Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
8/04.7TASEI.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: DEFICIENTE GRAVAÇÃO DA PROVA
NULIDADE
SANAÇÃO DA NULIDADE
Data do Acordão: 03/21/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE SEIA - 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.ºS 363º E 364º, DO C. PROC. PENAL
Sumário: Quer a omissão de documentação, quer a documentação deficiente (que impossibilite a captação do sentido das declarações) constitui nulidade, a qual se tem por sanada, se não for tempestivamente arguida, contando-se o prazo de dez dias (cfr. artigo 105º, n.º 1, do C. Proc. Penal) a partir da audiência, acrescido do tempo que mediou entre a entrega do suporte técnico pelo sujeito processual interessado ao funcionário e a entrega da cópia do suporte técnico ao sujeito processual que a tenha requerido.
Decisão Texto Integral: I. Relatório

1. No âmbito do processo comum singular n.º 8/04.7TASEI, do 2º Juízo do Tribunal Judicial de Seia, foram os arguidos A..., B..., C... e “W... – ., SA”, todos melhor identificados nos autos, pelos factos constantes da acusação pública de fls. 1359 a 1370, pronunciados, sendo-lhes, então imputada a prática de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, na forma continuada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 107º, n.º 1 e 105º, n.ºs 1, 4, 5 e 7 do RGIT e 14.º, n.º 1, 26º e 30.º do Código Penal, e a última, ainda, pelo artigo 7.º do primeiro diploma legal – [cf. fls. 1804 a 1820].

2. Realizado o julgamento, por sentença de 08.02.2011, o tribunal proferiu a seguinte decisão:
“Pelo exposto, tendo em atenção as considerações produzidas e as normas legais citadas, julga-se pronúncia totalmente procedente, por provada e, em consequência, decide-se:
1) Condenar a arguida A..., como co-autora material e na forma consumada, de um crime continuado de abuso de confiança contra a segurança Social, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 6.º, n.º 1, 105.º, n.ºs 1 e 4 e 107.º, n.º 1, todos do RGIT e 30.º, n.º 1, do Código Penal, aplicável ex vi artigo 3.º, n.º 1, alínea a), do RGIT, na pena de 10 (dez) meses de prisão, que se substitui por 300 (trezentos) dias de pena de multa, à taxa diária de € 6,75 (seis euros e setenta e cinco cêntimos), o que perfaz o montante global de € 2.025,00 (dois mil e vinte e cinco euros), nos termos do disposto no artigo 43.º, do Código Penal;
2) Condenar o arguido B..., como co-autor material e na forma consumada, de um crime continuado de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 6.º, n.º 1, 105.º, n.ºs 1 e 4 e 107.º, n.º 1, todos do RGIT e 30.º, n.º 1, do Código Penal, aplicável ex vi artigo 3.º, n.º 1, alínea a), do RGIT, na pena de 9 (nove) meses de prisão, que se substitui por 270 (duzentos e setenta) dias de pena de multa, à taxa diária de € 7,00 8sete euros), o que perfaz o montante global de € 1.890,00 (mil oitocentos e noventa euros), nos termos do disposto no artigo 43.º, do Código Penal.
3) Condenar o arguido C..., como co-autor material e na forma consumada, de um crime continuado de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 6.º, n.º 1, 105.º, n.ºs 1 e 4 e 107.º, n.º 1, todos do RGIT e 30.º, n.º 1, do Código Penal, aplicável ex vi artigo 3.º, n.º 1, alínea a), do RGIT, na pena de 10 (dez) meses de prisão, que se substitui por 300 (trezentos) dias de pena de multa, à taxa diária de € 6,50 (seis euros e vinte e cinco cêntimos), o que perfaz o montante global de € 1.950,00 (mil novecentos e cinquenta cêntimos), nos termos do disposto no artigo 43.º, do Código Penal;
4) Condenar a sociedade arguida W... – ., SA, como autora material e na forma consumada, de um crime continuado de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 6.º, n.º 1, 7.º, 12.º, n.ºs 2 e 3, 105.º, n.ºs 1 e 4 e 107.º, n.º 1, todos do RGIT e 30.º, n.º 1, do Código Penal, aplicável ex vi artigo 3.º, nº 1, alínea a), do RGIT, na pena de 300 (trezentos) dias de multa, à taxa diária de € 7,50 (sete euros e cinquenta), o que perfaz o montante global de € 2.250,00 (dois mil duzentos e cinquenta euros).

Julga-se igualmente o pedido de indemnização civil deduzido pelo assistente/demandante I.S.S. procedente, por provado e, consequentemente, decide-se:

5) Condenar os demandados/arguidos A..., B..., C... e W... – ., S.A a pagarem solidariamente ao demandante/assistente I.S.S., a título de danos patrimoniais, a quantia de € 172.221,29 (cento e setenta e dois mil duzentos e vinte e um euros e vinte e nove cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal prevista no artigo 3.º, n.º 1, do Decreto – Lei n.º 73/99, de 16 de Março (sem prejuízo de outras taxas que entretanto, a este título, venham a entrar em vigor), a contar, relativamente a cada uma das quantias discriminadas no ponto 9.º dos factos provados (tabelas 1 a 3), do termo do respectivo prazo de pagamento voluntário até efectivo e integral pagamento.
(…)”.

3. Inconformados com a decisão recorreram os arguidos A..., B... e C... [o que fizeram em conjunto], extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:

1.ª A decisão do Tribunal de 1.ª Instância sobre a matéria de facto só é susceptível de impugnação, no caso de gravação de prova, e se esta tiver sido impugnada nos termos dos n.ºs 3 e 4 do art.º 412º do Código de Processo Penal;
2.ª O recorrente requer a reavaliação da prova testemunhal produzida e gravada na audiência, registada e transcrita em anexo, devendo ser reconhecida a errónea valoração da prova perpetrada pelo Tribunal a quo na formação da sua convicção, bem como reconhecido o erro de julgamento;
3.ª Por força do disposto na alínea c) do nº 2 do art. 410º do Código de Processo Penal, qualquer erro notório na apreciação da prova, é um vício que serve de fundamento ao recurso;
4.ª Para além disso existe erro de julgamento, nos termos do disposto no art.º 412º, porquanto os recorrentes discordam de factos que foram dados como provados, com base na apreciação da prova produzida;
5.ª Por outro lado, resulta do nº 4 do art.º 412º do Código de Processo Penal que “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artº 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação”.
6.ª Incumbindo ao recorrente, sempre que impugne a matéria de facto, como aqui acontece, o ónus de concretizar os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e, sempre que as provas tenham sido gravadas, deve referir-se o inicio e o termo da gravação de cada declaração, concretizando-se o excerto ou excertos do depoimento ou depoimentos em que se suporta essa impugnação.
7.ª O que, por deficiências técnicas da gravação, não é possível, como resulta da transcrição que se anexa, pois os depoimentos, tal como se encontram gravados, não podem ser utilizados convenientemente, como contraprova dos factos dados como provados, e que fundamentam a condenação dos arguidos.
8.ª Impõem-se assim a repetição dos depoimentos do arguido C..., e das testemunhas …………………………., porquanto todos eles são imprescindíveis para que seja garantido o direito à defesa dos arguidos.
9.ª Ad cautelum, diremos também que, matéria probatória reproduzida e especificada na motivação, impõe necessariamente uma decisão diversa da recorrida.
10ª A tese apresentada pela acusação faliu quer pela inconsistência que evidenciou, quer, como se demonstrará, pelo confronto com os depoimentos isentos, sérios, imparciais e convincentes prestados pelas testemunhas indicadas pela defesa.
11.ª Aliás, até os depoimentos das testemunhas de acusação, estão de acordo com a tese da defesa, e fundamentam-se em diversos elementos que se interligam em coerência, com a lógica e com a experiência comum dos Homens, contrariando a tese trazida pela acusação.
12.ª Os depoimentos das testemunhas da defesa, completamente isentas e independentes, a par das declarações do arguido, e de algumas testemunhas de acusação interligam-se, completam-se e são espontâneos. Não são contraditórios, e revelam um contacto directo com a realidade;
13.ª Não estão sequer reunidos os elementos que compõem o tipo de crime previsto no art.º 107º nº 1 do R.G.I.T., pelo qual os arguidos vêm acusados, porquanto nenhuma das testemunhas foi capaz de demonstrar que os salários sobre os quais foram calculados os descontos para a Segurança Social, foram efectivamente pagos;
14.ª Aliás o depoimento das técnicas da segurança Social, ………, efectivamente isento e imparcial, é claro, quando afirmam embora estejam convencidas daquele facto, não o podem garantir, o que só é possível por depoimento dos trabalhadores;
15.ª Sucede que, eram cerca de 120 trabalhadores, e só um número diminuto foi ouvido;
16.ª E mais ainda, uma das testemunhas da acusação, garantiu mesmo ter salários em atraso, desde Março de 2002, sendo que sobre o seu salário, a segurança social considerou os descontos legais;
17.ª A própria sentença assume a falta daquele elemento do tipo de crime quando reconhece desde logo quanto ao depoimento das instrutoras de Segurança Social “… admitindo, no entanto, que, através dessa entrega de declarações, não pode afirmar a 100% se efectivamente foram ou não liquidados os salários a que se referem, circunstância essa que apenas pode ser confirmada junto dos trabalhadores.”
18.ª Ora, admitindo tal facto, jamais os arguidos poderiam ter sido condenados, ou seja existe também uma contradição entre os factos provados e o Direito aplicável.
19.ª E ainda, a Meritíssima Juiz do Tribunal de que se recorre, deu como provados os factos constantes dos n.ºs 5., 6., 8., e 9., quando a prova produzida foi manifestamente insuficiente, senão mesmo contrária à da decisão tomada.
20.ª Circunscrevendo-se esta questão apenas ao arguido B..., pois não obstante este arguido haver sido Administrador da sociedade arguida em parte do período a que se referem os autos, o que ficou claramente demonstrado, é que este, nunca teve qualquer poder de decisão, nunca teve qualquer intervenção na área financeira, nunca teve qualquer intervenção no que diz respeito ao pagamento das contribuições para a Segurança Social.
21.ª Ora, para poder ser condenado por este crime não basta ser administrador, é também necessário desempenhar funções, ou ter poderes de decisão na área específica onde se verificou o ilícito, neste caso o pagamento ou falta dele das contribuições para a Segurança Social. E nesta matéria, não obstante ser administrador, este arguido não tinha qualquer intervenção nesta área., facto que ficou amplamente demonstrado. Contrariamente ao que resulta da sentença, este nunca teve o “domínio de facto” sobre a gestão administrativa e financeira da sociedade arguida durante o período de tempo em causa nos presentes autos.
22.ª A sentença erra ainda, ao não se pronunciar quanto ao facto de este arguido apenas ter sido administrador executivo a partir de 12 de Dezembro de 2003 e 03 de Janeiro de 2005, pois apesar deste facto ter sido dado como provado, não foi tido em conta na decisão.
23.ª Em direito Penal não é permitida a presunção contra “reo”.
24.ª Sendo certo que, em face da prova produzida, e até no mínimo dever-se-ia ter instalado no espírito do julgador, uma dúvida razoável e séria sobre a forma como os factos ocorreram, e do papel que o arguido B... desempenhou na sociedade arguida, pelo que deveria este arguido ser absolvido por recorrendo á aplicação do princípio “In dúbio pro reo”.
25.ª E até mesmo em relação a todos os arguidos deverá ser aplicado este mesmo princípio “In Dubio pro reo”, com a consequente absolvição, não com os fundamentos assentes no parágrafo anterior, mas efectivamente, porquanto a própria julgadora refere “ … admitindo, no entanto, que, através dessa entrega de declarações, não pode afirmar a 100% se efectivamente foram ou não liquidados os salários a que se referem, circunstância essa que apenas pode ser confirmada junto dos trabalhadores.”
26.ª Ou seja, existe a dúvida séria acerca do pagamento integral dos salários sobre os quais foi calculado o valor das contribuições em divida à Segurança Social.
27.ª A douta sentença recorrida fez assim, má interpretação dos artigos:
- 107º, nº 1 do RGIT, e
- 105º do RGIT.
28.ª Pelo que, deve improceder a acusação contra os arguidos B..., A... e C..., ou caso se entenda necessária para se concluir como supra se concluiu, sejam repetidos os depoimentos do arguido C... e das testemunhas supra referidas.

Ao decidir como decidiu, o Tribunal recorrido violou as disposições dos artºs 107º, nº 1, com referência aos artºs 105º, nºs 1, 4, 5, e 7, todos da Lei 15/2001 de 15 de Junho, 14º nº 1, 26º e 30º, do Código Penal, dos artºs 124º, 340º, 355º e 410º nº 2 alínea c) do Código de Processo Penal, e 103º da C.R.P.

JUSTIÇA.

4.º Ao recurso respondeu o Ministério Público, concluindo:
I. Toda a prova produzida em audiência tem que ser gravada em suporte idóneo que assegure a sua reprodução integral, quer o julgamento decorra perante tribunal singular, quer perante o tribunal colectivo, sendo que o não registo da prova consubstancia uma nulidade, sendo este regime aplicável quer aos casos em que a gravação é omitida, como também àqueles em que a mesma é deficiente.
II. Todavia, quanto a nós, apenas poderá acarretar uma idêntica consequência de nulidade – tal e qual a omissão de gravação -, o defeito de tal modo grave que não reproduza ou inviabilize a percepção de qualquer afirmação tida por relevante na crítica dirigida à decisão e na – consequente – impossibilidade de “comprovar” as alegadas razões probatórias por impossibilidade decorrente dessa deficiência da gravação, o que entendemos não se verificar no presente caso.
III. É certo que, escutadas as gravações efectuadas surgem por vezes determinados ruídos, todavia, em nosso entender, tais ruídos/perturbações na gravação não afectam a efectiva compreensibilidade dos depoimentos desde que escutados com a devida atenção e o volume elevado, nem afectam a reapreciação da prova, não se verificando, assim qualquer deficiência que comprometa a compreensão da prova produzida e que afecte a impugnação da matéria de facto fixada.
IV. O tribunal “ad quo” valorou e ponderou adequadamente a prova produzida, fazendo-o com o respeito pelos critérios legais consagrados no nosso ordenamento jurídico, relatando na sentença proferida a forma como foram dados como provados os factos que determinaram a condenação, fazendo a subsunção jurídica mais adequada face à prova feita, não se vislumbrando que pudesse ter existido outra posição por parte do tribunal.
V. No caso sub judice, nenhuma das conclusões extraídas da prova produzida em audiência de julgamento, e que permitiram alicerçar a convicção do Tribunal se mostram contrárias ao que efectivamente resultou provado, às regras da experiência ou à lógica corrente, não se vislumbrando a existência de erro notório na apreciação da prova.
VI. Dos termos da própria sentença, da matéria de facto dada como provada e da motivação do tribunal, não resulta, a existência de quaisquer dúvidas no espírito do tribunal, quanto aos factos que foram dados como provados na sentença pelo que não deverá haver lugar à aplicação do princípio do in dubio pro reu, no caso em apreço.
VII. Considera o Ministério Público que as deficiências da gravação não afectam a percepção da prova produzida e que a sentença recorrida aplicou correctamente os critérios legais referentes à valoração de tal prova, tendo feito uma adequada e ponderada aplicação dos princípios e normativos legais aplicáveis, fazendo a correcta subsunção jurídica, em virtude do preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos do crime em referência, não merecendo qualquer reparo a decisão proferida, que assim deve ser mantida, nos seus precisos termos.

5. Também o assistente e demandante, Instituto da Segurança Social IP, respondeu ao recurso, o que fez pela forma constante de fls. 3334 e ss., cujo teor se dá por reproduzido, concluindo no sentido de dever ser negado provimento ao recurso, mantendo-se integralmente a sentença recorrida.

6. Por despacho proferido na 1.ª instância, a fls. 3317, foi admitida a desistência do recurso, entretanto, apresentada pelos até, então, recorrentes A... e C....

7. Admitido o recurso interposto pelo arguido B..., fixado o respectivo regime de subida e efeito, foram os autos remetidos a este tribunal – [cf. fls. 3341 e ss.].

8. Na Relação, o Ilustre Procurador – Geral Adjunto emitiu o parecer de fls. 3354 a 3358, pronunciando-se no sentido de o recurso não merecer provimento.

9. Cumprido o disposto no artigo 417º, n.º 2 do CPP, não foi apresentada resposta.

10. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos, forma os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objecto do recurso

a.
De harmonia com o disposto no n.º 1 do artigo 412.º do CPP e conforme jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito – [cf. acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19.10.1995, DR, I Série – A, de 28.12.1995].
A propósito da necessária correlação entre a motivação e as conclusões escreve Germano Marques da Silva: As conclusões devem ser concisas, precisas e claras, porque são as questões nelas sumariadas que hão-de ser objecto de decisão. As conclusões resumem a motivação e, por isso, que todas as conclusões devem ser antes objecto de motivação. É frequente, na prática, o desfasamento entre a motivação e as correspondentes conclusões ou porque as conclusões vão além da motivação ou ficam aquém. Se ficam aquém a parte da motivação que não é resumida nas conclusões torna-se inútil porque o tribunal só poderá considerar as conclusões; se vão além também não devem ser consideradas porque as conclusões são o resumo da motivação e esta falta [cf. “Curso de Processo Penal”, III, Editorial Verbo, 2009, pág. 347].

b.

Isto dito, impõe-se enfrentar como questão prévia, pelas consequências que dai podem advir, a alegada impossibilidade por parte do recorrente de dar cumprimento ao disposto no artigo 412.º, n.º 4 do CPP em consequência da deficiente documentação da prova produzida em julgamento, resultante da inaudibilidade de algumas passagens do registo áudio.
Com efeito, denunciando o vício, sem, contudo, o caracterizar, pugna pela repetição dos depoimentos das testemunhas identificadas no ponto 8. das conclusões, como forma de poder dar cumprimento ao disposto na supra citada norma.
Vejamos, então.
O Código de Processo Penal, na versão introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, veio pôr cobro às divergências que se fizeram sentir na jurisprudência quanto ao vício decorrente da falta de gravação da prova produzida em audiência.
A problemática colocou-se logo ao nível da finalidade da documentação das declarações, entendendo alguns que a documentação das mesmas, quando prestadas perante tribunal colectivo com arguidos presentes, não era imposta por lei, nem obrigatória, servindo apenas como instrumento de orientação do e para o próprio tribunal inteiramente livre de optar, ou não, pela documentação – [cf. acórdãos do STJ de 08.02.2001 (proc. n.º 3414/00 – 5.ª) e de 14.03.2001 (proc. n.º 254/01 – 3.ª)], enquanto outros defendiam não ser tal posição sustentável, após as alterações introduzidas no Código de Processo Penal. Pela Lei n.º 59/98, aduzindo que a documentação prescrita no artigo 363.º visava garantir os poderes de reapreciação da matéria de facto pelo tribunal de recurso e deveria verificar-se mesmo que o julgamento tivesse lugar perante o tribunal colectivo – [cf. acórdãos do STJ de 17.01.2002, CJACSTJ, X, T. I, pág. 173 e ss. e de 24.052001, CJACSTJ, IX, T. II, pág. 207].
O Supremo Tribunal de Justiça veio a uniformizar jurisprudência no sentido de que: A não documentação das declarações prestadas oralmente na audiência de julgamento, contra o disposto no art. 363.º do CPP, constitui irregularidade, sujeita regime estabelecido no art. 123.º do mesmo diploma legal, pelo que, uma vez sanada, o tribunal já dela não pode conhecer[cf. acórdão do STJ n.º 5/2002, DR., I Série, de 17 de Julho de 2002].
Com a revisão de 2007 que, alterando o quadro legal, fez caducar a jurisprudência do STJ, assim fixada, a audiência perante tribunal singular, colectivo ou de júri é sempre obrigatoriamente documentada – não podendo os sujeitos processuais da mesma prescindir -, sendo a nulidade a consequência resultante da não documentação – [cf. artigo 363º do CPP].
E que dizer acerca do vício resultante de gravação insuficiente, incompleta ou parcialmente inaudível?
Sobre tal aspecto pronunciaram-se vários arestos, referindo-se, a título exemplificativo, os acórdãos do STJ de 26.09.2007 [proc. 07P2052], de 01.02.2006 [proc. 05P1834], de 15.02.2006 [proc. 05P2874] – todos no sentido da irregularidade – artigo 123º do CPP – os acórdãos da Relação de Lisboa de 11.04.2000 [CJ, XXV, T. II, pág. 156] da Relação do Porto de 23.01.2002 [CJ, XXVII, T. I, pág. 226] e de 13.10.2004 [CJ, XXIX, T. IV, pág. 217], da Relação de Évora de 10.02.2004 [CJ, XXIX, T. I, pág. 261] e da Relação de Coimbra de 09.07.2003 [CJ, XXVIII, T. IV, pág. 36].
Perante as alterações introduzidas ao Código de Processo Penal, parece-nos isento de dúvida – embora continue a suscitar divergências, designadamente na jurisprudência – que quer a omissão de documentação quer a documentação deficiente [que impossibilite a captação do sentido das declarações] constitui nulidade, a qual se tem por sanada, se não for tempestivamente arguida, contando-se o prazo de dez dias (artigo 105.º, n.º 1) a partir da audiência, acrescido do tempo que mediou entre a entrega do suporte técnico pelo sujeito processual interessado ao funcionário e a entrega da cópia do suporte técnico ao sujeito processual que a tenha requerido[cf. Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal, pág. 923].
No caso concreto, a sentença foi publicada em 08.02.2011, tendo o recorrente requerido cópia dos registos áudio, tão só, em 18.02.2011, vindo os mesmos a ficar disponíveis em 23.02.2011 – [cf. fls. 2479, 2481], pelo que à data da interposição do recurso [17.03.2011] já se encontrava esgotado o prazo para arguir o vício, entretanto sanado – [cf. artigo 120º do CPP], decorrente da alegada deficiente audibilidade dos registos de prova.
Acresce que, não se tratando de nulidade da sentença, uma vez detectado, deve o aludido vício ser arguido perante a 1.ª instância e não já em sede de recurso, o que não sucedeu, não obstante resultar dos autos ter sido requerida [em 16.03.2011 - segundo dia útil após o termo do prazo] ao tribunal a quo a prorrogação do prazo de interposição do recurso - o que veio a ser indeferido -, sem que tal questão alguma vez tivesse sido suscitada.
Na verdade, como se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 02.06.2009: Mantém-se actual a jurisprudência a que Alberto dos Reis aludia, em sede de processo civil, quando citava o postulado “dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se”. Só a nulidade de sentença penal pode ser arguida em sede de recurso da decisão final e, portanto, em prazo superior àquele prazo legal supletivo, sendo certo que a nulidade por falta ou deficiência de documentação reporta-se a actos ocorridos numa fase prévia à sentença e que não a inquinam com qualquer nulidade das previstas no artigo 379º do CPP, pelo que se submete ao regime geral sobre nulidades processuais.
Termos em que se conclui no sentido de que a eventual nulidade, não sendo absoluta e não tendo sido, tempestivamente, arguida junto do tribunal de 1.ª instância, se encontra sanada.
Consequentemente, não há lugar à determinação da repetição dos depoimentos indicados no ponto 8. das conclusões e não tendo o recorrente cumprido os ónus impostos nos n.ºs 3 e 4 do CPP - o que em última análise ocorreu, conforme resulta do supra referido, por não ter agido com a diligência processual que lhe era exigível, logo sibi imputet - comprometido fica o conhecimento amplo da matéria de facto, a qual só pode ser sindicada no âmbito dos vícios de conhecimento oficioso.
Como assim, indefere-se a pretensão no sentido da reinquirição das identificadas testemunhas, rejeitando-se o recurso em sede do que se convencionou denominar por impugnação ampla da matéria de facto.

c.

Estamos, pois, em condições de delimitar o objecto do recurso, o qual, considerando o supra exposto em a. e b., importa que se decida se:

- Ocorre erro notório na apreciação da prova e/ou violação do principio in dubio por reo;
- Em consequência, resultam inverificados os elementos do tipo de crime.


2. A decisão recorrida

Na sentença recorrida ficou consignado:

A – Factos provados:

Discutida a causa, resultaram provados, com interesse para a decisão a proferir, os seguintes factos:

1.º A W... – ., S.A. é uma sociedade anónima com o NIPC … , matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Seia, que tem por objecto a indústria e comércio …….., estando sediada em … , Seia, e inscrita na Segurança Social com o NISS … , tendo sido declarada a sua falência por decisão judicial transitada em julgado em 26 de Setembro de 2005;
2.º A arguida A... foi administradora executiva da sociedade arguida W... – ., S.A. desde 26 de Outubro de 1999 até ao seu encerramento em 03 de Janeiro de 2005, tendo a seu cargo o pelouro administrativo e financeiro;
3.º O arguido B... . foi administrador não executivo da sociedade arguida W... desde 26 de Outubro de 1999 e administrador executivo desde 12 de Dezembro de 2003 até ao seu encerramento em 03 de Janeiro de 2005;
4.º O arguido C..., pai dos arguidos A... e B... foi administrador não executivo da sociedade arguida W... desde 26 de Outubro de 1999 e administrador executivo desde 12 de Dezembro de 2003 até ao seu encerramento em 03 de Janeiro de 2005;
5.º Desde 26 de Outubro de 1999 até à data do seu encerramento, em 03 de Janeiro de 2005, quem efectivamente administrou a sociedade arguida W..., decidindo sobre os destinos da sociedade e tomando todas as decisões inerentes ao seu funcionamento, foram os arguidos C..., B... . e A...;
6.º Ora, no decurso do exercício da sua actividade comercial, a sociedade arguida, representada pelos demais arguidos, procedeu, como legalmente lhe competia, ao desconto, nos salários efectivamente pagos aos seus trabalhadores e aos membros dos órgãos estatutários, das contribuições devidas à Segurança Social;
7.º Tais cotizações são determinadas pela incidência das percentagens fixadas na lei sobre as remunerações efectivamente pagas, devendo ser descontadas nessas renumerações e pagas pela entidade empregadora, juntamente com a contribuição própria, nos termos do disposto nos artigos 5.º, n.º 2, da Lei n.º 103/80, de 09 de Maio, 30.º, 45.º, n.º 1, 47.º, n.º 1 e 81.º, da Lei de Bases da Segurança Social e Lei n.º 32/2002, de 20 de Dezembro;
8.º Sucede, porém, que, em meados de 2002, os arguidos decidiram que, a partir de Julho de 2002, a sociedade arguida W... continuaria a proceder, como até então, aos descontos legais e a entregar nos serviços da Segurança Social as respectivas folhas de remuneração, mas deixaria de entregar os montantes referentes às retenções das cotizações da Segurança Social, passando a utilizar tais montantes em proveito da sociedade arguida, integrando-os na esfera patrimonial desta sociedade;
9.º Assim, de comum acordo e em conjugação de esforços, os arguidos A..., B... e C..., em representação da sociedade arguida W..., retiveram e não entregaram à Segurança Social, o montante global de € 172.211,29 (cento e setenta e dois mil duzentos e onze euros e vinte e nove cêntimos), conforme seguidamente se discrimina:
i. € 139.064,36 (cento e trinta e nove mil sessenta e quatro euros e trinta e seis cêntimos), relativos ao regime geral dos trabalhadores por conta de outrem, calculados com a aplicação da taxa de 11% às remunerações base de incidência efectivamente pagas (tabela 1);
ii. € 27.520,45 (vinte e sete mil quinhentos e vinte euros e quarenta e cinco cêntimos), relativos ao regime geral dos trabalhadores por conta de outrem – jovens à procura do 1.º emprego e desempregados de longa duração – indústria de lanifícios, calculados com a aplicação da taxa de 11% às remunerações base de incidência efectivamente pagas (tabela 2);
iii. € 5.626,50 (cinco mil seiscentos e vinte e seis euros e cinquenta cêntimos), referentes ao sub-regime dos membros dos órgãos estatutários das pessoas colectivas ou equiparadas da indústria de lanifícios, valor esse calculados de acordo com a aplicação da taxa de 10% às remunerações base de incidência efectivamente pagas (tabela 3):
Tabela 1
(Regime Geral dos Trabalhadores por conta de outrem)
Mês e anoContribuições retidasContribuições retidas e não entregues à Segurança Social
07/2002€ 4.365,60€ 4.365,60
08/2002€ 4.404,25€ 4.404,25
09/2002€ 8.827,98€ 8.827,98
10/2002€ 4.285,96€ 4.285,96
11/2002€ 4.243,98€ 4.243,98
12/2002€ 7.759,93€ 7.759,93
01/2003€ 2.253,32€ 2.253,32
02/2003€ 2.382,78€ 2.382,78
03/2003€ 4.014,96€ 4.014,96
04/2003€ 4.227,84€ 4.227,84
05/2003€ 4.323,76€ 4.323,76
06/2003€ 4.211,98€ 4.211,98
07/2003€ 4.257,90€ 4.257,90
08/2003€ 4.192,35€ 4.192,35
09/2003€ 8.525,63€ 8.525,63
10/2003€ 4.042,19€ 4.042,19
11/2003€ 3.953,71€ 3.953,71
12/2003€ 8.346,46€ 8.346,46
01/2004€ 4.314,15€ 4.314,15
02/2004€ 4.485,54€ 4.485,54
03/2004€ 4380,50€ 4.380,50
04/2004€ 3.971,16€ 3.971,16
05/2004€ 3.875,15€ 3.875,15
06/2004€ 4.864,88€ 4.864,88
07/2004€ 4.005,81€ 4005,81
08/2004€ 4.310,67€ 4.310,67
09/2004€ 8.121,81€ 8.121,81
10/2004€ 4.438,27€ 4.438,27
11/2004€ 3.675,84€ 3.675,84
Tabela 2
(Regime Geral dos Trabalhadores por conta de outrem – 1.º emprego e desempregados)
Mês e anoContribuições retidasContribuições retidas e não entregues à Segurança Social
07/2002€ 415,47€ 415,47
08/2002€ 1.135,21€ 1.135,21
09/2002€ 863,51€ 863,51
10/2002€ 1.115,30€ 1.115,30
11/2002€ 1.110,92€ 1.110,92
12/2002€ 2.159,71€ 2.159,71
01/2003€ 730,26€ 730,26
02/2003€ 742,39€ 742,39
03/2003€ 934,75€ 934,75
04/2003€ 942,75€ 942,75
05/2003€ 921,08€ 921,08
06/2003€ 910,16€ 910,16
07/2003€ 929, 32€ 929,32
08/2003€ 957,04€ 957,04
09/2003€ 1.819,36€ 1.819,36
10/2003€ 849,12€ 849,12
11/2003€ 881,33€ 881,33
12/2003€ 1.756,08€ 1.756,08
01/2004€ 865,72€ 865,72
02/2004€ 866,75€ 866,75
03/2004€ 821,90€ 821,90
04/2004€ 824,25€ 824,25
05/2004€ 802,88€ 802,88
06/2004€ 786,81€ 786,81
07/2004€ 770,42€ 770,42
08/2004€ 876,03€ 876,03
09/2004€ 1.731,93€ 1.731,93
Tabela 3
(Sub-regime dos membros dos órgãos estatutários)
Mês e anoContribuições retidasContribuições retidas e não entregues à Segurança Social
07/2002€ 0,00€ 0,00
08/2002€ 311,25€ 311,25
09/2002€ 0,00€ 0,00
10/2002€ 38,22€ 38,22
11/2002€ 311,25€ 311,25
12/2002€ 622,501€ 622,50
01/2003€ 311,25€ 311,25
02/2003€ 311,25€ 311,25
03/2003€ 311,25€ 311,25
04/2003€ 311,25€ 311,25
05/2003€ 137,93€ 137,93
06/2003€ 314,52€ 314,52
07/2003€ 311,25€ 311,25
08/2003€ 115,63€ 115,63
09/2003€ 311,25€ 311,25
10/2003€ 155,63€ 155,63
11/2003€ 155,63€ 155,63
12/2003€ 1.596,44€ 1.596,44

10.º Verifica-se, assim, que a sociedade arguida W... procedeu, nos períodos de tempo acima descritos, ao desconto, nos salários pagos, das contribuições devidas à Segurança Social, e não as entregou, como lhe competia, a tal instituição;
11.º Sendo certo que os aludidos pagamentos deveriam ter sido efectuados até ao 15.º dia do mês seguinte àquele a que as mesmas respeitavam, o que não sucedeu, nos termos dos artigos 5.º, n.ºs 3 e 6, do Decreto-Lei n.º 103/80, de 20 de Abril e 18.º, do Decreto-Lei n.º 140-D/86, de 14 de Junho;
12.º Acresce que, para além das contribuições retidas não terem sido entregues pela sociedade arguida W... no referido prazo, também não o foram nos 90 (noventa) dias que se seguiram;
13.º Não obstante, durante os sobreditos períodos de tempo, a sociedade arguida W... dispôs sempre de meios financeiros para cumprir as suas obrigações contributivas para a Segurança Social, porquanto, no aludido período, procedeu ao pagamento dos salários dos seus trabalhadores e órgãos estatutários, em cheque, dinheiro ou transferência bancária, assim como à liquidação de todas as despesas correntes da empresa, entre as quais energia eléctrica, água e telefones;
14.º Por carta registada enviada em 31 de Julho de 2009, foram os arguidos A..., B... . e C... notificados, a título pessoal e na qualidade de representantes legais da sociedade arguida W..., tendo esta sido igualmente notificada na pessoa do seu liquidatário judicial, nos termos e para os efeitos do disposto nos n.ºs 4 e 6, do artigo 105.º, do R.G.I.T., na redacção introduzida pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, não tendo, contudo, até à presente data, apresentado qualquer documento comprovativo do pagamento da importância em dívida;
15.º Os arguidos A..., B... e C..., na qualidade de representantes legais da sociedade arguida W..., tinham perfeito conhecimento de que as contribuições deduzidas do valor dos salários pagos aos trabalhadores e aos órgãos estatutários, pertenciam à Segurança Social e deveriam ser entregues a esta entidade, nos prazos já referidos, nos termos do disposto nos artigos 60.º e 62.º, da Lei de Bases do Sistema de Solidariedade e Segurança Social aprovado pela Lei n.º 17/2000, de 08 de Agosto, que revogou a Lei de Bases aprovada pela Lei n.º 28/84, de 14 de Agosto;
16.º Os arguidos adoptaram um comportamento de não cumprimento sistemático de tais obrigações, pois, mês após mês reiteraram o desígnio de não proceder à entrega das contribuições efectivamente deduzidas nas remunerações pagas aos seus trabalhadores e órgãos estatutários;
17.º E, não as entregando, actuaram como se as mesmas pertencessem à sociedade arguida W..., satisfazendo outros compromissos financeiros desta e integrando-as no giro económico daquela sociedade, estando plenamente cientes de que com tal conduta violavam a sobredita obrigação legal;
18.º Acresce que a descrita conduta dos arguidos foi facilitada pela circunstância de as entidades empregadoras, como a sociedade arguida W..., actuarem como substitutas legais do Instituto da Segurança Social, por via do mecanismo da retenção na fonte, uma vez que o próprio sujeito passivo da contribuição tem a obrigação de a auto-liquidar e proceder ao seu pagamento;
19.º Actuaram, assim, os arguidos, de acordo com o plano previamente estabelecido e em conjugação de esforços, com o reiterado propósito, conseguido, de fazer da sociedade arguida W... cada uma das importâncias devidas à Segurança Social e, destarte, com a intenção de obterem para a sociedade arguida W... um benefício patrimonial ilegítimo no valor global de € 172.211,29 (cento e setenta e dois mil duzentos e onze euros e vinte e nove cêntimos), em prejuízo da Segurança Social;
20.º Bem sabiam que, ao agirem da forma descrita, colocavam em crise o regular funcionamento do sistema da Segurança Social e dos interesses para esta servidos e que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

Demonstrou-se ainda que:

21.º A partir de Julho de 2002, a sociedade arguida W... deparou-se com a queda de procura proveniente do mercado a nível nacional e mundial, obrigando ao endividamento da referida sociedade, tanto mais que o Governo não cumpriu atempadamente os pagamentos a que se comprometeu no âmbito do apoio económico-financeiro que ficou de dar à dita sociedade aquando da sua constituição, o que culminou com a apresentação do processo especial de recuperação de empresa, que deu entrada em juízo em 08 de Setembro de 2004 e que correu seus termos neste juízo, sob o n.º 530/04.5TBSEI e que terminou com a declaração da respectiva falência na data mencionada em 1.º supra;
22.º Os constantes conflitos laborais, com sucessivos plenários, foi outro dos factores que trouxe para o seio da sociedade arguida W... grande instabilidade e que culminou com a ocupação das instalações da sociedade, em 03 de Janeiro de 2005, por alguns dos trabalhadores da sociedade arguida W..., com a expulsão dos Administradores eleitos e o encerramento definitivo das instalações, impedindo a laboração, num momento em que a dívida aos trabalhadores era apenas de parte do subsídio de Natal;
23.º A sociedade arguida W... nunca deixou de cumprir com as obrigações para com os seus trabalhadores, pagando sempre os salários, procurando dessa forma evitar problemas graves às pessoas que ali trabalhavam;
24.º No âmbito das funções referidas em 5.º, o arguido B... dedicava-se essencial, mas não exclusivamente, à área comercial, designadamente na angariação de clientes, dedicando-se ainda, embora em menor proporção, à gestão administrativa e financeira que incumbia em especial à arguida A... e ao arguido C....

Provou-se também que:

25.º O assistente I.S.S. reclamou créditos no âmbito do processo de insolvência referido em 22.º supra, no valor global de € 605.316,78 (seiscentos e cinco mil trezentos e dezasseis euros e setenta e oito cêntimos) correspondendo € 494.315,81 (quatrocentos e noventa e quatro mil trezentos e quinze euros e oitenta e um cêntimos) às contribuições referentes ao período contributivo de Junho de 2002 a Junho de 2005 e € 111.000,97 (cento e onze mil euros e noventa e sete cêntimos) aos respectivos juros de mora vencidos, calculados até Julho de 2005, invocando o respectivo privilégio creditório apenas no montante de € 61.452,50 (sessenta e um mil quatrocentos e cinquenta e dois euros e cinquenta cêntimos) e o restante como crédito comum;
26.º Os créditos referidos em 25.º foram verificados e graduados por decisão judicial de 10 de Agosto de 2006, já transitada em julgado;
27.º O processo de insolvência referido em 22.º encontra-se em fase de liquidação do activo, não tendo o assistente I.S.S. obtido, até à presente data, qualquer pagamento por conta dos créditos mencionados em 25.º.

Também ficou demonstrado que:

28.º A arguida A...:
a. É solteira, tem um companheiro, que faz assistência a terminais de multibanco, auferindo cerca de € 700,00 (setecentos euros);
b. Têm dois filhos, um com 6 (seis) anos de idade, que frequenta a escola pública e outro com 15 (quinze) meses de idade;
c. Vivem em casa arrendada, liquidando o montante de € 350,00 (trezentos e cinquenta euros), a título de renda;
d. É consultora de empresas, prestando actualmente serviços como profissional liberal, tendo, no entanto, concorrido a vários concursos públicos, estando a aguardar resposta;
e. Há meses que não presta qualquer serviço no âmbito das funções referidas em c) supra, sendo certo que o rendimento mensal auferido durante o ano de 2010 ascendia a cerca de € 600,00 (seiscentos euros) ilíquidos, sobre o qual incide uma penhora de 1/3;
f. Não pode usar cheques, nem contrair empréstimos bancários;
g. Recebe o montante de € 70,00 (setenta euros), a título de abono de família;
h. Completou o curso de economia;
i. Já foi condenada na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 15,00 (quinze euros), perfazendo o montante global de € 2.250,00 (dois mil duzentos e cinquenta euros), pela prática, em 01 de Dezembro de 2002, de um crime de abuso de confiança fiscal, no âmbito do processo n.º 45/04.1IDGRD, do 1.º juízo deste tribunal, por sentença datada de 15 de Abril de 2009 e transitada em 05 de Maio de 2009, pena essa que foi já declarada extinta, em 30 de Setembro de 2010, pelo respectivo cumprimento.
29.º O arguido B...:
a. É casado e tem dois filhos, um com 6 (seis) anos e outro com 11 (onze) anos de idade;
b. Trabalha na área comercial de uma empresa têxtil, sita em Castelo Branco, há cerca de 3 (três) anos, auferindo cerca de € 1.025,00 (mil cento e vinte e cinco euros), tendo ainda carro da empresa, gasóleo e telemóvel;
c. A sua mulher faz avaliações bancárias, auferindo uma média mensal de € 500,00 (quinhentos euros);
d. Vivem em casa própria, pagando o montante de € 435,00 (quatrocentos e trinta e cinco euros) a título de empréstimo bancário para a sua aquisição;
e. Contraiu ainda um empréstimo bancário para multiusos, cuja prestação mensal é de € 100,00 (cem euros);
f. Têm um carro oferecido pela mãe da sua mulher;
g. Estudou até ao 12.º ano de escolaridade e completou um curso técnico na área têxtil e de produção;
h. Já foi condenado na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de € 17,00 (dezassete euros), perfazendo o montante global de € 1.700,00 (mil e setecentos euros), pela prática, em 01 de Dezembro de 2002, de um crime de abuso de confiança fiscal, no âmbito do processo n.º 45/04.1IDGRD, do 1.º juízo deste tribunal, por sentença datada de 15 de Abril de 2009 e transitada em 05 de Maio de 2009, pena essa que foi já declarada extinta, em 01 de Fevereiro de 2010, pelo respectivo cumprimento;
30.º O arguido C...:
a. É divorciado e tem uma companheira, que é doméstica, não auferindo qualquer subsídio ou pensão;
b. Foi gestor de empresas, designadamente da W... – ., S.A., … , Lda. e actualmente está reformado, auferindo uma pensão de reforma no valor de € 1.100,00 (mil e cem euros), estando a mesma penhorada no montante correspondente a 1/3;
c. Vive em casa da companheira;
d. Despende cerca de € 100,00 (cem euros) mensalmente com despesas médicas;
e. Não tem veículo automóvel;
f. Não tem empréstimos bancários;
g. Estudou até ao 12.º ano de escolaridade;
h. Já sofreu as seguintes condenações anteriores:
1. Na pena de 300 (trezentos) dias de multa, à taxa diária de € 8,00 (oito euros), perfazendo o montante global de € 2.400,00 (dois mil e quatrocentos euros), pela prática, em 11 de Agosto de 2005, de um crime de abuso de confiança fiscal, no âmbito do processo n.º 100/05.0IDCTB, do 2.º juízo do Tribunal Judicial de Castelo Branco, por acórdão datado de 09 de Abril de 2008 e transitado em 29 de Abril de 2008, pena essa que foi já declarada extinta, em 25 de Novembro de 2010, pelo respectivo cumprimento;
2. Na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 10,00 (dez euros), perfazendo o montante global de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros), pela prática, em 01 de Dezembro de 2002, de um crime de abuso de confiança fiscal, no âmbito do processo n.º 45/04.1IDGRD, do 1.º juízo deste tribunal, por sentença datada de 15 de Abril de 2009 e transitada em 05 de Maio de 2009, pena essa que foi já declarada extinta, em 31 de Março de 2010, pelo respectivo cumprimento.
*
B – Factos não provados:

Não se provaram os seguintes factos com relevo para a justa decisão da causa:

a) Que o arguido B... fosse administrador executivo desde 18 de Junho de 2003;
b) Que nas circunstâncias descritas em 8.º supra, os arguidos A..., B... e C... decidissem que os montantes referentes às retenções das cotizações à Segurança Social seriam utilizados em proveito próprio, integrando-os na respectiva esfera patrimonial;
c) Que a notificação referida em 14.º supra ocorresse em 04 de Agosto de 2009;
d) Que nas circunstâncias descritas em 18.º supra, os arguidos A..., B... e C... actuassem como se as quantias aí referidas lhes pertencessem;
e) Que os arguidos A..., B... e C... actuassem com a intenção de obterem para si um benefício patrimonial ilegítimo no valor global de € 172.211,29 (cento e setenta e dois mil duzentos e onze euros e vinte e nove cêntimos).
*
C – Convicção do Tribunal:

Como é sabido, vigora entre nós o princípio da livre apreciação da prova, nos termos do disposto no artigo 127.º, do Código de Processo Penal.
Tal consagração legal não significa que o julgador possa proceder arbitrária e caprichosamente à avaliação da prova, ou que a lei lhe ofereça a faculdade de julgar como lhe aprouver, sem provas ou mesmo contra as provas produzidas, antes pelo contrário, este princípio significa que o tribunal deve julgar segundo a consciência que formou.
E, essa convicção é formada, não em obediência a regras preestabelecidas, a quadros, critérios ou ditames impostos por lei, mas sim através da influência que as provas produzidas exerceram no espírito do julgador, após as ter apreciado e avaliado, segundo critérios de valoração racional e lógica, e com apelo à sua experiência, sendo que, neste particular aspecto, não pode deixar de dar-se a devida relevância à percepção directa que a imediação e a oralidade conferem ao julgador.
Na verdade, o juízo acerca da verificação ou não de um determinado facto não assenta, como é lógico, num acto de fé, mas sim num procedimento baseado em juízos racionais, onde se procura reconstituir o facto histórico, usando a razão como instrumento.
Tendo por referência este princípio, importa referir que o tribunal formou a sua convicção no que concerne aos factos provados descritos em 1.º a 15.º, 21.º, 22.º, 23.º e 24.º supra (e, por se mostrarem em contradição com estes, como não provados os factos descritos em a) a e) supra), valorando, para o efeito, a prova documental junta aos 7 (sete) volumes que compõe os presentes autos (juntamente com o volume referente ao traslado) e a prova testemunhal também produzida em sede de audiência de julgamento, da forma como infra se descreverá, sem olvidar, como é óbvio, que os arguidos A... e B... . optaram por não prestar declarações (à excepção das respectivas condições económico-sociais e profissionais), ao passo que o liquidatário judicial da sociedade W... prestou declarações logo no início da audiência, sendo que o arguido C..., não só as prestou no início da audiência de julgamento, mas também ao longo das várias sessões que se realizaram, sobretudo após assistir aos depoimentos das testemunhas da acusação, mas também da própria defesa, com as quais discordava, pretendendo frisar, em todas essas intervenções, de forma impetuosa, que foi “injustiçado” e que o Estado é que faltou aos seus compromissos, na medida em que não desbloqueou, como havia prometido aquando da criação do projecto “W...”, os investimentos financeiros.
Assim, em termos documentais, foi valorado (e devidamente conjugado entre si) o teor: do auto de notícia de folhas 8 e 9; mapa de valores deduzidos e não pagos de folhas 10 a 15; carta enviada em nome da arguida W..., mas assinada pela arguida A... de folhas 51; acta da assembleia da sociedade W... realizada em 26 de Março de 2002 de folhas 52 a 59; carta endereçada por … , renunciando ao cargo de administrador, datada de 07 de Março de 2003, constante de folhas 87 e 88; organigrama da sociedade W... de folhas 89 a 92; acta da assembleia da arguida W... realizada em 04 de Abril de 2002 de folhas 130 (da qual resulta que o arguido B... esteve nela presente); auto de notícia de folhas 163 a 169 (referente à falta de entrega das cotizações relativas aos período de Fevereiro de 2003 a Novembro de 2003); folhas de remuneração constantes de folhas 170 a 177; registo de remunerações de folhas 178 a 181; acta da assembleia da arguida W... de folhas 286 a 288; recibos de remunerações de … , respectivamente, de folhas 463 a 470 e 475 a 482; declarações de I.R.S. de … , respectivamente, de folhas 484, 485 e 488, 489; recibos de remuneração de … , respectivamente, de folhas 490 a 497 e 500 a 506; extractos de declarações de remunerações dos trabalhadores referentes ao período de Junho de 2002 a Novembro de 2003, constantes de folhas 521 a 674; extractos de declarações de remunerações dos órgãos estatutários referentes ao período entre Junho de 2002 a Agosto de 2003, constantes de folhas 675 a 695; extractos de declarações de remunerações de folhas 696 a 742; carta assinada pela arguida A... endereçada ao assistente I.S.S., dando conta do engano da taxa aplicável às contribuições sociais de folhas 743; carta de igual teor mas assinada pelos arguidos B... e C..., respectivamente, a folhas 744 e 745; notificação do assistente I.S.S. nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105.º, n.º 4, alínea b), do R.G.I.T.; mapa de identificação das cotizações relativas ao período entre Junho de 2002 a Junho de 2005 de folhas 799 a 803; cálculo das cotizações e contribuições de folhas 804 a 807; listagem da conta corrente da arguida W... de folhas 866 a 872; notificações nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105.º, n.º 4, alínea b), do R.G.I.T. de folhas 898, 907, 910, 949, 950, 990 e 1003; carta assinada pelo arguido C... dirigida ao assistente I.S.S. de folhas 913 e 914; acta da comissão de credores formada no âmbito do processo de falência da arguida W... de folhas 972 a 975; cópias das remunerações dos trabalhadores (seguranças) após Dezembro de 2004 de folhas 969, 970 e 976 a 984 (isto é, daqueles que permaneceram a trabalhar nas instalações da arguida W... após a mesma ter sido encerrada); cálculo constante de folhas 1004; extractos de remunerações referentes ao período de Novembro de 2004 a Junho de 2005, de folhas 1010 a 1058, de Dezembro de 2003 a Outubro de 2004, de folhas 1060 a 1167 e de Dezembro de 2004 a Junho de 2005, de folhas 1169 a 1273; mapa com a identificação das cotizações relativas aos meses de Junho de 2002 a Junho de 2005, de folhas 1284 a 1287; notificações efectuadas nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105.º, n.º 4, alínea b), do R.G.I.T. de folhas 1289, 1294, 1299, 1304, 1309, 1314, 1319, 1324 e 1329 (das quais resulta que as respectivas cartas registadas foram remetidas em 31 de Julho de 2009 e não em 04 de Agosto de 2009, conforme constava da acusação); actas de folhas 1436 a 1414; cópias do pedido de recuperação da arguida W... de folhas 1622 a 1663; cópia da decisão proferida no âmbito do processo n.º 45/04.1IDGRD, do 1.º juízo deste tribunal de folhas 2824 a 2842; certidão comercial da matrícula da sociedade W... de folhas 2351 a 2354 (da qual resulta a data de nomeação dos arguidos como administradores executivos, sendo certo que, quanto ao arguido B..., tal nomeação ocorreu em 12 de Dezembro de 2003 e não em 18 de Junho de 2003, como constava da acusação); certidão judicial extraída do processo n.º 530/04.5TBSEI, deste juízo e, finalmente, a acta da assembleia da arguida W... n.º 14, de folhas 21 a 24 do traslado.
Por seu turno, atendeu-se ao depoimento de … , na qualidade de liquidatário judicial da sociedade arguida que, de forma espontânea, referiu que o conhecimento que tem dos factos em discussão nos autos lhe adveio do exercício das funções que desempenhou a partir do momento em que foi nomeado como tal no âmbito do processo de falência da sociedade arguida. Nessa medida, explicou que a empresa já tinha tido um processo de recuperação, que não teve êxito, o que motivou a sua falência. Referiu igualmente que analisou os documentos contabilísticos da empresa, tendo constatado que os salários foram sempre liquidados até Novembro de 2004, sendo certo que as quantias que se encontram descritas na acusação relativamente às contribuições da Segurança Social não foram efectivamente entregues ao assistente I.S.S. Verificou igualmente que, nesse período, o dinheiro que entrou em caixa foi utilizado para pagar as despesas de energia eléctrica, água e telefone, por forma a manter a empresa a funcionar, o que se tornou impossível a certa altura, porque as instalações foram fechadas por alguns trabalhadores (por não terem recebido o subsídio de Natal e o salário do mês de Dezembro) e contra a vontade da família … ; teve uma pequena reunião com a família … (precisando que a mesma decorreu apenas com os três arguidos), logo após a sua nomeação como liquidatário judicial, reunião essa durante a qual não existiu qualquer diálogo, porque os três arguidos mostraram-se muito reticentes e revoltados (precisou, também com relevo, que nessa reunião os três arguidos identificaram-se como administradores da sociedade arguida, daí os ter convocado para essa reunião, embora tenha reconhecido que o arguido C... monopolizou a reunião). Pormenorizou ainda que alguns documentos contabilísticos nunca foram encontrados e outros foram apreendidos pela Polícia Judiciária, motivo pelo qual não conseguiu apurar, com rigor, a liquidez da empresa.
Já o arguido C..., transparecendo sempre uma postura revoltada para com toda a situação que envolveu o encerramento da W... e utilizando um discurso muito confuso e sem fio condutor, pretendeu vincar três ideias bases: primeiro, que, a certa altura, não liquidaram os salários dos administradores da empresa; segundo: … também deveria estar a ser julgado, pois era o responsável pelo departamento que procedia ao pagamento dos salários e à retenção da contribuições sociais e, terceiro, que os seus filhos, co-arguidos, não eram administradores da arguida W..., logo, não tinham qualquer poder de decisão na sua gestão, não tendo assim qualquer participação na decisão de deixar de entregar as contribuições sociais.
Por forma a concretizar tais ideias, o arguido C... começou por dizer que sempre pagou os salários dos trabalhadores, embora, a certa altura do julgamento, também tenha referido que afinal não os pagava, embora continuasse a enviar as declarações para a Segurança Social, por forma a que os seus trabalhadores continuassem a ter assistência social (foi clara e evidente a confusão do discurso do arguido), o mesmo sucedeu em relação aos ordenados dos administradores, que, segundo, o arguido também não eram liquidados; depois também disse que sempre administrou sozinho a empresa desde 1999, mas depois, mais uma vez, num discurso pouco rigoroso, referiu que havia ainda um outro administrador (...) que também comandava a empresa (a postura assumida e o tom das suas declarações quando versou sobre esta matéria revelaram claramente o clima de tensão existente entre este arguido e o referido ..., como veremos melhor infra); disse igualmente que os arguidos A... e B... . não tinham nada a ver com a administração da W..., no entanto, quando foi instado pelo tribunal para explicar o porquê daqueles dois arguidos integraram a administração, o mesmo, hesitantemente, explicou que pediu para a sua filha o ajudar, por ter o curso de economista e o filho, porque percebia da direcção comercial, admitindo ainda que a sua filha residia nas instalações da W... (tinha um escritório só para si, estando afecta ao departamento financeiro) e que o seu filho chegou a assinar cheques da W... (tendo também um escritório só para si na empresa), embora frisando que os mesmos nunca participaram nas assembleias gerais da sociedade (note-se que esta afirmação mostra-se contrariada pelo teor das actas supra referidas, das quais consta que os arguidos B... . e A... também estiveram presentes em algumas desses plenários).
Importa, desde já, salientar que a versão descrita pelo arguido C..., que foi o único que, à excepção do liquidatário judicial da sociedade arguida, prestou declarações, não nos mereceu qualquer credibilidade, mostrando-se mesmo em confronto directo com a prova documental acima referida (entre o mais, as actas dos plenários; as missivas assinadas pelos três arguidos quando contactaram o assistente I.S.S. para resolverem este problema; o organigrama da empresa arguida; os extractos de remunerações remetidos ao I.S.S.) e, sobretudo, com os depoimentos claros, isentos, sinceros e convincentes das testemunhas ………………., todos eles trabalhadores da empresa arguida no período de tempo (ou, pelo menos, em parte dele) em referência nos presentes autos e que, por essa razão, mostraram ter conhecimento directo, não só sobre a factualidade atinente ao pagamento dos respectivos salários, como também, e com particular relevo para afastar a tese do arguido C..., sobre quem é que efectivamente administrada a empresa arguida.
Antes de justificarmos, porém, a importância que tais depoimentos tiveram na formação da convicção do tribunal, importa fazer prévia referência aos depoimentos de ……., respectivamente, instrutora do inquérito que deu origem aos presentes autos e técnica especializada do I.S.S. (desde Janeiro de 2008), ambas revelando conhecimento directo sobre os factos descritos na pronúncia, ainda que de forma parcial, relatando-os – na parte em que tiveram deles conhecimento por força do exercício das respectivas funções – de forma isenta, imparcial, séria e convincente, merecendo, por isso, total credibilidade.
Assim, a primeira explicou que apenas teve intervenção no inquérito quando este já se encontrava a meio, pois que, inicialmente, quem era o responsável era o Dr.º … , que entretanto deixou de trabalhar no I.S.S. e que, quando se tornou responsável pela investigação, teve o cuidado de analisar todas as cópias de remunerações que foram remetidas para o I.S.S., mapas actualizados das dívidas ao I.S.S., certidão do registo comercial da W... (para identificar os respectivos administradores); recolheu informações junto de alguns dos trabalhadores da W..., sendo certo que foi com base no mapa de trabalhadores efectuado pelo I.S.S. de acordo com os elementos inicialmente remetidos pela W... que concluíram que a mesma tinha retido e não entregue as contribuições no valor global de € 172.211,29 (cento e setenta e dois mil duzentos e onze euros e vinte e nove cêntimos). Concretizou que, depois de analisar toda a prova documental junta aos autos, é esse o valor que se encontra em dívida, sendo certo que, ao longo do processo, foram detectadas variações nesse valor, porque se efectuaram cálculos errados (aplicando-se taxas erradas) pelo que, quando detectaram esse erro (até por indicação dos arguidos – aliás, conforme se extrai do teor das missivas supra referidas que foram enviados por cada um dos arguidos ao assistente I.S.S., dando conta desse lapso), rectificaram-no logo, voltando a notificar os arguidos, nos termos do disposto no artigo 105.º, n.º 4, do R.G.I.T. com o montante correcto, que é o que consta da acusação e que actualmente ainda está em dívida. Também explicou, a instâncias da ilustre defensora dos arguidos, que efectivamente tomou conhecimento de que alguns salários não foram liquidados pela sociedade arguida, razão pela qual não foram os mesmos incluídos nos valores que constam do despacho de pronúncia, concretizando, ainda, que os valores constantes da pronúncia tiveram por referência o teor dos mapas/declarações remetidas pela própria sociedade arguida e as informações recolhidas junto dos seus trabalhadores.
No mesmo sentido, depôs a referida AM... esclarecendo igualmente que montantes é que se encontram em dívida, por referência à situação contributiva da sociedade arguida; que diligências foram tomadas pelo I.S.S. para chegarem a esse valor (explicando, para o efeito, que analisou as declarações entregues pela sociedade arguida e, depois, recorrendo à aplicação informática de que dispõe, fez um estudo, obtendo o valor global em dívida). Explicou, ainda, que a sociedade arguida, ao entregar as declarações de remunerações, fê-lo porque liquidou os respectivos salários, retendo ainda as cotizações devidas à Segurança Social, admitindo, no entanto, que, através dessa entrega de declarações, não pode afirmar a 100% se efectivamente foram ou não liquidados os salários a que se referem, circunstância essa que apenas pode ser confirmada junto dos trabalhadores.
Ambas referiram, no entanto, desconhecer a que membro ou membros estatutários incumbia a função de entregar as contribuições à Segurança Social, porquanto, para esse efeito, apenas analisaram a certidão do registo comercial da sociedade, dela extraindo a identificação dos administradores da mesma.
Com base nestes dois depoimentos, ficou o tribunal completamente esclarecido sobre a forma como se alcançaram os valores descritos no despacho de pronúncia quanto às contribuições retidas e não entregues, não havendo assim qualquer dúvida de que são esses os valores correctos, apesar de ter havido, durante o inquérito, algum oscilação nesses montantes que, conforme foi por aquelas duas testemunhas explicado, se ficaram a dever a uma errada, mas entretanto corrigida, aplicação da taxa de retenção.
Já no que concerne à identificação dos administradores da empresa arguida – ou melhor, dos responsáveis pela sua gestão e, sobretudo, a quem incumbia a decisão de proceder ou não à entrega das contribuições à Segurança Social – bem como quanto à efectiva liquidação dos salários dos trabalhadores e órgãos estatutários da sociedade arguida, o tribunal estribou a sua convicção, para além das testemunhas acima elencadas (trabalhadores da sociedade arguida), ao depoimento de … .
Esta testemunha, de forma desinteressada e convincente, iniciou o seu depoimento, afirmando que apenas teve contacto com o funcionamento da sociedade arguida durante 6 (seis) meses e já no decurso do processo de falência, incumbindo-lhe a função de executar as deliberações dos respectivos credores; iniciou esse contacto precisamente no dia em que os trabalhadores fecharam as portas da empresa, fazendo desaparecer muitos documentos; não teve qualquer contacto com a contabilidade da empresa, embora tenha tido conhecimento de que existiam dívidas à Segurança Social e que apenas não se encontravam liquidados os salários de Dezembro de 2004 e 15 (quinze) dias de subsídio de Natal de 2004, explicando, no entanto, que não foi certificar estes dados, porque a comissão de credores de que era o “porta-voz” “dava isto como um dado adquirido e de menos importância”. Por fim, frisou que o arguido C... tem uma personalidade muito forte, tornando difícil o diálogo, sendo certo que, ao que se recorda, teve uma reunião com este arguido, onde se encontrava presente igualmente a arguida A..., mas já não o arguido B... .. Disse ainda que o arguido B... . era, de facto, administrador da empresa W... (o que era do conhecimento de todos), mas era também visto como um colega de trabalho e um amigo dos trabalhadores.
Por sua vez, foi inquirido ..., em relação a cujo depoimento, temos de salientar, desde já, foi perfeitamente visível que o mesmo se encontra de relações cortadas com a família ... e sobretudo com o arguido C..., tendo sido notório o clima de tensão existente entre ambos (ao ponto do tribunal ter que intervir junto do arguido C..., advertindo-o de que não podia “comentar” as declarações daquela testemunha, sendo que esta, também é de referir, não se escusou de tecer comentários menos agradáveis em relação aos arguidos ao longo do seu depoimento, demonstrando, ainda que implicitamente, que nunca concordou com o facto daquela família ter “tomado conta” daquela empresa, de cujo projecto inicial também havia participado e em relação ao qual lhe foi prometida uma posição preponderante que, depois, não veio a ter reflexos práticos, circunstância esta que nunca foi digerida por esta testemunha, sendo evidentes que a mesma nutre pelos arguidos e, sobretudo, pelo arguido C..., sentimentos de retaliação e vingança (de notar, finalmente, que tal era o interesse desta testemunha que a mesma, após ter sido inquirida, e não obstante o período de tempo durante o qual se prolongou a realização da audiência de julgamento, ter estado quase sempre presente em todas as sessões, sendo certo que tal não se ficou a dever, segundo a nossa convicção, pelo simples facto de a audiência ser aberta ao público, mas sobretudo para verificar se os arguidos eram ou não condenados). Também é importante ter em consideração que esta testemunha é credora reclamante no âmbito do referido processo de falência e, ainda, autora no âmbito de um processo da jurisdição de trabalho contra a sociedade arguida. Todos estes factores, aliado ainda à própria postura desta testemunha quando inquirida (tendo previamente preparado o seu depoimento, munindo-se com documentos para poder exibir ao tribunal se fosse necessário, designadamente o organigrama da empresa para explicar quem é que a administrava – documento esse que, no entanto, já se encontrava junto aos autos), são reveladores do seu não descomprometimento e da sua parcialidade quanto ao desfecho deste processo, retirando-lhe, por isso, objectividade e isenção.
Deste modo, esta testemunha afirmou que trabalhou para a … (empresa a que sucedeu a W...) durante 35 (trinta e cinco) anos; quando aquela empresa fechou, tentou recolher subsídios para iniciar um novo projecto, juntamente com outros trabalhadores; teve conversações com empresas de Lisboa, sendo que, a dada altura, recebeu um telefonema do Sr.º Secretário de Estado, dando-lhe conta da existência de pressões para ser criada uma empresa juntamente com os arguidos C... e B... .; começou então o projecto da W..., tendo sido nomeado administrador em 1999, sendo certo que, de facto, nunca teve qualquer poder na empresa, porque quem mandava era a família ..., isto é, os três arguidos que “eram os donos e senhores da empresa”; não lhe agradava aquela situação, tendo pedido a renúncia ao cargo de administrador quando, certo dia, ao passar junto do escritório da arguida A..., verificou que sobre a mesa ali existente, se encontravam as guias de liquidação referentes às contribuições devidas à Segurança Social, não se encontrando as mesmas pagas; como até princípios de 2002, era ele próprio quem tinha essa função de liquidar as contribuições sociais, passando depois a ser a arguida A..., como responsável do departamento financeiro, achou aquilo muito estranho, tendo renunciado ao cargo por carta registada de 07 de Março de 2003 (até porque, como era uma empresa familiar, era visto como o “patinho feio”, segundo expressão usada por esta testemunha); referiu que a arguida A... era a responsável pela parte financeira, mas o “cérebro” era o pai, sendo que o arguido B... . dedicava-se mais à parte comercial, tendo conhecimento de tudo o que se passava; explicou ainda que os trabalhadores recebiam os salários, embora com alguns atrasos e que, depois de renunciar ao cargo de administrador, ainda se manteve como trabalhador, demitindo-se em Julho de 2003. Afirmou ainda que os três arguidos sabiam perfeitamente que existiam dívidas à Segurança Social, até porque para vincular a sociedade, eram necessárias duas assinaturas dos administradores. Descreveu igualmente a forma como estavam distribuídos os escritórios dos administradores na sede da sociedade, sendo que os arguidos A... e B... . tinham cada um deles um escritório e o arguido C... “andava por onde queria”. Por fim, referiu que não recebeu os salários como administrador durante alguns meses (primeiro dizendo que tal sucedeu em Março de 2002, depois dizendo que foi em Março de 2003) [na ordem dos € 30.000,00 (trinta mil euros)], desconhecendo se os outros administradores receberam, daí ter reclamado os respectivos créditos no âmbito do processo de falência, embora, de forma algo contraditória, afirmou igualmente que se não fossem liquidados os respectivos salários, também não trabalhava, à semelhança do que sucedia com os outros trabalhadores. Depois, fez ainda considerações sobre a má gestão financeira que os arguidos fizeram da empresa a partir de 2003, levantando “suspeitas” sobre a forma como foram aplicados os investimentos e subsídios que foram dados para implementar o projecto. Já a instâncias da defesa dos arguidos, referiu que desconhece qual dos três arguidos é que tomou a decisão de deixar de pagar a Segurança Social, embora os três tivessem conhecimento das decisões tomadas por cada um deles, até porque são pai e filhos, pelo que, sendo a arguida A... a responsável pela parte financeira e sendo necessárias duas assinaturas, mesmo quando o pagamento era feito por transferência bancária, sendo aposta a da arguida A..., teria ainda de constar ou a assinatura do arguido C... ou do arguido B... ..
De sublinhar que o depoimento desta testemunha, no que se refere à factualidade atinente ao pagamento dos salários dos administradores, mostrou-se pouco segura, rigorosa e objectiva, não se mostrando, assim, minimamente suficiente para convencer o tribunal de que os administradores da sociedade arguida não recebiam os seus salários, logo, não eram retidas as respectivas contribuições sociais.
De facto, a par da evidente falta de precisão quanto aos meses a que se reportava esse alegado não pagamento dos respectivos salários, não podemos deixar de sublinhar o facto desta testemunha ter revelado interesse directo nessa matéria, pois que, segundo afirmou, reclamou o pagamento dos alegados salários em atraso, quer no processo falimentar, quer no processo de trabalho (conforme cópia da respectiva petição inicial a que acima se aludiu), sendo certo que, em momento algum, foi capaz de precisar que concretos meses é que não obteve esse alegado pagamento, limitando-se a dizer que não recebeu alguns meses. Ademais, estas afirmações foram contrariadas pelos depoimentos convincentes e isentos do próprio liquidatário judicial e de Luís Duque que, cada um deles no exercício das suas funções, através da análise dos documentos contabilísticos que analisaram, confirmaram que, à data do encerramento da empresa, inexistiam salários em atraso, à excepção do mês de Dezembro de 2004. Também não é despiciendo afirmar, a este propósito, que o facto das quantias retidas equivalerem a zero nos meses de Julho de 2002 e Setembro de 2002, quanto ao sub-regime dos membros dos órgãos estatutários, inculca a ideia de que, nesses dois meses, não foram liquidados os correspondentes salários, pelo que, se outros meses houvessem em que não se procedessem ao pagamento dos salários, o procedimento a adoptar seria o mesmo, ou seja, também as declarações seriam entregues, com valor correspondente a zero, o que não se verificou, à excepção daqueles dois meses. Depois também se ateve ao facto de a testemunha … ter explicado que, efectivamente, tomaram conhecimento que alguns salários não foram liquidados, sendo certo que, por esse motivo, esses valores não foram contabilizados nos presentes autos. Ademais, e ainda que de forma indirecta, a testemunha … , cujo depoimento pouco relevo assumiu na formação da convicção do tribunal, porquanto o mesmo revelou que apenas foi administrador da sociedade arguida no período inicial, a convite dos arguidos B... . e C..., tendo participado em duas assembleias e rapidamente pediu para sair porque não “gostou da forma como estava a correr”, referiu, dizíamos, que os salários sempre foram pagos até ao encerramento da empresa, facto esse do qual tem conhecimento por manter o contacto com o arguido B... . que lhe relatou essa situação, sendo certo que, certamente se os administradores não recebessem o respectivo salário – designadamente a irmã do arguido (já que o próprio B... . e C... obtinham a respectiva remuneração através da empresa “ … ”). Por fim, por referência à crise financeira em que mergulhou a sociedade arguida e à tese do arguido de que os administradores, face a essa crise, foram os primeiros a ficar sem salários, resulta que, efectivamente, quanto a estes, as respectivas declarações de remuneração que deveriam ser remetidas ao I.S.S. deixaram-no de o ser em Dezembro de 2003, quando é certo que a sociedade só encerrou em Janeiro de 2005, o que nos permite concluir também que apenas durante esse período e em face da situação económica complicada em que se encontrava a empresa, os administradores deixaram de receber os respectivos salários, daí nada terem remetido ao I.S.S. as respectivas declarações de remuneração.
Por todos esses motivos, ficou o tribunal plenamente convicto de que os salários dos administradores (para além dos salários dos trabalhadores – tabela 1 e 2) foram liquidados nos meses descritos na tabela 3, do ponto 9.º dos factos provados tal como vinha referido no despacho de pronúncia Não podemos deixar de salientar o que a este propósito escreveram ANTÓNIO AUGUSTO TOLDA PINTO e JORGE MANUEL ALMEIDA DOS REIS BRAVO, segundo os quais: “[n]o caso de se provar que o devedor das prestações não entregues não deduziu nem reteve, nem recebeu nem liquidou, ainda que dolosamente, a prestação tributária (…) Ponto é que tal comprovação se faça de forma inequívoca e não mediante presunções ou interferências decorrentes da mera alegação do agente” – in Regime Geral das Infracções Tributárias e Regimes Sancionatórios Especiais Anotados, Coimbra Editora, 2002, páginas 337., falecendo assim, também neste ponto, a tese avançada pelo arguido C....
De igual forma, e como já se disse supra, o tribunal ficou integralmente convencido de que, à excepção da remuneração (ou parte dela) relativa ao mês de Dezembro de 2004, todos os salários por reporte às tabelas 1.º e 2.º, do ponto 9.º, dos factos provados foram efectivamente liquidados e, conforme admitido pelo próprio arguida C..., foram retidas e não entregues ao I.S.S as contribuições devidas tal como ali se encontra vertido.
Para o efeito, valoraram-se, como vimos, os depoimentos de ……………………………...
Com efeito, resultou de forma uníssona destes depoimentos que todos os salários foram liquidados até ao encerramento da sociedade arguida, à excepção do mês de Dezembro de 2004 e do subsídio de Natal, o que, aliás, motivou o encerramento da mesma, através da acção conjunta de alguns trabalhadores que impediram a entrada dos administradores em Janeiro de 2005. Também salientaram a forma como recebiam a respectiva remuneração (cheque, dinheiro e/ou transferência bancário), bem como o facto de, algumas vezes, terem ocorrido atrasos de dias nesse pagamento.
Por outro lado, e também por referência à mesma razão de ciência que todas estas testemunhas demonstraram, pelas mesmas foi igualmente corroborado (embora, note-se, umas tenham pormenorizado tal factualidade de forma mais pormenorizada que outras) que os três arguidos eram considerados por todos os trabalhadores como os verdadeiros “patrões” (embora sem conseguirem concretizar quais as concretas funções que cada um deles desempenhava), retirando assim qualquer credibilidade à versão veiculada pelo arguido C..., no sentido de que apenas ele é que mandava. Veja-se a afirmação da testemunha … quando, espontaneamente, disse que na altura em que a sociedade arguida iniciou a sua actividade (que também coincidiu com a sua admissão como trabalhadora da mesma), quem mandava era o ..., o … , depois “quem passou a mandar foi a … , o ... e o C...”, recebendo ordens de qualquer um deles (do arguido B... ., por exemplo, recebia ordens para fazer encomendas, por exemplo, sendo considerado pelos trabalhadores como administrador; a arguida A… dirigia a parte financeira – concretizou ainda com que frequência é que os arguidos se encontravam na empresa); com interesse, salienta-se ainda o que disse a testemunha … , quando referiu que “quem mandava na empresa, quem eram os donos da empresa, eram os três arguidos”, embora quem desse mais ordens era a arguida A…, pois estava na fábrica todos os dias); do mesmo modo, a testemunha … referiu que os três arguidos eram os seus patrões, sendo certo que o ..., apesar de inicialmente, também ser considerado como tal, a partir de determinada altura (não concretizando quando), passou a ser um trabalhador como os outros; ademais, concretizou que recebeu cheques relativos ao seu salário, assinados pelo arguido B... ..
Impõe-se ainda sublinhar que a testemunha … (que era secretária na W... – estava na parte dos escritórios) concretizou que a arguida A... estava sempre presente; raramente aparecia o arguido C... e, de vez em quando, também aparecia o arguido B... . (que estava mais direccionado para as vendas), sendo certo que todos eles davam ordens e todos eles usavam, muitas vezes, o mesmo escritório (era no mesmo espaço físico); referiu também que quem normalmente dava ordem de pagamento dos salários era a arguida A... e, depois, um dos outros administradores que estivesse presente: ou o Sr.º … (enquanto foi administrador), o arguido B... . ou o arguido C...; a própria testemunha é que preparava as folhas de pagamento dos salários, entregando-as em seguida à arguida A... ou a qualquer dos outros administradores que estivesse presente (os co-arguidos); pormenorizou ainda de que forma eram remetidas as declarações de remunerações e os respectivos extractos ao I.S.S.; disse ainda que nunca presenciou nenhuma conversa entre a arguida A... e o arguido C... em que este a desautorizasse, embora tenha ficado com a noção de que nas decisões mais importantes era este último quem tinha prevalência sobre os demais, embora, pudesse recorrer a qualquer um deles, indiferentemente, para pedir fosse o que fosse. Com extremo relevo, até porque se mostrou crível, ante o facto desta testemunha ter sido secretaria na sociedade arguida e, derivado desse facto, estar em condições de presenciar conversas que ocorressem no escritório, disse a mesma que como deixou de haver dinheiro, a decisão que os três arguidos tomaram foi pagar primeiro aos trabalhadores, depois se sobrasse alguma coisa, pagavam aos credores – “isto foi falado muitas vezes pelos administradores”. Por último, também descreveu os motivos que levaram ao encerramento da sociedade arguida (“não havia dinheiro para manter a fábrica aberta”, os trabalhadores revoltaram-se, começaram a fazer “greves e plenários”, sendo notório, na altura, que a relação entre o ... e os demais arguidos azedou por completo).
Pelo conhecimento directo que demonstraram, pela isenção, rigor e naturalidade com que depuseram, ficou o tribunal plenamente convencido da veracidade dos factos descritos, para além do mais, nos já referidos pontos 5.º, 6.º, 8.º, 9.º, 13.º, 15.º, 19.º e 24.º supra, no que tange à actuação conjunta dos três arguidos (e às funções que cada um deles desempenhava na administração da sociedade arguida), sendo certo que a decisão de não entregar as contribuições sociais nos prazos legalmente previstos para o efeito, apesar de as mesmas terem sido retidas, foi tomada pelos três em conjunto, até por força da circunstância de serem pai e filhos e, adiante-se, mesmo a admitir-se que o arguido C... tivesse de alguma forma (até pela sua personalidade forte, manifestada, desde logo, em julgamento) preponderância sobre os outros dois co-arguidos, a verdade é que, atendendo ao grau académico destes dois, os mesmos sempre teriam a possibilidade de actuar em sentido diverso (pedindo a renúncia, etc.) o que não fizeram, bem pelo contrário.
Importa sublinhar que esta convicção não foi minimamente abalada pelo teor dos depoimentos de … , ambas amigas de longa data, da arguida A..., ´(bem pelo contrário), cujo conhecimento sobre os factos aqui em discussão se revelou indirecto (aquilo que alegadamente a arguida A... lhes contava), sendo também manifesto que as respectivas declarações assentaram em opiniões e não em factos concreta e realmente percepcionados por reporte à matéria factual aqui em apreço.
Assim, pela primeira testemunha foi dito, com relevo, que a arguida A... viajava muito (o que, como vimos, foi contrariado pelo depoimento das testemunhas supra referidas que, enquanto trabalhadores da sociedade arguida, frisaram que esta arguida estava quase sempre na fábrica, embora algumas vezes – não muitas – se deslocasse a exposições); também disse, embora sem concretizar dia/ano e em que circunstâncias, que ouviu uma conversa da arguida, afirmando que só pagava os salários dos administradores depois de pagar os dos trabalhadores; frisou que o arguido C... era contra o relacionamento da arguida A... com o actual companheiro e que, muitas vezes, a desautorizava (sem concretizar, mais uma vez, em que circunstâncias, matérias, etc.); concretizou também que em finais de 2003, a arguida A... teve um filho, curiosamente desconhecendo se a mesma esteve de licença de maternidade (note-se que esta testemunha é madrinha do filho da arguida); aquando do respectivo contra-interrogatório, acabou por admitir que, afinal, não falava com a arguida sobre as decisões da fábrica, que nunca viu ou ouviu a ser desautorizada, dizendo, ainda assim (mas sem concretizar a respectiva razão de ciência nesta parte), que algumas delas foram tomadas à sua revelia (note-se que admitiu que nunca falou com a arguida sobre o não pagamento das contribuições à Segurança Social, do que, aliás, só teve conhecimento depois da sua amiga ser constituída como arguida neste processo). Por fim, disse que ofereceu dinheiro à arguida, mas não aceitou (o que inculca a ideia de que, sendo tão amigas, e se efectivamente arguida não recebesse o seu salário, nada obstava a que aceitasse o dinheiro para suprir as suas alegadas dificuldades económicas).
Já a segunda das referidas testemunhas explicou que sempre frequentou a casa da arguida A... e que esta comentou consigo que não estava a receber os salários, embora tenha reconhecido que tal sucedeu mais para o fim (o que nos permite concluir que, a não ter recebido os seus salários, enquanto administrador, tal terá sucedido já numa altura em que a sociedade arguida estava para ser encerrada, ou seja, em finais de Dezembro de 2004, circunstância esta que, aliás, resulta da própria análise da tabela 3 constante do ponto 9.º, dos factos provados, da qual consta que a partir de Dezembro de 2003, não foram remetidas mais declarações para a Segurança Social no que diz respeito ao sub-regime dos órgãos estatutários). Frisou que o arguido C... não aceitava o relacionamento da filha A... com o actual companheiro; que a arguida A... trabalhava na área financeira da sociedade arguida e, por vezes, na área comercial. Mencionou ainda que a arguida A... encarou este emprego com muito animo, com vontade de empreender novos projectos e que depois se “queixava” que não tinha liberdade para implementar esses projectos. De igual forma, sublinhou a personalidade forte do arguido C..., tendo, no entanto, a seguinte afirmação “se o pai lhe ordenasse para fazer algo ilegal, a A... não fazia”, expressão esta – espontânea – que infirma a ideia veiculada pelo arguido C... de que era o único que mandava e todos tinham que fazer o que ele queria, pois que, se a própria amiga, e de longa data, refere que a arguida A..., se não concordasse, não seria compelida pelo pai a fazer algo ilegal, então, é porque a mesma tinha liberdade para decidir sobre os seus próprios actos enquanto administradora da empresa, nomeadamente entregando as contribuições sociais retidas, mesma que o pai lhe dissesse o contrário, precisamente para não cometer “algo ilegal”. Por último, de notar que esta testemunha também afirmou que o nascimento do filho da arguida A... ocorreu em 08 de Abril de 2004 e que, embora tenha gozado de licença de maternidade, a mesma residia nas instalações da W... (ou seja, concluímos nós, à semelhança do referido pelos trabalhadores supra mencionados, que a mesma estava (quase) sempre presente).
Também foram inquiridos, como testemunhas de defesa, …………………, cujos depoimentos, importa referir, pouco relevo assumiram na formação da convicção do tribunal, sendo certo que nenhum deles teve o condão de enfraquecer a prova produzida pela acusação nos moldes supra descritos (bem pelo contrário, aliás).
Assim, salienta-se apenas que … mencionou que foi presidente da assembleia geral da sociedade arguida, tendo sido nomeado, como tal e ao que se recorda, em Março de 2003, permanecendo nessa função até ao momento que a mesma foi dissolvida; os telefonemas que nessa qualidade estabelecia com a administração da empresa, eram sobretudo com a arguida A..., embora algumas vezes, tenha falado com o arguido C..., tendo conhecido o arguido B... quando tomou posse e, depois, no decurso dos plenários e quando se deslocava à empresa; ficou com a ideia de que a pessoa preponderante era o arguido C..., embora quem tomava conta da administração corrente da sociedade, era a arguida A...; sublinhou, com espontaneidade, que as decisões eram tomadas pela arguida A... ou pelo arguido B... ., com intervenção ainda do pai, frisando, no entanto, que o arguido B... estava mais ligado à gestão das relações externas da sociedade; também com naturalidade, referiu que existiu ainda um outro administrador (o ...) que, na altura em que tomou posse, “já não mandava” e que achava que era um “missionário”; concretizou ainda a existência de conflitos laborais, greves e que a situação se tornou insustentável, sobretudo, a partir de finais de Setembro de 2004. Mencionou desconhecer quem é que tomou a decisão de não pagar as contribuições sociais ao I.S.S., embora fosse do conhecimento de todos os trabalhadores da empresa que tais pagamentos não estavam a ser feitos (aliás, os próprios representantes das entidades públicas chamaram a atenção para isso), sendo certo que os três arguidos, como administradores, também admitiam esse não pagamento, justificando tal facto pelas dificuldades económicas da sociedade arguida.
Já José Piçarra (que trabalhou para a empresa M. Carmona durante muitos anos, empresa essa que era gerida pelo arguido C...) limitou-se a transmitir a ideia ao tribunal de que o arguido C... tem uma personalidade muito difícil, que gosta de mandar e que a sua posição é que tem de prevalecer. Opinou no sentido de que o arguido C... não deixava os seus filhos decidirem (o que não deixa de ser estranho, acrescentamos nós, tendo em conta o grau académico de cada um deles e o facto da testemunha … ter dito que a arguida A... não fazia nada “ilegal” mesmo que o pai lhe dissesse para fazer) e que o arguido B... . “comportava-se como um vendedor” (sem explicar, no entanto, as razões de facto para tal afirmação), admitindo, no entanto, e já a instâncias do tribunal, que desconhecia quem é que tomava, em concreto, as decisões na sociedade arguida e, sobretudo, quem é que decidiu deixar de pagar à Segurança Social (até porque, conforme referiu, raras vezes foram aquelas em que visitou as instalações da sociedade W...).
O mesmo sentido tomou o depoimento de … que, admitindo conhecer o arguido C... desde infância, frisou apenas que o mesmo tem um feitio “de mandar nos outros”, revelando desconhecimento sobre a concreta forma como era gerida a sociedade arguida.
… , por seu turno, enquanto jurista, e já sem conseguir recordar-se de todos os pormenores, mencionou, no entanto, com clareza, a forma como foi criada a sociedade arguida, ou melhor, que objectivos estiveram na base da sua criação, as entidades que estiveram envolvidas e o papel que o mesmo desempenhou, no âmbito do exercício das suas funções profissionais, no acompanhamento desta empresa. Disse igualmente que o arguido C..., na altura da implementação deste projecto, surgiu com um papel principal, sendo o interlocutor com o Ministério da Economia. Chegou a falar com os arguidos B... . e A..., mas com quem normalmente estabelecia os contactos era o arguido C..., embora, tenha admitido que, internamente, desconheça a forma como as funções de cada um estava atribuídas e, designadamente, quem é que tomou a decisão de deixar de pagar à Segurança Social.
Quanto ao depoimento de João Azevedo, urge salientar o facto de o mesmo ter dito que trabalhou para a sociedade arguida entre Janeiro de 2002 e Dezembro de 2002, tendo saído da empresa de forma amigável; na altura em que saiu, o arguido B... . ficou responsável pela área comercial, área essa na qual a arguida A... também tinha alguma intervenção, pois, como sabia línguas estrangeiras, possibilitava o contacto com os fornecedores e clientes estrangeiros. De notar que, de forma pouco rigorosa, esta testemunha opinou no sentido de que era arguido C... quem tratava do pagamento e que “acha que os filhos nem sequer sabiam quanto ganhavam”, sendo certo que, a instâncias do tribunal, acabou por admitir que não sabia quem é que tratava dos assuntos relacionados com os pagamentos à Segurança Social, revelando assim desconhecimento sobre os concretos factos aqui em discussão.
A testemunha Luís Nunes, amigo do arguido B... ., limitou-se a dizer que tentou estabelecer relações comerciais com a sociedade arguida, mas o preço que era pedido, inviabilizou essas negociações. Também disse que o arguido B... . se apresentava como vendedor (e que, muitas vezes, nas negociações que estabeleceram, o mesmo tinha de contactar o pai para discutirem o preço), sendo certo que nunca comentou consigo que era administrador da sociedade arguida. À semelhança das demais testemunhas de defesa, acabou por admitir, a instâncias do tribunal, que nunca entrou nas instalações da sociedade arguida, desconhecendo assim como é que a mesma se encontrava organizada administrativamente, revelando-se, assim, o seu depoimento inócuo, ante o facto de não ter conhecimento directo sobre a factualidade em discussão nos autos.
De igual modo, … , amigo do arguido C... desde 1975, teve um depoimento pouco rigoroso, uma vez que, sem concretizar datas, disse, de forma pouco natural e pouco convincente, que a certa altura ouviu uma conversa entre a arguida A... e o arguido C... sobre o pagamento das contribuições à Segurança Social e que a primeira terá dito ao segundo que esse pagamento tinha prevalência sobre a liquidação dos salários dos trabalhadores e que o arguido C... lhe terá ordenado para não pagar aquelas contribuições. Não só pela forma como depôs – nada circunstanciada – mas também por se mostrar em completa contradição com o depoimento das próprias amigas da arguida A..., no sentido de que esta nunca iria fazer algo ilegal, mesmo que o pai assim o determinasse e, sobretudo, com o depoimento dos trabalhadores da sociedade arguida acima referidos, que, de forma objectiva, sincera e com conhecimento directo e circunstanciado dos factos, disseram que era do conhecimento de todos que os três arguidos deixaram de liquidar a Segurança Social (foi uma decisão da “família ...”) para pagar os salários, o tribunal não atribuiu qualquer credibilidade a esta testemunha.
A última testemunha inquirida foi precisamente … , já a requerimento dos arguidos ao abrigo do disposto no artigo 340.º, do Código de Processo Penal, de cujo depoimento relevou o facto de ter confirmado que, na qualidade de bancária, “guardava as folhas do I.S.S. da W... para proceder ao pagamento quando havia saldo na conta”; que existia uma ordem da sociedade arguida (sendo certo que foi sempre a arguida A... que comparecia no banco para examinar os papeis) para se fazer o pagamento mensal ao I.S.S. e que tal pagamento só não acontecia se não houvesse saldo, saldo esse que muitas vezes foi negativo, porque os fornecedores não pagavam e, por isso, não entrava dinheiro na conta, tendo sido a arguida A..., inclusivamente, a utilizar dinheiro das suas contas bancárias particulares para suprir esses saldos negativos.
De tudo o exposto, e em jeito de conclusão, tal como acima o referimos, resultou inequívoco que os três arguidos administravam, em conjunto, a empresa arguida, embora o arguido B... . estivesse mais direccionado para a área comercial (até por referência ao seu currículo académico) e que os três tomaram a decisão de não procederem ao pagamento das contribuições devidas à Segurança Social, apesar das retenções efectuadas nos salários dos seus trabalhadores e órgãos estatutários, decisão essa que tomaram não para utilizar o dinheiro retido em proveito próprio (veja-se que a arguida A... utilizou as suas próprias economias para suprimir o saldo negativo da conta bancária da sociedade arguida, tal como confirmado, de forma isenta e objectiva, pela testemunha … ), mas sim com vista a procederem ao pagamento dos salários desses trabalhadores, por forma a que a empresa pudesse continuar a laborar, atendendo à situação económica deficitária que a mesma atravessava, situação essa que, aliás, motivou a apresentação de um pedido de recuperação de empresa, sem êxito, que culminou com a sua declaração de falência e, em virtude do não pagamento do salário de Dezembro de 2004, com o encerramento das instalações por acção de alguns dos trabalhadores. Nenhuma prova foi, assim, efectuada (bem pelo contrário) no sentido de possibilitar a conclusão inequívoca de que os arguidos, ao reterem as cotizações em dívida, as quiseram utilizar em benefício próprio, integrando-as no património individual de cada um deles, daí a não prova dos factos descritos em b), d) e e) supra.
Por seu turno, para dar como provados os factos descritos nos pontos 16.º a 20.º supra foram tidos em consideração os restantes factos provados, uma vez que o dolo e a actuação conjunta nos moldes aí descritos, em termos processuais, assaca-se dos restantes elementos factuais. Com efeito, quem exerce uma actividade comercial (no âmbito de uma sociedade anónima, como era o caso, ocupando a função de administradores) e tem assalariados ao seu serviço, sabe estar obrigado, a reter as cotizações devidas à Segurança Social e a entregá-las dentro dos prazos legais, pelo que, ao agir do modo supra descrito, fá-lo deliberada, livre e conscientemente, com intenção de não as entregar, bem sabendo que a elas não tinha direito.
Já quanto à factualidade descrita em 25.º a 27.º supra, estribou-se a convicção do tribunal apenas e só no teor da certidão judicial oficiosamente junta aos autos, a folhas 2366 a 2401, cuja genuidade e fidedignidade não foi posta em causa.
No que tange aos factos descritos nos pontos 28.º, 29.º e 30.º supra, versando sobre a situação económica, familiar e profissional de cada um dos arguidos e respectivo antepassado criminal, foram valoradas as declarações da arguida A..., do arguido B... . e do arguido C..., respectivamente, quanto a essas condições, não havendo razões, nesta parte, para não acreditar nos factos relatados por cada um deles e, quanto aos antecedentes criminais, considerou-se tão só o teor dos respectivos certificados de registo criminal de folhas 2355 a 2365.

3. Apreciando

a.

É manifesta a discordância do recorrente relativamente à matéria de facto que vem dada por assente na sentença recorrida, a qual, não obstante, tendo presente o que supra se deixou consignado em II. 1. b., só pode ser sindicada no âmbito dos vícios de conhecimento oficioso, precludido que se mostra o seu conhecimento amplo, à luz do artigo 412.º do CPP.
Significa, pois, que se do texto da decisão, por si só ou conjugado com as regras da experiência, não resultar lacuna no apuramento de matéria de facto indispensável para a decisão de direito, incompatibilidade não ultrapassável entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão, tão pouco falha grosseira e ostensiva, perceptível pelo comum do cidadão, a denunciar violação das regras da experiência, juízos ilógicos, arbitrários, contraditórios ou desrespeitadores dos momentos estritamente vinculados da prova, a matéria de facto não é passível de ser censurada e, como tal, tem de permanecer inalterada – [cf. Simas Santos e Leal – Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, 6.ª edição, 2007, Editora Rei dos Livros, págs. 68 e ss.].
Na situação concreta convoca o recorrente o vício do erro notório na apreciação da prova, o qual diz ocorrer, sem que, contudo, resulte claro em que suporta a alegação.
Com efeito, depois de afirmar “Por força do disposto na alínea c) do n.º 2 do art. 410º do Código de Processo Penal, qualquer erro notório na apreciação da prova, é um vício que serve de fundamento ao recurso” [conclusão 3.ª], acrescenta terem-se mostrado os depoimentos das testemunhas da acusação de acordo com a tese da defesa, interligando-se com os respectivos depoimentos, bem como com as declarações do arguido, o que contrariaria a acusação [conclusões 11.ª e 12.ª] e, mais adiante, já a propósito do direito, após referir não ter ficado demonstrado que os salários, sobre os quais recaíram os descontos para a Segurança Social, hajam sido efectivamente pagos, aduz: A própria sentença assume a falta daquele elemento do tipo de crime quando reconhece desde logo quanto ao depoimento das instrutoras de Segurança Social “… admitindo, no entanto, que, através dessa entrega de declarações, não pode afirmar a 100% se efectivamente foram ou não liquidados os salários a que se referem, circunstância essa que apenas pode ser confirmada junto dos trabalhadores, para concluir: Ora, admitindo tal facto, jamais os arguidos poderiam ter sido condenados, ou seja existe também uma contradição entre os factos provados e o Direito aplicável [conclusões 17.ª e 18.ª].
Perante isto que dizer?
Afirmar, com veemência, a total falta de razão do recorrente, que “respiga” uma ínfima parte da motivação da matéria de facto, descontextualizando-a, para pôr em crise a convicção do tribunal, convicção, essa, clara, transparente, alicerçada em abundante prova, minuciosa e criticamente apreciada de acordo um processo lógico racional, coerente, que não deixa margem para qualquer dúvida, séria, porque ancorada nas regras da experiência.
E tal é a profundidade da fundamentação da matéria de facto, tanto ao nível da prova considerada relevante e o motivo porque o foi; quer da prova que não relevou e porquê, que tudo o que não seja remeter o recorrente para a fundamentação da sentença recorrida – consistente e racional – torna-se desnecessário, desde logo por repetitivo.
Não há, por conseguinte, o mínimo resquício de erro na apreciação da prova, muito menos notório, como inexiste sombra de contradição, menos ainda insanável, como, por fim, não se detecta qualquer lacuna para uma decisão jurídica criteriosa.
Com efeito, podem reduzir-se a dois os aspectos contra as quais se insurge o recorrente: um primeiro relativo ao pagamento efectivo dos salários sobre os quais foram deduzidas as contribuições para a segurança social; o segundo concernente aos poderes que detinha no seio da organização empresarial.
Contudo, quer quanto ao primeiro, quer quanto ao segundo a motivação da matéria de facto não deixa margem para dúvida relativamente ao acerto dos factos provados, não se vislumbrando, sequer, espaço para fazer funcionar o princípio in dubio pro reo, consagrado no artigo 32.º, n.º 2 da CRP, preconizado pelo recorrente.
Na verdade, tratando-se de princípio respeitante ao direito probatório, impõe que, sendo a prova incerta, suscitando dúvidas sobre os factos jurídico - penalmente relevantes, se decida a favor do arguido.
Porém, lida e relida a fundamentação da decisão em crise facilmente se constata que o tribunal a quo não ficou com qualquer dúvida sobre a matéria de facto, dúvida que este tribunal, privado que está da oralidade e da imediação, também não tem, pois que não nos assola - em face, repete-se, da expressiva motivação, com recurso a prova documental e testemunhal, criteriosamente apreciada - qualquer dúvida razoável, concretamente sobre a referida factualidade.
Por outro lado, não se detecta violação, aliás não concretizada, dos artigos 124º, 340º e 355º, do CPP, convocados, com o devido respeito, a despropósito, e o mesmo sucede relativamente ao artigo 103º da CRP.
Como tal, também aqui, falece razão ao recorrente.
Isto dito, não se detectando nenhum dos vícios a que alude o artigo 410º, n.º 2 do CPP, tão pouco a violação das regras relativas à valoração das provas, considera-se definitivamente fixada a matéria de facto.

b.

Da análise das conclusões resulta óbvio que a inconformidade do recorrente relativamente à verificação dos elementos típicos do crime pelo qual sofreu condenação tem como pressuposto a modificação da matéria de facto, desígnio que não logrou alcançar e consequentemente, também, nesta frente sucumbe a sua pretensão.
Não se mostram, assim, violados os artigos 107º e 105º da Lei n.º 15/2001, de 15.06, tão pouco os artigos 14.º, nº 1, 26º e 30.º do Código Penal.

III. Decisão

Nos termos expostos, acordam os Juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso, mantendo integralmente a sentença recorrida.

Condena-se o recorrente em 4 [quatro] Ucs de taxa de justiça.



Maria José Nogueira (Relatora)
Isabel Valongo