Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
651/11.8GBILH.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: PROIBIÇÃO DE CONDUZIR VEÍCULOS COM MOTOR
Data do Acordão: 07/03/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA - JUÍZO DE PEQUENA INSTÂNCIA CRIMINAL DE ÍLHAVO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 69º, DO C. PENAL
Sumário: É de aplicar a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor a quem não possua habilitação legal para conduzir e cometa os crimes previstos nos art.ºs 291º e 292º, do C. Penal.
Decisão Texto Integral:

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Proc. n.º 651/11.8GBILH.C1
I. Relatório:
1. No Juízo de Pequena Instância Criminal de Ílhavo (Comarca do Baixo Vouga), após julgamento em processo abreviado, em sentença de 28 de Março de 2012, foi proferida decisão que:
a) Condenou o arguido A..., residente na Rua … , «pela prática, em autoria material e na forma tentada, de um crime de condução sem habilitação legal, todos do Código Penal na pena de 60 dias de multa à razão diária de €5,5»;
b) Condenou o referido arguido, «pela prática, em autoria material e na forma tentada, de um crime de condução em estado de embriaguez, todos do Código Penal na pena de 70 dias de multa à razão diária de €5,5»;
c) Condenou o mesmo arguido na pena conjunta [englobando as penas parcelares descritas nas anteriores als. a) e b)] de 90 (noventa) dias, à razão diária de €5,5;
d) Condenou ainda o dito arguido A..., pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, previsto e punido pelo art. 347.º, n.º 2, do Código Penal, na pena de 7 meses de prisão;
e) Substituiu a pena de prisão por 210 horas trabalho a favor da comunidade em instituição a indicar pela DGRS (art. 496.º do CPP);
f) Condenou também o arguido na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de 4 meses;
g) Absolveu o arguido A... da prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, por referência ao art. 132.º, n.º 2, al. l), do mesmo Código, e da contra-ordenação prevista no art. 4.º, n.º 3 do Código da Estrada, imputados em concurso aparente com o crime de resistência e coacção sobre funcionário;
h) Condenou o arguido/demandado no pagamento ao demandante cível João Paulo Cardoso Rocha da quantia de €1.020,00 (mil e vinte euros).
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2. Inconformado, o arguido interpôs recurso da sentença, tendo formulado na respectiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:
1.ª - O arguido foi condenado pela prática, em autoria material e na forma tentada, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 60 dias de multa à razão diária de € 5,50 e de um crime de condução em estado de embriaguez, na pena de 70 dias de multa à razão diária de € 5,50, tendo-lhe sido aplicada, em cúmulo jurídico, a pena única de 90 dias de multa, à razão diária de € 5,50, perfazendo a quantia de € 495,00.
2.ª - Foi ainda condenado o arguido pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, na pena de 7 meses de prisão, substituída por 210 horas de trabalho a favor da comunidade, a ser prestado em instituição a indicar pela DGRS.
3.ª - Mais foi condenado o arguido na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de 4 meses.
4.ª - O presente recurso tem como objecto a impugnação da condenação na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de 4 meses aplicada ao recorrente nos presentes autos.
5.ª - Foi dada como provada a factualidade constante dos itens 1 a 21 da douta sentença recorrida, e que desde já se adianta não questionar e que aqui se dá por integralmente reproduzida.
6.ª - O Tribunal recorrido formou a sua convicção na factualidade dada por provada, a qual teve por base a análise e valoração da prova produzida e examinada em audiência e julgamento, apreciada segundo as regras da experiência comum, juízos de normalidade e razoabilidade, e os princípios da livre apreciação da prova, da oralidade, e da imediação, que permitiram o indispensável contacto vivo e imediato com as testemunhas ouvidas e com o arguido.
7.ª - Salvo o devido respeito por diversa opinião, entende o recorrente que a decisão proferida pelo Tribunal a quo afigura-se incorrecta e injusta no que concerne à sua condenação na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de 4 meses.
8.ª - Com efeito, e como supra foi referido, o arguido foi condenado pela prática, em autoria material e na forma tentada, de um crime de condução sem habilitação legal e de um crime de condução em estado de embriaguez, tendo-lhe sido aplicada, em cúmulo jurídico, a pena única de 90 dias de multa, à razão diária de € 5,50, perfazendo a quantia de € 495,00.
9.ª - Da factualidade dada como provada pelo Tribunal recorrido resulta, além do mais, que, à data da prática desses factos, o arguido não era titular de qualquer documento que o habilitasse à condução do referido veículo na via pública (ponto 7 dos factos provados).
10.ª - Mais foi dado como provado que, só depois da prática de tais factos, ou seja, a partir de 23-01-2012, é que o arguido passou a ser detentor da carta de condução que o habilita a conduzir, desde então, as categorias B e B1 (ponto 18 dos factos provados).
11.ª - Pese embora o arguido não fosse à data da prática dos factos detentor de qualquer documento que o habilitasse a conduzir o veículo por si conduzido (ciclomotor) - razão pela qual foi condenado pelo crime de condução de veículo sem habilitação legal - entendeu o Tribunal recorrido aplicar ao recorrente - em resultado da prévia condenação deste pelos crimes de condução de veículo em estado de embriaguez e de resistência e coacção sobre funcionário - a pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de 4 meses.
12.ª - In casu, afigura-se-nos que não se justifica a condenação do recorrente na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de 4 meses, porquanto não se encontram preenchidos os pressupostos legais de que depende a aplicação de tal sanção.
13.ª - Na verdade e atendendo ao que atrás ficou exposto, não se compreende que a obtenção pelo recorrente da carta de condução em momento posterior (23.01.2012) à data da prática dos factos (22.10.2011) possa ser atendível, como o foi, para efeitos da sua condenação na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor.
14.ª - Tanto mais quanto é certo que, esse mesmo facto não assumiu qualquer relevância para efeitos da sua não condenação pelo crime de condução sem habilitação legal.
15.ª - Sendo assim, temos para nós que o tribunal recorrido, ao condenar o recorrente na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de 4 meses, não valorou devidamente a matéria de facto que considerou provada em relação ao arguido - itens 7 e 18 -, sendo certo que, in casu, não se encontravam verificados os necessários pressupostos legais que justificassem a aplicação de tal pena.
16.ª - Isto posto, entendemos que a douta decisão em crise, ao condenar o arguido na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de 4 meses, viola, por erro de interpretação e de aplicação, o disposto nos arts. 65.º, 69.º, do Código Penal, e art. 410.º do Código de Processo Penal, devendo a mesma, neste concreto ponto, ser revogada.
Nestes termos, e nos que Vossas Excelências mui doutamente suprirão, julgando procedente o presente recurso e julgando em conformidade com as precedentes conclusões, será feita justiça.
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3. A Magistrada do Ministério Público junto do tribunal da 1.ª instância, na resposta que apresentou ao recurso, manifestou-se no sentido da improcedência do recurso.
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4. Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, em parecer a fls. 193, assumiu igual posição.
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5. Notificado nos termos e para os efeitos consignados no art. 417.º, n.º 2, do C. P. Penal, o arguido não exerceu o seu direito de resposta.
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6. Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido a conferência, cumprindo, agora, apreciar e decidir.
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II. Fundamentação:
2. Poderes cognitivos do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso:
Conforme Jurisprudência constante e pacífica, são as conclusões extraídas pelos recorrentes das respectivas motivações que delimitam o âmbito dos recursos.
No caso sub judicie, o recurso está limitado à questão de saber se ao arguido pode/deve ser imposta a pena acessória de proibição de condução de veículos com motor prevista no n.º 1 do artigo 69.º do Código Penal.
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2. Não existindo factos não provados a considerar, foi dada como provada, na sentença recorrida, a seguinte matéria de facto:
1. No dia 22 de Outubro de 2011, pela 1 hora e 35 minutos, os militares da Guarda Nacional Republicana … e … , encontravam-se, devidamente uniformizados e no desempenho de serviço de fiscalização de trânsito atribuído àquela Guarda, na localidade de Cacia, concretamente na Estrada Nacional n.º 109 aí também denominada Rua da República.
2. Nesse momento surgiu o arguido, conduzindo um ciclomotor, de matrícula … pela identificada Rua e em direcção a Aveiro.
3. O Guarda … , fardado e com material reflector, pretendeu fiscalizar o arguido, pelo que lhe ordenou que imobilizasse o seu veículo, levantando o braço com a palma virada na sua direcção, empunhando uma lanterna luminosa.
4. O arguido compreendeu a ordem dada, abrandou o veículo, circulou depois aos ziguezagues e dirigiu o ciclomotor de encontro ao corpo do militar ..., que se tentou desviar sendo embatido no seu pé esquerdo.
5. A actuação do arguido causou ao ... um traumatismo do tornozelo esquerdo que dificulta a marcha por dores na face lateral externa do joelho e pé em ligação muito provável com estiramento ligamentar, o que lhe determinou um período de doença de 15 dias, com afectação da capacidade de trabalho.
6. O arguido tinha ingerido, algum tempo antes de iniciar a condução do ciclomotor, diversas bebidas alcoólicas, pelo que, naquela data, hora e local e enquanto conduzia, era portador de uma taxa de álcool no sangue de 2,20 gramas/litro.
7. O arguido não era, também, titular de qualquer documento que o habilitasse à condução do referido veículo na via pública.
8. O arguido agiu, em todas as circunstâncias, de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado de conduzir naquele local o referido veículo, não obstante saber que havia ingerido bebidas alcoólicas em excesso e que, para o fazer, deveria ser titular de documento que o habilitasse a conduzi-lo na via pública.
9. Pretendeu também o arguido desobedecer à ordem de paragem, que sabia ter recebido e provir de autoridade competente, evitar que os militares da G.N.R. o fiscalizassem e ofender o corpo e a saúde do Guarda ..., que bem sabia encontrar-se no local no exercício das suas funções.
10. Bem sabia o arguido que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
11. O arguido nasceu em … (19 anos).
12. Vive, desde os sete anos de idade, com os avós, em virtude da separação dos pais.
13. Aufere o salário mínimo nacional como servente da construção civil, contribuindo para as despesas domésticas com 250,00€.
14. Tem o 9.º ano de escolaridade.
15. Nada consta averbado no seu Certificado de Registo Criminal.
16. Não tem processos pendentes.
17. Mostrou arrependimento.
18. Actualmente já é detentor de carta de condução das categorias B e B1, obtida em 23-01-2012.
19. O arguido é pessoa respeitadora e respeitada entre a sua vizinhança e conhecidos, considerado pessoa normalmente pacífica e ordeira.
20. O arguido aceitou prestar trabalho a favor da comunidade, caso lhe seja aplicada pena de prisão.
21. O ofendido sentiu dores e transtorno psicológico em virtude dos ferimentos no pé esquerdo melhor referidos em cinco.
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3. Quanto à motivação da decisão de facto, ficou consignada na sentença:
A factualidade tida por provada teve por base a análise e valoração da prova produzida e examinada em audiência de julgamento, apreciada segundo as regras da experiência comum, juízos de normalidade e razoabilidade, e os princípios da livre apreciação da prova, da oralidade, e da imediação, que permitiram o indispensável contacto vivo e imediato com as testemunhas ouvidas e com o arguido.
Desde logo, o arguido confessou os factos quanto aos dois primeiros crimes, apenas refutando os factos integradores do crime de resistência e coacção sobre funcionário, o qual lhe vem imputado em concurso aparente com um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, por referência ao art. 132.º, n.º 2, al. l), do mesmo Código e com a contra-ordenação prevista no art. 4.º, n.º 3 do Código da Estrada.
Todavia, a sua versão mostrou-se vaga, subjectiva, e até incoerente, não tendo também sido confirmada por qualquer outra prova, designadamente, pelo ocupante do ciclomotor.
Valorámos, assim, o depoimento dos militares da GNR … e … , porquanto os mesmos presenciaram e vivenciaram os factos sobre os quais depuseram de forma objectiva, detalhada, segura, coerente e isenta, tendo ambos descrito, sem contradições relevantes entre si, a conduta do arguido, e as circunstâncias de tempo, modo e lugar da ocorrência da mesma do modo como consta no libelo acusatório, designadamente, explicitando de forma articulada entre si, a forma como foi dada a ordem de paragem e respectiva sinalética efectuada (lanterna luminosa, e braço levantado), a forma como o arguido reagiu, num primeiro momento abrandando o veiculo, para logo a seguir, ziguezagueando, ter dirigido o ciclomotor de encontro ao corpo do militar ..., a forma como este tentou desviar-se e como lhe embateu no pé esquerdo.
Portanto, o tribunal não viu razões para não dar credibilidade à versão dos agentes policiais, por ser aquela mais consonante com as regras da experiência da vida, pois o arguido poderia ter sempre optado por efectuar inversão de marcha para encetar a pretendida fuga e não o fez.
Em segundo lugar, porque quer os agentes policiais foram muito seguros e convincentes no sentido de que se tivesse ocorrido uma situação duvidosa quanto à intenção do arguido em dirigir o ciclomotor contra o corpo do ofendido, porquanto este em ziguezague seguia os movimentos de afastamento do dito agente, não teria sido elaborado o correspondente auto de notícia.
Por outro lado, é a versão que se mostra também mais plausível com a prova documental junta aos autos - auto de notícia de fls. 3 e 4, e documentos de fls. 6, 18 e 22 - e com a prova pericial - Relatório de Perícia de avaliação do dano corporal de fls. 41 a 43.
Como é sabido o auto de notícia só por si faz presumir que os factos narrados no mesmo consubstanciam uma reprodução dos factos correctamente percepcionados pelo agente Autuante, não sendo necessário que este os reproduza em audiência de julgamento. Por conseguinte, a certeza da parte deste e também do agente testemunha, de que, perante uma situação duvidosa, como seria necessariamente o episódio em análise na versão atabalhoadamente narrada pelo arguido, não teria autuado - sentimento corroborado pelo agente/testemunha - é suficiente para o Tribunal concluir que ambas as testemunhas de acusação ficaram com a plena convicção de que o arguido dirigiu o ciclomotor na direcção do corpo do agente.
No que concerne aos factos relacionados com o pedido de indemnização cível o tribunal ancorou-se na conjugação dos depoimentos de ambas as testemunhas de acusação com o teor do Relatório de Perícia de avaliação do dano corporal de fls. 41 a 43.
No que concerne às condições pessoais, antecedentes criminais e processos pendentes, a convicção do tribunal resultou da conjugação dos depoimentos das duas testemunhas de defesa ouvidas … e … , tia e amiga de infância do arguido, respectivamente, que abonaram favoravelmente a sua integração social, com as declarações do próprio arguido e o contacto vivo que o tribunal teve com o mesmo, e ainda com o teor do Certificado de Registo Criminal de fls. 116, cópia da carta de condução de fls. 117/118 e com o teor do Termo de Identidade e Residência de fls. 7.
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4. Mérito do recurso:
O ponto em debate está circunscrito à questão de saber se um condutor, como o arguido, na situação configurada nos autos, não legalmente habilitado com licença de condução no momento da prática do crime correspondente, também autor material, na mesma data, do concreto crime de resistência e coacção sobre funcionário e do crime de condução em estado de embriaguez, deve ser também punido com a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, ao abrigo do disposto no artigo 69.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código Penal.
Desde há muito que esta problemática vem sido discutida na nossa jurisprudência, embora hodiernamente, segundo nos afigura, exista consenso total, ou, pelo menos, extremamente alargado, no sentido de que a falta da licença de condução, no circunstancialismo acima exposto, não obsta à condenação do agente na referida pena acessória.
A Relação de Évora, em acórdão de 10 de Dezembro de 2009 (processo n.º 83/09.8GBLGS.E1, in www.dgsi.pt), tratou da matéria em causa de forma aprofundada e, por isso, aqui o reproduzimos, no segmento relevante:
«Se é pacífico que, com a entrada em vigor do Código Penal de 1995, a condução de um veículo em estado de embriaguês é punível não apenas com a pena cominada no artigo 292.º daquele diploma como também da pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, prevista no artigo 69.º, tem-se discutido, nomeadamente em sede jurisprudencial, a aplicação desta pena acessória no caso de condutor que, conduzindo veículo em estado de embriaguez, não é titular de carta de condução.
O Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão de 12 de Março de 2003 (processo 03P505, disponível em www.dgsi.pt/) e expressando o entendimento preponderante, concluiu em sentido afirmativo, salientando que do próprio preceito em si (artigo 69.º do Código Penal, na redacção então vigente) não resulta de modo nenhum, nem expressa nem sequer implicitamente, que a sanção aí prevenida só possa ser aplicada a quem já possua carta de condução ou documento que o habilite a conduzir veículos motorizados. Bem pelo contrário, como aliás se alcança do próprio teor do seu n.º 3 (“... condenado que for titular de licença de condução...”, o que faz pressupor contemplar também quem o não seja), e do que de todo em todo resulta do seu n.º 5 (não se aplica a inibição quando houver lugar a “interdição da concessão de licença”, o que pressupõe a possibilidade de existência de falta de habilitação para conduzir), perfila-se como de todo em todo incontornável e inquestionável que a proibição de conduzir veículos motorizados, prevista e consagrada no artigo 69.º do Código Penal, de modo nenhum reclama ou exige que o condenado seja já possuidor de carta de condução ou esteja já habilitado a conduzir tais veículos. Aliás a própria lei é clara e inequívoca ao indexar apenas a condenação à prática dos crimes referenciados nas alíneas a) e b) do n.º 1, e no condicionalismo aí consignado, o que surge como natural e adequada resposta a todo um pensar e querer legislativos em termos de acautelamento e de prevenção da perigosidade revelada pelo agente naqueles casos concretos, o que não deixa de se configurar de significativa relevância mesmo no plano da prevenção geral.
Esta decisão reporta-se à redacção inicial do artigo 69.º, n.º 3, do Código Penal, nos termos da qual “a proibição de conduzir é comunicada aos serviços competentes e implica, para o condenado que for titular de licença de condução, a obrigação de a entregar na secretaria do tribunal ou em qualquer posto policial que a remeterá àquela”.
Esta norma foi alterada pela Lei n.º 77/2001, de 13 de Julho - que estabeleceu a sua actual redacção (“No prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que remete àquele, o título de condução, se o mesmo não se encontrar já apreendido no processo”).
Esta alteração sustentou o entendimento de que, em face da actual redacção do artigo 69.º, n.º 3 do Código Penal, a sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados apenas é aplicável a quem está habilitado a conduzir.
Este entendimento é defendido, entre outros, no acórdão deste Tribunal da Relação de Évora, proferido em 3 de Fevereiro de 2004, no âmbito do processo n.º 2294/03-1, disponível na base de dados antes mencionada.
Aí se dá conta de que “a aplicação da sanção acessória de proibição de conduzir veículos “com motor de qualquer categoria” ao agente que seja condenado pela prática de quaisquer dos crimes previstos no art. 69.º, n.º 1, als. a) a c) do CP, quando o agente não seja titular de carta de condução, oferece algumas dúvidas, principalmente depois da alteração introduzida ao art. 69º, n.º 3 do CP pela Lei 77/2001, de 13.07. De facto, enquanto na anterior redacção se estabelecia que a proibição implicava, “para o condenado que for titular de licença de condução, a obrigação de a entregar...” - o que pressupõe que podia o condenado não ser titular de licença de condução - na actual redacção estabelece que “o condenado entrega na secretaria do tribunal...o título de condução, se o mesmo não se encontrar já apreendido no processo”, o que parece levar a concluir que só será condenado em tal sanção acessória quem for titular de título de condução.
(…) Reconhecemos que a questão não é pacífica, como nos dá conta o acórdão da RC de 28.05.2002, in Col. Jur., Ano XXVII, t. 3, 45, onde se decidiu que “o crime de condução em estado de embriaguez do art. 292.º do CP é punido com a sanção acessória de inibição de conduzir veículos motorizados, mesmo que o condenado não seja titular da necessária habilitação legal para conduzir”, defendendo que se mantêm válidos os argumentos a favor da utilidade prática da aplicação de tal sanção que eram utilizados na vigência do art. 69.º do CP, redacção anterior à Lei 77/2001.
(…) Em favor desta posição apontam-se:
- O comentário, a propósito, de Simas Santos e Leal-Henriques, in Código Penal Anotado, 1995, 541: “Na Comissão Revisora a consagração da pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados...foi referida como correspondendo a uma necessidade de política criminal. A sua necessidade, mesmo para os não titulares de licença de condução, foi justificada para obviar a um tratamento desigual que adviria da sua não punição, tendo-se procurado abranger essa hipótese com a redacção dada ao n.º 3.
(...) Mesmo no caso da falta de licença, a sanção não será inútil, já que ficará fazendo parte do cadastro do condenado», poderá se aplicável efectivamente se aquele vier a habilitar-se no prazo «e é-o sempre também em relação aos veículos cuja condução exija aquela licença»;
«- O facto da inibição abranger qualquer veículo motorizado (e não apenas os veículos automóveis), sendo que o agente pode não estar habilitado para conduzir determinada categoria de veículos e estar habilitado para conduzir outra ou outras categorias;
- A redacção do art. 126.º do Código da Estrada, onde se estabelece - como requisito para a obtenção de título de condução - que o candidato não esteja a cumprir proibição ou inibição de conduzir, o que permite concluir que a inibição a quem não possui licença é uma inibição à posterior obtenção de licença”.
No acórdão a que se vem fazendo referência afirma-se a perda de actualidade destes argumentos, face às alterações introduzidas pela Lei 77/2001: “Por um lado, temos que presumir que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (art. 9.º, n.º 3 do Código Civil) e que a interpretação da lei deve ter em conta as circunstâncias em que foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (mesmo artigo, n.º 1).
Por outro lado, e face a isso, o legislador - quando alterou o art. 69.º, n.º 3 do CP - não podia deixar de saber da polémica jurisprudencial que então existia quanto à aplicação (ou não) da sanção acessória da proibição de conduzir ao condenado, por qualquer dos crimes previstos no art. 69.º do CP, que não fosse titular de licença de condução; não obstante, e sabendo que um dos argumentos relevantes para concluir pela aplicação de tal sanção era a redacção que tinha o art. 69º, n.º 3 do CP (onde se admitia a possibilidade de o condenado não ser titular de licença de condução), não deixou de alterar tal disposição, retirando tal argumento e deixando claro que o condenado “entrega...o título de condução, se o mesmo não se encontrar já apreendido no processo”, o que afasta a ideia da aplicação da sanção acessória ao agente que não esteja habilitado com “título de condução”.
Por outro lado, não pode esquecer-se que licença de condução (expressão utilizada no n.º 3 do art. 69.º do CP, redacção anterior) não se identifica com “título de condução” - expressão utilizada na actual redacção do art. 69.º, n.º 3 do CP - pois o título de condução pode ser carta de condução, licença de condução ou outros títulos de habilitação a conduzir veículos a motor, como se vê dos arts. 122.º a 125.º do Código da Estrada; o uso de tal expressão não pode deixar de ser entendida, assim, como referindo-se ao título de condução que habilita o agente a conduzir o veículo com o qual cometeu o crime pelo qual foi condenado, pois é essa perigosidade do agente que se pretende evitar, sendo que bem pode acontecer que o mesmo esteja habilitado com outros títulos - significa isto, em suma, que a obrigação de entregar o título de condução (determinado) supõe a habilitação do condenado com um título de condução e que o mesmo não esteja apreendido, o que também resulta do facto do legislador, com a alteração que introduziu no art. 69.º, n.º 1, al. a) do CP pela Lei 77/2001, deixar de sancionar com a proibição de conduzir o crime de condução sem habilitação legal, o que hoje parece pacífico, pelo menos na Secção Criminal desta Relação.
Por outro lado, os argumentos da Comissão Revisora acima sintetizados parecem afastados pela nova redacção dada ao art. 69º, n.º 3 do CP, argumentos a que o legislador, ao efectuar tal alteração, não podia ser alheio, sendo certo que não vemos aqui qualquer desigualdade, porque são distintas as situações.
Por outro lado, ainda, o disposto no art. 126º do CE, que se mantém em vigor, não afasta este entendimento, designadamente se tivermos em conta que aí se prevêem os requisitos para obtenção de título de condução e bem pode acontecer que o agente (habilitado com determinado título de condução) esteja inibido ou proibido de conduzir e pretenda obter outro título, para outra categoria de veículo, diferente daquele, tendo então justificação a proibição prevista no art. 126.º do CE”.
Contudo, mesmo no âmbito da actual legislação prevalece o entendimento contrário. A este propósito e a título exemplificativo, salienta-se o acórdão também da Relação de Évora, proferido em 26 de Maio de 2009, no âmbito do processo n.º 141/07.3GBASL.E1, igualmente disponível na base de dados www.dgsi.pt/.
Aí se dá conta de que “a jurisprudência mais recente, que está publicada, continua maioritariamente a defender a aplicação da pena acessória de proibição de conduzir a quem não possua habilitação legal e cometa os crimes prevenidos nos art. 291.º e 292.º do CPP.
Vejam-se, entre outros, os acórdãos da Relação de Lisboa de 12.09.2007, in Rec.4743/2007 – 3.ª secção, de 26.07.2007, in Rec. 5103/2007 – 3.ª Secção, de 24.01.2007, in Rec.7836/2006, 3.ª secção, todos acessíveis in www.dgsi.pt/jtrl, da Relação de Coimbra de 22 de Maio de 2002, in C.J. ano XXVII, tomo 3.º, pág.45, de 24.05.2006, in Rec. 919/06 e de 10.12.2008, in Rec.17/07.4PANZR, acessíveis in www.dgsi.pt/jtrc, da Relação do Porto de 09.07.2008, in Rec. 12897/08, de 01.04.2009, in rec. 963/08.8PAPVZ, publicados in www.dgsi.pt/jtrp.
Os argumentos aduzidos no sentido da condenação do infractor não habilitado que pratique crime de condução de veículo em estado de embriaguez são, no essencial, os seguintes:
- Seria “um contra-senso que o condutor não habilitado legalmente a conduzir, podendo vir a obter licença ou carta de condução logo pouco depois da sentença condenatória, não se visse inibido de conduzir, quando o já habilitado fica sujeito a tal sanção” - Ac. do Trib. da Relação de Lisboa, de 19/09/95, Col. Jur. Ano XX, 1995, Tomo IV, pág. 147.
- Após a publicação da Lei n.º 77/2001, o Código da Estrada foi alterado pelo Decreto-Lei n.º 265-A/2001, de 28-09, tendo este diploma mantido como um dos requisitos para a obtenção do título de condução a circunstância de o requerente não se encontrar a cumprir decisão que tenha imposto a proibição de conduzir [cf. art. 126.º n.º 1, al. d) do C.E.]. A manutenção deste requisito para a obtenção da carta de condução pressupõe que a proibição de conduzir possa [deva] ser aplicada a quem não for dela titular.
- No mesmo sentido aponta o facto de o conteúdo material da sanção em causa ser o da imposição de uma proibição de conduzir e não o da previsão de uma suspensão dos direitos conferidos pela titularidade da carta de condução.
- A aplicação da proibição de conduzir visa não só assegurar de uma forma reforçada a tutela dos bens jurídicos como também evitar que o agente de tal crime volte a praticar factos semelhantes.
- Acresce, ainda, o facto de o art. 353.º do Código Penal criminalizar a violação de proibições impostas por sentença criminal a título de pena acessória ou de medida de segurança não privativa da liberdade.
Da violação dessa proibição pode resultar para o agente, ainda que não seja titular de carta de condução, a responsabilização pela prática, em concurso efectivo, de um crime do art. 3.º do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03-01, e de um crime do referido art. 353.º, pois que este tipo legal visa tutelar a autoridade pública e não a segurança das comunicações.
- A não aplicação da pena acessória num caso como este traduzir-se-ia num privilégio injustificado para quem teve um comportamento globalmente mais grave do que a [simples] condução em estado de embriaguez (cf., entre outros, o acórdão da Relação de Lisboa de 12-09-2007, acima mencionado).
Na doutrina, Germano Marques da Silva (in Crimes Rodoviários, Pena Acessória e Medidas de Segurança, pág. 32 e nota 54) também entende que «a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pode ser aplicada a agente que não seja titular de licença para o exercício legal da condução; o condenado fica então proibido de conduzir veículo motorizado, ainda que entretanto obtenha licença» e acrescenta ainda que “diferentemente quando for aplicada a medida de segurança de cassação e o agente não seja titular de licença, caso em que ao agente não pode ser concedida licença durante o período de interdição”, dado que «a proibição de conduzir veículo motorizado não pressupõe habilitação legal».
O art. 10.º do DL n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, que veio alterar o Código da Estrada, prevê no seu art. 10.º que a Direcção-Geral de Viação deve assegurar a existência de registos nacionais de condutores, de infractores e de matrículas, organizados em sistema informático, nos termos fixados em diploma próprio, com o conteúdo previsto nos art. 144.º e 149.º do Código da Estrada no que se refere ao registo dos condutores.
Para dar cumprimento ao referido normativo foi publicado e já está em vigor o DL n.º 98/2006, de 6 de Junho, que regula o registo de infracções de não condutores (infractores não habilitados). Neste diploma, o legislador, no art. 4.º, enumera vários elementos que deverão constar no registo de infracções do não condutor (RIO) e um dos elementos é a pena acessória aplicada pelo tribunal relativa a crimes praticados no exercício da condução.
Parece-nos, face ao conjunto de argumentos aduzidos e considerando, nomeadamente a criação do registo de infracções de não condutores, que o legislador, com as alterações operadas ao art. 69.º do Código Penal, não quis excluir da condenação na pena acessória de proibição de conduzir os infractores não habilitados com carta de condução que cometam os crimes mencionados nas diversas alíneas do n.º 1 daquele preceito, não obstante os sinais contraditórios espelhados nalgumas normas postas em destaque».
Acresce ainda o que se diz no referido acórdão de 10 de Dezembro de 2009:
«Para a sua sustentação aponta-se também o confronto do artigo 69.º, n.º 1 e n.º 7, com o artigo 101.º, n.º 4, do Código Penal, cujo teor anteriormente se deixou enunciado. A conjugação destas normas evidencia que, ao estabelecer a pena acessória, o artigo 69.º, na sua redacção actual, prevê a condenação nessa pena mesmo em relação ao condutor não habilitado e a sua exclusão quando, pelo mesmo facto, tiver lugar a interdição da concessão do título de condução, na certeza de que esta interdição pressupõe que o agente não é titular de título de condução.
Considerando os elementos apontados e contrariando o entendimento expendido pelo arguido, não se afigura que estejamos perante uma argumentação meramente literal e sem sustentação, sendo antes a interpretação correcta do quadro legal que se deixou enunciado».
Perante a argumentação supra exposta, que temos como particularmente explícita e convincente, apenas nos resta dizer que, sem qualquer restrição, com ela concordamos.
Daí concluirmos, como no acórdão citado, da Relação de Évora de 10-12-2009, que deve ser condenado na pena acessória de proibição de conduzir o condutor não habilitado à condução de veículos com motor que incorra na prática do crime de condução em estado de embriaguez e, no caso concreto dos autos, ainda no crime de resistência e coacção sobre funcionário.
Apenas mencionaremos, por fim, outros arestos dos Tribunais da Relação, mais recentes, no mesmo sentido: da Relação de Lisboa de 13-09-2011 (proc. n.º 204/10.8GATVD.L1-5); da Relação de Coimbra de 22-09-2010 (proc. n.º 291/08.9GATBU.C1), 09-02-2011 (proc. n.º 43/09.9GATBU.C1), 04-05-2011 (proc. n.º 181/10.5GBAND.C1 e 09-05-2012 (proc. n.º 198/09.2GDAND.C1); e da Relação de Lisboa de 24-01-2011 (proc. n.º 377/10.0GDGMR.G1), todos publicados no sítio www.dgsi.pt.
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Do confronto da fundamentação de direito com o dispositivo da sentença recorrida, verificamos que neste existem lapsos materiais que urge corrigir, por força do disposto no artigo 380.º, n.ºs 1, al. b) e 2, do CPP.
Assim, onde consta:
I - Parte Criminal:
«a) Condeno o arguido A..., pela prática, em autoria material e na forma tentada, de um crime de condução sem habilitação legal, todos do Código Penal na pena de 60 dias de multa à razão diária de €5,5»;
passará a constar:
«a) Condeno o arguido A..., pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelos artigo 3.º, n.º 1, do DL 3/98, de 3 de Janeiro, na pena de 60 dias de multa à razão diária de €5,5»;
E onde está escrito:
«b) Condeno o arguido A..., pela prática, em autoria material e na forma tentada, de um crime de condução em estado de embriaguez, todos do Código Penal na pena de 70 dias de multa à razão diária de €5,5»;
ficará exarado:
«b) Condeno o arguido A..., pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal, na pena de 70 dias de multa à razão diária de €5,5».
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III. Dispositivo:
Posto o que precede, acordam na 5.ª Secção deste Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso, mantendo-se, na íntegra, a sentença recorrida.
Determina-se a correcção, na sentença recorrida, dos individualizados lapsos materiais, nos precisos termos acima expostos.
Taxa de justiça a cargo do arguido, cujo quantitativo se fixa em 3 UCs [artigos 513.º, n.º 1 e 514.º, n.º 1, ambos do CPP; artigo 8.º, n.º 5, e tabela anexa, do Regulamento das Custas Processuais (DL n.º 34/2008, de 26-02)].
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(Processado e revisto pelo relator, o primeiro signatário)
Coimbra, 3 de Julho de 2012

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(Alberto Mira)

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(Elisa Sales)