Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
149/08.1TAVGS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: CRIME DE DESOBEDIÊNCIA
VIOLAÇÃO DE IMPOSIÇÕES
PROIBIÇÕES OU INTERDIÇÕES
FALTA ENTREGA CARTA DE CONDUÇÃO
DESPACHO DE SANEAMENTO
ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
Data do Acordão: 06/30/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA-VAGOS – JUÍZO DE MÉDIA INSTÂNCIA CRIMINAL – 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTIGOS 348, Nº 1 B), 353º CP, 311º, 358º E 500º, 2,3 CPP,
Sumário: 1. O substrato material da pena acessória é a proibição de conduzir, excluindo-se dela o acto de entrega da carta como elemento integrante desse substrato.
2. Existe crime de desobediência nos casos em que o agente não entrega a carta/licença de condução após ser condenado pela prática de contra-ordenação, a que corresponde sanção acessória de inibição de conduzir;
3. Até à entrada em vigor do CP, na versão de 2007, não existia crime de desobediência – quer pela alínea a) (inexistência de norma expressa que tal comine), quer pela alínea b) (inexistindo legitimidade legal para tal cominação casuística feita pelo julgador) nos casos em que o agente não entrega a carta/licença de condução após ser condenado pela prática de crime, a que corresponde pena acessória de proibição de conduzir;
4. Após 15/9/2007, pratica o crime do artigo 353º do CP aquele que não entrega a carta após ser condenado pela prática de crime, a que corresponde pena acessória de proibição de conduzir
5. Após a leitura da sentença condenatória, onde se venha a incluir uma pena acessória de proibição de conduzir, o arguido deve ser notificado/informado de que deve entregar o título de condução no prazo de 10 dias, sob pena do mesmo lhe vir a ser apreendido, nos termos do artº 500º, nºs 2 e 3 do CPP e que a não entrega da carta nesse prazo o fará incorrer na prática de um crime de violação de imposições p. e p. pelo artº 353º do CP
6. Ao proferir o despacho de recebimento da acusação o juiz pode (e deve) proceder ao enquadramento jurídico-penal que tenha por mais adequado se divergir da qualificação jurídica dos factos da acusação .
7. A qualificação jurídica dos factos imputados – que é exclusivamente a aplicação do direito ao caso – é livre para o tribunal e pode ser alterada quando profere o despacho de saneamento a que alude o artigo 311.º do Código de Processo Penal.
Decisão Texto Integral:             I - RELATÓRIO

            1. No processo comum singular n.º 149/08.1TAVGS do Juízo de Média Instância Criminal de Vagos, na comarca do Baixo Vouga, por despacho de 9 de Fevereiro de 2010, foi rejeitada, por manifestamente infundada, a acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido J..., devidamente identificado nos autos, na qual lhe era imputada a prática de um crime de desobediência p. e p. pelo artigo 348º, n.º 1, alínea b) do C.Penal.

           

            2. Inconformado, o Ministério Público recorreu deste despacho proferido nos termos do artigo 311º do CPP, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

«1. O Ministério Público deduziu acusação contra o arguido J... imputando-lhe a prática de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348°, n.° 1, alínea b), do Código Penal.

2. Por douto despacho de fls. 166 a 171, a Mma. Juiz a quo rejeitou a acusação pública deduzida pelo Ministério Público por manifestamente infundada.

3. Decorre dos elementos carreados para os presentes autos que na sentença proferida nos autos de Processo Especial Sumário n.° 46/08.00AVGS, foi cominado com o crime de desobediência a falta da entrega da carta de condução pelo arguido, no prazo de dez dias após o trânsito, o qual ocorreu em 07/03/2008.

4. Com o trânsito em julgado da sentença dos autos de Processo Especial Sumário n.° 46/08.OGAVGS, consolidaram-se na Ordem Jurídica todos os efeitos penais dali decorrentes, nos termos do artigo 467°, n.° 1, do Código de Processo Penal.

5. Não devia o Tribunal considerar não ser legítima nem emanar de autoridade competente aquela cominação com a prática de um crime de desobediência, nos termos do art. 348°, n.° 1, alínea b), do Código Penal, pela falta de entrega da carta de condução no prazo de dez dias após o trânsito.

6. Não será de efectuar uma interpretação minimalista do artigo 348°, n.° 1, alínea b) do Código Penal, pois, caso contrário, estar-se-ia a esvaziar a norma nos casos em que a advertência é feita, como o foi na sentença condenatória proferida no Processo Especial Sumário n.° 46/08.OGAVGS, a fim de garantir o cumprimento da pena acessória por parte do arguido e, nessa medida, proteger a autonomia intencional do Estado de Direito.

7. O crime de desobediência consumou-se com a omissão do acto determinado, consubstanciada, in casu, com a falta de entrega da carta de condução pelo arguido no prazo de dez dias após o trânsito.

8. Se se entender que não é legítimo ao Tribunal cominar a falta de entrega da carta de condução com a prática do crime de desobediência, e se o arguido recusasse a entrega da carta perante a autoridade policial, nos termos do artigo 500°, n.° 3, do Código de Processo Penal, não haveria quaisquer consequências para o incumprimento.

9. Com efeito, se o Tribunal não puder, desde logo, no acórdão condenatório, cominar com a prática de crime a falta de entrega da carta de condução, também a autoridade policial, num segundo momento que viesse a ocorrer e na sequência do artigo 500°, n.° 3, do Código de Processo Penal, não poderia cominar com tal crime a eventual e reiterada falta de entrega daquele documento por parte do arguido perante as autoridades policiais.

10. A conduta do arguido de não entrega voluntária da carta e não se logrando proceder à apreensão daquele documento nos termos do artigo 500°, n.° 3, do Código de Processo Penal, cominaria na ausência de quaisquer consequências para a recusa do arguido em cumprir a pena acessória a que está obrigado.

11. A eventual recusa de o arguido cumprir com a pena acessória, traduzida na falta da entrega da carta de condução, parece-nos ser merecedora de suficiente dignidade a valorar em termos penais, pois, a assim não ser, equivaleria a admitir-se a possibilidade de deixar à consideração do arguido a decisão de cumprir ou não com tal pena acessória, ou de cumpri-la apenas quando entendesse.

12. A cominação com o crime de desobediência obsta à pretensão do arguido que pretenda subtrair-se ao cumprimento da pena acessória em que foi condenado por acórdão e reforça a confiança da comunidade na validade da norma penal violada.

13. Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se o douto despacho recorrido por violar o disposto nos artigos 348°, n.° 1, alínea b), do Código Penal e 311°, n.° 1, 2, alínea a) e 3, alínea d), do Código de Processo Penal, e ordenando-se a sua substituição por outro a determinar o recebimento da acusação e designação de data para a audiência.

Pelo que, dando provimento ao recurso interposto, revogando o despacho recorrido e ordenando a sua substituição por outro a determinar o recebimento da acusação pública proferida e designação de data para a audiência, Vossas Excelências farão, como sempre, a costumada
Justiça!»

            3. O arguido NÃO respondeu a tal recurso.

            4. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se no sentido de que o recurso merece provimento, embora com fundamentos diversos, opinando que deve ser revogado o despacho recorrido, devendo ser substituído por outro que receba a acusação, não pela prática de um crime de desobediência, mas de um crime p. e p. pelo artigo 353º do CP, havendo que cumprir, oportunamente, o disposto no artigo 358º, n.º 1 e 3 do CPP.

            5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser este recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º 3, alínea b) do mesmo diploma.

            II – Fundamentação

           

1. Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242 e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271).

             Assim, balizados pelos termos das conclusões[1], a questão a decidir consiste em saber se é de manter ou não a rejeição da acusação pública pela prática do crime de desobediência p. e p. pelo artigo 348º, n.º 1, alínea b) do C.Penal.

            Posteriormente, e caso se conclua que o comportamento do arguido não é passível de ser subsumido ao crime de desobediência, importará verificar e decidir se já poderá ser subsumido ao crime do artigo 353º do CP, retirando as consequências processuais, caso se responda afirmativamente a esta questão.

Ou seja, o que se discutirá, em 1ª linha, é se estão ou não perfectibilizados os requisitos objectivos para a subsunção ao citado crime de desobediência do comportamento do arguido em não entregar a sua carta de condução após uma condenação em pena acessória, apesar da cominação feita por um juiz.

           

            2. Do DESPACHO recorrido

            2.1. É o seguinte o teor do despacho recorrido:

«O Tribunal é competente e o processo é o próprio.

O Ministério Público tem legitimidade para o exercício da acção penal.

Inexistem nulidades, excepções ou outras questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer de imediato.

I. Pelo presente processo, entende o Ministério Público estar suficientemente indiciada a prática, pelo arguido J..., de um crime de desobediência, previsto e punido pelo art. 348º, n.° 1, al. b) do Código Penal, atenta a seguinte factualidade:

“1 - Por sentença proferida 06-02-2008, transitada a 7.3.2008, no Processo Sumário n.° 46/08.0 GAVGS que correu termos neste Tribunal Judicial, foi o arguido condenado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelos arts. 292.°, n.° 1, e 69.º, n.° 1, alínea a), do Código Penal, na pena de 110 (cento e dez) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros), num total de €550,00 (quinhentos e cinquenta euros), e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo prazo de 8 (oito) meses.

2. Tendo em vista a execução de tais penas, o arguido foi notificado pessoalmente, no dia 06-02-2008, para ...fazer a entrega das suas licença e carta de condução, caso seja titular de ambas, na secretaria deste Tribunal, ou em qualquer posto policial da área da sua residência no prazo de 10 dias após o trânsito em julgado desta sentença, sob pena de incorrer num crime de desobediência” o que bem percebeu e do que ficou bem ciente.

3. Não obstante, naquele período e, nem posteriormente, o arguido não entregou os referidos documentos, como devia e podia, pois era e é titular carta de condução n.° AV-89838 0, emitida a 02-11-2007, válida até 15-005- 2012, para as categorias C, C1, C1E, CE e ate 15-05-2017, para as categorias B, B1, BE.

4. O arguido sabia que a ordem que recebeu era legítima, que emanava de autoridade competente, que lhe foi regularmente comunicada e que lhe devia obediência, tendo faltado ostensivamente ao seu cumprimento.

5. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária, e consciente, bem sabendo que a sua conduta era vedada por lei e que incorria, mais uma vez, em responsabilidade criminal”.

II. Pois bem, atentemos na factualidade indiciada e nos elementos do tipo legal de crime imputado ao arguido.

Preceitua o art. 348.°, n.° 1 do Código Penal que “Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados da autoridade competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se: a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação”.

Maia Gonçalves anota acerca deste normativo o seguinte: “Trata-se de um artigo controverso. Não é possível a sua eliminação, porque serve múltiplas incriminações extravagantes e por isso poderia desarmar a Administração Pública. Mas seria certamente excessivo proteger desta forma toda e qualquer ordem da autoridade, incriminando aqui tudo o que possa ser considerado não obediência”.

A amplitude deste crime voltou a ser ponderada pela CRCP, na 35ª sessão.

Para boa compreensão da amplitude actual da previsão aqui estabelecida, destacamos as seguintes passagens da discussão na CRCP “(...) Para o Senhor Conselheiro Sousa e Brito torna-se no entanto necessário restringir o âmbito de aplicação do artigo, pois é excessivo proteger desta forma toda a ordem. Justifica-se plenamente uma restrição àquelas ordens protegidas directamente por disposição legal que preveja essa pena. Por outro lado entende que o mandato, por exemplo, deveria ter lugar com a cominação da pena. O Sr. Dr. Costa Andrade, concordando no plano dos princípios com o Sr. Conselheiro Sousa e Brito, frisou o facto de se operar uma alteração muito profunda, a ponto de desarmar a Administração Pública. O mesmo tipo de considerações teceu o Professor Figueiredo Dias (a solução da exigência da norma legal seria a melhor), mas há que ter consciência da Administração Pública que temos. A Comissão acordou na seguinte solução, de molde a afastar o arbítrio neste domínio e numa tentativa de clarificar o alcance da norma para o aplicador (texto actual)”.

Ficou, portanto, clarificado que para a existência deste crime, para além do que se estabelece no corpo do n.° 1, é necessário que, em alternativa, se verifique ainda o condicionalismo de alguma das alíneas deste número — neste sentido, Código Penal Português Anotado e Comentado, 18. Ed., pág. 1045.

Por sua vez e incidindo, agora, no preceito que regula a execução da pena acessória de proibição de conduzir, pena em que a arguida foi condenada por sentença transitada em julgado, constata-se que o mesmo não sanciona com o crime de desobediência a falta de entrega da carta de condução.

Com efeito, estabelece o art. 500º do Código de Processo Penal que “2. No prazo de dez dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que a remete àquela, a licença de condução, se a mesma não se encontrar já apreendida no processo. 3. Se o condenado na proibição de conduzir veículos motorizados não proceder de acordo com o disposto no número anterior, o tribunal ordena a apreensão da licença de condução”.

Também sobre a questão da entrega do título de condução preceitua o n.° 3 do art. 69.° do Código Penal que “No prazo de 10 dias contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que remete àquela, o título de condução, se o mesmo não se encontrar já apreendido no processo”.

Da leitura e análise dos dois normativos vindos de referir em último lugar resulta não existir, por conseguinte, qualquer cominação legal da punição da não entrega como crime de desobediência — um dos elementos do tipo objectivo do ilícito da desobediência.

Por sua vez, no que concerne ao preenchimento do tipo através da simples “cominação funcional” (assim designada por contraposição à “cominação legal”), importará ponderar se as condutas arguidas de desobediência merecem ou não tutela penal, tendo em vista o carácter fragmentário e de última ratio da intervenção penal.

Como é assinalado por Cristina Líbano Monteiro, que aqui seguimos de perto, “(...) a al. b) existe tão-só para os casos em que nenhuma norma jurídica, seja qual for a sua natureza (i. é, mesmo um preceito não criminal) prevê aquele comportamento desobediente. Só então será justificável que o legislador se tenha preocupado com um vazio de punibilidade, decidindo-se embora por uma solução, como já foi dito, incorrecta e desrespeitadora do princípio da legalidade criminal” (cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra, Tomo III, pág. 354).

Para a não entrega voluntária da carta de condução - entrega essa que decorre da lei e não pressupõe qualquer ordem específica para esse efeito - o legislador prevê como consequência a determinação da sua apreensão, e tão só!

Desta feita, entendemos que a cominação da prática de um crime de desobediência para a conduta da sua não entrega contraria o sentido da norma da aplicação e execução da pena acessória de proibição de veículos com motor.

No sentido do vindo de sustentar, pode ver-se o Acórdão da Relação de Coimbra, de 22 de Outubro de 2008, Processo 43/08.6TAALB.C1, disponível in www.dgsi.pt, onde se lê que “Digamos que a notificação que é feita ao arguido para no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, entregar o título de condução, tem apenas um carácter informativo, ou se se quiser, não integra uma ordem, já que da sua não entrega decorre, como vimos, apenas a apreensão da mesma por parte das autoridades policiais. Não há pois qualquer cominação da prática de crime de desobediência. Por outro lado como é sabido, o intérprete deve presumir na determinação do sentido e alcance da lei, que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados e consagrou as soluções mais acertadas. (artigo 9.° Código Civil). Significa isto claramente que no caso em análise se fosse intenção do legislador, cominar o crime de desobediência para a não entrega da carta de condução, tê-lo-ia dito expressamente”.

No mesmo sentido, e com desenvolvida argumentação, veja-se o Acórdão da Relação de Lisboa, de 18 de Dezembro de 2008, processo 1932/2008-9, acessível também in www.dgsi.pt, em que se salienta, além do mais: “(...) criando a lei mecanismos para quando, ultrapassada a fase “declarativa” da decisão sem que o agente cumpra voluntariamente, se passe a uma fase executiva da mesma, reagindo-se ao comportamento omissivo (no caso a não entrega da carta) com emprego de meios coercivos (determinando- -se a concretização oficiosa da sua apreensão, fase para a qual se mostra indiferente a adopção de um comportamento colaborante por parte do arguido), e considerando que, entregue ou não a carta, se este conduzir no período de proibição comete o crime do artigo 353.° do CP (o que reduz, repete-se, a entrega da carta a um mero meio de permitir um mais fácil e melhor controlo da execução da pena de proibição de conduzir), a cominação da prática de crime de desobediência para a não entrega no momento em que surge no caso dos autos carece de legitimidade”.

Concluímos, portanto e no seguimento do que se vem de expor, não haver lugar, no caso, à cominação do crime de desobediência, pelo que tendo existido a mesma, apenas podemos tê-la como não legítima e, por via disso, não poderemos tê-la em consideração para efeitos de ver como verificados, pelo menos, indiciariamente, todos os elementos (objectivos) necessários à prossecução penal do arguido pela eventual prática de um crime de desobediência.

Destarte, impõe-se então extrair as necessárias consequências, que, claro está, passam por rejeitar a acusação pública deduzida, por manifestamente infundada e à luz do disposto pelo art. 311º, n.° 2, al. a), e n.° 3, al. d) do Código de Processo Penal.

                                                           *

Decisão:

Termos em que, face ao exposto, rejeita-se a acusação pública deduzida pelo Ministério Público contra o arguido J... de fls. 154 a 156, por manifestamente infundada, nos termos do disposto no art. 311.°, n.° 2, al. a), e n.° 3, al. d) do Código de Processo Penal.

Sem custas, por não serem devidas.

Notifique.

           

3. APRECIAÇÃO DE DIREITO

           

3.1. Decidamos, em primeiro lugar, se comete um crime de desobediência p. e p. pelo artigo 348º, n.º 1, alínea b) do CP o arguido que não entrega a sua carta de condução após uma ordem dada nesse sentido por um juiz.

            Esta questão tem sido quase unanimemente decidida por esta Relação, no sentido de entender que inexiste tal crime, não obstante ter havido uma 1º decisão judicial a tal cominar (improcedendo, deste modo, as 4ª e 5ª conclusões do recorrente, na medida em que não deveria ter sido tal cominado pela 1ª decisão, tornando-se uma ordem ilegítima, logo, não coberta pelo pretenso caso julgado).

Quanto à fundamentação, reproduziremos a tese por nós defendida no Acórdão desta Relação de 14/10/2009 (Pº 513/05.8TAOBR.C1).

3.1.1. Ora, o crime de desobediência encontra-se previsto no artigo 348º, n.º 1 do Código Penal que diz:
Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se:
 a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou
b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação”.
Acrescenta, por sua vez, o respectivo n.º 2, assim qualificando o ilícito penal previsto no indicado normativo legal, que:
 “A pena é de prisão até 2 anos ou de multa até 240 dias nos casos em que uma disposição legal cominar a punição da desobediência qualificada”..
São requisitos de tal crime:
· a ordem ou mandado;
· a sua legalidade substancial e formal;
· a competência da autoridade ou funcionário para a sua emissão;
· a regularidade da sua transmissão ao destinatário;
· o conhecimento pelo agente dessa ordem.
Torna-se claro que para a existência deste crime, para além do que se estabelece no corpo do nº 1, é necessário que, em alternativa, se verifique ainda o condicionalismo de alguma das alíneas deste número.
A respeito do bem jurídico protegido por tal incriminação, escreve Cristina Líbano Monteiro – “in” “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, tomo III, pág. 350 - que se trata da autonomia intencional do Estado, impondo-se assim ao cidadão uma forma particular de não colocação de entraves à actividade do ente público no exercício das suas funções, dirigidas ao bom andamento da vida comunitária.
Opina Lopes da Mota, “como se salienta no preâmbulo do Código Penal (nº 36), o que se protege, nos crimes contra o Estado, em geral, e, em particular, nos crimes contra a autoridade pública, é a própria ordem democrática constitucional. Nas palavras do legislador, o bem jurídico não se dilui na noção de Estado, antes se concretiza no valor que este, para a sua prossecução, visa salvaguardar” (Jornadas de Direito Criminal”, do CEJ, Vol II, p. 412).           
Nestes termos, o tipo objectivo de ilícito fica preenchido com o acto de falta de obediência, por acção ou omissão, desde que esta seja devida, designadamente por a ordem ser legítima, emanada de quem tenha competência para o efeito e regularmente chegada ao conhecimento do destinatário, entendendo-se aqui que terá de haver condições para que este último se possa inteirar efectivamente da ordem emitida, por forma a fundar-se o respectivo dolo.
Posto o que se acaba de dizer, a fonte da dignidade penal do acto de desobediência impõe então que exista disposição legal que expressamente comine a incriminação (são os casos da alínea a) do n.º 1 e do n.º 2 do referido artigo 348º) ou, na ausência de tal norma, que a autoridade ou o funcionário que emite a ordem expressamente realize a referida cominação.
 Assim, no primeiro caso, a conduta em obediência impõe-se por via de norma geral e abstracta anterior à prática do facto; no segundo impõe-se por acto de vontade da autoridade ou funcionário que realizem a correspondente cominação.

       Revertendo ao caso dos autos, e do teor das disposições legais acabadas de citar resulta que o MP recorrente defende que a omissão de entrega da carta de condução no prazo fixado constitui crime de desobediência [caindo assim na alçada do artigo 348º, n.º 1, alínea b) do Código Penal], fundando-se a dignidade penal de tal desobediência tanto não na vigência de norma expressa nesse sentido, mas sim na cominação expressa da incriminação que, ainda assim, a lei impõe que o agente da autoridade efectue, motivo pelo qual se cai na previsão da alínea b) da mesma disposição legal.

Maia Gonçalves (Código Penal Português Anotado e Comentado, 18.ª ed., pág. 1045) opina sobre este normativo: «Trata-se de um artigo controverso. Não é possível a sua eliminação, porque serve múltiplas incriminações extravagantes e por isso poderia desarmar a Administração Pública. Mas seria certamente excessivo proteger desta forma toda e qualquer ordem da autoridade, incriminando aqui tudo o que possa ser considerado não obediência».

(…)

Ficou, portanto, clarificado que para a existência deste crime, para além do que se estabelece no corpo do nº 1, é necessário que, em alternativa, se verifique ainda o condicionalismo de alguma das alíneas deste número.»

3.1.2. In casu, o preceito que regula a execução da pena acessória de proibição de conduzir não sanciona com o crime de desobediência a falta de entrega da carta de condução.

De facto, prescreve o artigo 500.º n.º2, do C.P. Penal:

«No prazo de dez dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que a remete àquela, a licença de condução, se a mesma não se encontrar já apreendida no processo.»

Adianta o n.º 3 do mesmo preceito:

 «Se o condenado na proibição de conduzir veículos motorizados não proceder de acordo com o disposto no número anterior, o tribunal ordena a apreensão da licença de condução.»

Façamos também uma alusão ao artigo 69.º, n.º 3, do Código Penal:

«No prazo de 10 dias contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que remete àquela, o título de condução, se o mesmo não se encontrar já apreendido no processo.»

Como tal, inexiste qualquer cominação legal da punição da não entrega como crime de desobediência.

3.1.3. E a alínea b) do n.º 1 do dito artigo 348ª do CP?

Aí existe uma cominação feita por uma autoridade.

Cristina Líbano Monteiro (Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, pág. 354) doutrina que «[(…) a al. b) existe tão-só para os casos em que nenhuma norma jurídica, seja qual for a sua natureza (i. é, mesmo um preceito não criminal) prevê aquele comportamento desobediente. Só então será justificável que o legislador se tenha preocupado com um vazio de punibilidade, decidindo-se embora por uma solução, como já foi dito, incorrecta e desrespeitadora do princípio da legalidade criminal]».

Para a execução da pena acessória de proibição de conduzir, o legislador prevê que a não entrega voluntária da carta de condução – entrega que decorre dos termos da lei e não pressupõe qualquer ordem específica para esse efeito – tem como consequência a determinação da sua apreensão, razão pela qual não se entende, na linha do já profusamente defendido por esta Relação, que a cominação da prática de um crime de desobediência para a conduta da sua não entrega acaba por contrariar o sentido da norma.

Recuperemos o citado Acórdão desta Relação, de 22 de Outubro de 2008, processo 43/08.6TAALB.C1 (lido em www.dgsi.pt), referido pelo Exmº PGA na sua vista:

 «(…) O preceito que regula a execução da proibição de conduzir não sanciona com o crime de desobediência a falta de entrega da carta de condução.

Digamos que a notificação que é feita ao arguido para no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, entregar o título de condução, tem apenas um carácter informativo, ou se se quiser, não integra uma ordem, já que da sua não entrega decorre, como vimos, apenas a apreensão da mesma por parte das autoridades policiais.

Não há pois qualquer cominação da prática de crime de desobediência.

Por outro lado como é sabido, o intérprete deve presumir na determinação do sentido e alcance da lei, que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados e consagrou as soluções mais acertadas. (art. 9.º C. Civil).

Significa isto claramente que no caso em análise se fosse intenção do legislador, cominar o crime de desobediência para a não entrega da carta de condução, tê-lo-ia dito expressamente (…)

            Tomando igual posição, temos, pelo menos, os outros dois acórdãos citados a fls 152 - o Acórdão da Relação de Lisboa, de 18 de Dezembro de 2008, no processo 1932/2008-9 (lido em www.dgsi.pt), e o Acórdão da Relação de Coimbra, de 22 de Abril de 2009, no processo 329/07.7GTAVR.C1 (lido na mesma base de dados).

No primeiro desses arestos adiantam-se mais argumentos:

            « (…) criando a lei mecanismos para quando, ultrapassada a fase “declarativa” da decisão sem que o agente cumpra voluntariamente, se passe a uma fase executiva da mesma, reagindo-se ao comportamento omissivo (no caso a não entrega da carta) com emprego de meios coercivos (determinando-se a concretização oficiosa da sua apreensão, fase para a qual se mostra indiferente a adopção de um comportamento colaborante por parte do arguido), e considerando que, entregue ou não a carta, se este conduzir no período de proibição comete o crime do artigo 353.º do CP (o que reduz, repete-se, a entrega da carta a um mero meio de permitir um mais fácil e melhor controlo da execução da pena de proibição de conduzir), a cominação da prática de crime de desobediência para a não entrega no momento em que surge no caso dos autos carece de legitimidade».

O segundo aresto poderia ter o seguinte Sumário:
· Para a entrega da pena acessória de proibição de conduzir, o legislador prevê que a não entrega voluntária da carta de condução – entrega que decorre dos termos da lei e não pressupõe qualquer ordem específica para esse efeito – tem como consequência a determinação da sua apreensão, razão pela qual se entende que a cominação de um crime de desobediência para a conduta de não entrega contraria o sentido da norma.
· A entrega ou apreensão de uma carta de condução constituiu um meio próprio e eficaz de controlar a efectiva execução da pena acessória.

Estando, portanto, na disponibilidade do arguido a entrega voluntária da carta, não podia o JUIZ substituir-se ao legislador, fazendo a referida cominação, opinando-se, em clara consequência, que a cominação feita carece de suporte legal.

3.1.4. Poderão ser aventados argumentos contrários à bondade desta tese que agora se segue e que, no fundo, corrobora a posição do tribunal recorrido (não haver lugar, no caso, à prática do crime de desobediência).          
 - em primeiro lugar, uma interpretação sistemática sugere a conclusão de que o carácter verdadeiramente injuntivo da ordem de entrega e a respectiva cominação com o crime de desobediência são de considerar como perfeitamente compatíveis com o ordenamento jurídico em vigor. Com efeito, o Código da Estrada prevê, para os casos de aplicação de sanção acessória de inibição de conduzir, que a falta de entrega da carta no prazo de 15 dias após a notificação para o efeito faz incorrer o responsável na prática do crime de desobediência – art. 160º, nº 3 do Código da Estrada. Ora, não se compreende que a falta de entrega da carta para cumprimento de sanção administrativa aplicável a contra-ordenação seja cominada com o crime de desobediência, enquanto a mesma falta para cumprimento de pena acessória judicialmente decretada pela prática de crime não possa ter essa mesma consequência e que não tenha, afinal, consequência sancionatória alguma (e nem se diga que é assim porque a falta de entrega para cumprimento de pena acessória tem outra consequência – a apreensão – pois que tal apreensão está também prevista para a sanção acessória – art. 160º, n.º 3 e 4 do Código da Estrada).
- por outro lado, não parece que seja de considerar que a lei preveja sanção expressa para a falta de entrega da carta subsequente à aplicação da pena acessória. Efectivamente, é certo que a lei prevê em caso de não entrega voluntária da carta a sua apreensão, mas esta apreensão não tem natureza sancionatória mas, de outro modo, executiva. Dito de outro modo: não estando legalmente prevista qualquer sanção, o que se prevê com a apreensão é a forma de execução da pena acessória, aliás, como se disse, em termos paralelos à forma de execução da sanção acessória prevista no Código da Estrada. É que a apreensão - operação material de execução da pena - nada tem que ver com a sanção, designadamente criminal (ou contra-ordenacional), para a omissão de cumprimento de uma ordem (judicial ou administrativa) de entrega da carta.
- assim, da omissão do legislador quanto à sanção a aplicar no caso de não entrega da carta de condução em cumprimento de pena acessória (e da previsão quanto ao modo de execução material daquela pena), não resulta a irrelevância sancionatória, nomeadamente criminal, dessa omissão, caindo a situação, deste modo e em pleno, na previsão da alínea b) do nº 1 do artigo 348º do C. Penal.
- por último, também não se entende que a notificação efectuada para entrega da carta tenha valor meramente informativo, já que a lei – art. 69º do CP - é clara no sentido de que, após o trânsito em julgado, o arguido deve entregar a sua carta de condução no prazo de 10 dias, não estando prevista (nem sendo necessária) qualquer mediação judicial do sentido da norma. De outro modo, o que se entende é que tal comunicação visa dar uma ordem de entrega da carta em cumprimento do previsto no referido artigo 69º do CP cujo não cumprimento tem o desvalor criminal de inobservância de uma injunção judicial.

3.1.5. Os argumentos atrás avançados não nos impressionam ao ponto de mudarmos de posição quanto à nossa inicial posição.

Trata-se, no fundo, de uma norma em branco a do artigo 348º, n.º 1, alínea b) do CP – (que prevê uma «cominação funcional») -, a qual tem uma carácter absolutamente subsidiário, na medida em que a autoridade ou o funcionário só podem fazer uma tal cominação quando o comportamento em causa não constitua um ilícito previsto pelo legislador para sancionar essa mesma conduta, seja ele de natureza criminal, contra-ordenacional ou outra, só sendo válida tal cominação “se for, de entre o mais, materialmente legítima", em nome também de um modelo de intervenção mínima constitucionalmente consagrado no art. 18°, n° 2.

Ora, no caso concreto, a sanção é a apreensão da carta em causa (artigo 500º, n.º 3 do CPP), não havendo qualquer outra sanção para o incumprimento dessa obrigação, não sendo legítimo ao intérprete e aplicador da lei substituir-se ao legislador e “inventar” uma nova cominação, no caso, dispensável e ilegítima.

Nesta situação, na hipótese de o arguido não entregar a carta no período estipulado pelo juiz, e no uso do artº 500°, n° 3 do Código de Processo Penal, o tribunal poderia ordenar a apreensão da licença de condução, cumprindo-se, assim, a pena acessória de proibição de condução.

Além disso, a entrega da carta tem a "mera função de permitir um melhor controlo da execução da pena de proibição de conduzir".

Existe, portanto, uma norma legal que prevê a entrega coerciva da carta de condução e, sendo a mesma idónea a produzir o efeito pretendido, falece a condição essencial à cominação mais gravosa: a já aqui referida legitimidade.

Diga-se ainda que, se o arguido se escusasse ao cumprimento, sempre seria sancionado com o crime de violação de proibições p. e p. pelo art. 353° do Código Penal.

Não se pode, assim, secundar o raciocínio exposto na argumentação que defende o crime de desobediência, segundo o qual a lei penal não prevê, ao contrário da lei contra-ordenacional (estradal), directamente, a desobediência, só havendo, assim, que interpretar a lei penal de acordo com a lei estradal…

No fundo, é esse um dos argumentos decisivos da tese da desobediência - existindo no âmbito do direito contra-ordenacional uma disposição legal a prever a cominação da desobediência simples no caso de desrespeito do dever de entrega do título de condução para cumprimento da sanção acessória de inibição de conduzir - artigo 160° nº 3 do Código da Estrada ­não se compreenderia que a punição da mesma conduta não fosse possível, ainda que através de cominação funcional do crime de desobediência, estando em causa uma infracção criminal.

As alterações efectuadas ao Código da Estrada, no que tange à incriminação da referida conduta, nos termos previstos na actual redacção do art.° 160°, n.° 3, e na redacção anterior às alterações de 2005, nos artigos 166° e 157°, teriam, para tal teses, duas consequências:

- sabido que a jurisprudência dominante não punha em causa a referida incriminação, designadamente, a legitimidade do juiz para fazer a referida advertência, demonstra que a intenção do legislador foi a de manter a referida incriminação em virtude de ter reforçado essa ideia no âmbito do processo contra-ordenacional e não estabeleceu qualquer restrição no regime penal;

- por força do princípio da unidade do sistema jurídico, não teria qualquer cabimento descriminalizar a referida conduta no âmbito dum processo de natureza criminal na medida em que "não pode sustentar-se um regime mais benévolo para sanção de natureza criminal/penal que o da contra-ordenação correspondente", ou seja, por maioria de razão, não pode o legislador deixar de incriminar o mesmo facto para os casos em que a decisão é tomada por um Magistrado Judicial, quando a mesma advertência pode ser feita por um funcionário da Administração Pública!

3.1.6. Não se ignora, contudo, que uma incriminação é, em todas as situações, uma conatural restrição de direitos fundamentais e, como tal, as normas incriminatórias devem ser lidas de modo restritivo, não o contrário (v.g. 18º, n.º 2 da CRP), reservando-se o Direito Penal para uma função subsidiária, “de última linha da política social”.

Tal premissa é convocada, sem qualquer dúvida, para a situação que ora se discute, na qual um JUIZ emite uma ordem, substituindo-se ao legítimo legislador.

Urge, pois, esgotar os meios legais disponíveis para alcançar o conteúdo útil da ordem judicial de entrega (no caso, a apreensão da carta), residindo aí a condição da legitimidade material da própria ordem em nome do princípio da proporcionalidade.

O juiz que comina o crime de desobediência descura e olvida completamente o princípio da proporcionalidade, podendo cair-se numa perigosa república dos juízes, sempre amparados pela ameaça penal, necessariamente desproporcionada. Há mesmo quem afirme que a proporcionalidade da cominação é ela própria condição da legitimidade material da ordem judicial.

Como tal, o raciocínio desta tese é circular e falacioso – como a lei penal não prevê directamente, ao contrário da lei contra-ordenacional, a desobediência, só haverá que interpretar a lei penal de acordo com a lei estradal!

Ora, não estamos aqui a “contar espingardas” entre juízes e funcionários da administração pública. Talvez por não deterem o mesmo “ius imperium” ínsito na actuação de um juiz, democraticamente legitimado no exercício da sua judicatura, estes últimos precisarão de uma ameaça penal e de uma promessa de coercividade penal, não justificável quando estamos a falar de sentenças de juízes em que, a título principal, se aplicam penas criminais e não meras coimas, fazendo-se assim as devidas compensações sancionatórias…

O que se deve fazer é uma correcta aplicação dos princípios constitucionais considerados estruturantes na nossa ordem jurídica e não uma simplista comparação de regimes, tão falaciosa e pouco significativa.

De facto, não pode o aplicador recorrer à analogia para qualificar um facto como crime, na linha do estipulado no artigo 1º, n.º 3 do C.Penal.

O juízo da tipificação criminal deve estar reservado para o legislador democraticamente legitimado.

Se é verdade que a lei estradal não comina crime de violação de proibições (artigo 353° do CP) para quem conduza inibido para tal, também é verdade que a lei penal não comina desobediência para quem não entrega a carta estando proibido de conduzir, cominação que é feita na lei estradal (artigo 160º, n.º 3, do CE).

Ou seja, não há que fazer equiparações quando foi o próprio legislador que não as quis fazer…

Se existem “assimetrias” sancionatórias para a não entrega da carta e para a condução sob inibição ou proibição, conforme se trate de contra-ordenação ou de crime, diremos que só há que respeitar essa opção, por muito que não concordemos com elas, não sendo também possível corrigir tais assimetrias por via de uma nova incriminação, além do mais, pela simples circunstância da equidade não ser fonte de Direito Penal ou critério legitimador da incriminação.

E que não se tema pela impunidade.

Na realidade, entendemos que aquele que conduz após condenação em pena acessória não cumprida (com ou sem apreensão da carta) pode incorrer na incriminação do artigo 353.° do CP (cf. PAULO PEREIRA ALBUQUERQUE, Comentário do Código de Processo Penal, Lisboa: UCP, 2007, p. 1278 e s.[2]).

Estatui tal normativo:

Artigo 353º Violação de imposições, proibições ou interdições.

«Quem violar imposições, proibições ou interdições determinadas por sentença criminal, a título de pena aplicada em processo sumaríssimo, de pena acessória ou de medida de segurança não privativa da liberdade, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias».

(artigo 353.º, alterado pelo artigo 1.º da Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, Vigésima terceira alteração ao Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro (DR 4 Setembro).
Redacção anterior Vigência: 15 Setembro 2007)

Como se ajuiza exemplarmente num dos acórdãos atrás citados, «o que não se pode é inverter as coisas: primeiro cominar a desobediência e depois ordenar a apreensão»!

Em suma, não se pode, sob pena de violação dos princípios da legalidade e proporcionalidade, pretender consagrar como desobediência um eventual comportamento posterior omissivo da entrega da carta de condução, solução que, repete-se, contraria manifestamente o sentido da norma, ainda mais quando o próprio não acatamento da proibição de que a mesma é mero meio de controlo, é, de per si, haja ou não entrega do título, penalmente sancionado.

3.1.7. Um último argumento – sabemos que a pena acessória aplicada ao arguido em 2006 não é rigorosamente uma sanção acessória, essa sim destinada a sancionar, acessoriamente, a prática de contra-ordenações graves e muito graves, logo, uma medida de segurança administrativa.

O que se fez no Pº 46/08.0GAVGS, em 2008, foi a aplicação de uma pena acessória de proibição de conduzir e não uma inibição de conduzir.

Daí fazer-se a distinção entre a inibição de conduzir, que se define como uma medida de segurança[3] (artigo 147º do actual CE), e a proibição de conduzir, que se define como uma pena acessória que pressupõe a prática de um crime (artigo 69º do CP).

O artigo 160º, n.º 3 do CE prevê que se comine com o crime de desobediência aquando da notificação do condutor para entregar a sua carta de condução em 15 dias.

O n.º 1 desse artigo adianta que os títulos de condução devem ser apreendidos para cumprimento da

- cassação do título;

- proibição de conduzir ou

- inibição de conduzir.

O que pode perturbar a nossa tese é o facto de constar deste elenco a proibição de conduzir, a qual sabemos só é aplicável pelos tribunais (cfr. artigo 5º da Lei 2/98 de 3/1).

É verdade que na Lei de Autorização Legislativa n.º 97/97 de 23/8, é dada, no artigo 3º, alínea c), autorização ao legislador para punir como crime de desobediência a não entrega da carta ou licença de condução à entidade competente pelo condutor proibido ou inibido de conduzir (…).

A Lei 2/98, em cumprimento dessa autorização, vem estipular o seguinte no seu artigo 5º, n.º 4: «Na falta de entrega do título de condução nos termos do n.º 2, e sem prejuízo da punição por desobediência, a DGV deve proceder à apreensão daquele título (..)».

Ora, o n.º 2 da lei fala também em proibição de conduzir, pena acessória só prevista no Código Penal e já não no Código da Estrada.

Como tal, poder-se-ia pensar que ao falar em “proibição” quis o Código da Estrada alargar a cominação do crime de desobediência às situações de aplicação das penas acessórias pelos tribunais.

Sem razão, diremos de novo.

Sem descurar a hipótese de se ter colocado o termo “proibição” sem o sentido técnico-jurídico que estamos aqui a dar-lhe, opinamos que não faz qualquer sentido, em nome dos princípios acima expostos, que a lei penal e a lei processual penal não tenham aproveitado os embalos das recentes revisões (levadas a cabo pelas Leis 59/2007 de 4/9 e 48/2007 de 29/9) para colocar nos artigos 69º e 500º, respectivamente, a expressa referência à cominação do crime de desobediência.

E poderiam tê-lo feito. O nosso legislador optou por não o fazer, o que não pode deixar de ser entendido como uma renúncia a mais uma possível incriminação criminal.

Daí não considerarmos que exista incriminação penal[4] capaz de subsumir o comportamento do ora arguido à previsão do artigo 348º, n.º 1, alínea a) (não rotulamos a norma do actual artigo 160º, n.º 3 do Código da Estrada com virtualidade para erigir um novo crime no nosso panorama penal – ele apenas será o salvo conduto para a existência de um crime de desobediência simples no caso de o condutor não entregar a carta de condução após ser inibido de conduzir pois é só dessa medida de segurança que pode tratar o Código da Estrada, não lhe sendo lícito intrometer-se em águas do Direito Penal).

A alínea a) do n.º 1 artigo 348º do CP é destinado a servir de norma auxiliar a alguns preceitos do direito penal extravagante que incriminam um determinado comportamento desobediente, sem contudo fixarem uma moldura penal própria.

Ora, uma norma do Código da Estrada não é nem nunca poderá ser uma norma de direito penal extravagante.

Veja-se até que são diferentes os prazos legais para a entrega da carta de condução na situação dos crimes (na sequência da aplicação da pena acessória de proibição de conduzir) e nas situações das contra-ordenações (na sequência de aplicação da medida de segurança “inibição de conduzir”) – o CE alude a 15 dias, o CPP, no seu artigo 500º, n.º 2, e o Código Penal, no seu artigo 69º, n.º 3, aludem a 10 dias – como tal, estamos fatalmente a falar de matérias diversas, a merecer diferenciados tratamentos sancionatórios.

Tipificar um crime por recurso a uma norma do Código da Estrada é ir longe demais, em prejuízo claro do Estado de Direito e da coerência do sistema.

Por tudo isto, falecem os argumentos do MP recorrente, não nos merecendo, pois, qualquer censura o despacho recorrido quando acaba por concluir que inexiste o crime plasmado na acusação pública.

3.2. Mas haverá outro, que não aquele que consta da acusação?

Note-se que os factos narrados nos autos ocorreram em data[5] posterior à entrada em vigor da Lei n.º 59/2007 de 4/9 (diploma que veio rever o Código Penal), sendo, assim, abrangidos pelo seu novo regime.

Estaremos agora perante o crime de violação de imposições p. e p. pelo artigo 353º do CP (nova redacção)?

É o que importa decidir.

Recordemos o teor dessa norma:

«Quem violar imposições, proibições ou interdições determinadas por sentença criminal, a título de pena aplicada em processo sumaríssimo, de pena acessória ou de medida de segurança não privativa da liberdade, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias».

Ora, o confronto do texto actual com a anterior redacção do preceito não deixa margem para dúvidas – aditou-se o substantivo «imposições».

E para quê?

A descrição típica do crime, anteriormente apenas epigrafado de “Violação de proibições ou interdições”, foi substantivamente ampliada, prevendo agora, não só o sancionamento por violação das proibições impostas por sentença criminal a título de pena acessória, mas também a criminalização dos casos consubtanciadores de violação de imposições determinadas a igual título.

Bem acentua Alberto Mira, no seu eloquente Acórdão desta Relação de 20/10/2010, citado nas alegações do Exmº PGA:

«A incriminação que, na lei antiga, apenas tratava de garantir o cumprimento de sanções impostas por sentença criminal que não possuíssem qualquer outro meio de assegurar a sua eficácia, foi alargada com a nova lei, de modo a contemplar também a violação de imposições onde se integra, inter alia, o não cumprimento de obrigação determinada na sentença, consubstanciada no dever de entrega, pelo arguido, da carta/licença de condução.

Como observa Cristina Líbano Monteiro, a propósito dos artigos 349.º-354.º do Código Penal, tais preceitos emprestam a certas decisões do foro criminal a força coactiva prática de que careciam. Quando o tribunal condena, constitui o condenado numa situação de sujeição, que se traduz na maioria dos casos em deveres a observar.

Na situação concreta, com a amplitude normativa supra assinalada, concedida pela Lei n.º 59/2007 ao artigo 353.º, quis o legislador estabelecer consequências jurídico-penais para a violação da imposição, determinada na sentença, de entrega da carta/licença de condução

Afigura-se-nos, pois, que a incriminação agora prevista no artigo 353.º foi obviamente alargada com o objectivo de incluir os casos de incumprimento de imposições determinadas por sentença criminal a título de pena acessória, nos quais se integra a situação traduzida na omissão de entrega, por arguido a quem está imposta pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor nos termos do artigo 69.º do CP, no prazo legalmente fixado previsto (cfr. artigos 69.º, n.º 3 e 500.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal) e determinado na sentença, de carta/licença de condução.

Os artigos da lei adjectiva penal supra referidos não contêm, é certo, qualquer cominação de punição da não entrega da carta de condução como crime.

Mas não teriam que conter, pois apenas regulam os moldes pelos quais o ordenamento jurídico procura efectivar e garantir o estrito cumprimento da pena acessória imposta, cabendo à lei substantiva penal a definição do quadro criminalizador».

Note-se ainda que na “Exposição de Motivos” da Proposta de Lei n.º 98/X, que esteve na origem da Lei n.º 59/2007, diploma que alterou o Código Penal pode ler-se que «O ilícito criminal de violação de proibições ou interdições é alargado. Entre as condutas típicas inclui-se agora também a violação de imposições, pelo que o tipo de crime englobará o incumprimento de quaisquer obrigações impostas por sentença criminal, tenham elas conteúdo positivo ou negativo».

Paulo Pinto de Albuquerque, no seu Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, pp. 226 e 834, deixa opinado que:

· «Se o arguido não entregar a carta no prazo fixado, comete o crime do artigo 353º do CP», devendo o juiz, na sentença condenatória proferida em processo penal, «ordenar a entrega do título de condução, com a advertência do artigo 353º do CP, se a mesma não se encontrar já apreendida», na medida em que «a previsão deste artigo foi alargada com o propósito de incluir precisamente estes casos de incumprimento de imposições resultantes de penas acessórias»;

· «O tipo objectivo – do artigo 353º do CP – consiste na violação de imposições (obrigações sanções de conteúdo positivo), proibições ou interdições (sanções de conteúdo negativo) determinadas por sentença criminal, a título de pena aplicada em processo sumaríssimo, de pena acessória ou de medida de segurança não privativa da liberdade», nela se incluindo as sanções previstas «nos artigos … 69º …do CP».

Se assim não fosse, não se veria utilidade no acrescento do substantivo «imposições» na letra do artigo 353º.

Presume-se que as alterações legais sejam feitas com fitos determinados e objectivos precisos – neste caso, achamos que o legislador de 2007, perante o vazio legal ínsito nas nossas explanações de 3.1., e que estão na base da nossa consideração de que inexiste crime de desobediência no acto da não entrega de um título de condução após uma condenação em pena acessória, tomou finalmente a decisão de incluir no elenco de crimes essa actividade, usando o artigo 353º para tal efeito (entendendo que não seria curial usar o artigo 500º do CPP, como norma adjectiva que é, para tomar tal posição expressa e constitutiva).

Era importante deixar uma força coerciva suplementar, paralela à que já consta do artigo 160º, n.º 3, do Código da Estrada para as contra-ordenações. Sob pena de se deixar ao critério do arguido a decisão do melhor momento para cumprir a pena acessória (e sabemos que a execução da pena acessória só se inicia com a entrega da carta ou efectiva apreensão, como a jurisprudência tem sempre acentuado).

E ficarão finalmente satisfeitos aqueles que consideravam que haveria sempre de haver a cominação de um crime perante a omissão da entrega do título de condução, só se assim se compreendendo a letra do artigo 69º, n.º 4 do CP, quando impõe que «a secretaria do tribunal comunica a proibição de conduzir à DGV (…), bem como participa ao Ministério Público as situações de incumprimento do disposto no número anterior», encontrando-se assim, enfim, a coerência do sistema sancionatório em termos globais, nesta matéria de crimes ligados maieuticamente a infracções rodoviárias.

Não se ignora que há quem opine que o que a norma do art. 353.º do CP diz é que pratica o crime quem violar as imposições determinadas a título de pena acessória, não falando a lei em imposições processuais decorrentes da aplicação de uma pena acessória.

Para tal tese, sancionada pelo relator do Acórdão desta Relação de 12/5/2010 (Pº 1745/08.2TAVIS.C1), só pratica o crime de violação de proibições quem puser em causa o conteúdo material da pena acessória: v.g. quem conduzir (art. 69.º do CP), quem exercer função (art. 66.º do CP) ou quem violar a suspensão do exercício de funções (art. 67.º do CP), já não o praticando quem não cumpre as obrigações processuais decorrentes da aplicação de uma pena acessória: v.g, não entrega a carta de condução, não entrega a cédula profissional, não entrega a arma e carteira identificativa de serviço, estas obrigações processuais.

Argumenta-se que a obrigação de entrega da carta não faz parte do conteúdo da própria pena acessória, sendo certo que o legislador define o conteúdo desta no art. 69º/1 do Código Penal – se assim é, a imposição material penal é a “proibição de conduzir”, tão só.

O substrato material da pena acessória em causa é a proibição de conduzir, excluindo-se dela o acto de entrega da carta como elemento integrante desse substrato.

Perante a não entrega da carta, resta a apreensão da mesma (artigo 500º/3 do CPP), nada mais.

No dito acórdão desta Relação, sancionadora de tese contrária àquela que é por nós aqui defendida, deixa-se escrito que:

«Só no período de execução da pena fará então sentido falar-se em violação de proibições judiciais. Até à entrega espontânea ou forçada da licença de condução não haverá execução da pena e consequentemente violação de proibição judicial.

Se bem se atentar na redacção do tipo e para o que ao caso interessa, nele se dispõe que comete o crime «quem violar imposições ou proibições determinadas por sentença criminal a título de pena acessória».

Ou seja, o tipo prevê como conduta criminosa a voluntária violação de imposições ou proibições que integrem o conteúdo duma pena acessória.

E a pena acessória no caso consubstancia-se na “proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 5 meses”. Pergunta-se -, a obrigação de entrega no indicado prazo da carta de condução integra tal proibição? Obviamente que não! É apodíctico que não integra a pena a obrigação da entrega da carta nas indicadas condições».

Para tal tese:

§ o preceito (353º) quando fala em imposições não se refere à situação em apreço;

§ entende que o que no preceito está agora clara e completamente dito é que a condução no período da proibição aplicada constitui infracção penal - aquela infracção penal;

§ o cidadão que conduz no período em que está proibido de o fazer, em virtude da pena acessória imposta, pratica aquele crime.

§ o que a norma diz é que quem violar imposições, proibições… determinadas… por sentença criminal …a título de pena acessória é punido – ou seja, o que a lei quer é não deixar na impunidade o incumprimento (com culpa dolosa) da pena acessória aplicada.

§ o juiz na sentença (em consequência do julgamento) condena na proibição de conduzir – esta proibição é que é a pena (acessória) aplicada. O arguido não é condenado a entregar o título num determinado prazo.

§ a questão da obrigação de entrega do título de condução constitui parte de um procedimento coactivo de modo a levar o arguido a cumprir a pena, mas só.

        

Não comungamos da bondade desta tese, precisamente por entendermos que, se é certo que a obrigação de entrega em prazo da carta de condução não integra a proibição[6], já integrará a imposição ínsita no novo tipo legal.

Imposição é uma sanção de carácter positivo, QUE PODERÁ ATÉ TER INCIDÊNCIA PROCESSUAL, na medida em que funciona como uma mais-valia de coercividade a uma real proibição decretada por sentença.

Imposição é, segundo o Dicionário de Língua Portuguesa 2006 – Porto Editora, é o acto de impor, reporta-se a «coisa imposta», a «ordem que tem de se obedecer».

Existe proibição quando se manda não fazer, abster-se de uma conduta, estando previstas essas proibições nos artigos 66º, 67º, 69º/ 1 e 2, 90º-A, n.º 2, alíneas c), 179º, 246º e 346º

As interdições estão previstas nos artigos 100º e 101º do CP.

E onde estão, afinal, as imposições acrescentadas em 2007 no tipo legal?

Parece-nos que o sistema legal penal, sem ser ferido de morte, suporta a interpretação de que cabe nessa imposição a ordem dada por um juiz para entrega da carta de condução num determinado prazo a fim de que seja cumprida uma pena acessória de proibição (artigo 69º/3 do CP).

Como adianta Cristina Líbano Monteiro, no Comentário Conimbricense do Código Penal, p. 402, «afinal, o artigo 353º tem um papel parecido com o da prisão subsidiária no domínio da pena de multa: funciona como um incentivo, uma norma dissuasora do não cumprimento da reacção criminal, uma sanção penal de constrangimento».

Queremos melhor constrangimento que esta norma aplicada ao n.º 3 do artigo 69º do CP?

E não deixa de ser esta ordem – que não terá somente, por isso, uma fisionomia processual – parte integrante da pena acessória aplicada. Por tal motivo, consideraremos que essa ordem judicial de entrega da carta é determinada por sentença criminal, a título de pena acessória (não o sendo somente a proibição de conduzir).

Por tal motivo, somos remetidos de imediato para a letra do artigo 353º do CP.

O que, diga-se a finalizar, não faz a nossa tese violar o princípio da legalidade, o disposto no artigo 18º, n.º 2 da CRP e o princípio da intervenção mínima do direito penal.

Em sede conclusiva, diremos, a propósito, que:

1º- Existe crime de desobediência nos casos em que o agente não entrega a carta/licença de condução após ser condenado pela prática de contra-ordenação, a que corresponde sanção acessória de inibição de conduzir;

2ª- Até à entrada em vigor do CP, na versão de 2007, não existia crime de desobediência – quer pela alínea a) (inexistência de norma expressa que tal comine), quer pela alínea b) (inexistindo legitimidade legal para tal cominação casuística feita pelo julgador) nos casos em que o agente não entrega a carta/licença de condução após ser condenado pela prática de crime, a que corresponde pena acessória de proibição de conduzir;

3º- Após 15/9/2007, pratica o crime do artigo 353º do CP aquele que não entrega a carta após ser condenado pela prática de crime, a que corresponde pena acessória de proibição de conduzir

Diremos ainda que nos parece que, após a leitura da sentença condenatória, onde se venha a incluir uma pena acessória de proibição de conduzir, o arguido deve ser notificado/informado de:

A)- que deve entregar o título de condução no prazo de 10 dias, sob pena do mesmo lhe vir a ser apreendido, nos termos do artigo 500º, n.ºs 2 e 3 do CPP;

B)- que a não entrega da carta nesse prazo o fará incorrer na prática de um crime de violação de imposições p. e p. pelo artigo 353º do CP;

C)- que a condução de veículo motorizado no período de proibição o fará incorrer na prática de um crime de violação de proibições p. e p. pelo artigo 353º do CP[7];

Concluímos, assim, que os factos descritos na acusação preenchem os requisitos objectivos e subjectivos do crime de violação de imposições, proibições ou interdições previsto no artigo 353.º do Código Penal.

O que só pode significar que a acusação dos autos não poderia ser considerada manifestamente infundada, na medida em que os factos nela descritos constituem crime, esse diverso do descrito nessa peça.

Haverá, pois, uma simples alteração não substancial dos termos da acusação[8].

3.3. E poderá o juiz impor essa nova incriminação, aquando da prolação do despacho dos artigos 311º a 313º do CPP?

SE SIM, deverá cumprir o disposto no artigo 358.º, n.ºs 1 e 3, do CPP?

Seguiremos de muito perto o Acórdão da Relação de Lisboa de 4/11/2009, sobre este assunto (Pº 130/08.0PALSB-B.L1-3).

É princípio fundamental do processo penal, com raiz constitucional – artigo 32.º, n.º 5 da Constituição da República - o princípio da acusação.

Uma das implicações do dito princípio é a de que a acusação ou a pronúncia definem e fixam o objecto do processo, limitando a actividade cognitória e decisória do tribunal através da “vinculação temática” (em que se consubstanciam os princípios da identidade, da indivisibilidade e da consunção).

A evolução jurisprudencial e legislativa que se verificou na última década do século XX, é claramente reveladora da importância e dificuldade das questões relacionadas com os contornos da vinculação temática do tribunal e com a eventual incidência nesses contornos das questões de qualificação jurídica.

Dentro da perspectiva de que a alteração da qualificação jurídica era livre e totalmente isenta de restrições, por não representar nenhuma alteração do objecto do processo, mantendo-se os factos idênticos e apenas variando a subsunção jurídica, o Supremo Tribunal de Justiça emitiu em 1992.12.02 o assento n.º 2/93 (in DR, I-A de 1993.03.10) que fixou a seguinte jurisprudência:

«Para os fins dos artigos 1.º, alínea f), 120.º, 284.º, n.º 1, 303.º, n.º 3, 309.º, n.º 2, 389.º, n.ºs 1 e 2 e 379.º, alínea b), do Código de Processo Penal, não constitui alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, a simples alteração da qualificação jurídica (ou convolação), ainda que se traduza na submissão de tais factos a uma figura criminal mais grave

Após, o Tribunal Constitucional, pelo Acórdão n.º 279/95, de 95.05.31, apreciando a constitucionalidade do art. 1.º, alínea f) do CPP, à luz do referido assento, veio a «[j]ulgar inconstitucional - por violação do princípio constante do artigo 32º, nº 1 da Constituição - o disposto no artigo 1º, alínea f), do Código de Processo Penal, conjugado com os artigos 120º, 284º, nº 1, 303º, nº 3, 309º, nº 2, 359º, nºs 1 e 2 e 379º, al. b), e interpretado nos termos constantes do Assento 2/93, como não constituindo alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica (ou convolação), mas tão-só na medida em que, conduzindo a diferente qualificação jurídico-penal dos factos à condenação do arguido em pena mais grave, não se prevê que o arguido seja prevenido da nova qualificação e se lhe dê, quanto a ela, oportunidade de defesa

A doutrina deste acórdão foi seguida no Acórdão do TC n.º 16/97, de 1997.01.14 (in www.tribunalconstitucional.pt), tendo sido, finalmente, acolhida no Acórdão do mesmo tribunal n.º 445/97, de 1997.06.25 (in DR, I-A de 1997.08.05), que fixou esta doutrina ao declarar inconstitucional, “com força obrigatória geral - por violação do princípio constante do n.º 1 do artigo 32.º da Constituição -, a norma ínsita na alínea f) do n.º 1 do artigo 1.º do Código de Processo Penal, em conjugação com os artigos 120.º, 284.º, n.º 1, 303.º, n.º 3, 309.º, n.º 2, 359.º, n.ºs 1 e 2, e 379.º, alínea b), do mesmo Código, quando interpretada, nos termos constantes do Acórdão lavrado pelo Supremo Tribunal de Justiça em 27 de Janeiro de 1993 e publicado, sob a designação de «assento n.º 2/93», na 1.ª série-A do Diário da República, de 10 de Março de 1993 - aresto esse entretanto revogado pelo Acórdão n.º 279/95, do Tribunal Constitucional -, no sentido de não constituir alteração substancial dos factos descritos na acusação ou pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica, mas tão-somente na medida em que, conduzindo a diferente qualificação jurídica dos factos à condenação do arguido em pena mais grave, não se prevê que este seja prevenido da nova qualificação e se lhe dê, quanto a ela, oportunidade de defesa.” (in DR, I-A de 1997.08.05).

Na reforma do Código de Processo Penal operada pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, esta doutrina passou para o texto da lei, com a introdução do n.º 3 do art. 358.º, de acordo com o qual a alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia no decurso da audiência obedece ao mesmo regime da alteração não substancial dos factos, prescrito no n.º 1 do mesmo normativo.

Resulta patente desta evolução jurisprudencial e legislativa a preocupação com a salvaguarda dos direitos de defesa no processo criminal, constitucionalmente garantidos no artigo 32.º, n.º 1 da Lei Fundamental.

Mas a liberdade de qualificação jurídica pelo tribunal está pressuposta na jurisprudência do Tribunal Constitucional, sendo as decisões proferidas sempre justificadas pela necessidade de compatibilizar a referida liberdade com um mecanismo que tornasse efectivo o direito do arguido a ser ouvido nos casos em que, mantendo-se os factos os mesmos, fosse alterada a qualificação para incriminação mais grave.

E está, também, pressuposta na alteração legislativa subsequente.

Teresa Beleza, a propósito das alterações de 1998 aos artigos 339.º, n.º 4 e 358.º, n.º 4, deixa escrito que estas alterações significam que o legislador quis estatuir expressamente duas coisas: “a liberdade de qualificar os factos como prerrogativa do juiz; o direito a contra-argumentar sobre essa qualificação como garantia da defesa” (Dizer e Contraditar o Direito: a qualificação jurídica dos factos em processo crime in Scientia Iuridica, Jan-Junho de 1999, N.º 277/279, pp. 67 e ss.).

No caso dos autos, pela nossa própria decisão, o tribunal irá efectuar uma alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação.

Como se viu, o Código de Processo Penal contempla especificamente a hipótese de se verificar no decurso da audiência uma alteração de qualificação jurídica.

A assim acontecer, a alteração tem de ser comunicada ao arguido nos termos do n.º 1 do art. 358.º, uma vez que o n.º 3 desse artigo manda aplicar esse regime. A comunicação é oficiosa ou efectuada a requerimento e, se o arguido o requerer, é-lhe concedido prazo para preparação da sua defesa, pelo tempo estritamente necessário.

Verificando-se esta actividade no momento da prolação do despacho a que alude o artigo 311.º do Código de Processo Penal, a lei nada prevê especificamente.

Por um lado, este preceito relativo ao conteúdo do despacho de saneamento não alude à possibilidade de uma alteração pelo juiz da qualificação jurídica constante da acusação e, por outro lado, inexiste norma legal que preveja um procedimento específico nesta fase com vista a acautelar o contraditório e os direitos de defesa do arguido.

Deste modo, a jurisprudência tem-se dividido, havendo uma corrente que defende que a alteração da qualificação jurídica não é consentida pelo artigo 311º, do CPP (vide, entre outros, os Acórdãos da Relação de Lisboa de 2006.06.08, CJ, tomo I, p. 135 e de 2004.11.11, CJ, tomo V, p. 131 e o Acórdão da Relação de Coimbra de 2006.12.13, in www.dgsi.pt) e outra que defende que ao proferir o despacho de recebimento da acusação o juiz pode (e deve) proceder ao enquadramento jurídico-penal que tenha por mais adequado se divergir da qualificação jurídica dos factos da acusação (vide, entre outros, os Acórdãos da Relação de Lisboa de 2009.06.02, Proc. 85/08.1PEPDL-A.L1 5ª Secção e de 2005.10.12, Proc. 6778/05 3ª Secção, in www.pgdlisboa.pt, e o Acórdão da Relação do Porto de 2007.10.03, processo n.º 0713707, in www.dgsi.pt).

Havendo que tomar aqui expressa posição, entendemos ser de sufragar esta derradeira tese que está em consonância com a liberdade de qualificação jurídica que ao tribunal deve ser reconhecida e assegura, simultaneamente, os direitos de defesa do arguido e o princípio do contraditório.

Não consta, na verdade, do artigo 311.º do Código de Processo Penal que incumba ao juiz, neste momento de saneamento, verificar o acerto da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, nem nele se prevê qualquer mecanismo para assegurar o contraditório caso o juiz proceda a uma alteração dessa qualificação.

Mas tal não significa que haja obstáculos a que o possa fazer, sendo nosso entendimento que, se divergir da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação ao proferir o despacho a que se referem os artigos 311.º e 312.º do CPP, o juiz deve proceder ao enquadramento jurídico que tenha por correcto daqueles factos.

Continua – e por tão eloquente nos abstemos de fazer sobre o assunto ulteriores considerações - o Acórdão da Relação de Lisboa, acima citado:

«O Código de Processo Penal não prevê expressamente esta hipótese, porque não era, de todo, necessário fazê-lo.

A determinação do direito, nunca é demais salientar, constitui o cerne da função judicial e incumbe ao julgador efectuá-la livremente, em obediência aos artigos 202.º a 205.º da Constituição, em cada momento em que é chamado a interpretar e aplicar a lei aos factos de que lhe é lícito conhecer (cfr. ainda as disposições estatutárias dos artigos 3.º e 4.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais aprovado pela Lei n.º 21/85, de 30 de Julho).

Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2009.09.17 (Processo n.º 169/07.3GCBNV.S1 in www.dgsi.pt), “se ao Ministério Público compete fazer a acusação, ao tribunal (e só a ele) compete constitucionalmente aplicar a lei e dizer o direito, decidindo os casos que lhe são apresentados e sendo independente nessa função (art. 203.º da CRP). Estando vinculado à lei e sendo independente, o tribunal tem liberdade para qualificar juridicamente de maneira diversa os factos descritos na acusação, apenas devendo prevenir o arguido de qualquer alteração de qualificação, nos termos sobreditos. Não há invasão de esferas de actividade ou atropelamento do princípio do acusatório. Havê-lo-ia no caso contrário, ou seja, se se impusesse ao juiz de julgamento a qualificação jurídica efectuada pela entidade acusadora (Cf. FREDERICO ISASCA, ob. cit., p. 102).”

É por isso que o artigo 311.º (o preceito primeiro do Livro VII do Código de Processo Penal, dedicado ao “Julgamento”) não estabelece quaisquer constrangimentos em termos de qualificação jurídica.

E por isso, também, o n.º 4 do artigo 339.º estabelece expressivamente que:«Sem prejuízo do regime aplicável à alteração dos factos, a discussão da causa tem por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultante da acusação ou da pronúncia, tendo em vista as finalidades a que se referem os artigos 368.º e 369.º»

Este mecanismo previsto no n.º 1 do artigo 358.º de comunicar a alteração ao arguido e conceder-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa (ex vi do n.º 3 do mesmo preceito), justifica-se quando o tribunal entenda dever alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia no decurso da audiência.

Mas se entende dever fazê-lo antes, vg. no momento do saneamento do processo, nada obsta a que qualifique livremente e em sua consciência os factos que o Ministério Público imputa ao arguido.

E a salvaguarda do contraditório e do exercício do direito de defesa aconselha a que o faça desde logo.

Na verdade, conhecedor de uma perspectiva jurídica do juiz do julgamento apta a agravar a sua responsabilidade, o arguido melhor poderá exercer o direito de defesa: quer desenhando a sua contestação em termos de responder já à qualificação jurídica dos factos da acusação – que são os mesmos – que corresponde à perspectiva do juiz do julgamento; quer organizando globalmente a prova que vai oferecer contando com a nova qualificação; quer, também - para responder a uma preocupação expressa pelo Tribunal Constitucional -, escolhendo mais lucidamente o advogado que entende melhor o defender perante a nova perspectiva jurídica dos factos que lhe são imputados.

Ou seja, pode desde logo fazer todas as opções básicas da sua estratégia de defesa face a um enquadramento jurídico-penal preciso que, em princípio, corresponde ao entendimento do juiz que o vai julgar.

Tem, deste modo, maiores garantias do que as que teria caso se vedasse ao juiz do julgamento o poder de expressar a sua perspectiva jurídica dos factos constantes da acusação, por se considerar que apenas o poderia fazer no decurso da audiência e no condicionalismo estabelecido nos n.ºs 1 e 3 do artigo 358.º do Código de Processo Penal, em que ao arguido é concedido, apenas, o “tempo estritamente necessário para a preparação da defesa”.

Como se refere no citado Acórdão da Relação de Lisboa de 2005.10.12 se (até) em sede de audiência o tribunal pode dar aos factos o tratamento jurídico mais conveniente (desde que seja facultada ao arguido oportunidade de defesa, nos termos do art. 359.º, n.º 3, do CPP), não se descortina qualquer valor ou princípio jurídico que obste a que tal seja efectuado no momento processual do saneamento do processo, nomeadamente os princípios do acusatório e da vinculação temática do tribunal ao objecto do processo: se a convolação não viola estes princípios quando é efectuada no julgamento, por maioria de razão os não pode violar quando tem lugar em momento processual anterior à própria contestação do arguido».

Aderimos, no fundo, às posições de Frederico Isasca, in “Alteração substancial dos factos e sua relevância jurídica”, pg. 101, e de Marques Ferreira[9], Tribuna da Justiça, 4-5, Junho/Setembro de 1990, Acusação e Juiz de Julgamento, p. 162.

Estará em causa a liberdade de qualificação jurídica dos factos e a lealdade processual que exige que se consigne no despacho que designa dia para julgamento a divergência quanto à qualificação dos factos constantes do libelo acusatório., por forma a que o arguido possa estruturar a sua defesa em relação à nova incriminação.

Veja-se ainda que a diferente qualificação poderá ter reflexos notórios e imediatos na tramitação processual subsequente, no que toca á competência do tribunal, aos prazos da prescrição; à legitimidade do próprio Ministério Público, à natureza do delito…

Em suma, a qualificação jurídica dos factos imputados – que é exclusivamente a aplicação do direito ao caso – é livre para o tribunal e pode ser alterada quando profere o despacho de saneamento a que alude o artigo 311.º do Código de Processo Penal.

E aqui chegados, diremos que nem sequer se terá de mandar cumprir expressa e obrigatoriamente, por analogia, o artigo 358º do CPP, na medida em que só agora é que se vai iniciar a fase do julgamento, tendo o arguido o prazo da contestação para tomar posição sobre a nova fisionomia jurídica dos autos. E sabemos que é mister do juiz, ao receber a acusação, nos termos do artigo 313º do CPP, indicar as disposições legais aplicáveis – se quanto aos factos, poderá sempre remeter para a letra da acusação, já quanto a qualificação jurídica der tais factos terá ele que indicar expressamente o novo crime que guiará os autos a partir desse momento e relativamente ao qual se terá agora de defender o arguido[10].

Tendo desse despacho conhecimento o arguido, está feita a comunicação do novo rumo dos autos.

3.4. Procederá, assim, o recurso do MP, embora por fundamentos diversos.

III – DISPOSITIVO

            Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção Criminal desta Relação em julgar procedente, embora com diversos fundamentos, o recurso do Ministério Público, e, em consequência, revogam o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que designe dia para julgamento, imputando ao arguido J... a prática de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições p. e p. pelo artigo 353º do CP.

            Sem custas.


Coimbra, _______________________________
(Consigna-se que o acórdão foi elaborado pelo 1º signatário e integralmente revisto pelos dois signatários – artigo 94.º, n.º2, do C.P.P.)

_______________________________________

(Paulo Guerra)


                                ________________________________________

(Vieira Marinho)

  


[1] Diga-se aqui que são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar (cfr. Germano Marques da Silva, Volume III, 2ª edição, 2000, fls 335 - «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringi8r o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões»).

[2] A este propósito, convém aqui lembrar a doutrina do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 187/2009 de 22/4/2009 que fez a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 138.º, n.º 2, do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, na parte em que submete ao regime do crime de desobediência qualificada quem conduzir veículos automóveis, estando proibido de o fazer por força da aplicação da pena acessória prevista no artigo 69.º do Código Penal, constante de sentença criminal transitada em julgado.
De facto, a condução de veículos automóveis por quem estava proibido de o fazer, devido a ter sido condenado por sentença criminal, transitada em julgado, na pena acessória prevista no artigo 69.º, do Código Penal, anteriormente ao Decreto-Lei n.º 44/2005, era uma conduta que era abrangida pelo tipo legal do artigo 353.º, do Código Penal, que genericamente punia criminalmente quem violasse proibições ou interdições impostas por sentença criminal, a título de pena acessória ou de medida de segurança não privativa de liberdade.
O Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, passou a prever no n.º 2, do artigo 138.º, do Código da Estrada, que quem praticasse qualquer acto, estando inibido ou proibido de o fazer por sentença transitada em julgado ou decisão administrativa que aplique uma sanção acessória era punido por um crime de desobediência qualificada, passando, assim, a abranger as referidas condutas de condução de veículo automóvel por quem estava proibido de o fazer, devido a ter sido condenado por sentença criminal, transitada em julgado, na pena acessória prevista no artigo 69.º, do Código Penal.
A pena prevista para o crime de desobediência qualificada no artigo 348.º, n.º
2, do Código Penal, é exactamente a mesma que se encontra estatuída no artigo
353.º, do Código Penal.

Do exposto resulta que o Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, não procedeu a uma nova incriminação, tendo apenas subtraído a incriminação desta conduta da previsão geral do artigo 353.º, do Código Penal, para um tipo especial, em razão da matéria da proibição.
«Fornecendo a inserção sistemática sinais relevantes sobre a “vontade do legislador” na criminalização de uma determinada conduta, ela só pode ser efectuada por quem a Constituição autoriza a proceder à definição dos crimes, penas e respectivos pressupostos, considerando a participação desse elemento nessa definição. Só o órgão a quem é atribuída a competência para legislar sobre tal matéria poderá proceder à inserção sistemática dos tipos legais de crime por si criados, uma vez que essa operação não deixa de transmitir informações sobre os pressupostos, o conteúdo e as finalidades da operação de criminalização. Sendo a definição de crimes, penas e respectivos pressupostos, matéria da reserva relativa da Assembleia da República, o Governo só poderia proceder à alteração aqui analisada com autorização específica daquele órgão».
Sem autorização da AR, nasce a declarada inconstitucionalidade…

[3] Embora com a discordância de Figueiredo Dias, expressa em “Direito Penal Português – as consequências jurídicas do crime”, Aequitas, p. 164.
[4] E terá de ser fatalmente penal, como está bem de ver. Cristina Líbano Monteiro (Comentário ao Código Conimbricense, Tomo III, p. 354, opina que “aqui, disposição legal quer evidentemente dizer norma penal; de outro modo – fazendo entrar no conceito qualquer tipo de preceito sancionatório -, cair-se-ia na situação impensável de o artigo 348º poder absorver e punir com pena de prisão ou multa condutas que o legislador entendia deverem pertencer a outros ramos do ordenamento jurídico sancionatório».
[5] Logo posterior a 15/9/2007
[6]E não precisávamos de todo deste novo preceito para considerar que incorria neste crime quem conduzisse em período de duração da dita «proibição», sendo certo que se teve sempre por assente tal incriminação.
[7]Já a violação da inibição de conduzir após prática de contra-ordenação é subsumida à letra do artigo 348º/2 do CP, por referência à norma do artigo 138º/2 do CE (mesma moldura penal abstracta do artigo 353º do CP). 
[8]O objecto do processo é a acusação, enquanto descrevendo esse pedaço de vida, esse acontecimento da vida real e social, portador de uma unidade de sentido e, como tal, susceptível de um juízo de subsunção jurídico-penal. Esse é o quid que se tem de manter idêntico até à decisão final (a eadem res), não obstante as mutações que venha a sofrer.
Para ocorrer uma alteração dos factos é necessário que aos factos constantes da acusação ou da pronúncia outros se acrescentem ou substituam, ou, pelo contrário, se excluam alguns deles. Não ocorre uma alteração dos factos quando o tribunal qualifique de maneira diversa, sem os modificar, os factos descritos na acusação.  
[9] Este refere que «… sempre com ressalva da inalterabilidade da factualidade descrita na acusação, o juiz de julgamento poderá discordar da qualificação jurídica constante da acusação, face ao princípio da liberdade na aplicação do direito que é apanágio da função jurisdicional».
[10] Inexiste, de facto, qualquer identidade de razões justificativa da aplicação analógica do artigo 358º do CPP.