Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
60/15.0GATND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: CONSUMO DE ESTUPEFACIENTES
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS DESCRITOS NA ACUSAÇÃO
NULIDADE DA SENTENÇA
Data do Acordão: 10/25/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - TONDELA - JUÍZO C. GENÉRICA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 21.º, 25.º E 40.º DO DL 15/93, DE 22-01; ARTS. 359.º E 379.º, N.º 1, AL. B), DO CPP
Sumário: I – Sem olvidar a qualificação como elemento negativo do tipo que o segmento normativo, inscrito no artigo 21.º do DL 15/93, de 22-01, “fora dos casos previstos no artigo 40.º” encerra, tem sempre o tribunal de investigar o fim visado com a conduta em questão e, caso, em face das circunstâncias concretas, não resulte apurado que o mesmo é exclusivamente o consumo próprio, excluindo-o, então sim, será de presumir o tráfico.

II – Porém, na situação, como a dos autos, em que o tribunal aditou, aos da acusação, novos factos que afastam, em definitivo, a afectação do produto estupefaciente ao exclusivo consumo do arguido, e, com base neles, proferiu decisão condenatória pelo crime de tráfico de estupefacientes, impõe-se concluir no sentido de a sentença respectiva representar uma alteração substancial.

III – Nessa medida, não tendo sido observado, no tribunal a quo, o disposto no artigo 359.º do CPP, a sentença está ferida da nulidade prevista na al. b) do n.º 1 do artigo 379.º do dito diploma, determinando esse vício a remessa dos autos à 1.ª instância para que nesta o mesmo tribunal reabra a audiência com vista ao cumprimento daquele preceito legal.

Decisão Texto Integral:


Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. No âmbito do processo comum (singular) n.º 60/15.0GATND do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, Tondela – Juízo C. Genérica, mediante acusação pública, foi o arguido A... , melhor identificado nos autos, submetido a julgamento, sendo-lhe, então, imputada a prática em autoria material e na forma consumada de um crime de cultivo de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 40.º, nº 1 do D.L. n.º 15/93, de 22.01, por referência à tabela I-C, anexa.

2. Realizada a audiência de discussão e julgamento por sentença de 27.04.2017 o tribunal decidiu [transcrição do dispositivo]:

Por tudo o exposto tribunal julga parcialmente procedente a acusação formulada pelo Ministério Público contra o arguido A.. e por isso, o tribunal:

A). Condena-o numa pena de prisão de 2 anos de prisão efetiva, pela prática como autor material e na forma consumada de um crime de tráfico de menor gravidade, na modalidade de plantio, previsto e punido pelo artigo 25.º, al. a) do D.L. 15/93 de 22 de Janeiro.

[…]

Declaro perdida a favor do estado o estupefaciente, apreendido nos presentes autos, bem como os restantes objetos apreendidos nos presentes autos devendo os mesmos ser destruídos.

[…].

3. Inconformado com o assim decidido recorre o arguido, formulando as seguintes conclusões:

1ª O arguido foi acusado, “em autoria material, na forma consumada na prática de 1 (um) crime de cultivo de estupefacientes, previsto e punido, pelo artigo 40.º, n.º 1, do Dec. Lei n.º 15/93, de 22.01, por referência à tabela I-C, anexa àquele diploma” e condenado “pela prática como autor material e na forma consumada de um crime de tráfico de menor gravidade”, p. e p. pelo artigo 25º, al. a) do Decreto-lei n.º 15/93 de 22 de Janeiro, pela prática dos factos dados como provados – do ponto n.º 1 a 16 – da Sentença;

2ª O arguido remeteu-se ao silêncio durante todo o julgamento, não tendo por isso prestado quaisquer declarações. O direito ao silêncio por parte do arguido não o poderá prejudicar em qualquer circunstância não sendo por isso admissível que, em virtude desse mesmo silêncio se possam extrair quaisquer consequências probatórias. Não se poderá, em razão desse silêncio por parte do arguido, e na falta da produção de prova em contrário, considerar como factos provados que as plantas apreendidas “não se destinavam ao consumo exclusivo do arguido” – cf. Ponto n.º 7 dos “Factos provados da Sentença”, uma vez que, atenta a toda a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento nada resulta que comprove esse facto;

3ª. Conforma melhor consta da acusação o arguido vinha acusado “ (…) em autoria material, na forma consumada na prática de 1 (um) crime de cultivo de estupefaciente, previsto e punido, pelo artigo 40.º, n.º 1, do Dec. Lei nº 15/93, de 22.01, por referência à tabela I-C, anexa àquele diploma”. No entanto, e no momento em que lia a acusação ao arguido, o Meritíssimo Sr. Dr. Juiz altera a qualificação jurídica dos factos – cf. transcrição constante nas folhas nº 2 e 3 do presente recurso. Esta é uma clara e evidente violação do princípio do acusatório, uma vez que é alterada, de uma forma irregular, os termos constantes na acusação do MP – fls. 94 a 99 – e que imputam ao arguido apenas o crime p.p. no n.º 1 do artigo 40.º do supra citado Decreto-Lei, posição que de resto o Dig.mo Senhor Magistrado do MP manteve até ao final do julgamento.

4ª No dia 18/04/2017, data em que estava agendada a leitura de Sentença, o Meritíssimo Senhor Dr. Juiz reabriu a audiência tendo de seguida proferido despacho transcrito na fls. 4 deste recurso e cf. fls. 144 a 146 do processo principal. Ora, salvo melhor opinião, a mera circunstância de que “Dos factos constantes da acusação não resulta que o arguido destinasse as plantas que detinha para seu consumo” não é, por si só, suficiente para se depreender que não se verifica o elemento especial do tipo e, por via disso, determinar-se que o cultivo das referidas plantas não integre o art.º 40 do Decreto-Lei n.º 15/93.

5ª Para alterar a qualificação jurídica seria determinante sim, que, mediante a prova produzida em sede de audiência e julgamento, se demonstrasse que o arguido daria destino diverso – que não o consumo exclusivo – às plantas apreendidas e ao produto estupefaciente. Ou seja que não restassem quaisquer dúvidas de que o arguido cultivou as referidas plantas para o fim de tráfico, pois só assim seria possível enquadrar tal ilícito no art.º 21º ou 25º do Dec-Lei n.º 15/93;

6ª Com tal despacho Tribunal não só altera os factos constantes da acusação, mas também faz um juízo de intenção do arguido com o fundamento de que “ (…) tendo em conta o disposto no art.º 25º do Decreto-Lei n.º 15/93, tais atos serão passíveis de integrar tal ilícito, atendendo à quantidade de material que no momento detinha, mas não à possibilidade que as noventa e seis plantas tinham, de produzir, cerca noventa KG de cabeças ou botões, determinou uma alteração da qualificação jurídica dos factos, uma vez que está omitido na acusação o destino a dar a tais plantas” – o sublinhado é nosso;

7ª Apesar dos factos concretos constantes da acusação, escorados entre outros elementos, pelo relatório do Laboratório de Polícia Cientifica da Policia Judiciária e que, após exame, verificou que as plantas apreendidas tratava-se de 26,700 gramas de canábis (FLS/SUMID) com um grau de pureza de 1,9 (THC) que daria para 10 doses – cf. exame pericial de fls. 40 – o Tribunal não dando cumprimento ao disposto no nº 1 do art.º 163º do Código de processo Penal, optou ao invés por uma tese quase académica, alicerçada na possibilidade que as noventa e seis plantas tinham em produzir os tais cerca de noventa quilogramas (!) de cabeças e botões, e desta forma justificar essa mesma alteração jurídica, admitindo que todas essas 96 plantas – ainda num estádio muitíssimo prematuro e de germinação – vingassem até à fase adulta para produzir esses hipotéticos 90 Kg;

8ª Na Sentença agora recorrida, no ponto “II Fundamentação”, é referido, no ponto “Quanto à medida da respetiva” pena no penúltimo parágrafo, “Dentro da moldura penal correspondente – tendo em conta a quantidade de plantas que o arguido tinha germinadas e pressupondo que cerca de metade chegaria à idade adulta, com a consequente colheita, a gravidade do ilícito é elevada”;

9ª No espaço temporal que mediou o despacho proferido de alteração da qualificação jurídica e a leitura da Sentença, e sem que fosse produzida qualquer outra prova, concluiu que, afinal, não seriam a totalidade das 96 plantas a chegar à idade adulta, “pressupondo” que metade atingiriam esse estádio;

10ª O nosso Direito Penal é assente no FACTO e não no agente ou em pressupostos.

11ª Atendendo ao nº 5 dos “Factos Provados” que refere que o produto estupefaciente apreendido “veio a revelar tratar-se de 26,700 gramas de cannabis (FLS/SUMID) com um grau de pureza de 1.9 (THC) que daria para 10 doses conforma exame pericial de fls. 40”, estamos perante uma quantidade de produto estupefaciente muitíssimo reduzida que não excede as dez doses, sendo que por isso, e no nosso entender, os factos constantes da acusação estavam juridicamente corretos e devidamente enquadrados;

12ª Quanto ao ponto nº 7 dos “Factos Provados”, é referido que “As plantas que se encontravam na fase inicial de crescimento e germinação, não se destinavam ao consumo exclusivo do arguido”. Sucede que, quanto a este facto (ao ponto 7) em concreto e dado como provado, não foi produzida qualquer prova, testemunhal ou outra, que comprove esse mesmo facto;

13ª Voltando ao ponto nº 7 dos Factos provados da Sentença, sucede que nenhuma das três testemunhas – B... ; C... e D... – revelou, através dos depoimentos prestados, ter conhecimento de que as plantas não se destinavam ao consumo exclusivo do arguido. E, na verdade, tal nem lhes foi perguntado, razão pela qual não se poderá indicar uma passagem em concreto como refere o n.º 4 do art.º 412º do Código de Processo Penal para impugnar o facto provado no ponto 7, fazendo, ainda assim, referência ao registo temporal das passagens dos seus depoimentos – cf. folhas 7 a 9 do presente recurso;

14ª Concretamente, e em relação á testemunha D... , é feita uma transcrição do seu depoimento – fls. 9 a 11 do presente recurso – em que, além da testemunha não referir qualquer facto que dê como provado o ponto 7 dos factos provados da Sentença, ainda é registada uma coloquial troca de impressões, desprovida de concretos conhecimentos técnicos e científicos, nomeadamente quanto às eventuais e futuras “potencialidades” das plantas, que não são mais que meras cogitações abstratas e que em nada relevam para a boa decisão da causa no caso em apreço. Não resultando do depoimento desta última testemunha, tal como do depoimento das duas anteriores, nada que contrariasse ou abalasse a convicção da acusação na medida em que o produto estupefaciente apreendido tivesse outro fim que não para o uso exclusivo do arguido, contrariando e abalando de forma significativa e decisiva o ponto 7 dos Factos provados da Sentença. E, de uma forma algo surpreendente, estas impressões serviram para a “Fundamentação da decisão da matéria de facto”.

15ª O tribunal concluiu, numa interpretação livre, que o arguido pretendia fazer crescer as plantas e retirar uma substancial quantidade de produto estupefaciente e que, por via disso, essa quantidade, seria para disponibilizar para terceiros. O que não é relevante pois, refere-se uma vez mais, o nosso Direito Penal é do FACTO e não de conjeturas ou situações abstratas.

16ª O que terá de efetivamente ser relevado para a boa decisão da causa é qual o produto estupefaciente apreendido e sua quantidade – de produto entenda-se – e não o número de plantas. E, do ponto 5. dos “Factos provados” da Sentença, consta que o produto estupefaciente apreendido tratava-se de 26,700 gramas de cannabis (FLS/SUMID) com um grau de pureza de 1.9 (THC) que daria para 10 doses conforme exame pericial de fls. 40, factualidade que de resto serviu de sustentação à acusação;

17ª Cabia à acusação ter feito prova de que o produto estupefaciente apreendido – por regra de exclusão, se não era para consumo exclusivo do arguido – seria para tráfico. E de facto não resulta, em nenhum momento, e atenta a prova produzida em sede de audiência e julgamento, que o produto estupefaciente apreendido pudesse ser utilizado para outro fim que não o uso exclusivo do arguido. Não é possível pois, neste caso em concreto, fazer uma interpretação a contrário e que contende todos os princípios que, na dúvida, favorecem o arguido, ferindo de morte e em particular o princípio in dúbio pro reu, com as trágicas consequências que daí advêm para o arguido, surgindo esta interpretação como uma penalização por não ter ficado, aparentemente, demonstrado que as plantas se destinavam ao consumo exclusivo do arguido;

18ª E se o arguido tivesse prescindido do seu direito constitucional de se remeter ao silêncio e tivesse esclarecido o Tribunal que as plantas eram apenas para seu consumo exclusivo? Estamos em crer que, nesse caso este já seria punido ao abrigo do art.º 40.º do Decreto-Lei 15/93, pois já se verificava, aparentemente, o elemento do tipo, o consumo do agente. Mas para que isso acontecesse era necessário o arguido dizer, de firma expressa, para que fim se destinava o produto estupefaciente? Estamos em crer que não;

19ª Se o silêncio do arguido não o tem necessariamente que favorecer, a verdade é que, quando o arguido assim entenda – remeter-se ao silêncio -, daí não recai uma inversão do ónus da prova para o arguido. E, na ausência de qualquer facto dado como provado em que se pudesse subsumir que as plantas apreendidas se destinavam a tráfico, então teremos de, uma vez mais, nos cingir a factos e neste caso é de angular importância a prova produzida através do auto de apreensão e exame do produto estupefaciente pelo laboratório de Polícia Científica da PJ – cf. fls. 40 – e que dá como provado que o produto estupefaciente – independentemente do número de plantas apreendidas – era de 26,700 gramas de cannabis, quantidade que daria apenas para 10 doses, de acordo com os resultados do referido exame, e dando cumprimento ao nº 1 do art.º 163.º do Código de Processo Penal, enquadrando-se desta forma o tipo de ilícito praticado pelo arguido no n.º 1 do artigo 40.º do referido Decreto-Lei 15/93.

20ª Assim, no entender o recorrente, a decisão recorrida violou o disposto nos artigos:

I) artigo 25º, al. a) do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro;

II) artigo 40.º, n.º 1 do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro;

III) artigo 2.º, nº 2 da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro;

IV) artigo 9.º da portaria nº 94/96, de 26 de Março;

V) artigo 32º, nº 1, nº 2 e nº 5 da Constituição da República Portuguesa;

VI) artigo 61.º, n.º 1, al. d) do Código de Processo Penal;

VII) artigo 163.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.

Termos em que,

Deve dar-se provimento ao presente recurso e a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que dê como não provado os factos constantes do ponto nº 7 dos factos provados na Sentença e, consequentemente, ser o arguido condenado, apenas e só, pelo crime de que vinha acusado – p. e p. pelo disposto no artigo 40.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, já que – repete-se – nada resulta dos autos ou da prova produzida em audiência de discussão e julgamento que o arguido destinava o produto apreendido para o tráfico mas apenas e só para o consumo próprio.

4. O recurso foi admitido com subida imediata e efeito suspensivo.

5. Ao recurso respondeu o Ministério Público, concluindo:

I. Deve ser declarada nula a sentença recorrida nos termos do artigo 379.º, nº 1, alínea b), do Código de Processo penal, devendo o tribunal recorrido proceder ao cumprimento do disposto no artigo 359.º do mesmo Código e proferir nova decisão em conformidade.

II. Certo é que a constatação da nulidade da sentença prejudica o conhecimento do recurso.

III. Caso assim se não entenda, não foi produzida prova em audiência de julgamento que o recorrente/arguido destinasse as plantas de cannabis que lhe foram encontradas/apreendidas em casa, para venda, conforme facto dado como provado no ponto 7 da sentença.

IV. O simples facto da quantidade de plantas encontradas na posse do arguido estarem na fase de germinação, por si só, não se pode concluir que o arguido as destinasse para venda, apesar de o mesmo se ter remetido ao silêncio.

V. Por outro lado, o exame pericial efetuado pelo LPC/PJ às plantas, conforme resulta do relatório pericial de fls. 40, as mesmas revelaram tratar-se de 26,700 gramas de cannabis (FLS/SUMID) com um grau de pureza de 1,9 (THC) que daria para 10 doses.

VI. O que determinaria a condenação do arguido pelo crime de cultivo de estupefaciente do qual vinha acusado.

VII. Face ao exposto, salvo o devido respeito por opinião diversa, deverão os autos baixar à 1.ª Instância para que aí, se for caso disso, se dê cumprimento ao disposto no artigo 359.º, do Código de Processo Penal.

No entanto, Vªs. Exas. farão a costumada Justiça.

6. Na Relação o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, acompanhando a resposta apresentada em 1.ª instância pelo Ministério Público, emitiu parecer no sentido de os autos serem remetidos ao tribunal recorrido com vista ao cumprimento do artigo 359.º, nº 3 do CPP.

7. Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPP reagiu o recorrente, retomando a argumentação expendida no requerimento de interposição de recurso, defendendo a desnecessidade dos autos baixarem à 1.ª instância para o efeito do n.º 3 do artigo 359º do CPP, antes clamando pela sua condenação, «quanto muito» nos termos da acusação, ou seja pelo crime previsto e punível no artigo 40.º, n.º 1 do D.L. nº 15/93, de 22.01.

8. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cabendo, pois, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

Centrando-nos nas conclusões, pelas quais se delimita o objeto do recurso, sem prejuízo do conhecimento das questões de natureza oficiosa, no caso em apreço importa decidir:

- Se a comunicação da alteração da qualificação jurídica levada a efeito pelo julgador representou ofensa ao princípio do contraditório;

- Se com a inclusão na sentença de novos factos violou o tribunal o artigo 163.º, n.º 1 do CPP.

2. A decisão recorrida

Ficou a constar da sentença [transcrição parcial]:

II – Fundamentação:

Procedeu-se a julgamento tendo resultado os seguintes:

Factos provados:

1. Desde data não concretamente apurada, mas certamente antes do mês de Abril de 2015, o arguido A.. decidiu proceder ao cultivo de produto estupefaciente, nomeadamente, “cannabis”.

2. Por forma a dissimular o cultivo do produto em causa e não ser identificado, o arguido A.. decidiu que o cultivo seria efetuado no terraço da residência anexa à sua tia B... , sita na Rua (...) , também propriedade desta, sem que esta tivesse conhecimento ou autorizado o mesmo.

3. O arguido, para o efeito, adquiriu sementes de “cannabis” a desconhecidos que colocou em vasos com terra, procedendo regularmente à rega e cuidado daquelas.

4. No dia 13 de Abril de 2015, pelas 16H25, pela GNR foi efetuada uma busca domiciliária, devidamente autorizada, sendo apreendidas 96 plantas que se encontravam em 8 vasos em plástico; 12 sementes de “cannabis”; 1 garrafão de 5L; 1 garrafa de 2L; 2 garrafas de 1,5L e 1 garrafa de 0,5L, todas elas contendo água.

5. O produto estupefaciente que foi apreendido, uma vez submetido a exame laboratorial, pelo Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária, veio a revelar tratar-se de 26,700 gramas de cannabis (FLS/SUMID) com uma grau de pureza de 1,9 (THC) que daria para 10 doses conforme exame pericial de fls. 40 que se dá por integralmente reproduzido para os legais efeitos.

6. O arguido A.. conhecia a natureza e características da substância supra mencionada, que tinha na sua posse e cultivava.

7. As plantas que se encontravam na fase inicial de crescimento e germinação, não se destinavam ao consumo exclusivo do arguido.

8. Com a conduta descrita, atuou o arguido de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a detenção e cultivo de tais produtos estupefacientes, no circunstancialismo acima descrito, era proibido e punido por lei como crime.

9. Igualmente sabia que o consumo de drogas põe em risco a saúde das pessoas que se dedicam a essa atividade. Conhecia os perigos a que os consumidores se expõem, e expõem as pessoas que lhes são próximas, de transmissão de doenças incompatíveis com a vida. Não obstante, conformou-se voluntariamente com a produção de todos esses resultados. 

Além da acusação provou-se que:

10. O arguido foi condenado por sentença de 03-05-2006, pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, na pena de 70 dias de multa, a qual se encontra extinta pelo cumprimento.

11. O arguido foi condenado por sentença de 04-07-2012, pela prática de um crime de tráfico de estupefaciente, do artigo 21º do DL 15/93, na pena de 1 ano de prisão, suspensa na execução, com regime de prova que se encontra extinta.

12. O arguido foi condenado por sentença de 24-12-2012, pela prática de um crime de ofensa à integridade física, na pena de 90 dias de multa, a qual se encontra extinta pelo cumprimento.

13. O arguido foi condenado por sentença de 25-05-2015, pela prática de um crime de furto de uso de veículo, na pena de 50 dias de multa.

14. O arguido foi condenado por sentença de 21-03-2014, pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, na pena de 100 dias de multa.

15. O arguido foi condenado por sentença de 15-07-2014, pela prática de um crime de desobediência qualificada, na pena de 8 meses de prisão suspensa na execução.

16. Encontra-se em prisão preventiva por fortes indícios da prática de um crime de violência doméstica na pessoa de sua mãe.

Factos não provados:

Não se provaram outros factos com relevância para a decisão da causa, nomeadamente que:

O arguido destinava as plantas que cultivava ao seu consumo exclusivo.

Fundamentação da decisão da matéria de facto:

Para julgar como provados os factos que ante cedem o tribunal fundou a sua convicção no conjunto das provas produzidas em audiência de discussão e julgamento, conjugadas com as regras da experiência comum a saber:

No depoimento de B... , tia do arguido e residente na casa em causa, que referiu ter notado que o arguido entrava muitas vezes para o terraço da casa, o que lhe causava insegurança atendendo ao mau relacionamento do arguido com esta, e que o viu a entrar com vários objetos para o terraço, e que ia com muita frequência quase diária.

Para aceder a tal terraço, era necessário passar por uma zona da habitação desta testemunha, sendo que a parte da casa em causa, sendo da herança dos pais de B... , não se encontrava habitada, sendo o arguido a única pessoa que acedia a tal local.

 Por esse motivo a testemunha B... deu autorização para a busca domiciliária.

 No depoimento de C... , vizinha do arguido, que possui uns terrenos na parte da frente do terraço em causa que fica virado a sul, e que viu o arguido a peneirar terra bem como a regar umas plantas no terraço em causa, desconhecendo quais as plantas.

 No depoimento de D... , Guarda da GNR, que se deslocou ao local por um desacato do arguido com a sua tia e que depois de informado pela testemunha C... s e pela tia do arguido se deslocou ao terraço onde pode verificar a existência das plantas.

Estas testemunhas depuseram de forma espontânea, relatando factos que conhecem por os terem presenciado.

Tais depoimentos foram complementados com as Fotografias fls. 9 a 13, o auto de Auto de apreensão de fls. 14, no Termo de Autorização de Busca Domiciliária de fls. 15, no Relatório técnico Inspeção Judiciária de fls. 27 a 29; no Relatório Fotográfico de fls. 30 a 32. Quanto ao destino das plantas em causa, o tribunal teve em conta, por um lado o número de plantas, a forma como habitualmente é consumido cannabis. É consabido que a planta cannabis sativa tem maior teor de THC, nas flores, e que o estado de crescimento das mesmas seriam para transplantar para outra zona e deixar crescer, e que tais plantas têm múltiplas flores, vulgarmente denominadas de cabeças, e que as plantas atingem entre 1,5 metros e 3 metros de altura.

 Tal planta necessita de condições particulares para germinar, uma vez que sendo de origem tropical, carece de temperaturas amenas.

 Uma vez que as plantas de cannabis estejam grandes o suficiente, 15-20 cm, podem então ser plantadas para o ar livre, em composto diretamente no chão ou em recipientes grandes. No sul da Europa, ou de outras regiões quentes e ensolaradas, pode começar em Março, enquanto em países mais frios como a Holanda tem de esperar até o início de Maio. Em exterior o desenvolvimento das suas plantas é determinado pela quantidade de luz solar direta, chuva e vento que recebem. Ao ar livre, as plantas podem crescer até mais de 3 metros de altura. Quando o ciclo de luz foi encurtado para 15 horas, as plantas de cannabis começam a florescer. Com alguma sorte, dependendo acima de tudo das condições meteorológicas favoráveis nos últimos meses, eles vão produzir muitos botões, até um quilo por planta.

Para tanto basta consultar qualquer site sobre o assunto.

 Assim, as plantas que o arguido detinha, em estado inicial, seriam para fazer crescer, e dessa quantidade não seria para consumo exclusivo, razão pela qual o tribunal deu como provado o destino a dar às mesmas.

 Acresce que não tendo o arguido prestado depoimento, não se poderá concluir que este as iria usar apenas para seu consumo, nem que as iria consumir no estado em que se encontravam.

Com efeito o arguido, consumidor de drogas, terá pesquisado a forma de cultivo, bem como quis a realização dos factos que sabia serem ilícitos, e já foi condenado por atos de igual natureza.

Quanto à qualidade e teor das substâncias, no Exame pericial de fls. 40-41.

Quanto aos antecedentes criminais, no CRC de fls. 82 a 92.

Quanto aos factos não provados, pelas razões supra expostas.

3. Apreciação

Tendo o Ministério Público na resposta ao recurso suscitado a questão da nulidade da sentença, tratando-se de matéria de conhecimento oficioso, é pelo dito vício que devemos começar até pelas consequências que advém da sua eventual verificação.

Residiria a dita nulidade na circunstância de o tribunal ter condenado o arguido, acusado que vinha de um crime de cultivo de estupefacientes, p. e p. no artigo 40.º, nº 1 do D.L. n.º 15/93, de 22.01, pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25.º, alínea a) do mesmo diploma, sem que haja observado o disposto no artigo 359.º do CPP, concretamente sem que os diferentes sujeitos processuais tenham manifestado o seu acordo no sentido da continuação do julgamento pelos novos factos.

Vejamos, pois, o que de relevante para o efeito fornecem os autos.

Assim:

- Na acusação pública vem imputada ao arguido/recorrente a prática, em autoria material na forma consumada, de um crime de cultivo de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 40.º, n.º 1 do D.L. n.º 15/93, de 22.01, por referência à tabela I-C anexa.

- Porquanto, «(…) o arguido (…) decidiu proceder ao cultivo de produto estupefaciente, nomeadamente, “cannabis”.

(…)

O arguido, para o efeito, adquiriu sementes de “cannabis” (…) que colocou em vasos com terra, procedendo regularmente à rega e cuidado daquelas.

No dia (…) foi efetuada uma busca domiciliária (…), sendo apreendidas 96 plantas que se encontravam em 8 vasos de plástico; 12 sementes de “cannabis”; 1 garrafão de 5L; 1 garrafa de 2L; 2 garrafas de 1,5L e 1 garrafa de 0,5L, todas elas contendo água.

O produto estupefaciente apreendido, uma vez submetido a exame laboratorial, pelo Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária, veio a revelar tratar-se de 26,700 de cannabis (FLS/SUMID) com um grau de pureza de 1,9 (THC) que daria para 10 doses (…).

O arguido (…) conhecia a natureza e características da substância supra mencionada, que tinha na sua posse e cultivava.

Com a conduta descrita, atuou o arguido de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a detenção e cultivo de tais produtos estupefacientes, no circunstancialismo acima descrito, era proibido e punido por lei como crime» - [cf. fls. 95/99];

- Em sede de audiência de discussão e julgamento, produzida a prova, foi proferido despacho do seguinte teor:

«Dos factos constantes da acusação não resulta que o arguido destinasse as plantas que detinha para seu consumo.

Assim, o cultivo das plantas, salvo melhor opinião, não poderá integrar o art.º 40º do Decreto-Lei n.º 15/93, uma vez que o elemento especial do tipo é o consumo, ou seja, o cultivo de plantas como estupefaciente para consumo do agente que procedeu ao plantio.

Assim, tendo em conta o disposto no art.º 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93, tais atos serão passíveis de integrar tal ilícito, atendendo à quantidade de material que no momento detinha, mas não à possibilidade que as noventa e seis plantas tinham, de produzir, cerca de noventa Kg de cabeças ou botões, determina uma alteração da qualificação jurídica dos factos, uma vez que está omitido na acusação o destino a dar a tais plantas.

Sendo o destino, como já afirmado, o elemento que distingue o art.º 21º do Decreto-Lei n.º 15/93 do art.º 40.º do mesmo diploma, ao abrigo do disposto no art.º 359.º, n.º 3, comunica-se a possibilidade da alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação» - [cf. ata de fls. 144/146];

- O arguido, no exercício do direito de defesa, defendeu, então, consubstanciar a comunicação uma alteração substancial dos factos, manifestando desde logo a sua oposição à continuação do julgamento [artigo 359.º, n.º 3 do CPP] «atendendo que se verifica a incompetência material do tribunal singular, já que tais factos são puníveis com uma moldura penal abstrata de 4 a 12 anos, devendo por isso os presentes autos serem remetidos para inquérito».

 Na mesma ocasião, invocando o artigo 343.º, n.º 1 do CPP requereu que lhe fossem tomadas declarações - [cf. fls. 148/149];

- Reaberta a audiência de discussão e julgamento, não obstante o por si anteriormente requerido, declarou o arguido não desejar prestar declarações – [cf. ata de fls. 163/164].

Incindindo agora a atenção sobre a sentença recorrida verifica-se que sob o ponto 7. dos factos provados consta: «As plantas que se encontravam na fase inicial de crescimento e germinação, não se destinavam ao consumo exclusivo do arguido», inscrevendo-se, por seu turno, nos factos não provados que o arguido destinasse as plantas que cultivava ao seu consumo exclusivo.

Resultando dos elementos acima elencados ter o tribunal a quo – pese embora o lapso em que incorreu quanto à norma indicada – comunicado a alteração da qualificação jurídica, o que importa dilucidar é se poderia a sentença, à margem do artigo 359.º do CPP, ter acolhido tais factos, dependendo, naturalmente, a resposta de saber se foi efetivamente produzida uma alteração substancial dos factos descritos na acusação.

Nos termos da alínea f) do artigo 1.º do CPP verifica-se alteração substancial dos factos sempre que por via desta seja imputável ao arguido um crime diverso ou ocorra o agravamento da moldura penal; se, diferentemente, os factos permanecem intocados e apenas o enquadramento jurídico-penal – ainda que para mais grave – diverge em causa está, tão só, uma alteração da qualificação jurídica, equiparada pelo legislador à alteração não substancial dos factos – artigo 358.º, n.º 3 do CPP.

Podemos, pois, assentar – posição pacífica no seio da jurisprudência dos tribunais superiores – em que «A alteração substancial dos factos pressupõe (…) uma diferença de identidade, de grau, de tempo ou espaço, que transforme o quadro factual descrito na acusação em outro diverso, ou manifestamente diferente no que se refira aos seus elementos essenciais, ou materialmente relevantes de construção e identificação factual, e que determine a imputação de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis» - [cf. acórdão do STJ de 21.03.2007, proc. n.º 07P024].

Significa, pois, que caso o tribunal recorrido atendendo exclusivamente aos factos constantes da acusação, houvesse procedido, mediante prévia comunicação, a uma alteração da qualificação jurídica careceria de fundamento a invocada nulidade da sentença.

Contudo, na situação em análise o tribunal, por certo ciente da relevância de proceder ao apuramento do fim a que se destinava o produto estupefaciente – considerando até a ação em questão (cultivo) a qual, diversamente do que sucede com as condutas, traduzidas na venda ou cedência, não exime o julgador de indagar a atitude interna do agente, concretamente o fim a que destinava o produto -, aditou à acusação factos novos, precisamente os concernentes ao fim visado pela conduta, afastando, assim, a afetação do produto ao consumo exclusivo do arguido para, de seguida, em sede de direito, «atendendo aos factos provados» no seio dos quais se incluem os aditados, afastar, desde logo, a qualificação jurídico-penal levada a efeito no libelo acusatório.

Poder-se-ia argumentar que seria dispensável face aos factos constantes da acusação e à descrição do ilícito típico do artigo 21.º [ilícito em que o resultado não é essencial à respetiva integração por se tratar de crime em que o perigo, atento o grau de probabilidade de aquele se verificar, representando, assim, um risco para o bem jurídico, é desde logo considerado suficiente para a punição] e logo do artigo 25.º, ambos do D.L. nº 15/93, de 22.01, em função do segmento inscrito naquele primeiro preceito, qual seja «fora dos casos previsto no art.º 40.º», indagar sobre o fim a que se destinava o estupefaciente e, nessa medida, sempre resultariam inócuos os novos factos aditados. Não é esse o entendimento deste tribunal, não foi essa seguramente a posição do julgador só assim se justificando os novos factos aditados. Com efeito, sem olvidar a qualificação como elemento negativo do tipo que o segmento em referência encerra, afigura-se-nos ter sempre o tribunal de investigar o fim visado com a conduta em questão e caso, em face das circunstâncias concretas, não resulte apurado que o mesmo é exclusivamente o consumo próprio, excluindo-o – como expressamente sucedeu – então sim, será de presumir o tráfico. Porém, na situação que nos ocupa, o tribunal aditou novos factos que afastam, em definitivo, a afetação do estupefaciente ao exclusivo consumo do arguido.

Donde, tendo sido aditados factos novos relativos ao fim a que se destinava o estupefaciente objeto do cultivo, factos esses que – como se viu - assumiram relevância para a decisão de direito, provocando a condenação por um crime não só diverso como mais grave, impõe-se concluir no sentido de a sentença em crise representar uma alteração substancial dos factos descritos na acusação [artigo 1.º, alínea f) do CPP] e nessa medida, por via de não haver sido observado o artigo 359.º do CPP – sendo que o caso não configura mera alteração da qualificação jurídica – encontrar-se ferida da nulidade prevista na alínea b), do n.º 1 do artigo 379.º do CPP, o que determina a remessa dos autos à 1.ª instância para que pelo mesmo tribunal seja reaberta a audiência com vista ao cumprimento do artigo 359º do mesmo diploma seguindo-se os ulteriores trâmites.

Fica, assim, prejudicado o conhecimento das questões objeto do recurso.

III. Dispositivo

Termos em que acordam os juízes que compõem este tribunal em julgar nula nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea b) do CPP a sentença recorrida, determinando a remessa dos autos à 1.ª instância para que, pelo mesmo tribunal, seja reaberta a audiência de discussão e julgamento com vista ao cumprimento do disposto no artigo 359.º do CPP.

Sem tributação.

Coimbra, 25 de Outubro de 2017

[Processado e revisto pela relatora]

(Maria José Nogueira - relatora)

(Isabel Valongo - adjunta)