrair da posição assumida é a de que a determinação da sanção deve ser levada a cabo na 1ª instância pela mesma Exma. Juiz que elaborou a sentença recorrida (sendo possível, obviamente), tendo em consideração os factos que se encontram definidos e o crime que se entendeu imputar ao arguido, observando-se previamente, se tal for considerado necessário, o disposto nos arts. 369º, n.º 2, e 371º, n.ºs 1, 2, 3 e 4, do C. de Processo Penal.” – Ver, no mesmo sentido, Ac. do TRE, de 19/12/2006, Processo 1752/06 – 1, relatado pelo Exmo. Desembargador António Latas, in www.dgsi.pt., Ac. do TRP, de 21/5/2008, Processo 1290/08 – 4ª Secção, relatado pela Exma. Desembargadora Maria Elisa Marques, in C.J., Informação Jurídica on-line (Ref. 2273/2008).          Em boa verdade, o direito ao recurso não se limita à possibilidade de submeter o caso à apreciação de um tribunal superior. Antes exige e pressupõe a prerrogativa de argumentar perante o tribunal superior com base no conhecimento integral da decisão recorrida, sob pena de ficar prejudicado o direito de defesa do arguido.                                                                                                     Enfatize-se, neste momento, que a alteração efectuada incide sobre os próprios factos, pelo que, fixados estes e decidindo-se, como se decidiu, por uma decisão de condenação, há que assegurar ao arguido, nestas circunstâncias, o exercício pleno dos seus direitos de defesa com a consequente, e eventual, reapreciação por uma instância superior da medida da pena.                                                                                          **** 

Curiosamente, no caso em apreço, e de qualquer modo, qualquer que fosse a orientação seguida, sempre teria de ser a 1ª instância a determinar a pena, na medida em que a factualidade provada não permite, com o rigor exigível, a determinação da espécie e medida da pena, nos termos legais, já que, quanto às condições pessoais do arguido e à sua situação económica, apenas ficou assente que lhe foi diagnosticada “reacção depressiva em personalidade esquizóide”, daí derivando uma imputabilidade atenuada.
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IV. Decisão:

 Nestes termos, acordam os Juízes da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, pelo que decidem:                                                                                                

1) Condenar o arguido, J..., como autor material da prática de um crime de incêndio, p. e p. pelo artigo 272.º, n.º 2, al. a), do C. Penal, na redacção anterior à Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro;

2) Determinar a remessa dos autos para a 1ª instância, a fim de aí se proceder à determinação da sanção, de preferência pelo mesmo tribunal colectivo que elaborou o acórdão recorrido, sendo realizadas, para tanto, as diligências que forem entendidas como necessárias.

Sem tributação.

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Coimbra, 22 de Setembro de 2010

(Texto elaborado e integralmente revisto pelo relator).


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                                                           (José Eduardo Martins)                                               
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      (Isabel Valongo)

                                                                                                          


[1] Recurso n.º 902/04-5, processo  88/00.4GAOLR,do   Tribunal de Oleiros.
[2] Este  mesmo entendimento, a contrario, foi  também,  entre  outros, corroborado  no Ac.  da  RC, de  01.03.2007 (relator Desembargador Germano Fonseca, processo 495/05.6PBCTB.C1).

[3] Como também se considerou a contrario,

 no  acórdão  do STJ,  de 14.06.2006, relator Conselheiro SILVA FLOR, in  www.dgsi.pt.
[4] Na  doutrina, GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de Processo Penal, II, pg. 196.
[5] No sentido de que os agentes da Polícia Judiciária que procederam à reconstituição do crime podem depor como testemunhas sobre o que se terá passado nessa reconstituição, pronunciaram-se, também,  os acórdãos do Supremo Tribunal de 11-12-1996, BMJ 462, pg. 299, de 22-4-2004, CJ, STJ, XII, tomo II, pg. 165, e de 30-03-2005, proc. n.º 552/05.

[6] Como  se decidiu no  acórdão  do STJ,  de 14.06.2006, relator Conselheiro SILVA FLOR, in  www.dgsi.pt.

[7] Relator  Desembargador  Fernando Ventura, in www.dgsi.pt.
[8]Ac. do STJ de 25/03/2004, Proc. 248/04, 5ª secção.

[9] Com  raciocínio semelhante, o  citado  acórdão da RC, de  01.04.2009.

[10] Cfr. o Ac. do STJ, de 27/5/1998, in BMJ nº 477, pp. 303-349.
[11] Proc. n.º 0846986, www.dgsi.pt.
[12]  CAVALEIRO DE FERREIRA, Curso de Processo Penal, I, 333 e segs.
[13] Seguimos, de muito perto, a síntese conclusiva de CRISTINA LÍBANO MONTEIRO, Perigosidade de inimputáveis e in dubio pro reo, pág. 165 e seguintes.
[14] Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1974, pág. 213
[15] Cfr., entre  outros, o  Ac. RC de 5.2.98 in CJ, t. I, 53).
[16] Ac. RC de 5.2.98, in CJ, I, 53
[17] Ac. STJ de 24.3.99, in CJ, I, 253
[18] Proc. n.º 07P2270, www.dgsi.pt
[19] Cfr. Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo II, p. 870.
[20] Cfr. Ac RC de 22.1.97, in CJ, I, 64.