Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
201/17.2T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA TERESA ALBUQUERQUE
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
CULPA PRESUMIDA
ILICITUDE DO ACTO
PROVA DE PRIMEIRA APARÊNCIA
RUÍNA DE EDIFÍCIO OU PERIGO RESULTANTE DE OUTRAS OBRAS
EMPREITEIRO
Data do Acordão: 02/20/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – JL CÍVEL DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 492º C.CIVIL.
Sumário: I – A culpa presumida em que assenta o regime de responsabilidade a que alude o artº 492º CC não dispensa a demonstração da ilicitude do acto, consistente no vício de construção ou defeito de conservação, mas a dificuldade do lesado provar a causa da ruína justifica que a prova da mesma possa advir de uma “prova de primeira aparência”, desde que não contrariada por contraprova que a torne duvidosa.

II - É em função do dever de prevenção do perigo que os danos originados pela ruína de edifício ou de outras obras se presumem ser causa da omissão daquele dever pela pessoa que criou ou mantém a concreta situação de perigo ou que estava obrigada à sua vigilância.

III - Na situação dos autos a R. estava obrigada à vigilância da obra por força do contrato de empreitada celebrado com os SMAS e da circunstância do prazo de garantia da mesma, à data do acidente, ainda não se mostrar decorrido.

IV – O empreiteiro deve ser responsabilizado, independentemente de culpa, pela actuação do subempreiteiro que utilizou na empreitada.

Decisão Texto Integral:







Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

               I – União de S..., Lda, intentou a presente acção contra A... – Investimentos e Imobiliário SA (e contra o Município de ...), pedindo que sejam os mesmos condenados a pagar-lhe quantia não inferior a € 10.953,86, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a citação.

Alegou, em síntese, que pelas 15h20m do dia 15/01/2014, na estrada M593, onde percorria com o seu autocarro, junto ao complexo desportivo P..., o pneu dianteiro do lado esquerdo da viatura afundou-se numa vala aberta na via pública, decorrente da obra particular executada no âmbito do alvará de construção n.º .../2006 concedida à dona da obra A..., vala essa que não estava tapada nem sinalizada, não sendo também visível, porque coberta até cima com água da chuva. Refere que de tal embate resultaram danos na viatura, tendo ainda sofrido prejuízos decorrentes da paralisação do veículo, que situou entre a data do acidente e 19/02/2014, correspondendo esta última à data em que foi reparado. Tais prejuízos correspondem ao valor do capital pedido.

O R. Município de ... defendeu-se, entre o mais, excepcionando a incompetência material do Tribunal, sustentando ser competente o Tribunal Administrativo e Fiscal.  

A R. A... referiu, no essencial, ter assumido a qualidade de promotor na execução das obras de um emissário entre a P... e C..., tendo adjudicado a execução de tais obras à sociedade E... – Engenharia e Construções, S.A., o que foi do conhecimento dos SMAS e bem ainda do R. Município de ... Alegou que o contrato de empreitada em causa foi concluído em 24/05/2012, e que até 16/01/2014, data em que recebeu uma carta que os SMAS lhe enviaram, não tinha sido informada/notificada da existência de qualquer defeito de obra, desconhecendo, por via disso, se o acidente dos autos, a ter ocorrido, teve por causa algum defeito de obra e, na afirmativa, se a obra que lhe deu causa foi ou não aquela que deteve na qualidade de promotor.

Requereu a intervenção acessória da sociedade E... – Engenharia e Construções, S.A., invocando para tanto, além do acima referido, que caso venha a ser condenada a pagar qualquer valor à A., terá o direito de exigir de tal sociedade o ressarcimento dos valores que tiver de pagar, tendo esta interesse em intervir nos autos.

Tendo sido admitida a referida intervenção acessória, citada a E... – Engenharia e Construções, S.A, a mesma nada disse.

Foi proferido despacho convidando a A. a completar a matéria factual por si alegada na petição inicial.

Correspondendo a tal convite, a A. veio alegar que a sinalização da vala aberta na via pública era obrigatória, nos termos do art 5º/2 do Código da Estrada, cabendo a responsabilidade por tal sinalização à R. A..., titular do alvará de obras de construção n.º .../2006, e que não o tendo feito está obrigada a reparar os danos que causou na sua viatura, mais sustentando que poderá ser considerado solidariamente responsável pela reparação dos danos a entidade emitente do alvará, in casu o R. Município.

               Dispensada que foi a realização da audiência prévia, foi proferido despacho saneador, no qual foi julgada procedente a excepção de incompetência material arguida pelo R. Município de ... que, por isso, se absolveu da instância.

Prosseguindo a mesma contra a 2ª R. e a chamada, realizado que foi o julgamento, foi proferida sentença, que julgou improcedente a acção e, em consequência, absolveu a ré A... – Investimentos e Imobiliário, S.A. do pedido contra si formulado, bem como a chamada E... – Engenharia e Construção, S.A.

II – Do assim decidido, apelou a A., que concluiu as respectivas alegações do seguinte modo:

...

A R. ofereceu contra-alegações tendo-as concluído, nos seguintes termos:

...

II – O tribunal da 1ª instância julgou provados os seguintes factos:

1. No dia 15 de Janeiro de 2014, pelas 15h20m, na estrada M593, junto ao complexo desportivo P..., em ..., ocorreu um acidente que envolveu o autocarro da autora, com a matrícula ...-ZQ, marca Mercedes-Benz, modelo O405.

2. O referido acidente ocorreu quando a indicada viatura de transporte de passageiros circulava em direcção ao Parque Industrial de ..., conduzida pela ..., que a direccionava para inspecção periódica.

3. A dada altura desse percurso e no local indicado em 1. o pneu dianteiro do lado esquerdo da viatura identificada afundou-se num buraco na via pública, buraco esse que não estava tapado nem sinalizado, assomando que o mesmo não era visível por se achar coberto até ao cimo com água da chuva.

4. Igualmente e de seguida afundou-se também o pneu dianteiro direito.

5. Em consequência de tal a viatura em causa sofreu os estragos/danos indicados no orçamento de fls. 11, cujo teor se considera reproduzido para todos os efeitos legais.

6. E deixou de poder circular desde o dia do acidente até 19/02/2014, data em que foi reparada, período durante o qual ficou imobilizada.

7. Logo após o acidente compareceram no local 3 colaboradores dos SMAS da Câmara Municipal de ..., que taparam o referido buraco para evitar outros acidentes.

8. A autora deu conhecimento do predito acidente aos SMAS do Município de ... no dia seguinte à sua ocorrência, altura em que também solicitou lhe fosse indicada a apólice de seguro atinente à obra em causa para que à respectiva seguradora fosse solicitada a marcação de peritagem à viatura sinistrada.

9. Respondendo os SMAS informaram a autora que o assunto tinha sido encaminhado para a aqui 1ª ré, a qual nunca contactou a autora.

10. Perante esse silêncio a autora entrou em contacto com a 1ª ré, que a informou que a obra levada a efeito no local do acidente foi objecto de sub-empreitada à aqui chamada E... – Engenharia e Construções, S.A., recusando, por via disso, assumir a responsabilidade ou fornecer a apólice da seguradora.

11. A autora comunicou o orçamento indicado em 5. aos SMAS de ... em 14/02/2014 que, por ofício de 19/02/2014, voltaram a declinar qualquer responsabilidade.

12. A Câmara Municipal de ... emitiu à ré A... – Investimentos e Imobiliário, S.A. o alvará de licença de construção n.º .../2006, assumindo esta a qualidade de promotor na execução das obras de um Emissário entre a P... e C..., local onde ocorreu o acidente descrito supra.

13. Nessa qualidade a ré A... adjudicou a execução das obras de conclusão do “Emissário de Águas Residuais Domésticas desde a P... a C..., em conformidade e de acordo com o projecto aprovado pelos SMAS de ... no âmbito do processo de licenciamento n.º OP-..../05 daqueles serviços à empreiteira E... – Engenharia e Construções, S.A., aqui chamada, com a qual celebrou o respectivo contrato em finais de 2011.

14. Os trabalhos de empreitada objecto do aludido contrato ficaram concluídos em 24/05/2012.

15. A ré A..., até 16/01/2014, data da recepção da carta junta a fls. 21 e que os SMAS lhe enviou, não tinha sido informada/notificada de quaisquer anomalias na obra.

16. A ré A... não foi notificada, nem pelo Município de ... nem pelos SMAS de ..., da existência, em momento anterior ao indicado em 1., de mau estado do pavimento da travessia da EM 593.

17. A ré A... não tem sede no Município de ..., nem cá dispõe de quaisquer serviços ou estabelecimento.

E julgou não provados os seguintes factos:

a) Nas circunstâncias de tempo, modo e lugar referidos em 1. dos factos provados o pneu da viatura aí também indicada afundou-se numa vala aberta na via pública, decorrente da obra particular executada no âmbito do alvará de obras de construção n.º 587/2006, concedida à dona da obra – A..., aqui ré.

b) O pneu dianteiro direito afundou-se menos por desse lado ser menor a profundidade da vala.

c) Os colaboradores dos SMAS que compareceram no local fizeram-no devido a vários outros automobilistas se terem queixado.

IV – Da concatenação das conclusões das alegações com a sentença recorrida resulta para apreciação no presente recurso a impugnação do decidido no ponto a) da matéria de facto não provada e, procedendo tal impugnação, a responsabilização da R. pelo acidente.

               Na 1ª instância deu-se como não provado que “Nas circunstâncias de tempo, modo e lugar referidos em 1. dos factos provados o pneu da viatura aí também indicada afundou-se numa vala aberta na via pública, decorrente da obra particular executada no âmbito do alvará de obras de construção n.º 587/2006, concedida à dona da obra – A..., aqui ré.”

Deu-se, no entanto, e precedentemente, como provado, que – e resumindo, para não se tornar fastidiosa a repetição – em Janeiro de 2014, na estrada M593, junto ao complexo desportivo P..., ocorreu um acidente que envolveu o autocarro da A. (de transporte de passageiros), que circulava em direcção ao Parque Industrial de ..., acidente esse que se traduziu na circunstância de junto ao referido  complexo desportivo o pneu dianteiro do lado esquerdo da viatura se ter afundado num buraco na via pública, buraco que não estava tapado nem sinalizado e que não era visível por se achar coberto até ao cimo com água da chuva, sendo que, de seguida, se afundou  também o pneu dianteiro direito daquele autocarro. Tendo a A. dado conhecimento do acidente aos SMAS do Município de ... (Serviços Municipalizados de Água e Saneamento da Câmara Municipal de ...), estes informaram-na que haviam encaminhado o assunto para a A... que, no entanto, nunca contactou a A. Tendo esta entrado em contacto com ela, esta informou-a que a obra levada a efeito no local do acidente tinha sido dada de sub-empreitada à E... – Engenharia e Construções, S.A., recusando assumir a responsabilidade. De facto, como se veio a apurar, a Câmara Municipal de ... emitiu à ré A... – Investimentos e Imobiliário, S.A. o alvará de licença de construção n.º 587/2006, assumindo esta a qualidade de promotor na execução das obras de um Emissário entre a P... e C... e, nessa qualidade, a A... adjudicou a execução das obras de conclusão do referido emissário, em conformidade e de acordo com o projecto aprovado pelos SMAS de ..., à E... – Engenharia e Construções, S.A..  Os trabalhos referentes a essa empreitada ficaram concluídos em 24/05/2012 e, desde então, a A... não foi notificada, nem pelo Município de ..., nem pelos SMAS de ..., da existência, em momento anterior ao deste acidente, de mau estado do pavimento da travessia da EM 593.

Entendeu a Exma Juíza dar como não provada a sobre referida matéria de facto –al a) dos factos não provados – que se mostra fulcral na acção, com base no seguinte percurso argumentativo, que se  reproduzirá no seu essencial.

Em primeiro lugar põe em relevo o conteúdo do ofício da Câmara de ... junto a fls 150 dos autos (e de fls 153) onde se informa que a empresa E... não executou quaisquer trabalhos relacionados com a obra particular que decorria em Janeiro de 2014 no local onde ocorreu o acidente, e que essa obra – que, ao contrário do que aparece referido no auto de participação de fls 25, não abrangia «berma e via», mas apenas a berma, como o corrigiu em audiência aquele participante, testemunha ... – estava a ser executada pela sociedade “I..., S.A”. Tinha por objecto, de acordo com o informado a fls 153, a execução de passeios na EM 593 junto às piscinas de C... e na data do acidente a mesma encontrava-se suspensa.

Torna, por isso, claro a Exma Julgadora que as obras que estavam a ser executadas junto ao local e momento do acidente não tinham a ver com a via pública, mas com a berma da mesma. Referindo concretamente: «Significa, pois e ao invés do exarado na participação do acidente junta aos autos, que à data do acidente estavam de facto a ser efectuados trabalhos junto ao local onde o mesmo ocorreu mas que esses trabalhos foram pela sociedade I..., S.A. e já não pela chamada E... e bem ainda que não existiam quaisquer trabalhos na via mas apenas no passeio».

Refere subsequentemente que, resultando da documentação junta a fls. 128 a 132, que a garantia bancária referente à obra “Emissário de Águas Residuais Domésticas desde P... até C...” foi libertada, (por decisão tomada em reunião do Conselho de Administração dos Serviços Municipalizados de ... datada de 07/09/2012, fls. 131, em 26/09/2012), data em que foi cancelada pelo Banco S..., conforme atesta fls. 132), «a libertação de tal garantia, e consequente cancelamento por parte da instituição bancária, significa, como é bem de ver, que teve como causa a entrega da obra para a qual a garantia havia sido prestada». Põe ainda em relevo que, consoante docs de fls. 150 e 19/20, «os trabalhos executados pela ré/chamada no âmbito do alvará de obras indicado terminaram em 24/05/2012», data que corresponde – segundo o referido ofício do Município de ... constante de fls. 150 - à data da entrada em funcionamento do emissário a que estes autos se reportam».

Evidencia a Exma Julgadora que «as razões pelas quais (entendeu) não ter ficado provado que o buraco em causa teve origem numa má execução dos trabalhos por parte da chamada/2ª ré ou sua má conservação por parte das identificadas ré e chamada (e só estas), teve por base o depoimento de ..., funcionário da chamada e engenheiro civil que, de forma técnica, explicou a origem do buraco em causa, explicação essa que, além de não ter sido infirmada por outra prova, testemunhal ou documental, nos mereceu colhimento».

...

 Sendo, pois, em função deste depoimento e da circunstância da obra estar terminada e a respectiva garantia bancária ter sido libertada, que a Exma Julgadora concluiu no sentido de ser «evidente não ter ficado demonstrado que o buraco onde o veículo, seus pneus, se afundou decorreu da obra executada pela 2ª ré e no âmbito do alvará indicado».

               Entende este tribunal, na sequência da apreciação da totalidade da prova produzida nos autos, que a conclusão que a Exma Juiz da 1ª instância retirou da mesma, não é - pese embora a tenha reproduzido com inteira correcção - a adequada.

               Em primeiro lugar, e como o acentua a apelante, na medida em que a libertação da garantia bancária por parte do Município de ... – dona da obra – que ocorreu em função da recepção provisória da obra, nada ter a ver com o período de garantia da mesma, que, justamente, se inicia com aquela recepção provisória.

Isso mesmo foi, afinal, referido pela mencionada testemunha ..., que tornou claro que não tinha ainda ocorrido a recepção definitiva da obra, mas apenas a provisória – em Agosto de 2012 – e que a definitiva só ocorreria «após a garantia de 5 anos», «só depois é que é feita a recepção definitiva». 

               De facto, o nº 1 do artº 88º do Dec. Lei 18/2008 (Código dos Contratos Públicos) reporta-se à caução (correspondendo a garantia bancária, como é sabido, a uma das formas possíveis de a prestar), nos seguintes termos: «No caso de contratos que impliquem o pagamento de um preço pela entidade adjudicante, deve ser exigida ao adjudicatário a prestação de uma caução destinada a garantir a sua celebração, bem como o exacto e pontual cumprimento de todas as obrigações legais e contratuais que assume com essa celebração».

E o artº 397º do mesmo diploma refere-se já a realidade diferente - à  “garantia da obra”, estipulando: «1. Na data da assinatura do auto de recepção provisória inicia-se o prazo de garantia, durante o qual o empreiteiro está obrigado a corrigir todos os defeitos da obra. 2. O prazo de garantia varia de acordo com o defeito da obra nos seguintes termos: a) 10 anos, no caso de defeitos relativos a elementos construtivos estruturais; b) 5 anos, no caso de defeitos relativos a elementos construtivos não estruturais ou a instalações técnicas; c) 2 anos, no caso de defeitos relativos a equipamentos afectos à obra, mas dela autonomizáveis».

Na situação dos autos entende-se – até em função do depoimento da referida testemunha que o confirmou – que estará em causa a garantia de 5 anos a que se reporta a referida al b) do nº 2 do mencionado artº 397º, a qual, tendo a recepção provisória da obra ocorrido em Agosto de 2012, em Janeiro de 2014 ainda não tinha terminado.

Em segundo lugar, não pode ser despiciendo em matéria de facto a circunstância de ter sido apenas no âmbito deste processo e após várias indagações junto das entidades envolvidas – os SMAS, a A... e a E... – que se obteve  conhecimento,  em função do acima referido ofício de fls 153,  da existência de obras – suspensas, ao que parece  - na berma - e não na via - da EN em referência, no momento do acidente, obras essas adjudicadas a “I..., SA”. Até à junção aos autos desse ofício nenhuma alusão tinha sido feita às obras de execução de passeios na EM 593 junto às piscinas de C..., antes, e como o referiu a testemunha ..., agente da PSP, participante do acidente, lhe fora dito pelos funcionários do SMAS, que aí acorreram na sequência do pedido da A. para taparem e sinalizarem a vala, que a responsabilidade «tinha a ver com a E...». E o que a documentação junta à petição denuncia é a responsabilização pelo SMAS de ..., da A... e/ou  E... – cfr fls 19 a fls 23 - e daquela relativamente a esta – fls 45 – sem que nenhuma das três entidades, neste “empurrar de responsabilidades”, se tivesse sequer lembrado das obras de execução de passeios.

...

               Finalmente, não se tratando já de matéria de facto, mas, necessariamente, condicionando-a, há que acentuar que estando em causa a aplicabilidade à situação dos autos do disposto no artº 492º CC, se vem acentuando na doutrina e na jurisprudência o entendimento de que, estabelecendo esse preceito um regime de responsabilidade dependente de culpa, ainda que presumida, fundada na violação de deveres de diligência que devem ser observados na construção e na manutenção de edifícios ou outras obras, e «em face da dificuldade sentida pelos lesados na prova da causa da ruína», «deve bastar uma “prova de primeira aparência”, não contrariada por contraprova que torne duvidosa a prova oferecida, de que esta se deveu a vício de construção ou a um defeito de construção, para se dar este facto como provado». [1]

               Há mesmo jurisprudência que vai mais além [2], não apenas facilitando a prova ao lesado com a utilização de presunções de facto relativamente à ilicitude a que se reporta a previsão do artº 492º/1 CC, consubstanciada no vício de construção ou defeito de conservação, como acima se referiu, mas isentando-o mesmo dessa prova, na esteira do entendimento de Luís Menezes Leitão [3], autor que salienta: «A posição de alguma doutrina seguida unanimemente pela jurisprudência é a de que a aplicação desta presunção de culpa depende da prova de que existia um vício de construção ou um defeito de conservação no edifício ou obra que ruiu, prova essa que, de acordo com as regras gerais, deveria ser realizada pelo lesado. Discordamos, no entanto, salvo o devido respeito, dessa orientação, uma vez que fazer recair esta prova sobre o lesado equivale a retirar grande parte do alcance à presunção de culpa. Salvo no caso de fenómenos extraordinários, como os terramotos, a ruína de um edifício ou obra é um facto que indicia só por si o incumprimento de deveres relativos à construção ou conservação dos edifícios, não se justificando por isso que recaia sobre o lesado o ónus suplementar de demonstrar a forma como ocorreu esse incumprimento. É antes o responsável pela construção ou conservação que deve genericamente demonstrar que não foi por sua culpa que ocorreu a ruína do edifício ou obra — nomeadamente pela prova da ausência de vícios de construção ou defeitos de conservação ou que os danos continuariam a verificar-se, ainda que não houvesse culpa sua» [4]

               Ora, o que se verifica nos presentes autos é que a “E...”, chamada a intervir acessoriamente, não produziu qualquer articulado, e a “A...” nenhum esforço desenvolveu para demonstrar a existência de caso fortuito ou de força maior, culpa do lesado ou de terceiros – sequer, no que a estes podia dizer respeito, chamando a atenção para as obras no passeio cujo conhecimento, como já se referiu, adveio muito mais tarde e por outra via aos autos - ou que, mesmo que a”E...” tivesse adoptado a diligência devida, o evento danoso ainda assim teria ocorrido.

Sendo certo que resultou adquirido que o local onde se veio a verificar a vala na qual as rodas do autocarro da A. caíram, coincide com o local onde a E..., para colocar o emissário, procedeu à travessia da via. E que toda a faixa correspondente à colocação do emissário veio a ser arranjada depois do acidente a que se reportam os autos.

Nestas circunstâncias, o ruir do asfalto na estrada[5] permite inferir, em termos de presunção de facto, senão a inadequada reconstrução do mesmo após a colocação do referido emissário, pelo menos a sua não adequada manutenção, motivo por que há que dar como provada a matéria de facto a cuja impugnação a apelante procedeu, isto é, que, «nas circunstâncias de tempo, modo e lugar referidos em 1. dos factos provados o pneu da viatura aí também indicada afundou-se numa vala aberta na via pública, decorrente da obra particular executada no âmbito do alvará de obras de construção n.º 587/2006, concedida à dona da obra – A..., aqui ré».

Do que se veio de reflectir e concluir, logo se vê que se tem como aplicável à situação dos autos o disposto no já amplamente referido artº 492º/1 CC, onde se estipula que «o proprietário ou possuidor do edifício ou outra obra que ruir, no todo ou em parte, por vicio de construção ou defeito de conservação, responde pelos danos causados, salvo se provar que não houve da sua parte ou que, mesmo com a diligência devida, se não teriam evitado os danos», referindo o seu nº 2, que «a pessoa obrigada por lei ou negócio jurídico, a conservar o edifício ou obra responde, em lugar do proprietário ou possuidor, quando os danos forem devidos exclusivamente a defeito de conservação».

A circunstância de já não encontrar na instância o proprietário da obra, na medida em que o Município de ... foi absolvido da mesma, não obsta à responsabilização da R. A..., embora esta só possa ser obtida em função do referido nº 2 do artº 492º, e, por isso, apenas por referência a defeito de conservação. Com efeito, a A..., em função de negócio jurídico – empreitada – ficou obrigada, não apenas a construir, mas também a conservar a obra, e seguramente a fazê-lo durante o prazo da garantia da mesma que, como acima se assinalou, à data do acidente a que os autos respeitam ainda não estava terminado.

 Romano Martinez considera que se presume «a culpa do empreiteiro, nos termos do artº 492º CC, sempre que, por negócio jurídico (contrato de empreitada) celebrado com o proprietário ou possuidor da coisa, tenha sido encarregue de conservar o edifício que ruir, no todo ou em parte, por defeito de conservação» [6] . E prossegue acentuando que, «o empreiteiro poderá ser responsável, independentemente de culpa, pela actuação de terceiro que empregue na execução da obra, tanto trabalhadores, como subempreiteiros». Referindo no que respeita à responsabilidade objectiva, que se pode questionar «se, tendo o empreiteiro agido com diligência, tanto na escolha como nas instruções e fiscalização, mesmo assim deverá ser responsabilizado pela actuação culposa de trabalhadores ou de subempreiteiros», concluindo que a resposta tem de ser afirmativa, por três razões fundamentais: a primeira, porque é o empreiteiro que retira os benefícios da actuação de terceiros, pelo que deve suportar os prejuízos; a segunda, porque o dono da obra não deve sofrer as consequências da actuação desses terceiros (trabalhadores ou subempreiteiros); a última, funda-se no regime previsto no artº 800º do CC, porque tanto os trabalhadores como os subempreiteiros são utilizados por si no cumprimento de uma obrigação.

Por isso se deverá concluir nos autos pela responsabilidade da aqui R. A..., ainda que a obra tenha sido executada pela subempreiteira que escolheu, relativamente à qual poderá vir a obter regresso, sendo precisamente por isso que provocou a sua intervenção acessória [7]

Resta apenas observar, como o sublinha Ana Maria Taveira da Fonseca[8], e para melhor compreensão da responsabilidade que está em causa, que «o artº 486º, ao determinar que pode haver responsabilidade por omissão, quando havia obrigação de praticar o acto omitido em virtude de um negócio jurídico, está precisamente a referir-se a situações, como as reguladas no artº 492º/2, em que os potenciais responsáveis transferem para outrém o seu dever (de segurança) no tráfego».

Como é sabido, a responsabilidade civil por facto ilícito - e está em causa  responsabilidade delitual e subjectiva -  assenta sempre, no todo ou em parte, sobre um facto da pessoa obrigada a indemnizar.

Ora o Código Civil prevê especialmente três tipos de factos ilícitos: os que possam decorrer da ofensa do crédito ou do bom nome, artº 484º; os que possam decorrer de conselhos, recomendações ou informações, artº 485º; e os que possam decorrer de omissões, artº 486º. E estatui, no que a estas respeita, que «as simples omissões dão lugar à obrigação de reparar os danos, quando, independentemente dos outros requisitos legais, havia, por força da lei ou do negócio jurídico, o dever de praticar o acto omitido».

Na situação a que se reporta o artº 492º/1 CC - bem como, aliás, naquelas a que se reportam os arts 491º e 493º -  a obrigação de agir decorre da lei: trata-se de um dos casos de obrigação de agir especificamente prevista na lei. Na situação a que se reporta o nº 2 do artº 492º a obrigação de agir decorre do negócio jurídico.

Está em causa em qualquer dessas situações deveres cuja não omissão evita normalmente a produção do dano.

 É em função deste dever de prevenção do perigo que os danos originados pela ruína de edifício ou de outras obras se devem presumir ser causa da omissão daquele dever pela pessoa que criou ou mantém a concreta situação de perigo ou que estava obrigada à sua vigilância. Como o refere Antunes Varela «a pessoa que cria uma fonte especial de perigo para terceiros deve tomar todas as providências razoavelmente exigíveis com vista à prevenção de consumação deste risco. A isso o obriga o dever jurídico da prevenção do perigo» [9]

Mas o obrigado a agir, nas circunstâncias a que se reporta o artº 492º, pode afastar a presunção de que não adoptou as medidas destinadas a evitar o perigo criado, provando que agiu adequadamente, com o que afasta a especial ilicitude em causa e a culpa, ou pode provar uma circunstância fortuita (ou a ter como tal) que, funcionando como causa virtual, afaste a causa real resultante do não cumprimento adequado da obrigação de agir. O que significa que o lesante, nessa situação, obtém a paralisação da causa real (decorrente da omissão de um dever de agir), pela consideração da causa virtual do mesmo efeito danoso.

Nada disso fez a “E...”, que se remeteu nos autos ao silêncio.

Assim, atenta a já referida responsabilidade da A... pelos actos da subempreiteira que escolheu, deverá ser responsabilizada pelos danos da A.

               Os danos a indemnizar haverão de ser todos os que a A. pede, incluindo os referentes à paralisação do autocarro, não podendo deixar de se reconhecer que o avolumar destes foi consequência da falta de responsabilização atempada pela aqui R..

               Em conclusão:

I- Na situação dos autos impõe-se julgar provado que nas circunstâncias de tempo, modo e lugar que a A. invoca, o pneu da viatura da mesma afundou-se numa vala aberta na via pública decorrente de obra particular que havia sido executada no âmbito de um  alvará de obras de construção concedido pelos SMAS à R.

II – Essa alteração da matéria de facto resulta essencialmente da circunstância de ter resultado provado que a referida vala se verificou precisamente no local da via em que que tinha ocorrido a colocação de um emissário no âmbito daquela obra, sem que nem a R., nem a subempreiteira que utilizou para a construção da obra e cuja intervenção acessória nos autos provocou, tenham invocado a existência de qualquer causa estranha à via que justificasse a desagregação do asfalto.

III – A culpa presumida em que assenta o regime de responsabilidade a que alude o artº 492º CC não dispensa a demonstração da ilicitude do acto, consistente no vício de construção ou defeito de conservação, mas a dificuldade do lesado provar a causa da ruína justifica que a prova da mesma possa advir de uma “prova de primeira aparência”, desde que não contrariada por contraprova que a torne duvidosa.

IV - É em função do dever de prevenção do perigo que os danos originados pela ruína de edifício ou de outras obras se presumem ser causa da omissão daquele dever pela pessoa que criou ou mantém a concreta situação de perigo ou que estava obrigada à sua vigilância.

               V- Na situação dos autos a R. estava obrigada à vigilância da obra por força do contrato de empreitada celebrado com os SMAS e da circunstância do prazo de garantia da mesma, à data do acidente, ainda não se mostrar decorrido.

VI – O  empreiteiro deve ser responsabilizado, independentemente de culpa, pela actuação do subempreiteiro que utilizou na empreitada.

V - Pelo exposto, acorda este tribunal em julgar procedente a apelação e revogar a sentença recorrida, condenando a R. a pagar à A. a quantia de €10.953,86, acrescida de juros à taxa legal desde a citação até efectivo pagamento.

Custas na 1ª instância e nesta pela R.

                                                                                                       Coimbra, 20 de Fevereiro de 2019

(Maria Teresa Albuquerque)

(Manuel Capelo)

(Falcão de Magalhães)


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[1] - Ana Maria Taveira da Fonseca, «Responsabilidade civil pelos danos causados pela ruína de edifícios ou outras obras», em «Novas Tendências de Responsabilidade Civil», 2007, ps. 85 a 145.
Utilizando este entendimento, cfr Ac RL 20/9/2016, (Graça Amaral), de cujo sumário consta: «IV–A atribuição de presunção de culpa ao proprietário ou possuidor do edifício ou obra que ruir prevista no artigo 492.º, do Código Civil, assenta na ideia de que não foram tomadas as medidas (quanto à construção e/ou conservação) necessárias a fim de evitar o dano. V–A culpa presumida ínsita no referido preceito não dispensa a demonstração da ilicitude do acto, cujo ónus incumbe ao lesado.
VI– A natureza do facto ilícito em causa (falta de cumprimento dos deveres a observar na conservação do imóvel), permite que a sua demonstração seja feita por via de presunção judicial sempre que a causa do dano possa fazer concluir sobre a existência de defeito de conservação. VII – O ruir de parte da empena de um imóvel, sem que tenha sido feita demonstração quanto à existência de qualquer causa estranha ao edifício que originasse a queda da parede, permite inferir, em termos de presunção de facto, a inadequada conservação do edifício por inacção por parte do respectivo proprietário, no caso, a ré. VIII– Demonstrada a ilicitude do facto consubstanciada no defeito de conservação do imóvel e não tendo sido feita pela ré prova de que não houve culpa sua na produção do evento, não logrou a mesma em afastar a presunção de culpa que sobre si impendia, cabendo-lhe a responsabilidade pelos danos provocados no imóvel».

Tributário do mesmo entendimento é o Ac R.L de 29/11/2007 (Pº 8211/2007-8), acessível em www.dgsi.pt.
               A respeito da prova por presunções para provar
defeito de construção ou conservação, Vaz Serra, «Responsabilidade pelos Danos Causados por Edifícios ou Outras Obras» BMJ n.º 88, 14 e 36
[2]- Cfr  Ac RC 09/11/2005, (Monteiro Casimiro);Ac R P 11/12/2006 (Fonseca Ramos); Ac R L 16/3/2010 (Mª José Simões), de cujo sumário consta: «3. No entanto, não podemos deixar de concordar com a posição expendida a propósito do artº 492º do CCivil, por Menezes Leitão ao dizer, em síntese, o seguinte: “É antes o responsável pela construção ou conservação que deve genericamente demonstrar que não foi por sua culpa que ocorreu a ruína do edifício ou obra – nomeadamente pela prova da ausência de vícios de construção ou defeitos de conservação ou que os danos continuariam a verificar-se, ainda que não houvesse culpa sua”. 4. Assim, ao lesado apenas é exigível a prova do evento - in casu, a inundação na loja – havendo que concluir pela culpa presumida, reportada ou a vício de construção ou a defeito de conservação, caso não se demonstre a existência de caso fortuito ou de força maior ou a culpa do lesado; e desde que, evidentemente, o responsável não tenha feito a prova de que não houve culpa sua. 5. Pelo que, à ré caberia ilidir a presunção de culpa pela prova do contrário, isto é, teria de provar factos que excluíssem, ilidissem, a culpa presumida. Porém, a ré/apelante não logrou, demonstrar a existência de caso fortuito ou de força maior, culpa do lesado ou de terceiros, que não houve culpa sua ou que mesmo que se tivesse adoptado a diligência devida o evento danoso, ainda assim teria ocorrido. Por isso, não se pode deixar de concluir pela responsabilidade da ré pela inundação e consequentes danos»
[3] - «Direito das Obrigações»,, vol. I, 6.ª ed.,. 325,
[4]- Ana Maria Taveira da Fonseca, obra referida, p 115 e ss, critica esta posição, referindo a p 124: «Sem este mínimo de prova, de que a ruína se ficou a dever a vício de construção ou a defeito de manutenção, o proprietário, o possuidor e aquele que, por lei ou negócio jurídico , estiver obrigada  a conservar o edifício não podem, de iure condito” ser responsabilizados, nos termos do art 142º. A adoptar a solução preconizada por Menezes Leitão estaríamos a alargar o âmbito da presunção prevista no art 492º, pois passar-se-ia a presumir também a causa da ruína e não apenas a culpa». 
[5]-  «A ruína consiste na desagregação  e queda de uma parte – componente ou integrante – ou da totalidade de um edifício ou outra obra, não bastando uma mera alteração funcional dos mesmos», Ana  Maria Taveira da Fonseca, obra referida, p 139
[6] - «Responsabilidade do empreiteiro por danos causados a terceiros», em «Estudo em Homenagem ao Professor Doutro Pedro Sares Martinez », vol I, 2000, p 789
[7]-Ac R E 25/1/2018 (Florbela Moreira Lança) «Como deriva do n.º 1 do art.º 321.º do CPC, o pressuposto material da intervenção acessória é a titularidade, por parte do réu, de um direito de regresso relativamente a terceiro, reconduzindo-se o conteúdo desta faculdade ao jus que o Réu possui de vir a ser indemnizado por terceiro em consequência de ficar vencido na demanda e este há de provir da própria configuração jurídica da relação jurídica controvertida. A imposição dessa obrigação de responder pelo prejuízo decorrente do vencimento na causa pode decorrer da lei, de negócio jurídico ou de facto gerador de responsabilidade civil».
[8]- Obra citada, p 104

[9] - «Direito das Obrigações», 10ª ed, p  552