Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | MARIA JOSÉ NOGUEIRA | ||
Descritores: | AMEAÇA TIPO OBJECTIVO MAL IMINENTE MAL FUTURO | ||
Data do Acordão: | 06/02/2021 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | VISEU (JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE CINFÃES) | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ART. 153.º DO CP | ||
Sumário: | I – Estaremos perante mal futuro, indispensável à ocorrência do crime de ameaça, sempre que nada – na descrição factual – permita assentar numa execução iminente, ou seja, desde que não se assista já à “tentativa”, tal como configurada no artigo 22.º do CP. II – O vocábulo “mato-te”, surgindo, nas circunstâncias ocorridas, desgarrada de conduta reveladora de iminência de acção (mal anunciado), deve ser entendido como projectando uma intenção futura da prática de um mal. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam em conferência os juízes na 5.ª secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra
I. Relatório 1. No âmbito do processo comum, com a intervenção do tribunal singular, n.º 163/18.9T9CNF do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, Cinfães – Juízo C. Genérica, mediante acusação pública, à qual aderiu a assistente A., foi a arguida N., melhor identificada nos autos, submetida a julgamento, sendo-lhe então imputada a prática, em autoria, na forma consumada, em concurso efetivo, de um crime de ofensa à integridade física simples e de um crime de ameaça agravada, p. e p., respetivamente, pelos artigos 14.º, 26.º, 30.º, n.º 1, 143.º, n.º 1, 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alínea a) conjugado com o artigo 131.º, todos do Código Penal.
2. Realizada a audiência de discussão e julgamento – no decurso da qual o tribunal julgou válida e relevante a desistência de queixa relativamente ao crime de ofensa à integridade física, donde, quanto ao mesmo, extinto o procedimento criminal, e homologou por sentença a transação realizada entre as partes em relação ao pedido de indemnização civil – por sentença de 08.10.2020 foi decidido [transcrição do dispositivo]: “Em face de todo o exposto, decide-se: A. Condenar a arguida N. pela prática de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos arts. 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, al. a), este último com referência ao art. 131.º, todos do Código Penal, numa pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de 7,00€ (sete euros), o que perfaz o total de 840,00€ (oitocentos e quarenta euros). […]”.
3. Inconformada com a decisão recorreu a arguida, formulando as seguintes conclusões: 1 - Vem o presente recurso interposto da sentença condenatória proferida nos autos; 2 - São fundamentos deste recurso os seguintes: A) Alteração substancial dos factos constantes da acusação do MP; B) Impugnação da matéria de facto.
a) Alteração substancial dos factos: 3 - Durante a audiência de discussão e julgamento e após o depoimento da assistente, o Tribunal decidiu comunicar à arguida aquilo que denominou de alteração não substancial dos factos da acusação do MP; 4 - Com efeito, o Tribunal alterou a descrição do ponto 4 constante da acusação do MP em que se dizia o seguinte: “No dia 14/02/2018, pelas 19:00 horas, quando a assistente se encontrava a jantar, acompanhada dos seus 2 filhos, T. e R., no estabelecimento de restauração “…”, situado em (…), (…), (…), a arguida deslocou-se às imediações do restaurante e tendo encontrado a assistente junto ao local onde deixara estacionada a sua viatura, iniciou-se entre ambas uma discussão, altura em que a arguida, em tom sério e exaltado, dirigiu-se à assistente dizendo que a matava»; 5 - O Tribunal recorrido comunicou, assim, à arguida, a seguinte alteração dos factos «(…) iniciou-se entre ambas uma discussão na qual a arguida em tom sério e exaltado dirigiu-se à assistente dizendo-lhe: "Eu sei onde é que tu moras, se continuas a meter-te na minha vida, eu mato-te a ti e aos teus filhos”» 6 - O Tribunal denominou esta alteração de factos como sendo não substancial. 7 - Sucede, no entanto, que a redação originária do ponto 4 da acusação do MP não imputava à arguida factos que pudessem consubstanciar o crime de ameaça; 8 - Isso porque dali não resultava que o mal ameaçado pela arguida fosse um mal futuro. 9 - O que, só por si, punha em causa o elemento objetivo do tipo legal de crime em questão. 10 - Foi aliás por esse motivo que o Tribunal recorrido decidiu, em audiência de julgamento, alterar a factualidade imputada à arguida, concretizando, assim, o mal ameaçado como sendo um mal futuro. 11 - Do exposto resulta que da acusação não se inferia o elemento objetivo integrador do crime de ameaça. 12 - Sendo que o Tribunal decidiu suprir a omissão na acusação dos factos relativos ao elemento objetivo do crime de ameaça; 13 - O que o Tribunal pretendeu fazer através do regime da alteração de factos previstos no art.º 358.º do CPP; 14 - Todavia, e como decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, no AUJ n.º 1/2015, tal não é possível; 15 - E se é certo que esse AUJ n.º 1/20015 se reportava ao elemento subjetivo do crime aí em causa (injúria), desse mesmo acórdão de uniformização de jurisprudência resulta também claramente que o mesmo raciocínio deve ser feito em relação ao elemento objetivo do crime; 16 - Ou seja, se da acusação não resulta, de forma clara, quais os factos imputados que compõem o elemento objetivo do crime, não é possível concluir-se pela verificação do ilícito criminal em causa; 17 - E como vem dito no mencionado acórdão de fixação de jurisprudência, essa omissão não pode ser suprida através do regime previsto no art.º 358.º do CPP, ou seja, a alteração não substancial de factos; 18 - O que, nos presentes autos, o Tribunal recorrido acabou por fazer foi concretizar os factos que compõem o elemento objetivo do crime aqui em causa, por tal não constar da acusação do MP; 19 - Ou seja, os factos da acusação originária não consubstanciavam qualquer crime e, com a alteração levada a cabo pelo Tribunal, passaram a consubstanciar o crime de ameaça agravada. 20 - O que a lei não permite, por se tratar de uma alteração substancial dos factos constantes da acusação do MP (cfr. o acórdão de fixação de jurisprudência supra mencionado, na parte em que se faz referência também ao elemento objetivo do tipo legal de crime e que, em parte, vai transcrito na motivação supra); 21 - Por outro lado, esta alteração substancial de factos ocorreu durante a audiência de discussão e julgamento; ou seja, no momento em que não havia sido ainda proferida a sentença dos autos; 22 - Daí que no momento em que o Tribunal procedeu àquela alteração e no momento em que a defesa invocou esse vício (alegações orais), não pudesse falar-se ainda em nulidade da sentença - como se pretende na sentença ora recorrida; 23 - Daí que tenha ocorrido a nulidade insanável prevista no art.º 119.º, al. b) do CPP, por falta de promoção do processo pelo MP, nos termos do disposto no art.º 48.º do CPP; 24 - E agora, uma vez proferida a sentença, demonstrando-se, como demonstra, que a dita alteração substancial de factos foi feita constar dos factos provados respetivos, a nulidade da sentença também ocorre (art.º379.º, n.º 1, al.b),do CPP). 25 - E trata-se de nulidade insanável, já que pode ser conhecida em recurso, ou seja, oficiosamente (cfr. primeira parte do corpo do art.º 119.º e n.º 2, do art. 379.º, do CPP); 26 - Ocorreu, assim, a nulidade insanável prevista no art.º 119.º. al. b) do CPP, bem como a nulidadeinsanávelprevistanoart.º379.º,n.º 1, al.b) en.º2,do mesmo diploma legal; 27 - O Tribunal recorrido violou, assim, o disposto nos artigos 283.º, n.º 3, al. b) e 358.º, n.º 1, do CPP, conjugados com o art. 1.º, al. f) do mesmo diploma legal, o que resultou na ocorrência de uma alteração substancial dos factos descritos na acusação que, nos termos do art.º 359.º, n.º 1, do CPP, não podia ser tomada em conta pelo Tribunal para o efeito de condenação da arguida neste processo; 28 - Tudo a resultar nas nulidades insanáveis acima mencionadas;
B) IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO (…). Termos em que e nos que vossas excelências superiormente suprirão, deve revogar-se a sentença recorrida, absolvendo-se a arguida conforme o supra exposto e com todas as consequências legais.
4. Foi proferido despacho de admissão do recurso.
5. Em resposta ao recurso o Ministério Público concluiu: 1. No âmbito do Processo epigrafado supra, foi a arguida N. condenada, pela prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alínea a), este último por referência ao artigo 131.º, todos do Código Penal, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de 7,00€ (sete euros), um que perfaz um total de 840,00€ (oitocentos e quarenta euros). 2. Não se conformando coma decisão ora recorrida, interpôs a arguida N. recurso, no qual apontou erros que, na sua opinião, não tivessem ocorrido, teriam culminado na sua absolvição, nomeadamente: da verificação de alteração substancial dos factos; da discordância quanto à forma como o tribunal a quo apreciou a prova. 3. Quanto à alegada verificação de uma alteração substancial dos factos, refere a aqui Recorrente que, a alteração de facto operada pelo Tribunal a quo consubstanciou-se na concretização do elemento objetivo do tipo legal do crime de ameaça, já que, somente após tal operação, se consegue extrair o anúncio do mal futuro do texto da acusação. 4. No entanto, não assiste razão à aqui Recorrente, na medida em que, da referida alteração de facto não resultou a imputação de crime diverso nem a agravação da moldura penal aplicável ou tão-pouco a alteração das circunstâncias de tempo, modo e lugar descritas na acusação pública. 5. Tal decorre da simples leitura e comparação dos dois segmentos textos em causa, sendo o texto originário da acusação pública o seguinte: “a arguida deslocou-se às imediações do restaurante e tendo encontrado a assistente junto ao local onde deixara estacionada a sua viatura, iniciou-se entre ambas uma discussão, altura em que a arguida, em tom sério e exaltado, dirigiu-se à assistente dizendo que a matava” (sublinhado nosso) e o texto depois da operada alteração o seguinte: “a arguida deslocou-se às imediações do restaurante e tendo encontrado a assistente junto ao local onde deixara estacionada a sua viatura, iniciou-se entre ambas uma discussão na qual a arguida em tom sério e exaltado dirigiu-se à assistente dizendo-lhe: "Eu sei onde é que tu moras, se continuas a meter-te na minha vida, eu mato-te a ti e aos teus filhos"” (sublinhado nosso). 6. Aliás, como se retira da douta sentença ora em crise: “o que o Tribunal fez foi transformar o discurso indireto em discurso direto, plasmando e concretizando as expressões da arguida tal como as mesmas foram transmitidas pela assistente em audiência de julgamento./ No mais, as considerações supra expendidas relativamente à delimitação dos conceitos de mal futuro e mal iminente são bastantes para se entender que a arguida, não fora a alteração regularmente comunicada, seria condenada do mesmo modo, na medida em que a deficiência de que o despacho de acusação pudesse padecer era de ordem metodológica em virtude da opção pelo discurso indireto e não de jaez jurídico”. 7. Pelo que, não se verificam, no caso concreto, nem a nulidade prevista no artigo 119.º, alínea b) do Código de Processo Penal, porque existiu promoção legítima por parte do Ministério Público, nem nulidade da sentença, prevista no artigo 379.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Penal, já que tal sentença não condenou por factos diversos dos descritos na acusação. (…). 6. O Ministério Público emitiu parecer no sentido de o recurso não merecer provimento.
7. Cumprido o n.º 2, do artigo 417.º do CPP, concluiu a recorrente como no recurso interposto.
8. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cabendo, pois, decidir.
II. Fundamentação 1. Delimitação do objeto do recurso Tendo presente as conclusões, pelas quais se delimita o objeto do recurso, sem prejuízo do conhecimento de eventuais questões de natureza oficiosa, importa decidir se (i) se verifica a causa de nulidade da sentença da alínea b), do n.º 1, do artigo 379.º e, bem assim, a nulidade prevenida no artigo 119.º, alínea a), ambos do CPP; (ii) incorreu o tribunal a quo em erro de julgamento.
2. A decisão recorrida Ficou a constar da sentença em crise [transcrição parcial]: 2.1. Factos Provados Resultaram provados, com relevância para a causa, os seguintes factos: 1. No dia 14/02/2018, pelas 19:00 horas, quando a assistente se encontrava a jantar, acompanhada dos seus 2 filhos, T. e R., no estabelecimento de restauração “…”, situado em (…), (…), (…), a arguida deslocou-se às imediações do restaurante e tendo encontrado a assistente junto ao local onde deixara estacionada a sua viatura, iniciou-se entre ambas uma discussão na qual a arguida em tom sério e exaltado dirigiu-se à assistente dizendo-lhe: "Eu sei onde é que tu moras, se continuas a meter-te na minha vida, eu mato-te a ti e aos teus filhos"; 2. A arguida tinha prévio conhecimento que as palavras que proferiu e dirigiu à assistente eram aptas e adequadas a provocar, na respetiva destinatária, um sentimento de insegurança, intranquilidade e medo, afetando a sua paz individual e liberdade de determinação, conforme aliás, sucedeu; 3. A arguida agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal; (…).
Não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a decisão da causa. * 2.3. Motivação da convicção do Tribunal (…).
3. Apreciação §1. Entende a recorrente haver o tribunal a quo procedido a uma alteração substancial dos factos, não obstante a haja “configurado” e comunicado como se de alteração não substancial dos factos se tratasse, circunstância que consubstanciaria a nulidade prevenida no artigo 119.º, alínea b), por falta de promoção do processo pelo Ministério Público, bem como a causa de nulidade de sentença da alínea b), do n.º 1, do artigo 379.º, ambos do CPP. Vejamos. No decurso da audiência de discussão e julgamento, concretamente na sessão de 25.09.2020, o senhor juiz proferiu o despacho, cujo teor ora se transcreve: “Nos termos do disposto no artigo 358.º, n.º 1 do Código de Processo Penal o tribunal, oficiosamente, comunica ao arguido a seguinte alteração não substancial dos factos descritos na acusação: Conforme decorreu das declarações da assistente comunica-se a possível alteração nos seguintes termos: “(…) iniciou-se entre ambas uma discussão na qual a arguida em tom sério e exaltado dirigiu-se à assistente dizendo-lhe: Eu sei onde é que tu moras, se continuas a meter-te na minha vida, eu mato-te a ti e aos teus filhos”. No seguimento da comunicação assim efetuada, a arguida requereu a inquirição do seu companheiro, o que veio a ser deferido. Na acusação pública - à qual aderiu a assistente –, no segmento que ora releva, diz-se: “(…) iniciou-se entre ambas uma discussão, altura em que a arguida, em tom sério e exaltado, dirigiu-se à assistente dizendo que a matava”. A questão de saber se os factos comunicados consubstanciam uma alteração substancial obriga a que nos detenhamos no tipo enquanto exige que o mal objeto da ameaça seja futuro, elemento, na perspetiva da recorrente, ausente da acusação. Sem embargo, sempre diremos que, de acordo com o entendimento perfilhado por este tribunal, a vingar a sua posição o problema colocar-se-ia a montante, pois estar-se-ia perante uma patologia mais definitiva – a factualidade tal como descrita na acusação não consubstanciaria o crime de ameaça -, conducente, sem mais, à absolvição. Não seria, pois - nesse caso -, de sequer equacionar uma eventual “alteração substancial dos factos”. Sobre a imprescindibilidade de o mal ameaçado ter de ser futuro escreve Taipa de Carvalho, “Isto significa apenas que o mal, o objeto da ameaça, não pode ser iminente, pois que, neste caso, estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respetivo ato violento, isto é, do respetivo mal. Esta característica temporal da ameaça é um dos critérios para distinguir, no campo dos crimes de coação, entre ameaça (de violência) e violência. Assim, p. ex., haverá ameaça, quando alguém afirma “hei-de-te matar”; já se tratará de violência, quando alguém afirma: “vou-te matar já”. Que o agente refira, ou não, o prazo dentro do qual concretizará o mal, e que, referindo-o, este seja curto ou longo, eis o que é irrelevante. Necessário é só, como vimos, que não haja iminência de execução, no sentido em que esta expressão é tomada para efeitos de tentativa (cf. art. 22º - 2 c)).” – [cf. “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, p. 343]. Semelhante entendimento, acolhido na doutrina, tem vindo a ser perfilhado pela jurisprudência dos tribunais superiores, como, a título exemplificativo, resulta dos acórdãos do TRC 09.09.2009 (proc. n.º 363/08.OOGAACB.1) de 05.06.2013 (proc. n.º 1854/09.0PCCBR.C1), 13.11.2013 (proc. n.º 268/11.7TATNV.C1), 10.07.2014 (proc. n.º 162/12.4GAACN.C1), TRG de 09.10.2017 (proc. n.º 441/14.6GGAFAF.G1), 21.05.2018 (proc. n.º 375/16.G1). Retomando o caso em apreciação, olhando os factos tal como descritos na acusação, não obstante o recurso ao discurso indireto - “dizendo que a matava” -, admitindo equivaler o mesmo, se utilizado o discurso direto, a “mato-te”, posto que não acompanhado de qualquer ação que permita intuir a iminência do mal ameaçado, menos ainda o inicio de execução [cf. artigo 22.º, n.º 2, alínea c) do C. Penal], não se afastando este tribunal do ensinamento de Taipa de Carvalho, teremos de concluir que já à luz do libelo acusatório – tal como narrado – será de afirmar a presença da ameaça de mal futuro. Com efeito, mesmo estabelecendo a assinalada correspondência entre o discurso indireto e direto, a fórmula “mato-te”, nas circunstâncias – surgindo desgarrada de atitude que aponte para a iminência da ação (mal anunciado) – deve ser encarada como projetando uma intenção futura. O mesmo é dizer que estaremos perante a ameaça de mal futuro sempre que nada – na descrição factual - permita assentar numa execução iminente, ou seja desde que não se assista já à “tentativa”, tal como configurada no artigo 22.º do C. Penal. Por outro lado, não colhe a objeção suscitada à alteração comunicada com fundamento em que, tratando-se de bens eminentemente pessoais, sempre se estaria na presença de vários crimes de ameaça [eu mato-te a ti e aos teus filhos]. Como escreve Taipa de Carvalho, “Há que distinguir deste [do destinatário da ameaça – sujeito passivo do crime de ameaça] a pessoa objeto do crime ameaçado, isto é, o sujeito passivo ou vítima da prática futura do crime que dá corpo à ameaça (…). É que a pessoa objeto da ameaça e a pessoa objeto do crime ameaçado poderão não coincidir (…). Como FIGUEIREDO DIAS referiu, na Comissão Revisora (Atas 1993 232), “O que vale aqui é a ameaça com a prática de um crime, seja ou não na pessoa do ameaçado” – [cf. op. cit., p. 346]. Ademais, convém ter presente que o conhecimento da ameaça por parte do sujeito passivo – a indispensabilidade que a ameaça chegue ao conhecimento do seu destinatário – constitui elemento integrante do tipo objetivo do crime. Em síntese: (i) a narração dos factos constantes da acusação, na ausência de elementos (de facto) capazes de levar a concluir pela iminência/início de execução do mal ameaçado, o mesmo é dizer pela “tentativa”, como definida no artigo 22.º do Código Penal, comporta a projeção futura do mal ameaçado; (ii) não colhe, assim, aplicação a “doutrina” sustentada no AFJ n.º 1/2015, enquanto afasta o instituto da “alteração não substancial dos factos” como forma de “colmatar” a não descrição na acusação dos factos que integram os elementos (no caso do tipo subjetivo) típicos do crime; (iii) “lacuna” que, na perspetiva deste tribunal, a verificar-se, tão pouco seria suscetível de sanação com recurso à alteração substancial dos factos; (iv) a alteração dos factos descritos na acusação comunicada à arguida/recorrente no decurso da audiência de julgamento, não tendo por efeito a imputação de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, não consubstancia alteração substancial dos factos (artigo 1.º, alínea f), do CPP), donde não ocorrem as invocadas nulidades, seja por falta de promoção do processo pelo Ministério Público (artigo 119.º, alínea b), conjugado com os artigos 283.º, n.º 3, alínea b) e 48.º, todos do CPP), seja por via da violação da alínea b) do n.º 1, do artigo 379.º, do CPP (com referência aos artigos 358.º, n.º 1 e 359.º, n.º 1, ambos do CPP). Improcede nesta parte o recurso.
§2. Insurge-se a recorrente contra a matéria de facto dada por assente [provada] na sentença em crise, indicando como incorretamente julgados: (…).
Não nos merecendo reserva a qualificação jurídico-penal dos factos, que tão pouco, em si mesma, foi objeto de reação da recorrente, importa decidir pela improcedência do recurso.
III. Dispositivo Termos em que acordam os juízes que compõem este tribunal em julgar improcedente o recurso interposto pela arguida N.. Custas, com taxa de justiça que se fixa em 4 (quatro) UCs, a cargo da recorrente – [artigos 513.º e 514.º do CPP; artigo 8.º do RCP, com referência à tabela III].
[Texto processado e revisto pela relatora] Coimbra, 2 de Junho de 2021
Maria José Nogueira (relatora)
Frederico Cebola (adjunto)
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