Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
360/10.5EACBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CACILDA SENA
Descritores: DEPOIMENTO INDIRECTO
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
MEIOS DE PROVA
AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
DECLARAÇÕES DE ÓRGÃO DE POLÍCIA CRIMINAL
DIREITO AO SILÊNCIO DO ARGUIDO
Data do Acordão: 06/16/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (INSTÂNCIA LOCAL DE MONTEMOR-O-VELHO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 55.º, N.º 2, 249.º, 250.º E 356.º, N.º 7, DO CPP
Sumário: I - Devendo os órgãos de polícia criminal colher, inter alia, notícias do crime, descobrir os seus agentes e praticar os actos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova (cfr. arts. 55.º, n.º 2, 249.º e 250.º, do CPP), nada impede que, uma vez assegurados os direitos de defesa do arguido, os mesmos órgãos reproduzam as diligências efectuadas e as conversas tidas, nos referidos âmbitos, em audiência de discussão e julgamento.

II - Neste contexto, nem o depoimento é indirecto - os órgãos de polícia criminal apenas relatam em tribunal o que os seus sentidos percepcionam -, nem está abrangido pela proibição de prova do art. 356.º, n.º 7.

III - Tão pouco esse depoimento frustra o direito ao silêncio do arguido.

Decisão Texto Integral:

 Acordam, em conferência, na 5ª secção, criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra:

 

I – Relatório

No processo identificado supra, foram os arguidos A... , B... ; e, C... , completamente identificado nos autos, submetidos a julgamento, vindo a final a ser proferida a seguinte decisão:

1- o arguido A... pela prática um crime de exploração de ilícita de jogo, p. e p. pelo artigo 108.º, nº1, com referência aos arts 1º, 3º e 4º, nº1, al g), todos do Dec Lei nº 422/89, de 02-12:

- numa pena de 5 (cinco) meses de prisão e 70 (setenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros) tendo por referência a sua situação económica;

- Substituir a predita pena de 5 (cinco) meses de prisão por 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (ao abrigo do art. 43.º, nº1, do C. Penal);

 Condenar o arguido, na pena total de 220 (duzentos e vinte) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), num total de € 1320,00 (mil trezentos e vinte euros).

2- O arguido B... pela prática um crime de exploração de ilícita de jogo, p. e p. pelo artigo 108.º, nº1, com referência aos arts 1º, 3º e 4º, nº1, al g), todos do Dec Lei nº 422/89, de 02-12:

- uma pena de 8 (oito) meses de prisão e 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de € 7,00 (sete euros);

- Substituir a predita pena de 8 (oito) meses de prisão (ao abrigo do art 43.º, do C.Penal) por uma pena de 240 (duzentos e quarenta) dias de multa, à taxa diária de € 7,00;

 Condenar o arguido, na pena total de 340 (trezentos e quarenta) dias de multa, à taxa diária de € 7,00 (sete euros) num total de € 2380,00 (dois mil trezentos e oitenta euros).

3 - A arguida C... pela prática um crime de exploração de ilícita de jogo, p. e p. pelo artigo 108.º, nºs 1 e 2, com referência aos arts 1º, 3º e 4º, nº1, al g), todos do Dec Lei nº 422/89, de 02-12:

-na pena de 3 (três) meses de prisão e 50 (cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros) tendo por referência a sua situação económica e os especiais encargos, nomeadamente, de natureza familiar que sobre si recaem;

- Substituir a predita pena de 3 (três) meses de prisão por 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros) (ao abrigo do art 43.º, nº1, do C. Penal);

 Condenar a arguida, na pena total de 140 (cento e quarenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros) num total de €700,00 (setecentos euros).

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Desagradado com o assim decidido, veio interpor recurso o arguido B... , despedindo a respectiva motivação com as seguintes

Conclusões:

             1. Atenta a motivação, o ponto 4 da matéria assente, quanto à responsabilidade atribuída ao Recorrente, assenta nas declarações da ASAE, produzidas em audiência, segundo as quais, “ o arguido B... que e identificou como sendo o fornecedor da máquina e que também compareceu no local”;

2. Atentas as normas vertidas nos artº 355 e 356º do CPP, com especial relevo para o nº7 deste último, as declarações eventualmente prestadas pelo Arguido, no momento e no local da apreensão, aos agentes da ASAE, não podem ser consideradas para a  formação da convicção do Tribunal em sede de julgamento.

3. Tendo-se o Arguido remetido ao silêncio, na audiência de julgamento, não pode ser valorada a sua, eventual, confissão do crime, ao ter assumido, na apreensão, perante os agentes da ASAE que era o “fornecedor” ou o proprietário da máquina de jogo. Este impedimento existe tenham as declarações em causa sido prestadas antes, ou depois, da efectiva constituição como arguido, uma vez que as “conversas informais” não podem ser valorizadas em sede probatória;

4- O ponto 4 da matéria assente foi incorretamente julgado, uma vez que resulta da tomada, a título de fundamento factual, de um meio de prova inadmissível por força das normas contidas nos artº 355 e 357º nº7 do CPP, pelo que deveria, o facto em causa, respeitante ao Arguido B... , ter-se por não provada.

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O recurso foi admitido.

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Respondeu-lhe o Magistrado do Ministério público junto do Tribunal recorrido, defendendo que o tribunal não baseou a sua convicção na “confissão” do arguido B... , mas sim na articulação da prova documental e pericial existentes nos autos com os depoimentos prestados em audiência de julgamento onde os mesmos relataram o que aconteceu no “ (...) Café” durante o ato inspetivo, onde o arguido foi chamado pela arguida C... , onde assumiu ser o dono das máquinas.

*

Já nesta Relação para onde os autos foram entretanto enviados, a Ex.ma Procuradora Geral Adjunta emitiu Parecer secundando a resposta e defendendo que o meio de prova utilizado não é proibido, não sendo aplicável ao caso o nº7 do artº 356º do CPP, sendo que as informações que colheram no local onde se encontravam as máquinas de jogo a laborar se inserem no âmbito do artº 249 do mesmo código.

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Questões a decidir:

É consensual quer na doutrina quer na jurisprudência, que são as conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação que delimitam os poderes de cognição do tribunal de recurso, sem prejuízo do conhecimento oficioso das nulidades e vícios a que se reporta o artº 410º do CPP.

Pois bem, o recorrente, embora não o tenha dito expressamente, veio invocar que a sua condenação assentou na valoração de um meio proibido de prova por ofender o disposto nos artº 355 e 356º nº7 do CPP.

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Fundamentação:

A decisão recorrida julgou os seguintes

Factos provados:

1 - Em 25 de Novembro de 2010, o arguido A... explorava o estabelecimento de bebidas denominado “ (...) Café” sita na Rua (...) , Montemor-o-Velho;

2 - incumbindo-lhe a gestão e o cumprimento das normas inerentes à atividade ai desenvolvida;

3 - nessa altura, a arguida C... , mãe do arguido A... , trabalhava como empregada de balcão naquele estabelecimento, cabendo-lhe, para além do atendimento geral, fornecer aos clientes as moedas necessárias ao acionamento e funcionamento das máquinas de jogo existentes naquele estabelecimento comercial.

4 - em data não concretamente apurada, mas anterior ao mês Novembro de 2010, o arguido B... acordou com o arguido A... colocar no referido estabelecimento, para exploração, uma máquina de jogos denominada “Quiosque internet”, destinando-se os lucros que viessem a ser obtidos a serem divididos entre ambos;

5 - no dia 25 de Novembro de 2010, cerca das 14h30, esta máquina de jogos encontrava-se no interior do referido estabelecimento ligada à corrente elétrica pronta a ser utilizada por qualquer cliente;

6 - a sobredita máquina é composta por TFT (1), um rato, um teclado e um CPU integrados num móvel de estrutura em madeira de cor cinzenta;

7 - e, destinando-se a ser usada por clientes do referido estabelecimento, desenvolvia o jogo do tipo “Slot Machine” designado por “Halloween” e o jogo de “Poker”.

8- o jogo de “Halloween” é um jogo de vídeo-rolo cujo objetivo consiste em obter combinações de símbolos premiadas, de acordo com a respetiva tabela de prémios:

-após a introdução de créditos em jogo, visualizam-se cinco colunas de três linhas perfazendo quinze símbolos com imagens alusivas ao respetivo tema;

-escolhida a quantidade de linhas em que se quer apostar e o número de créditos que se pretende apostar por cada linha e através do acionamento do respetivo botão, é iniciado o jogo;

- os rolos (símbolos) giram e detêm-se rapidamente, um a um, sequencialmente da esquerda para a direita;

-quando todos os rolos estão imobilizados uma de duas situações pode ocorrer:

-- não se obteve nenhuma combinação premiada sob qualquer das linhas de aposta e, neste caso, a jogada termina;

-- obteve-se uma combinação premiada, sob pelo menos uma das linhas de aposta e, neste caso, o jogador ganha os créditos correspondentes;

9 - o jogo “Poker” é um jogo de vídeo-poker cujo objetivo é o de conseguir combinações premiadas tais como: sequência real, sequência numérica, sequência de cor, Fullen, Trios; Pares, tudo dependendo fundamentalmente da sorte independentemente da perícia do jogador:

- para começar o jogo é necessário introduzir créditos, de seguida é escolhido o número de apostas pretendido;

- premindo o botão de iniciar /start (“DAR CARTAS” ou “DEAL”) é iniciado o jogo;

- surge então, em simultâneo, de forma aleatória e dispostas em linha no centro do ecrã, cinco cartas de face voltada. Cada uma destas cartas pertence a um baralho convencional, podendo, portanto, aparecer qualquer uma das 52 cartas ou o joker que, para o efeito de combinações, substitui qualquer carta;

1 TFT (thin film transístor – isto é ecrã plano tipo LCD).

- o jogador pode, nesta fase do jogo e se assim pretender, fixar alguma das cartas de modo a tentar aumentar a probabilidade de obter uma sequência premiada;

- de seguida a jogada prossegue aparecendo nove cartas em detrimento daquelas que não foram fixadas.

Assim uma de duas situações pode ocorrer:

-- não se obteve nenhuma combinação premiada e, neste caso, a jogada termina;

-- obteve-se uma combinação premiada, de acordo com a tabela de prémios e, neste caso o jogador ganha os créditos correspondentes, sendo-lhe dada a oportunidade de tentar duplicar os ganhos, ou seja, efetuar a dobra.

10 - os jogos acima referidos apresentam como resultado pontuações que são posteriormente convertidas em dinheiro, à razão de € 1,00 por cada ponto, sendo certo que tais pontuações são única e exclusivamente dependentes da sorte, ou seja o jogador não pode condicionar o seu resultado final;

11 - o arguido A... não estava autorizado a explorar a máquina no seu estabelecimento e o arguido B... não podia dar a mesma em exploração, por esta propiciar a obtenção de prémios que dependiam exclusivamente da sorte e que só podia ser praticado em locais autorizados;

12 - a arguida tinha conhecimento de que a referida máquina desenvolvia um jogo cujo resultado assentava exclusivamente na sorte e que o estabelecimento explorado pelo seu filho não possuía a necessária licença de exploração;

13 - apesar disso, todos os arguidos decidiram atuar da forma descrita propiciando aos clientes os meios e instrumentos necessários ao exercício de tal atividade.

14 - os arguidos sabiam que a sua conduta era punida e proibida criminalmente;

15 - o arguido A... é primário;

16 - por motivos profissionais, vive na (...), onde irá trabalhar, até ao final do mês, como administrador do parque de campismo, auferindo cerca de €600,00 de vencimento;

17 - como consequência dos investimentos que fez no sobredito estabelecimento paga €200,00 mensais ao Banco; tem ainda uma dívida de €400,00 referentes a IVA e IRS;

18 - a sua companheira não trabalha;

19 - tirou o 10º ano de escolaridade;

20 - o arguido B... foi condenado:

- em 07-06-2006, no proc nº 12/05.8F2FIG – 3º Juízo do T.J. da Figueira da Foz, pela prática, em 15-03-2006, de um crime de exploração ilícita de jogo, na pena de 160 dias de multa à taxa diária de € 3,50;

- em 20-05-2010, no proc nº 202/10.1GBPBL do 1º Juizo do T.J. de Pombal, pela prática, em 24-04-2010, de um crime de exploração ilícita de jogo, na pena de 140 dias de multa à taxa diária de €5,00;

21 - gere um estabelecimento de café snack bar “ (...) ” em Pombal, daí retirando um benefício de €470,00 e aí tomando as suas refeições;

22 - paga €260,00 de renda;

23 - tirou o 9º ano de escolaridade;

24 - a arguida C... encontra-se desempregada;

25 - tem um filho menor de 16 anos a seu cargo que estuda na escola profissional de Vagos, suportando uma despesa mensal de € 190,00; paga €150,00 de renda de casa;

26 - recebe €400,00 a titulo de pensão de alimentos (€300,00 para o filho + €100,00 para si) e efetua umas horas de limpeza, sempre que consegue trabalho;

27 - tem apoio da Santa Casa da Misericórdia e da Segurança Social;

28 - tirou o 6º ano de escolaridade.

*

E;

Não provados:

- se a máquina de jogo estava ou não ligada à internet.

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O tribunal motivou a sua convicção probatória nos seguintes termos:

A convicção do tribunal para a decisão de facto baseou-se na articulação da prova documental e pericial existente nos autos com os depoimentos prestados na audiência de julgamento:

- na diligência levada a cabo pelos inspetores da ASAE no estabelecimento “ (...) Café” no âmbito de uma ação de fiscalização, validada a fls 1;

- no depoimento das testemunhas D... , E... e F... , Inspetores da ASAE que tiveram intervenção na aludida ação de fiscalização e que descreveram o modo como a máquina funcionava.

Mais referiram em que circunstâncias se encontrava exposta a máquina em causa e a colaboração da arguida C... que se encontrava a servir ao balcão e que, confrontada com os documentos que viriam a ser apreendidos na mesma ação de fiscalização, nomeadamente nos apontamentos de fls 20-27 com listagens de clientes onde eram apontados os resultados obtidos pela referida máquina (por dias, horas e quantidade de dinheiro retirado da máquina, subtraído da quantia paga, em jeito de contabilidade) prestou informação sobre o modo de repartição dos lucros decorrentes desses jogos pelos arguidos (o arguido A... que explorava o estabelecimento e a sua mãe C... e o arguido B... que se identificou com sendo o “fornecedor” da máquina e que também compareceu no local).

Além disso, a arguida logo colaborou introduzindo na máquina um código alfanumérico que permitiu pôr a mesma em funcionamento: sem esse código, a referida máquina funciona como uma máquina “aparentemente” normal, do tipo jogos recreativos (“Tetris” ou outros). De salientar que a referida máquina pode funcionar com ou sem ligação à internet, o que, no caso, não foi apurado, ainda que sem relevância, uma vez que mesmo ligada à internet exige a introdução de moedas (dinheiro). Daí, o único facto dado como não provado.

No moedeiro da máquina encontravam-se a quantia de € 21,00 (fls 43).

Foi principalmente considerando a forma clara e descomprometida como estes inspetores afirmaram a caraterização e na natureza do material apreendido, bem como as finalidades dos dois tipos de jogos que eram desenvolvidos no estabelecimento de Café explorado pelo arguido A... (cfr fls 72 – alvará de exploração) que se formou a convicção sobre o tipo de jogos (de fortuna e azar) desenvolvidos pela máquina. Atendeu-se igualmente às fotografias diversas juntas aos autos (cfr. fotos de fls. 7 a 19; bem como aquelas que acompanham os relatórios periciais de fls 144 a 146) as primeiras das quais tiradas pelos Inspetores à medida que os jogos se iam desenvolvendo.

Convicção mais fortemente sustentada, na necessidade de introdução do referido código para eletronicamente, conseguir a comutação entre jogos de diversão e de fortuna e azar, assim facilitando a ocultação destes últimos.

Também não subsistiram dúvidas quanto ao conhecimento que os arguidos A... , B... e C... tinham das atividades que eram desenvolvidas no café, já que, para além daquilo que foi referido pelos inspetores sobre o acompanhamento que os arguidos dispensavam à atividade desenvolvida no estabelecimento, os referidos apontamentos são reveladores disso mesmo.

Relativamente aos antecedentes criminais do arguido B... , atendeu-se ao certificado do registo criminal de fls. 310 a 313, por crimes da mesma natureza, desvalorizando as suas declarações finais alusivas ao carácter “persecutório” da atuação dos Inspetores da ASAE e valorizando, no que diz respeito aos arguidos C... e A... , à abonação da sua conduta que foi feita por esses mesmos inspetores que salientaram que estes reagiram bem, revelando ser a primeira vez que praticavam tais atos e que não mais os repetiriam.

O Tribunal atendeu finalmente às únicas declarações finais dos arguidos, para atender às condições sócio-económicas dos mesmos.     

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Conhecimento do recurso

Como foi referido, o único fundamento do recurso reside na validade da prova que teve origem nas declarações dos inspectores da ASAE no que se reporta à culpabilidade do recorrente, que este entende constituírem prova proibida.

Mas, adianta-se já, sem razão.

São abundantes as decisões judiciais sobre a proibição de valoração de depoimento indireto, e em particular, sobre a questão da admissibilidade dos depoimentos dos órgãos de polícia criminal, nem sempre convergentes, mas mesmo as mais rigorosas quanto à admissibilidade dos depoimentos dos OPC quanto tomam notícia do crime, admitem excepções.

A propósito da questão ora levantada, já tomamos posição no Ac. desta Relação de 28.01.2015, proferido no Proc. 1150/09.3 GCVIS, que pode ser consultado em www.dgsi.pt , que agora se mantém.

No mesmo sentido, quanto ao caso do depoimento dos OPC’s, e melhor do que nós, veja-se o sumário a seguir transcrito do Ac STJ 15.02.2007, disponível em www.dgsi.pt.

I - Relativamente ao alcance da proibição do testemunho de “ouvir dizer”, pode considerar-se adquirido, por um lado, que os agentes policiais não estão impedidos de depor sobre factos por eles detectados e constatados durante a investigação e, por outro lado, que são irrelevantes as provas extraídas de “conversas informais” mantidas entre esses mesmos agentes e os arguidos, ou seja, declarações obtidas à margem das formalidades e das garantias que a lei processual impõe.

II - Pretenderá, assim, a lei impedir, com a proibição destas “conversas”, que se frustre o direito do arguido ao silêncio, silêncio esse que seria “colmatado” ilegitimamente através da “confissão por ouvir dizer” relatada pelas testemunhas.

III - Pressuposto desse direito ao silêncio é, no entanto, a existência de um inquérito e a condição de arguido: a partir de então, as suas declarações só podem ser recolhidas e valoradas nos estritos termos indicados na lei, sendo irrelevantes todas as conversas ou quaisquer outras provas recolhidas informalmente.

IV - De forma diferente se passam as coisas quando se está no plano da recolha de indícios de uma infracção de que a autoridade policial acaba de ter notícia: compete-lhe praticar “os actos necessários e urgentes para assegurar os meios de prova”, entre os quais, “colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime” (art. 249.º do CPP).

V - Esta é uma fase de pura recolha informal de indícios, que não é dirigida contra ninguém em concreto; as informações que então forem recolhidas pelas autoridades policiais são necessariamente informais, dada a inexistência de inquérito. Ainda que provenham de eventual suspeito, essas informações não são declarações em sentido processual, precisamente porque não há ainda processo.

VI - Completamente diferente é o que se passa com as ditas “conversas informais” ocorridas já durante o inquérito, quando já há arguido constituído, e se pretende “suprir” o seu silêncio, mantido em auto de declarações, por depoimentos de agentes policiais testemunhando a “confissão” informal ou qualquer outro tipo de declaração prestada pelo arguido à margem dos formalismos impostos pela lei processual para os actos a realizar no inquérito.

VII - O que o art. 129.º do CPP proíbe são estes testemunhos que visam suprir o silêncio do arguido, não os depoimentos de agentes de autoridade que relatam o conteúdo de diligências de investigação, nomeadamente a prática das providências cautelares a que se refere o art. 249.º do CPP”

É recorrente a ideia de que os órgãos de polícia criminal (OPC) sofrem de uma espécie de “capitis diminutio” que os excluiria da prova testemunhal, mas como é evidente, nada impede que os OPC deponham sobre factos dos quais tiveram conhecimento directo.  

Não obstante, o depoimento dos agentes policiais está sujeito a um regime diferente de quaisquer outras testemunhas, em virtude da proibição legal dos artigos 356.º, n.º 7, e 357, n.º 2.

Mas, é óbvio que nada impede um inspector da Polícia Judiciária, um agente da PSP, um soldado da GNR, etc., de depor sobre factos de que tomou conhecimento directo.”

Ora, foi o que aconteceu quando os inspectores da ASAE no estabelecimento de café em causa, onde encontraram indícios da prática do crime de jogo ilícito, efectuaram diligências em ordem a apurar quem eram os seus autores, designadamente, quem era o proprietário da máquina, pois que estas diligências que realizaram no local se inserem no âmbito das diligências cautelares de prova que lhe estão acometidas por força dos artºs 55º nº2, 249º.e 250º do CPP.

Apesar da proibição a que se reporta o nº7 do artº 356º do CPP, ou salvaguardada esta proibição, é evidente que aos órgãos de polícia criminal não está vedado ter com determinadas pessoas conversas que não são formalizadas em auto.

Essas conversas podem reportar-se a factos que estão em investigação e a fonte de informação pode até ser um suspeito do crime investigado.

Ao abrigo do disposto nos artigos 55.º, n.º 2, 249.º e 250.º do Cód. Proc. Penal, os órgãos de polícia criminal podem e devem colher notícias do crime, descobrir os seus agentes e praticar os actos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova, nomeadamente colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime e a sua reconstituição, nada impede que assegurados os direitos de defesa dos arguidos, os OPC reproduzam essas diligências e conversas em julgamento, como aconteceu no caso que nos ocupa relativamente ao arguido/recorrente que apareceu no café quando os inspetores tomavam notícia do crime e que se identificou como proprietário da máquina.

Ou seja, nem o depoimento é indirecto, os Inspectores relataram em tribunal aquilo que os seus sentidos percepcionaram, nem está abrangido pela proibição de prova do artº 356º nº7, mas insere-se no âmbito daquelas diligências que lhe estão acometidas com vista a levarem a bom porto as diligências de prova que lhe são acometidas por lei.

Por fim também não se vê que estes depoimentos frustrem o direito ao silêncio que o arguido adoptou.

É que, se o silêncio não o poder desfavorecer, também o não pode beneficiar, e se não fossem verdadeiros os factos que os órgãos de policia criminal presenciaram, ninguém melhor do que o arguido podia esclarece-los em tribunal, tentando repor a verdade de modo a, pelo menos, criar no tribunal a dúvida razoável de que eles não teriam ocorrido conforme foi relatado.

Assim, e sem necessidade de outras considerações é patente que o recurso não pode proceder. 

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Decisão

Nos termos e com os fundamentos expostos, acorda-se em negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida.

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Custas pelo arguido com a taxa de justiça que se fixa em 4 UC.

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Coimbra, 16 de junho de 2015

 (Texto elaborado e revisto pela relatora, artº 94º nº2 do CPP)

 

(Cacilda Sena - relatora)

(Elisa Sales - adjunta)