Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
6707/08.7TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CATARINA GONÇALVES
Descritores: INDEMNIZAÇÃO
LIMITES DA CONDENAÇÃO
DANO PATRIMONIAL FUTURO
DANO EMERGENTE
DANO BIOLÓGICO
PERDA DE CAPACIDADE AQUISITIVA
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
CÔNJUGE SOBREVIVO
Data do Acordão: 01/26/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - INST. CENTRAL - SECÇÃO CÍVEL - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 609º, Nº 1, DO CPC
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO DO STJ PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA Nº 6/2014
Sumário: I – Estando em causa uma acção interposta por vários autores que se apresentam a reclamar uma quantia determinada para cada um deles – tendo em vista a indemnização de danos que, embora tenham uma causa comum, são danos próprios de cada um deles – os limites quantitativos do pedido que o Tribunal não pode exceder (art. 609º, nº 1, do CPC) são aferidos em face do pedido formulado por cada um dos autores, não podendo o Tribunal atribuir a um deles uma quantia superior àquela que o mesmo peticionou com o pretexto de essa condenação não ultrapassar o valor global dos pedidos que por todos havia sido formulado.

II – Ainda que se materializem na execução de uma prestação de carácter pecuniário de idêntica natureza, os pedidos de indemnização por danos emergentes futuros e de indemnização por perda de capacidade aquisitiva decorrente de dano biológico correspondem a pedidos ou pretensões diferentes, que assentam em pressupostos de facto diferentes e que, como tal, radicam em causas de pedir diferentes.

III – Assim, pedindo o lesado uma indemnização por danos emergentes futuros (correspondentes às quantias que, desde o sinistro e até ao fim da sua vida, teria que despender com a contratação de uma empregada doméstica), não pode o Tribunal – sob pena de condenação em objecto diverso do que havia sido pedido e correspondente nulidade da sentença – atribuir-lhe uma quantia equivalente mas para indemnização de um dano totalmente diferente e que o lesado não havia invocado (o dano decorrente da perda de capacidade aquisitiva por força do dano biológico, configurado e apurado como um dano patrimonial futuro qualificável como lucros cessantes e com base em pressupostos de facto que não haviam sido invocados).

IV – Tendo em conta o entendimento firmado pelo Acórdão do STJ para Uniformização de Jurisprudência nº 6/2014, apenas podem/devem ser indemnizados os danos não patrimoniais sofridos pelo cônjuge da vítima sobrevivente que sejam particularmente graves e desde que a vítima tenha sido atingida de modo particularmente grave (entendimento esse que deve considerar-se extensível aos filhos da vítima).

V – Para os efeitos aí previstos, não poderão ser considerados como particularmente graves, os danos não patrimoniais sofridos pelos aludidos familiares da vítima que decorrem, essencialmente, dos receios, sofrimento, incómodos e privação do contacto regular, em termos físicos e afectivos, com a vítima, emergentes da produção das lesões e subsequente internamento (ainda que este tenha tido a duração de quatro meses), quando as lesões ou sequelas que subsistem, de forma permanente, após esse período, não incapacitam a vítima de forma grave e não limitam, de forma substancial, a sua autonomia, liberdade pessoal e independência; a maior gravidade desses danos – que, no essencial, são comuns à generalidade das lesões que envolvem internamento – circunscreve-se ao período do acidente, internamento e recuperação, assumindo, portanto, um carácter temporário (ainda que esse internamento e recuperação não tenham sido muito curtos), não subsistindo, com especial gravidade, após esse período e não assumindo, por isso, a particular gravidade que é exigida pelo Acórdão supra citado para que se justifique a sua indemnização.

Decisão Texto Integral:   

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

A... , B... , C... e D... , todos residentes na Rua (...) , Leiria, instauraram a presente acção contra E... , Companhia de Seguros, SPA (actualmente, E... Companhia de Seguros, S.A.), com sede na Av. (...) , Lisboa, pedindo que esta seja condenada a pagar:

- À Autora, A... , a quantia de 150.000,00€ e 100.000,00€, a título de indemnização por danos morais e por danos emergentes futuros, respectivamente;

- Ao Autor, B... , as quantias de 20.000,00€ e 18.000,00€ a título de indemnização por danos morais e por danos patrimoniais, respectivamente;

- A cada um dos outros dois Autores a quantia de 20.000,00€, a título de indemnização por danos morais;

- Juros, à taxa legal, sobre as aludidas quantias desde a citação até ao seu integral e efectivo pagamento;

- A quantia diária de 15,00€ até efectivo pagamento a título de sanção pecuniária compulsória.

Alegam, para o efeito: que, no dia 09/12/2005, ocorreu um acidente de viação no qual foi interveniente um motociclo seguro na Ré e um veículo pertencente ao 2º Autor e conduzido pela 1ª Autora, acidente que ficou a dever-se a culpa exclusiva do condutor do motociclo; que, em consequência desse acidente, a 1ª Autora sofreu diversas lesões, esteve internada durante cerca de quatro meses, foi submetida a cirurgias, sofreu dores intensas e sofreu variados danos de natureza não patrimonial, para cuja indemnização entende ser adequada a quantia de 150.000,00€; que, por força das lesões sofridas no acidente, necessita de terceira pessoa que a auxilie nas tarefas domésticas até ao fim da sua vida, reclamando para indemnização desse dano patrimonial futuro o valor de 100.000,00€; que o 2º Autor, por via das lesões sofridas pela 1ª Autora, teve que reduzir o seu horário de trabalho para cuidar dos filhos, deixando, por isso, de auferir um valor correspondente a 18.000,00€; que o 2º Autor temeu pela vida da esposa e sofreu diversos danos de natureza não patrimonial em consequência das limitações de que esta ficou afectada, cuja indemnização reclama o valor de 20.000,00€ e que os demais Autores (filhos do casal) sofreram com a privação do apoio materno e sofreram diversos danos não patrimoniais, devendo, cada um deles, ser indemnizado pelo valor de 20.000,00€

A Ré contestou, impugnando os factos alegados e concluindo pela improcedência da acção.

 

Foi proferido despacho saneador e foi efectuada a selecção da matéria de facto assente e base instrutória.

Foi realizada a audiência de discussão e julgamento, no decurso da qual as partes chegaram a acordo quanto a alguns dos factos e, designadamente, no que toca à culpa na eclosão do acidente.

Foi, então, proferida sentença que, julgando a acção parcialmente procedente, condenou a Ré a pagar aos Autores a quantia global de 302.738,00€, acrescida de juros de mora legais, desde a citação, relativamente às quantias devidas a título de danos patrimoniais (7.488 + 100.000 + 5.250 euros), e desde a data da decisão, relativamente às quantias devidas a título de danos não patrimoniais (150.000 + 20.000 + 20.000 euros), até efectivo e integral pagamento, absolvendo a Ré do demais peticionado.

Discordando dessa decisão, veio a Ré interpor o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:

1. As Recorrentes perfilham o entendimento, salvo melhor opinião, de que a douta Sentença objecto do presente recurso não decidiu de forma acertada, atendendo à factualidade dos factos e aos normativos legais aplicáveis ao presente caso.

2. A Recorrente vem impugnar a decisão proferida, quer quanto à matéria de facto, quer quanto à matéria de direito, porquanto não tem qualquer dúvida de que foi produzida nos autos prova abundante no sentido de contrariar frontalmente a tese desenvolvida pelos Autores designadamente, através dos depoimentos prestados pelas testemunhas apresentadas em sede de Audiência de Discussão e Julgamento da causa e documentos juntos aos autos.

3. Atente-se ainda que o presente sinistro, foi simultaneamente de trabalho e de viação, sendo que o processo laboral emergente de acidente de trabalho correu termos sob o n.º 1287/06.0TTLRA do 2.º Juízo do Tribunal de Trabalho de Leiria, facto assumido pela Autora nos Artigo 39.º e 47.º da sua petição inicial. A Autora/Recorrida A... relativamente aos danos por si alegadamente afirma no artigo 48.º da sua petição inicial, que a presente acção apenas visaria a indemnização pelos danos morais como outros bens patrimoniais não previstos e assegurados pela apólice de seguros por acidentes de trabalho, uma vez que os danos patrimoniais seriam contabilizados no processo laboral, citando-se agora o artigo referido.

4. A Autora/Recorrida A... peticionou o montante de €100.000,00 pela necessidade de ajuda de uma terceira pessoa que auxilie a Autora nas tarefas domésticas (artigo 92.º da petição inicial), salientando-se que a Autora/Recorrida não pede em momento algum da sua petição, a condenação da Recorrente no indemnização por um eventual dano futuro.

5. A Autora/Recorrida A... em momento algum da sua petição inicial, que lida e relida, peticiona qualquer montante indemnizatório pela alegada incapacidade fixada, na sua vertente patrimonial. Tendo a Ré/Recorrente junto a respectiva certidão da douta Sentença proferida no Tribunal de Trabalho, no âmbito do processo n.º 1.287/06.0TTLRA do 2.º Juízo do Tribunal do Trabalho de Leiria, em que foi fixada uma IPP (Incapacidade Permanente Parcial Permanente) de 27,8 %.

6. Acresce ainda que do petitório, não resulta a alegação de qualquer facto que pudesse conduzir ao entendimento que a Autora/Recorrida pretendia ser indemnizada, no âmbito dos presentes autos, relativamente aos danos patrimoniais emergentes da sua incapacidade para o trabalho, atente-se que a mesma nem sequer alega quanto é que auferia. E se dúvidas houvesse a esse propósito, as mesmas dissipar-se-iam, atento o alegado nos artigos 80.º a 94.º da douta p.i.

7. A decisão proferida pelo Tribunal a quo não tem qualquer eco na factualidade carreada pelas partes para os autos, e nem o poder jurisdicional mais amplo poderá colidir com o princípio de dispositivo que rege e sempre regeu o processo civil.

8. Pelo exposto, considerando a condenação da Ré/Recorrente no pagamento à Autora/Recorrida no montante de € 100.000,00 por um dano que não foi minimamente alegado nem invocado no processo, não resta senão concluir que a Mmo. Juiz do Tribunal a quo extrapolou o âmbito dos poderes que lhe são conferidos. Na verdade, nos termos da lei, o Juiz deve cingir-se, aquando da decisão da causa, à matéria alegada pelas partes, por forma evitar as denominadas decisões surpresa, proibidas nos termos do princípio consignado no art. 3º, nº 3 do C.P.C. e nos termos dos artigos 5º do CPC. Ora, os factos que o Mmo. Juiz considerou fulcrais para condenar a Ré, não foram minimamente alegados pela Autora/Recorrida, e é esta, repita-se, que afirma que os danos patrimoniais emergentes do sinistro serão discutidos no processo de trabalho.

9. E com o desrespeito pelo princípio do dispositivo, previsto nos citados artigo 264º e 664º do CPC e com a falta de tal audição das partes incorre a decisão sob recurso na nulidade prevista no artº 195º nº 1 do CPC, o que acarreta, nos termos do nº 2 deste preceito, a nulidade do acto subsequente à omissão, ou seja, da própria decisão, naturalmente, na parte em que esta está viciada. Assim sendo, impõe-se que os referidos factos sejam retirados ou desconsiderados no presente processo e, em consequência, seja proferida decisão que absolva a Ré/Recorrente deste pedido. Por tudo o exposto, deverá, também, nesta medida, o presente recurso ser considerado procedente, uma vez que o Tribunal não pode conhecer de uma questão que não foi alegada, conforme deveria, na petição inicial, de acordo com o disposto nos arts. 5º e 412º do Código de Processo Civil que foram violadas na Sentença recorrida.

10. Por outro lado, não acolhendo a tese da Recorrente supra explanada, sempre se diga que a douta sentença será nula nos termos do artigo 609.º n.º 1 alíneas e) do Código de Processo Civil, porquanto condena em objecto diverso do pedido. Senão vejamos,

11. Tendo em consideração, o supra exposto, no que respeita ao dano futuro, não pode a Ré deixar de concluir que o Tribunal condenou a Ré/Recorrente em objecto diverso do pedido.

Efectivamente, a Autora/Recorrida A... nos artigos 80.º a 94.º da sua petição inicial peticiona a quantia de € 100.000,00 a título de danos emergentes futuros resultantes do sinistro, no seguimento de necessitar de apoio de terceira pessoa, em consequência das limitações físicas e funcionais de que veio a padecer. Salientando-se novamente que a mesma relegou para discussão no foro laboral os danos patrimoniais emergentes do presente sinistro (simultaneamente de trabalho e de viação). A tudo isto acresce ainda o facto de a Autora/Recorrida A... nunca ter questionado em sede pericial a necessidade de apoio de terceira pessoa (sendo certo que também da prova testemunhal produzida em sede de audiência tal não resultou provado).

12. A petição inicial, à semelhança de outros articulados, reveste a natureza de acto jurídico, devendo ser interpretada, por força do disposto no art. 295º do C.Civil, em conformidade com as regras atinentes à interpretação da declaração negocial. Ora, da leitura e interpretação da petição inicial, e dos demais requerimentos juntos pelos Autores/Recorridos aos autos, é inevitável concluir que a Autora/Recorrida A... neste processo nunca questionou a indemnização de um eventual dano futuro. Mesmo o pedido emergente dos alegados danos futuros está relacionada com a necessidade de apoio de terceira pessoa, que não resultou como provada nos presentes autos.

13. Atenta a Sentença proferida, não pode a Ré deixar de concluir que o Mmo. Juiz procedeu a uma alteração qualitativa da pretensão da parte, extrapolando em absoluto os seus poderes jurisdicionais, nestes termos e porque a decisão sob recurso incorre na nulidade prevista no art. 615º, nº1, alínea e) C.P.C., deve a mesma ser considerada nula, o que se requer.

14. A Ré/Recorrente impugna a decisão proferida pelo Tribunal a quo sobre a matéria de facto, em conformidade com o previsto no artigo 640.º do CPC, os quais a considera, efectivamente, como tendo sido incorrectamente julgados 22), 23), 29), 30), 31), 32), 33), 34), 35), 36), 37), 38), 40), 41), 42), 43), 44), 45), 46), 47), 48), 49), 50), 51), 52), 53), 54), 55), 56), 58), 59), uma vez que se encontram eivados de lugares comuns, frases feitas, pré-concebidos sem qualquer juízo de crítica, eivados de incertezas sem qualquer lastro onde assente o conhecimento sobre os factos foram questionados.

15. Ainda que se tivessem provado todos os danos acima descritos, o que não se concede, o valor indemnizatório arbitrado seria sempre exagerado considerando a Jurisprudência aplicável em casos concretos. O montante fixado de € 150.000,00 a título de danos não patrimoniais para Autora/Recorrida A... , é absolutamente arbitrário, na medida em que não é especificado o critério utilizado para determinação da mesma, não são aferidos o grau de culpabilidade do agente, a situação económica do agente, nem a situação económica do lesado, o que nos faz crer que o Tribunal não orientou a sua decisão por um critério equitativo, violando o disposto no artigo 566.º do Código Civil.

16. Acresce ainda que não foi questionada em sede pericial a impossibilidade da Autora ter mais filhos, sendo esse o meio probatório idóneo para tal, pelo que tal facto não poderia ter sido dado como provado.

17. O Tribunal entendeu ainda que a Autora/Recorrida A... tinha direito a ser reembolsada em € 7.488,00, relativo ao pagamento de uma empregada doméstica pelo período que esteve incapacitada para realizar as tarefas domésticas. Sucede que além de não ter sido junto qualquer documento que atestasse o pagamento referido, não foi possível determinar o valor da hora, quantas horas fazia por dia, quantos dias da semana trabalhava e durante quanto tempo o fez, pelo que não podia ser dado como provado o item 57.

18. Quanto aos danos patrimoniais do Autor/Recorrido pelos serviços que deixou de efectuar, que o mesmo peticionou em € 18.000,00, considerou o Tribunal que apenas se provou que deixou de auferir cerca de € 750,00 desde Dezembro/2005 até Junho/2006, o que totaliza um prejuízo de € 5.250,00. Contudo, tal prejuízo não se encontra documentado, e a única testemunha que falou vagamente sobre o valor cobrado (a testemunha Q... ) afirmou que o montante de €750,00, não incluía portagens, despesas de deslocação, que essas corriam por conta do Autor. Ou seja, entendemos que não foi feita prova do prejuízo efectivo, pois o montante de € 750,00 não eram somente lucro, a esse montante o Autor tinha de subtrair as despesas emergentes da deslocação. Pelo que também por este motivo, a Sentença em crise incorre numa decisão errada sobre a prova produzida não estando em consonância com a verdade factual, pelo que se consideram impugnados os factos dados como provados nos artigos 60), 61), 62), 63) e64).

19. O Tribunal incorre no mesmo juízo arbitrário para fixar a indemnização relativa aos alegados danos morais reflexos dos Autores/Recorridos B... , C... e D... , que não tiveram qualquer intervenção no sinistrio, considerando ainda como provados factos que não tiveram qualquer sustentação fáctica e contrariando a Jurisprudência e Doutrina dominantes no que respeita à indemnização dos danos reflexos. Pelo que a Ré/Recorrente impugna a matéria de facto que veio a ser como provada pelo Tribunal a quo nos artigos 65), 66), 67), 68), 69), 70), 71), 72), 73), 74), 75), 76), 77) e 78).

20. Efectivamente, atenta a excepcionalidade do n.º 2 do artigo 496.º do C. Civil, tem sido entendimento do Supremo e das Relações, que o legislador optou por não estender aos familiares da vítima sobrevivente o direito de indemnização por danos morais, ainda que sejam mais graves do que os emergentes da morte da vítima. Desta feita as indemnizações arbitradas, além de manifestamente excessivas, estão em total contradição ao Direito vigente.

21. Salvo melhor análise que vier a ser feita por este Venerando Tribunal, crê a Ré não ter sido feita qualquer prova quanto ao alegado dano futuro da Autora, para necessitar de empregada doméstica em consequência das lesões sofridas no sinistro. Efectivamente, com base na perícia do IML nos autos sub judice, e prova produzida já transcrita e que aqui se dá por integralmente reproduzida, não ficou minimamente provada a necessidade do apoio de terceira pessoa.

22. Mesmo em sede do processo de Tribunal de Trabalho, e cuja certidão da Sentença se encontra junta aos autos a fls.. , para além da respectiva IPP, não ficou igualmente fixada a necessidade de apoio de terceira pessoa, nem existe informação, que a sinistrada tenha solicitado exame de revisão de incapacidade junto daquele Tribunal, no sentido de ver reconhecida essa situação.

23. Ora, a consideração de dano futuro, importa antes de tudo o mais, que os mesmos sejam previsíveis, nos termos do n.º 2 do artigo 564.º do CPC. Neste sentido veja-se o Ac. do STJ, de 11/10/1994 (in BMJ, 440.º-437), “Não se considera dano futuro aquele que não passa de uma hipotética eventualidade e, como tal não é indemnizável

24. O Tribunal calcula a indemnização relativa ao dano funcional recorrendo ao Acórdão da Relação de Coimbra de 4/04/1995, mas crê a Ré/Recorrente que incorrectamente, pois afirma que o limite de vida activa corresponde a 82 anos, quando essa idade corresponde à esperança média de vida das mulheres portuguesas. Traduzindo-se o cálculo efectuado no montante de €75.090,65, contudo “Ora, tendo em consideração que as referidas tabelas financeiras são indicativas, fixam mínimos de indemnização (é difícil quantificar, como supra se referiu, inúmeros fatores favoráveis aos lesados), que existe o princípio da proibição de indemnizações irrisórias, e que, decorre dos relatórios periciais, que “na situação em apreço é de perspetivar agravamento das sequelas (artrose em evolução da anca esquerda e/ou eventual rejeição do material de osteossíntese no acetábulo esquerdo), o que poderá obrigar a uma futura revisão do caso”, deve ser indemnizada, pelo menos, na quantia de 100.000 euros.”.

25. Sucede que, a revisão de incapacidade tem de ser aferida no processo laboral e não em sede cível, nem a Autora peticiona ou alega factos que releguem para o futuro a discussão sobre essa incapacidade e respectivo quantum indemnizatório, pelo que também por esta via deverá o presente recurso proceder.

26. Ademais, admitindo ainda assim, esse entendimento, a sinistrada já foi ressarcida por danos patrimoniais pela IPP fixada por acidentes de trabalho, através da Companhia de Seguros T... , com base numa IPP de 27,8%, pelo que não poderia agora cumular nova indemnização pelo mesmo dano, mas sim, conforme a jurisprudência dominante, complementar esse valor com base no montante que receberia por automóvel em função do dano futuro de 31 pontos, o que implica, que no caso concreto tenha que ser sempre deduzido o valor que recebeu pelo mesmo dano por acidente de trabalho. Veja-se igualmente o Ac. do STJ de 03/05/2000 (in BMJ, 497.º-336),

I- O lesado em acidente, considerado simultaneamente de viação e de trabalho, pode optar por uma das indemnizações que lhe forem devidas, só podendo receber da outra, a parte que for necessária para completar o ressarcimento do seu dano. II – Se a indemnização fixada pelo Tribunal do trabalho, através de sentença transitada em julgado, na qual foi determinado o pagamento de uma pensão laboral, com fundamento numa IPP de 30%, tiver englobado a indemnizado pedida na acção por acidente de viação, com fundamento numa IPP de 19% não existe qualquer outro dano indemnizatório a considerar pelo Tribunal”.

Assim, conclui, deve revogar-se a decisão proferida em primeira instância e, consequentemente, alterada de igual modo, de Direito, dando-se provimento à presente apelação nos estritos termos supra requeridos.

Não foram apresentadas contra-alegações.


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II.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

• Saber se a sentença recorrida padece de nulidade por ter condenado a Apelante ao pagamento da quantia de 100.000,00€ para indemnização de um dano que a Autora não havia invocado (o dano correspondente à perda de capacidade aquisitiva decorrente do dano biológico sofrido pela Autora, A... ) e apurar, se for caso disso, o valor dessa indemnização, analisando a questão de saber se à mesma deve ser deduzido algum valor já recebido no âmbito do processo referente a acidente de trabalho;

• Saber se existiu erro na apreciação da prova e se, em função desse erro, importa ou não alterar – e em que termos – a decisão proferida sobre a matéria de facto;

• Saber, se, em face da eventual alteração da matéria de facto, deve ser atribuída a indemnização peticionada por danos patrimoniais sofridos pela Autora, A... (despesas com empregada doméstica) e pelo Autor, B... (lucros cessantes);

• Apurar o valor da indemnização devida à Autora, A... , por danos não patrimoniais;

• Saber, se são ou não devidas indemnizações por danos não patrimoniais aos Autores, B... , C... e D... (marido e filhos da Autora, A... , directamente lesada no acidente) e, caso sejam devidas, apurar o respectivo valor.


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III.

A sentença recorrida fixou a indemnização global devida aos Autores em 302.738,00€, assim discriminados:

a) 150.000,00€ a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pela Autora, A... ;

b) 20,000,00€ a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pelo Autor, B... ;

c) 10.000,00€ a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pelo Autor, C... ;

d) 10.000,00€ a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pela Autora, D... ;

e) 7.488,00€ a título de indemnização pelos danos patrimoniais sofridos pela Autora, A... , correspondentes ao valor que teve que pagar a uma empregada doméstica;

f) 100.000,00€ a título de indemnização pela perda de capacidade aquisitiva decorrente do dano biológico sofrido pela Autora, A... ;

g) 5.250,00€ a título de indemnização pelos danos patrimoniais (lucros cessantes) sofridos pelo Autor, B... .

A Apelante insurge-se contra a atribuição dessas indemnizações com a seguinte fundamentação:

• Relativamente à indemnização referida em a) – danos não patrimoniais sofridos pela Autora, A... – sustenta que existiu erro na apreciação da prova relativamente aos pontos 22), 23), 29), 30), 31), 32), 33), 34), 35), 36), 37), 38), 40), 41), 42), 43), 44), 45), 46), 47), 48), 49), 50), 51), 52), 53), 54), 55), 56), 58) e 59), mais dizendo que, ainda que esses factos tivessem ficado provados, sempre seria excessiva a indemnização de 150.000,00€ que foi fixada para indemnização desses danos;

• Relativamente às indemnizações referidas em b), c) e d) – danos não patrimoniais sofridos pelos Autores, B... , C... e D... – sustenta que as mesmas não podem ser atribuídas, porquanto, além de ter existido erro na apreciação da prova relativamente aos pontos 65 a 78, tais indemnizações sempre seriam excessivas e a sua atribuição está em contradição com o Direito vigente por visarem indemnizar um dano reflexo dos familiares da vítima;

• Relativamente à indemnização referida em e) – danos patrimoniais sofridos pela Autora, A... , correspondentes ao valor que teve que pagar a uma empregada doméstica – sustenta não haver lugar à sua atribuição por não ter sido feita prova desse dano, tendo existido erro na apreciação da prova relativamente ao ponto 57;

• Relativamente à indemnização referida em f) - indemnização pela perda de capacidade aquisitiva decorrente do dano biológico sofrido pela Autora, A... – sustenta que a sua condenação ao pagamento dessa indemnização configura uma condenação em objecto diverso do pedido (porquanto esse dano não foi alegado nem invocado), o que torna a sentença nula, nos termos dos arts. 609º, nº 1, alínea e) e 615º, nº 1, alínea e), do CPC, insurgindo-se ainda contra o critério adoptado para a determinação dessa indemnização e acrescentando que sempre teria que ser deduzido o valor que a Autora já recebeu pelo mesmo dano no âmbito do processo referente a acidente de trabalho;

• Relativamente à indemnização referida em g) – indemnização pelos danos patrimoniais (lucros cessantes) sofridos pelo Autor, B... – sustenta ter existido erro na apreciação da prova relativamente aos pontos 60 a 64, não tendo sido feita prova do prejuízo a que se reporta tal indemnização.

Apreciemos, portanto, cada uma dessas questões, começando pela nulidade de sentença que é invocada pela Apelante a propósito da indemnização atribuída à Autora, A... , pela perda de capacidade aquisitiva decorrente do dano biológico que sofreu.


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Nulidade da sentença

Sustenta a Apelante – como já referimos – que a sentença é nula, nos termos do art. 615º, nº1, alínea e) do CPC[1], por ter condenado a Apelante ao pagamento da quantia de 100.000,00€ para indemnização de um dano que a Autora não havia invocado (o dano correspondente à perda de capacidade aquisitiva decorrente do dano biológico sofrido pela Autora, A... ), situação que diz corresponder a uma condenação em objecto diverso do pedido.

Conforme dispõe o art. 609º, nº 1, “a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir” e, sancionando o desrespeito pela referida proibição, determina o art. 615º, nº 1, alínea e), que a sentença é nula quando “o juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido”.

Tais disposições constituem corolário do princípio dispositivo consagrado na nossa legislação processual civil e por força do qual se coloca a cargo das partes o ónus de formular um pedido – sem o qual o tribunal não pode resolver o conflito de interesses (cfr. art. 3º) – e o ónus de alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas (cfr. art. 5º, nº 1). Assim, embora não esteja sujeito às alegações das partes no que toca à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 5º, nº 3), o Tribunal está vinculado e apenas poderá atender aos factos que tenham sido alegados pelas partes e aos factos que lhe é permitido considerar, ao abrigo do disposto no art. 5º, nº 2, factos estes que, apesar de não alegados, se hão-de conter dentro da causa de pedir invocada. Daí que, como dispõe o art. 608º, nº 2, do citado diploma, o juiz apenas possa ocupar-se das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras e daí que, como dispõe o citado art. 609º, nº 1, a sentença não possa condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir, sendo nula a sentença em que o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento, tal como é nula a sentença que condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido (cfr. art. 615º, nº 1, alíneas d) e e)).

Vejamos o que sucedeu no caso sub judice.

Relativamente a danos sofridos pela Autora, A... , apenas se pediu que a Ré fosse condenada a pagar uma indemnização pelos danos morais, no valor de 150.000,00€ e a pagar uma indemnização de 100.000,00€ por danos emergentes futuros. Nenhuma outra indemnização foi pedida pela Autora, A... .

E, como decorre claramente da petição inicial, estes danos emergentes futuros para cuja indemnização a Autora reclamava a quantia de 100.000,00€ correspondiam apenas às despesas que já havia feito desde o acidente e às que teria que fazer, até ao fim da sua vida, com a contratação de uma empregada doméstica que a auxiliasse nas tarefas domésticas.

Sucede que a sentença recorrida, além de ter condenado a Ré a pagar uma indemnização no valor de 7.488,00€ correspondente às despesas que já havia feito com a contratação de uma empregada doméstica no período subsequente ao acidente (durante cerca de dois anos), condenou a Ré a pagar à Autora a quantia de 100.000,00€ para indemnização da perda de capacidade aquisitiva decorrente do dano biológico de que ficou a padecer.

Mas, salvo o devido respeito, ao proceder desta forma, a sentença recorrida ultrapassou, desde logo, os limites quantitativos do pedido que havia sido formulado.

Com efeito, sem prejuízo de se entender – como se consignou na sentença recorrida – que a fixação dos danos parcelares em quantia superior à valorada pelos Autores não infringe o disposto no art. 661º, desde que a sentença não condene em valor superior ao pedido global da indemnização que havia sido formulado, a verdade é que os limites da condenação impostos por lei têm que ser vistos relativamente a cada um dos Autores, atendendo aos danos que cada um deles invocou e ao pedido que cada um deles formulou.

Com efeito, ainda que os Autores se apresentem conjuntamente a propor a presente acção, não peticionam qualquer indemnização que a todos seja devida, antes reclamam uma indemnização própria para cada um deles e tendo em vista a indemnização de danos que, embora tenham uma causa comum, são danos próprios de cada um deles. Não está em causa, portanto, uma situação de litisconsórcio necessário; o que existe é uma coligação de autores – legalmente permitida – ou, quando muito, uma situação de litisconsórcio voluntário, o que se reconduz a uma mera acumulação de acções, conservando cada litigante uma posição de independência em relação aos seus compartes (cfr. art.35º) e sendo certo, portanto, que os limites da condenação têm que ser aferidos em face do pedido formulado por cada um dos Autores.

Ora, a Autora, A... , apenas havia pedido uma indemnização global de 250.000,00€ e a sentença recorrida atribuiu-lhe 257.488,00€, excedendo em 7.488,00€ o valor do pedido que tal Autora havia formulado e violando, nessa medida, o disposto no art. 609º, nº 1.

Mas, além do mais, também nos parece que a sentença recorrida condenou em objecto diverso do que foi pedido, quando condenou a Ré a pagar à Autora, A... , uma indemnização de 100.000,00€ pela perda de capacidade aquisitiva decorrente do dano biológico.

Vejamos porquê.

O objecto do pedido a que alude a norma citada não pode ser encarado numa perspectiva estritamente literal e totalmente desligado da causa de pedir que lhe serve de fundamento.

Ao definir os limites de actuação do Tribunal, o legislador deixou claro, nos arts. 608º e 609º, que a sentença deve manter-se, quanto ao seu conteúdo, dentro dos limites definidos pela pretensão que foi deduzida[2]. Como refere Alberto dos Reis[3], “a sentença deve corresponder à acção”, no sentido de que a sentença há-de “pronunciar-se sobre tudo o que se pedir e só sobre o que for pedido”. E, como também escreve Alberto dos Reis[4], “Não basta que haja coincidência ou identidade entre o pedido e o julgado; é necessário, além disso, como já assinalámos, que haja identidade entre a causa de pedir (causa petendi) e a causa de julgar (causa judicandi)” e, citando Mattirolo, continua dizendo que “Deve anular-se, por vício de ultra petita, a sentença em que o juiz invoca, como razão de decidir, um título, ou uma causa ou facto jurídico, essencialmente diverso daquele que as partes, por via de acção ou de excepção, puseram na base das suas conclusões”.

Significa isto, portanto, que, além de se conter dentro dos limites quantitativos e qualitativos do pedido formulado, o tribunal está impedido de julgar o litígio com base em causa de pedir que não foi invocada[5] (entendendo-se, naturalmente, a causa de pedir como o facto ou conjunto de factos concretos em que assenta a pretensão e aos quais o Tribunal terá que se cingir, ainda que possa atribuir-lhes uma diferente qualificação jurídica), sem prejuízo de conhecer oficiosamente de determinadas questões, quando tal lhe for permitido ou imposto por lei.

A pretensão formulada não poderá, portanto, ser dissociada da causa de pedir que foi invocada, pois que é através da causa de pedir que o pedido formulado obtém a caracterização e individualização própria que permitem distingui-lo de um outro pedido que, apesar de visar a obtenção de uma prestação de idêntica natureza (por ex. uma obrigação pecuniária), encontra o seu fundamento em factos ou causa de pedir totalmente diversa.

Daí que, como se considerou no Acórdão da Relação de Coimbra de 16/10/2012[6], “Há condenação em objeto diverso do pedido quando aquela não tem qualquer correspondência com a pretensão formulada em juízo, mesmo que a prestação em que os réus surgem condenados tenha a mesma natureza identitária da prestação pedida – v.g., a de uma obrigação com tradução pecuniária, uma obrigação de dare”.

Ora, não obstante a identidade material entre o pedido formulado e a condenação proferida pelo tribunal – ambos correspondendo à entrega de uma determinada quantia pecuniária – a verdade é que a condenação decretada na sentença recorrida assentou em causa de pedir totalmente diversa daquela que a Autora havia invocado: a Autora havia pedido uma indemnização por danos emergentes futuros (correspondentes às quantias que, desde o sinistro e até ao fim da sua vida, teria que despender com a contratação de uma empregada doméstica) e a sentença recorrida atribuiu-lhe uma quantia equivalente mas para indemnização de um dano totalmente diferente e que a Autora não havia invocado (o dano decorrente da perda de capacidade aquisitiva por força do dano biológico e que, no essencial, foi configurado e apurado como um dano patrimonial futuro qualificável como lucros cessantes).

Estão em causa, portanto, danos totalmente distintos e as indemnizações devidas por cada um deles correspondem a pedidos ou pretensões diferentes, ainda que se materializem na execução de uma prestação de carácter pecuniário de idêntica natureza.

Isso mesmo também refere Alberto dos Reis[7], quando afirma: “Danos emergentes e lucros cessantes são espécies jurídicas diversas, que têm que ser alegadas e provadas; se o autor pediu indemnização por danos emergentes, não pode o tribunal condenar o réu por lucros cessantes…Efectivamente a condenação por lucros cessantes, tendo-se pedido por danos emergentes, ofenderia a regra do art. 661º: seria condenação em objecto diverso do que se pedira”.

Ora, a Autora – reafirma-se – não pediu a indemnização do dano patrimonial decorrente da perda de capacidade aquisitiva por força do dano biológico; além dos danos de natureza não patrimonial, a Autora apenas pediu – como referimos – uma indemnização por danos emergentes futuros (correspondentes às quantias que, desde o sinistro e até ao fim da sua vida, teria que despender com a contratação de uma empregada doméstica) e fê-lo propositadamente, já que, como decorre da petição inicial, a Autora não pretendeu reclamar nos presentes autos a indemnização devida pela totalidade dos danos sofridos em consequência do acidente, pretendendo apenas reclamar a indemnização pelos danos que não eram assegurados pela apólice de seguros de acidente de trabalho e considerando – bem ou mal –que estes danos eram apenas os danos não patrimoniais e os danos correspondentes às despesas que teria que efectuar até ao fim da sua vida com a contratação de uma empregada doméstica.

A situação tão pouco pode ser vista como alteração da qualificação jurídica da causa de pedir que havia sido invocada, porquanto está em causa um dano totalmente diferente, quer na sua natureza, quer nos respectivos pressupostos de facto. Com efeito, a demonstração e cálculo do dano que era invocado pela Autora baseavam-se na necessidade de contratar uma empregada doméstica e nas despesas que isso iria implicar ao longo da vida da Autora (factos que a Autora alegou). Mas o dano considerado pela sentença recorrida baseou-se em pressupostos de facto diferentes, tendo-se considerando, para o efeito, a concreta incapacidade de que a Autora ficou afectada e o vencimento que auferia na actividade profissional que exercia, vencimento este que a Autora nem sequer alegou (como seria necessário, caso pretendesse reclamar a indemnização do concreto dano que a sentença recorrida lhe veio a atribuir, já que esse facto era elemento integrante da causa de pedir da pretensão de indemnização desse dano). Importa notar que o vencimento/rendimento auferido pela Apelante não consta, sequer, da matéria de facto (e não consta porque não havia sido alegado), sendo que, para o cálculo da aludida indemnização, a sentença recorrida atendeu ao rendimento que havia sido considerado provado na sentença proferida no âmbito do processo de acidente de trabalho (conforme certidão que a Ré havia juntado aos autos) sem que esse facto tivesse sido, sequer, sujeito a contraditório e sendo certo que a Ré não havia tido intervenção naquele processo.

Não se diga, portanto – como parece dizer-se na sentença recorrida – que o Tribunal apenas retirou “…todas as devidas e necessárias consequências da factualidade alegada (e provada), no âmbito da causa de pedir invocada…” por se estar apenas a considerar o dano biológico na perspectiva das incapacidades e limitações funcionais, no âmbito geral (com exclusão, portanto, das perdas funcionais no âmbito laboral já consideradas no âmbito do processo por acidente de trabalho) e que a Autora havia alegado e peticionado “sob a forma de necessidade de empregada doméstica”. Com efeito, a sentença recorrida considerou e calculou o dano e respectiva indemnização na perspectiva de perda (futura e previsível) de rendimentos, considerando o salário e o rendimento que a Autora obtinha na sua actividade profissional e pretendendo alcançar “…um capital que se extinga ao fim da sua vida activa e seja susceptível de garantir durante esta, as prestações periódicas correspondentes à sua perda de ganho”. O Tribunal não se limitou, portanto, a extrair as devidas consequências da causa de pedir que havia sido invocada; a causa de pedir correspondia a um dano futuro emergente (despesas que previsivelmente a Autora teria que fazer até ao fim da sua vida) e o dano considerado pela sentença corresponde a um dano futuro, sob a forma de lucros cessantes (rendimentos que, previsivelmente, a Autora deixaria de auferir durante o seu período de vida activa), que, além do mais, implicou a consideração de factos que a Autora não havia alegado (como seja, o vencimento que auferia) e que, como tal, não se integravam na causa de pedir invocada.    

 Parece-nos, portanto, que, ao atribuir tal indemnização, o tribunal recorrido, não só apreciou uma questão cujo conhecimento lhe estava vedado (por não ter sido alegado e invocado o concreto dano que a sentença considerou existir), como também condenou em objecto diverso do que havia sido pedido (porquanto o que se havia pedido era a indemnização de um dano diferente daquele que a sentença recorrida considerou), o que torna a sentença nula, nos termos do art. 615º, nº 1, alíneas d) e e), do CPC.

Não poderá, portanto, subsistir a decisão na parte em que condenou a Ré a pagar à aludida Autora a quantia de 100.000,00€.


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Impugnação da matéria de facto

A Ré/Apelante vem ainda impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto no que toca aos seguintes pontos e com base nos seguintes elementos probatórios:

- Impugna os pontos 22), 23), 29) a 38), 40) a 56), 58) e 59), dizendo, para o efeito, que os depoimentos – em que o Tribunal se fundou – de F... , G... , H... e I... apenas se baseiam em suposições, estão eivados de lugares comuns, frases feitas e incertezas, sem qualquer lastro onde assente o conhecimento daqueles factos, razão pela aquela matéria não pode ser considerada provada;

- Impugna os pontos 65 a 78, dizendo que os depoimentos das testemunhas, G... e I... estão eivados de lugares comuns, frases feitas e incertezas, sem qualquer lastro onde assente o conhecimento daqueles factos, razão pela qual aquela matéria não pode ser considerada provada;

- Impugna o ponto 57, dizendo que, além de não ter sido junto qualquer documento que atestasse o pagamento, os depoimentos das testemunhas, G... , H... , I... e R... , nem sequer permitem determinar o valor da hora, quantas horas fazia por dia, quantos dias da semana trabalhava e durante quanto tempo o fez, razão pela qual esse facto não pode ser considerado provado;

- Impugna os pontos 60 a 64, dizendo que esse prejuízo não se encontra documentado e a única testemunha que falou sobre o valor cobrado (a testemunha, Q... ) afirmou que o valor de 750,00€ não incluía as portagens e despesas de deslocação que corriam por conta do Autor, pelo que, tendo ainda em conta os depoimentos das testemunhas G... , H... , I... e Q... , esses factos não poderiam ser considerados provados.

Analisemos, portanto, essa matéria.

Pontos 22), 23), 29) a 38), 40) a 56), 58) e 59)

Os citados pontos têm a seguinte redacção:

22) Logo após o embate, sem prejuízo do facto 18), teve perda de conhecimento, mas depois recuperou os sentidos (resposta ao art. 18.º da base instrutória).

23) Fez fisioterapia durante cerca de um ano (resposta ao art. 19.º da base instrutória).  

29) Sofreu e sofre dores intensas, incluindo enxaquecas e dores lombares (resposta ao art. 26.º da base instrutória).

30) Durante todo o período de tempo decorrido entre o momento do acidente e a sua saída dos Hospitais, bem como nas várias semanas seguintes a autora, sofreu dores muito fortes.

31) Essas dores afectam-na sempre que caminha, não podendo manter-se de pé mais de 30 minutos (resposta ao art. 27.º da base instrutória).

32) Bem como quando faz esforços com os membros inferiores e com a região da anca, principalmente nas mudanças de tempo (resposta ao art. 28.º da base instrutória).

33) Fica com a perna esquerda dormente com muita frequência (resposta ao art. 29.º da base instrutória).

34) Em consequência do acidente, após o atropelamento, A... temeu pela perda da sua vida (resposta ao art. 30.º da base instrutória).

35) Sentiu-se angustiada, ansiosa, desgostosa e desesperada por não poder sair da cama e por, depois, ter de reaprender a movimentar-se (resposta ao art. 31.º da base instrutória).

36) Passou por um grande sentimento de angústia, ansiedade, desgosto e desespero, pois estava com problemas de locomoção motora, dado ter estado imobilizada sem poder sair da cama, pelo que quando começou a fazer a fisioterapia tinha bastantes dores musculares, tendo que reaprender a marchar, movimentar-se e andar.

37) E por não saber se voltaria a poder trabalhar e a conviver com os seus familiares como havia feito até então (resposta ao art. 32.º da base instrutória).

38) Toda esta situação e as sequelas que sofre, deixaram a autora nervosa e angustiada, sofrendo medo e temendo pela vida, pois não sabia em que estado de saúde realmente se encontrava e se poderia voltar a trabalhar e a levar uma vida normal, bem estar com os filhos, marido e familiares, como sucedia até ao acidente.

40) A autora sofreu também intensamente com a imobilidade a que ficou sujeita e com o afastamento da família, dos amigos, e da sua casa e do seu local de trabalho.

41) A autora sofreu ainda os efeitos das anestesias gerais às quais foi obrigada a submeter-se; sofreu clausura hospitalar e os incómodos relativos aos períodos de acamamento e internamento hospitalar, no Hospital Santo André e Centro Hospital S. Francisco em Leiria e na Clinica da Marinha Grande; sofreu assim privação da sua liberdade pessoal, correspondente aos períodos de acamamento.

42) Durante esses períodos, nomeadamente naqueles em que se manteve em internamento hospitalar, viu-se limitada da companhia dos seus dois filhos, do marido e demais familiares; nesses períodos em que esteve internada, acamada, ou em recuperação, não pôde brincar com os filhos como fazia antes do acidente.  

43) Não voltou a engravidar, em consequência das lesões que sofreu, designadamente ao nível da bacia, por causa do acidente, o que lhe causou grande desgosto (resposta ao art. 34.º da base instrutória).

44) À data do sinistro, A... era uma mulher sã, e não padecia de doenças ou defeitos físicos (resposta ao art. 35.º da base instrutória).

45) Depois do sinistro, deixou de fazer actividades como dançar, correr, andar de bicicleta, saltar, fazer caminhadas, fazer desporto, tendo ficado com diminuição da força muscular e eficácia dos movimentos do membro inferior esquerdo (resposta ao art. 36.º da base instrutória).

46) Antes do embate, A... fazia ginástica duas vezes por semana, e há cerca de um ano antes do embate; por outro lado, gostava particularmente de dançar, designadamente em bailes e festas, sendo por tal facto reconhecida por quem a conhecia.

47) Deixou de se sentir atraente e bonita, sentindo complexos em consequência das diversas cicatrizes e mazelas no corpo, não vestindo calções nem mostrando as pernas (resposta ao art. 37.º da base instrutória).

48) Por causa disso, custa-lhe ir à praia no Verão, ou à piscina (resposta ao art. 38.º da base instrutória).

49) Sente-se uma pessoa “aleijada e deficiente” (resposta ao art. 39.º da base instrutória).

50) Sofreu stress pós-traumático com contornos psico-patológicos, manifestado em medo de andar de automóvel (resposta ao art. 40.º da base instrutória).

51) Pelo menos no ano seguinte à data do embate, evitou passar no local do embate.

52) Tem perturbações de humor e irritabilidade fácil e chora compulsivamente, sobretudo quando recorda o acidente (resposta ao art. 41.º da base instrutória).

53) Sofreu depressão reactiva à situação clínica, e um forte abalo moral e psíquico. É uma pessoa diferente após o embate, mais introvertida, e mais frágil emocionalmente.

54) A autora sentiu e sente, em consequência das dores, aborrecimentos e privações, depressões, infelicidade, sentimento de inferioridade e de diminuição das suas capacidades, bem como profundo desgosto pela sua total dependência de terceiros durante a convalescença, quer para se mover quer para tratar de outros assuntos.

55) Antes do sinistro, A... trabalhava como empregada de escritório (resposta ao art. 42.º da base instrutória).

56) Era ainda ela quem cuidava das refeições caseiras e das tarefas domésticas, como lavar e passar a roupa, lavar a loiça, limpar e arrumar a casa (resposta ao art. 43.º da base instrutória).

58) Em cada uma das horas em que esteve internada, acamada, ou em recuperação, em consequência do acidente supra referido, a autora A... poderia ao invés ter aproveitado para sair, tomar café, passear, namorar, divertir-se, ou fazer qualquer outra coisa que lhe apetecesse, o que deixou de fazer, em consequência do referido acidente.

59) Em cada uma das horas em que esteve internada, acamada, ou em recuperação, em consequência do acidente supra referido, a autora sentiu-se triste, angustiada, deprimida, perturbada, inquietada, revoltada com a sua situação, por não poder dedicar mais tempo aos filhos e marido como antes do acidente, e receosa com o futuro.

Relativamente a esta matéria, a Apelante apenas procede à transcrição de pequenos excertos dos depoimentos das testemunhas, F... , G... , H... e I... , sem que faça qualquer apreciação crítica desses depoimentos (e dos demais que incidiram sobre essa matéria), dizendo apenas que a primeira testemunha não observa a Autora desde 2007 e que tais depoimentos apenas se baseiam em suposições, estão eivados de lugares comuns, frases feitas e incertezas, sem qualquer lastro onde assente o conhecimento daqueles factos.

Sendo verdade que a testemunha, F... , não observa a Autora desde 2007, descreve, contudo, a situação que observou e as consequências que, normal e previsivelmente, decorrem das lesões sofridas.

Por outro lado, as testemunhas, G... , H... , I... , J... , L... e M... , confirmam, no essencial, os factos em questão e, ao contrário do que diz a Apelante, os seus depoimentos não assentam em suposições, mas sim naquilo que dizem ter constatado por terem uma relação próxima com os Autores há vários anos. É certo que os aludidos depoimentos não primam pela espontaneidade, já que, frequentemente, se limitavam a responder afirmativamente aos factos que já estavam introduzidos nas perguntas que lhes eram efectuadas, circunstância que não deixa de condicionar a credibilidade dos seus depoimentos. De qualquer forma, a verdade é que as testemunhas não deixaram de confirmar aqueles factos que temos, aliás, como normais e prováveis tendo em conta as lesões sofridas pela Autora e o internamento a que foi sujeita.

Talvez seja verdade – como diz a Apelante – que os aludidos depoimentos estão eivados de lugares comuns e frases feitas (circunstância a que não será alheia ao modo como as perguntas foram efectuadas), mas também não deixa de ser verdade que a maior parte destes factos – muitos deles notórios – são comuns à maior parte das situações em que existem lesões que exigem internamento e que provocam dor e diversas limitações, ainda que de carácter temporário.

Não encontramos, portanto, razões válidas para alterar a decisão proferida sobre os aludidos factos.

Ressalvamos apenas o facto a que alude o ponto 43, porquanto não foi efectuada qualquer prova credível que permita afirmar que a Autora não tenha voltado a engravidar em consequência das lesões que sofreu, designadamente ao nível da bacia. Com efeito, não obstante as referências feitas pelas testemunhas a essa matéria, os relatórios médicos juntos aos autos e o relatório do exame pericial não aludem a qualquer impossibilidade ou limitação da possibilidade de engravidar em consequência das lesões sofridas.

Assim, elimina-se o ponto 43, mantendo-se os demais.

Pontos 65 a 78

Os citados pontos têm a seguinte redacção:

65) B... temeu pela perda da vida de A... , sua esposa de quem muito gosta e estima (resposta ao art. 52.º da base instrutória).

66) Sentiu-se triste, desgostoso e angustiado por causa do sucedido a A... e ao seu agregado familiar (resposta ao art. 53.º da base instrutória).

67) Sofreu, e sofre, de angústia e depressão devido à ausência de apetite sexual de A... , em consequência do embate, o que gerou uma situação de abstinência sexual durante, pelo menos, três anos (resposta aos arts. 54.º e 55.º da base instrutória).

68) B... sofre pelo facto de não poder ter mais filhos com A... , em consequência do acidente, o que era projecto de ambos (resposta ao art. 56.º da base instrutória).

69) Também os filhos do casal, que ficaram sem o apoio materno durante o internamento de A... , temeram pela perda da vida da mãe (resposta ao art. 57.º da base instrutória).

70) Andaram tristes e angustiados, nervosos e ansiosos, pela ausência da sua companhia e carinho durante os meses de internamento (resposta ao art. 58.º da base instrutória).

71) Pois temeram perder a sua mãe, bem como estiveram privados, durante largos meses, da convivência, companhia, cuidados e carinho maternos, tendo passado a época festiva do Natal e Ano Novo de 2005 sem a sua companhia, sentido muito a sua falta, o que os deixou tristes e angustiados.

72) A D... sofreu de depressão após o sinistro, tendo sido acompanhada por psicólogo (resposta ao art. 59.º da base instrutória).

73) Teve medo de estar sozinha em casa e de adormecer sem a mãe, vivendo em estado de ansiedade até que esta a fosse buscar à escola ou surgisse em casa (resposta ao art. 60.º da base instrutória).

74) O acidente da progenitora deixou marcas profundas na vida da D... (que a partir dessa altura, desenvolveu angústias maciças de perda, originando um sofrimento colossal, não querendo deixar a mãe sozinha, tendo dificuldade em ver a mãe numa cama de hospital e ainda fantasiando permanentemente situações de ameaça e perigo iminente), que do ponto de vista psico-afectivo, em muito contribuíram para o agravamento das suas angústias, ansiedade e consequentemente da sua situação social e individual, contribuindo para um aumento substancial da sua insegurança emocional.

75) No ano escolar de 2005/2006, e nos que se seguiram, os filhos do casal viram diminuído o seu aproveitamento escolar por falta de empenho e zelo, o que não sucedia antes do sinistro (resposta aos arts. 61.º e 62.º da base instrutória).

76) Depois do sinistro, C... passou a ser uma criança fechada e triste, antipática, irritadiça, revoltada (resposta ao art. 63.º da base instrutória).

77) Com as limitações físicas da Autora, os menores deixaram de ter a sua companhia e colaboração nas mais variadas brincadeiras, como saltar à corda, jogo da macaca, e práticas desportivas, que com ela mantinham, dada a grande cumplicidade existente no agregado familiar, o que se projectou na formação da sua personalidade; Os menores sentiram-se sozinhos e abandonados, perante uma situação para a qual em nada contribuíram e que resultou directamente do acidente em causa nos presentes autos, sofrido pela sua mãe.

78) Ainda hoje se sentem revoltados tristes e amargurados ao ver a sua mãe a chorar e a ver o constante sofrimento físico e emocional, vendo que ela não pode fazer muitas das coisas que gostava de fazer, nomeadamente nas brincadeiras e actividades com os seus filhos.

Relativamente a esta matéria, a Apelante apenas procede à transcrição de pequenos excertos dos depoimentos das testemunhas, G... e I... , sem que faça qualquer apreciação crítica desses depoimentos (e dos demais que incidiram sobre essa matéria), pretendendo demonstrar – aparentemente e dado o teor dos excertos que transcreve – que tais testemunhas não têm conhecimento de alguns desses factos e dizendo que tais depoimentos apenas se baseiam em suposições, estão eivados de lugares comuns, frases feitas e incertezas, sem qualquer lastro onde assente o conhecimento daqueles factos.

Ora, ainda que as testemunhas citadas pela Apelante não tenham manifestado um conhecimento profundo e pormenorizado sobre estes factos, uma vez que não tinham uma relação muito próxima e frequente com o Autor e os filhos, a verdade é que sobre esta matéria também depuseram as testemunhas, H... , J... , L... e M... e, ainda que estes depoimentos também não tenham sido muito precisos e esclarecedores, a verdade é que, em termos gerais, podemos retirar desses depoimentos a confirmação da maioria dos factos supra referidos que são, aliás, perfeitamente normais e previsíveis (alguns serão até notórios) em situações do género, importando ainda chamar a atenção para o relatório que consta dos autos – elaborado por uma psicóloga – e no qual são evidenciadas a angústia, a ansiedade e a insegurança emocional da Autora, D... , e que terão sido agravadas com o acidente de que a mãe foi vítima.

Refira-se, contudo, que não existe qualquer relatório médico do qual resulte que a D... tenha sofrido de depressão na sequência e por causa do acidente de que a sua mãe foi vítima. O relatório a que nos referimos alude à existência de um quadro depressivo, mas fá-lo em termos vagos e sem concretizar as suas causas e a sua eventual relação com o acidente e, na nossa perspectiva, esse relatório não será suficiente, só por si, para fundar a nossa convicção acerca da existência de tal patologia como consequência do acidente e, como é evidente, esse é um facto para cuja prova não relevam as declarações de testemunhas sem qualquer habilitação técnica para efectuar tal diagnóstico ou para emitir qualquer opinião sobre essa matéria. O mesmo acontece relativamente à alegada depressão do Autor, B... .

Assim sendo, terão que ser retiradas da matéria de facto as referências à depressão de que padeceram os aludidos Autores.

E tal como referimos supra – a propósito dos danos sofridos pela Autora, A... – não existe qualquer prova de que esta Autora tenha ficado impossibilitada de engravidar em consequência das lesões sofridas no acidente. Como tal, também terá que ser eliminado o ponto 68.

E também nos parece que a prova produzida não é suficiente para considerar provado (pelo menos na sua totalidade) o facto constante do ponto 67.

Com efeito, as testemunhas, G... e I... declararam nada saber sobre essa matéria; as testemunhas, F... , N... , O... , P... e Q... nada declararam, de concreto, sobre essa matéria; a testemunha, H... , declara apenas que a Autora chegou a comentar que não conseguia ter relações sexuais com o marido, devido à sua capacidade física, já que tinha dores e não se sentia bem, nada declarando sobre aquilo que o Autor sentia por causa disso; a testemunha, J... declara que o Autor chegou a comentar que não tiveram relações sexuais durante dois ou três anos e, quando lhe foi perguntado directamente “se o Autor sofreu, e sofre, de angústia e depressão devido à ausência de apetite sexual de A... , em consequência do embate, o que gerou uma situação de abstinência sexual durante, pelo menos, três anos”, responde, de forma seca e sem mais esclarecimentos que “abateu um bocadinho” e a testemunha L... declara que, em conversas casuais, a Autora teria comentado que não teve relações sexuais com o marido durante muito tempo (não sabe precisar quanto mas admite que tenham sido dois ou três anos) porque se queixava de muitas dores e, quando lhe perguntam se o marido ficou triste por causa disso, diz apenas que “talvez”, sem que demonstre qualquer conhecimento efectivo sobre essa matéria.

Ora, as aludidas testemunhas não têm qualquer conhecimento directo sobre estes factos (outra coisa, aliás, não seria de esperar) e limitam-se a relatar aquilo que os próprios Autores lhes disseram, sem que adiantem muitos esclarecimentos que ajudem a compreender a razão pela qual os Autores teriam comentado esse assunto com eles e sem que tenham demonstrado qualquer conhecimento específico sobre a alegada angústia ou depressão do Autor em face dessa situação.

Para além do período de internamento hospitalar da Autora – em que é evidente a ausência de relações sexuais com o seu marido – podemos admitir como normal e razoável que durante mais algum período (não concretamente apurado) tais relações não tenham existido como consequência das lesões sofridas e das dores e mau estar físico que lhe são inerentes, tal como admitimos como normal e razoável que, por força da diminuição de desejo sexual (a que é feita referência em relatórios juntos aos autos), tenha diminuído a frequência daquelas relações e também admitimos como normal e razoável que, em face dessa situação, o Autor tenha sentido a frustração que é inerente a uma situação desse tipo. Não dispomos, no entanto, de quaisquer bases concretas para fundar a nossa convicção de que tenha existido uma efectiva abstinência sexual durante, pelo menos, três anos e que, por causa disso, o Autor tenha sofrido de angústia e depressão. Com efeito, a diminuição (ou ausência) de desejo sexual por parte da Autora não corresponde, necessariamente, a uma abstinência sexual durante um período tão prolongado e, pelas razões que referimos, também não poderemos atribuir aos depoimentos prestados pelas testemunhas a credibilidade bastante para considerar como provada tal abstinência e a alegada angústia e depressão do Autor por causa desse facto.

Assim, no que respeita à matéria que consta do ponto 67, importará apenas considerar provado que:

 As lesões sofridas pela Autora em consequência do embate e a diminuição do seu desejo sexual decorrente dessas lesões e das dores inerentes originaram uma situação de abstinência sexual por período não concretamente apurado.

Relativamente aos demais factos (não expressamente referidos), mantém-se a decisão proferida, porquanto, como se referiu, tais factos resultaram, no essencial, confirmados pelo conjunto dos depoimentos prestados e documentos juntos aos autos.  

Ponto 57

O citado ponto tem a seguinte redacção:

57) Passou a precisar da ajuda de uma terceira pessoa para o fazer; A... contratou uma empregada doméstica duas tardes por semana, a quem pagou seis euros à hora, e fez, pelo menos, 12 horas por semana, durante dois anos; posteriormente, foi ajudada por amigas na realização de tarefas domésticas, o que ainda hoje se mantém; sem ajuda de terceira pessoa na realização das tarefas domésticas, a autora realiza tais tarefas com dificuldades acrescidas pelas suas limitações funcionais decorrentes do embate, fazendo tais tarefas com mais dificuldade, demorando mais tempo na sua realização, e com dores, o que lhe causa grande desgosto no prejuízo estético e funcional (resposta aos arts. 44.º, 45.º, 46.º, da base instrutória).

Relativamente a esta matéria, diz a Apelante que, além de não ter sido junto qualquer documento que atestasse o pagamento, os depoimentos das testemunhas, G... , H... , I... e R... , nem sequer permitem determinar o valor da hora, quantas horas fazia por dia, quantos dias da semana trabalhava e durante quanto tempo o fez, razão pela qual esse facto não pode ser considerado provado.

Tendo em conta a alegação da Apelante, parece seguro concluir que a Autora apenas põe em causa o número de horas diárias e semanais que a empregada doméstica realizava e o valor que recebia por isso, sendo que, no que toca aos demais factos que constam do ponto 57, a Apelante nada diz com vista a justificar qualquer decisão diversa da que sobre eles foi proferida.

As testemunhas, G... e H... (citadas pela Apelante), não obstante confirmarem a contratação de uma empregada doméstica, não sabem, contudo, o número de horas que a mesma executava nem o valor que recebia. Depoimento idêntico foi prestado pelas testemunhas, I... e L... .

No entanto, a testemunha O... (que era precisamente a empregada contratada pelos Autores) declara que prestou esses serviços durante cerca de dois anos; declara que ia lá, normalmente, duas vezes por semana e fazia, em cada um dos dias, cinco ou seis horas, às vezes sete, mais declarando que, embora não se lembre muito bem, pagavam-lhe cinco ou seis horas à hora. Por outro lado, a testemunha J... – que vive em união de facto com a testemunha, O... – declara que a sua companheira foi lá executar as tarefas domésticas durante dois ou três anos, acrescentando que ia duas vezes por semana, fazia cerca de dezasseis horas por semana e recebia seis euros à hora.

Tendo em conta estes depoimentos – e ainda que não sejam inteiramente coincidentes (o que facilmente se compreende pelo tempo decorrido) – não nos parece que se justifique qualquer alteração à decisão proferida sobre essa matéria, razão pela qual se mantém o citado ponto 57. 

Pontos 60 a 64

Os citados pontos têm a seguinte redacção:

60) B... , à data do sinistro, efectuava serviços ligeiros de transporte de mercadorias por conta de outrem em veículo próprio (resposta ao art. 47.º da base instrutória).

61) Esses serviços eram feitos tanto em território nacional como em países europeus (resposta ao art. 49.º da base instrutória).

62) Devido ao sinistro, B... reduziu o seu horário de trabalho, a fim de poder buscar e levar os filhos à escola e tratar deles, tratando deles á noite, lavando-os, alimentando-os e acarinhando-os, atendendo a situação difícil porque que passavam, face á ausência da mãe, e para realizar parte das tarefas domésticas, e dar instruções à empregada doméstica, face à ausência de A... (resposta ao art. 49.º da base instrutória).

63) Passou a aceitar apenas serviços em território nacional, na zona centro, de modo a demorar poucas horas na sua execução (resposta ao art. 50.º da base instrutória).

64) Ao prescindir da realização de serviços no estrangeiro, deixou de auferir a quantia de cerca de 750 euros por mês, até Junho de 2006 (resposta ao art. 51.º da base instrutória).

Diz a Apelante, no que toca a esta matéria, que esse prejuízo não se encontra documentado. Procede à transcrição de curtos excertos dos depoimentos das testemunhas, G... , H... e I... , onde declaram não saber quanto o Autor deixou de auferir e diz que a única testemunha que falou sobre o valor cobrado (a testemunha, Q... ) afirmou que o valor de 750,00€ não incluía as portagens e despesas de deslocação que corriam por conta do Autor.

Refira-se que, não obstante impugnar a decisão proferida sobre os pontos 60 a 64, a Apelante nada diz, de concreto, no sentido de justificar qualquer alteração à decisão proferida sobre os pontos 60 a 63 (factos que são, aliás, confirmados pela generalidade das testemunhas).

O que a Apelante impugna é o ponto 64, dizendo que esse facto não resultou da prova produzida.

Parece-nos que terá razão, porquanto as testemunhas nada sabiam de concreto sobre essa matéria.

E o depoimento da testemunha, Q... (no qual se baseou a decisão proferida sobre este facto) também não nos parece de grande ajuda. De facto, esta testemunha apenas declarou ter contactado o Autor (após o acidente e a pedido de um cliente seu) para efectuar um transporte para o estrangeiro, tendo o mesmo respondido que não podia porque tinha a mulher no hospital. Relativamente ao valor apenas disse que, há já alguns anos, contratou com o Autor a realização de um transporte de mercadoria para França, tendo pago 750,00€.

Ora, salvo o devido respeito, este depoimento não permitia que se considerasse provado o facto vertido em 64.

Em primeiro lugar, porque – como diz a Apelante – o valor de 750,00€ a que alude a testemunha não corresponderia, na totalidade, ao rendimento ou lucro auferido pelo Autor, já que a tal valor teriam que ser abatidas todas as despesas necessárias à realização do transporte; em segundo lugar, porque, ainda que fosse possível afirmar que com a realização de um serviço para o estrangeiro o Autor auferia o rendimento de 750,00€, nada permitiria concluir que o Autor realizava serviços desse tipo todos os meses do ano, porquanto a prova produzida não consente tal afirmação ou conclusão e, em terceiro lugar, porque nada permitiria afirmar que, nos serviços efectuados em território nacional, o Autor não auferiu quantia idêntica ou superior por lhe ser possível executar, no mesmo período temporal, um maior número de serviços.

De facto, atendendo ao depoimento da aludida testemunha, apenas sabemos que o Autor deixou de realizar um serviço para o estrangeiro, mas não sabemos qual o rendimento que esse serviço lhe iria proporcionar e não sabemos se, nos transportes que realizou em território nacional (e que não teria realizado, caso se tivesse deslocado ao estrangeiro), o Autor não obteve quantia idêntica ou superior.

Parece-nos, portanto, em face do exposto, que o facto constante do ponto 64 não pode considerar-se provado.


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Matéria de facto provada

A matéria de facto provada, tendo em conta as alterações efectuadas, é a seguinte:

1) No dia 09 de Dezembro de 2005, pelas 21 horas e 30 minutos, ocorreu um sinistro no IC2, ao km 118,600 – localidade de Azóia, concelho de Leiria (facto assente A).

2) Nesse sinistro foram intervenientes os seguintes veículos:

- Motociclo com a matrícula (...) JM, conduzido por S... ;

- Automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula (...) -JG, conduzida por A... (facto assente B).

3) Por contrato celebrado com E... – Companhia de Seguros, S.P.A., S... havia transferido para aquela a sua responsabilidade pelos danos causados em virtude de sinistro causado pelo motociclo de matrícula (...) JM, titulado pela apólice n.º (...) (facto assente C).

4) Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1), o motociclo circulava no IC2, no sentido sul – norte, circulava pela hemifaixa da direita do IC2, atento o sentido de marcha sul-norte (factos assentes D e E).

5) C... e D... , nascidos em 25 de Maio de 1992 e 22 de Outubro de 1997, respectivamente, são filhos de A... e B... (facto assente F).

6) À data do sinistro, A... tinha 38 anos de idade, tendo nascido em 19/05/1967 (facto assente G).

7) O local do sinistro insere-se numa estrada em linha recta e fica próximo de semáforos com passagem assinalada na faixa de rodagem para a travessia de peões, seguido de entroncamento à direita para a Rua Casal Pombal, atento o sentido de marcha sul-norte (resposta ao art. 1.º da base instrutória).

8) Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1), A... seguia no sentido sul-norte (resposta ao art. 2.º da base instrutória).

9) Junto aos semáforos referidos em 7), A... embateu com o veículo por si conduzido na traseira do veículo de matrícula (...) JZ, que parara perante o sinal amarelo dos semáforos (resposta ao art. 3.º da base instrutória).

10) A viatura que A... conduzia ficou imobilizada na hemifaixa da direita do IC2, antes dos semáforos (resposta ao art. 4.º da base instrutória).

11) Após, A... saiu do veículo a fim de sinalizar o embate (resposta ao art. 5.º da base instrutória).

12) S... não se apercebeu de que a viatura JG estava imobilizada na mesma hemifaixa, nem da presença de A... fora do carro (resposta ao art. 6.º da base instrutória).

13) Tendo-a atropelado quando esta se encontrava a colocar o triângulo de pré-sinalização na via (resposta ao art. 7.º da base instrutória).

14) S... acabou por embater com a frente do motociclo na parte lateral direita do veículo conduzido por A... (resposta ao art. 8.º da base instrutória).

15) O atropelamento e o embate subsequente ocorreram na hemifaixa da direita do IC2, atento o sentido de marcha sul-norte, tudo sem que S... tivesse efectuado qualquer travagem (resposta aos arts. 9.º e 10.º da base instrutória).

16) Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1) era de noite, e o tempo estava seco (resposta aos arts. 11.º e 12.º, da base instrutória).

17) O limite de velocidade naquele local é de 50 km/hora (resposta ao art. 13.º da base instrutória).

18) No momento do embate e nos instantes que o precederam a autora sofreu um enorme susto, e dada a violência que caracterizou o embate e carácter imprevisto do mesmo, a autora receou pela vida, tendo sofrido dores muito intensas em todas as partes do corpo atingidas, acabando por perder os sentidos.

19) A... foi transportada de urgência para o Hospital de Santo André, em Leiria, onde ficou internada de 09 de Dezembro de 2005 até 02 de Fevereiro de 2006, tendo sido submetida a cirurgia em 31 de Dezembro de 2005 (resposta aos arts. 14.º e 15.º da base instrutória).

20) Foi depois transferida para a Clinigrande – Clínica da Marinha Grande, onde esteve internada até à alta médica da Clinigrande em 01 de Abril de 2006 (resposta ao art. 16.º da base instrutória).

21) Devido ao atropelamento, A... sofreu:

• Fractura com afundamento do acetábuloe esquerdo;

• Pneumotorax traumático;

• Fissura na traqueia subglótica em ligação com enfisema subcutâneo torácico;

• Fractura isquiopúbica esquerda;

• Fractura do punho direito;

• Gonartrose do joelho esquerdo;

• Fotofobia com midriase à esquerda;

• Alterações ginecológicas;

• Amenorreia;

• Parestesias dos membros superiores;

• Claudicação da marcha à esquerda;

• Limitação da mobilidade da anca esquerda: rotação interna de 20º e rotação externa de 30.º;

• Dores na interlinha interna do joelho esquerdo;

• Instabilidade articular moderada do joelho esquerdo (meniscose);

• Cicatriz de aspecto operatório na face externa da anca e coxa com 24 cm de comprimento (resposta ao art. 17.º da base instrutória).

22) Logo após o embate, sem prejuízo do facto 18), teve perda de conhecimento, mas depois recuperou os sentidos (resposta ao art. 18.º da base instrutória).

23) Fez fisioterapia durante cerca de um ano (resposta ao art. 19.º da base instrutória).

24) Estas lesões determinaram um período de doença fixável em 506 dias, sendo 210 com afectação da capacidade de trabalho geral e profissional, de acordo com a perícia de avaliação do dano corporal em Direito Penal de fls. 72-73 (resposta ao art. 20.º da base instrutória).

25) Foi-lhe fixada uma IPP (incapacidade parcial permanente) de 27,8%, com possível agravamento futuro de processo degenerativo ao nível da articulação coxo-femural esquerda (coxartrose), no âmbito do processo de trabalho 1.287/06.0TTLRA do 2.º Juízo do Tribunal do Trabalho de Leiria (resposta ao art. 21.º da base instrutória).

26) Em Julho de 2006, A... foi operada ao joelho esquerdo para miniscectomia parcial interna (resposta ao art. 22.º da base instrutória).

27) Dirigiu-se à urgência do Hospital de Santo André em 25 de Outubro de 2007, com dores na anca e bacia (resposta ao art. 23.º da base instrutória).

28) Em 17 de Dezembro de 2007, A... apresentava:

• Coxalgia à esquerda;

• claudicação e diminuição de mobilidades;

• Gonalgia à esquerda de carácter mecânico;

• Instabilidade articular e dificuldade em colocar-se de cócoras;

• Fotofobia;

• Cicatriz cirúrgica na anca, coxa e joelho esquerdos, tendo-lhe sido atribuída uma IPP (incapacidade parcial permanente) de 32,1%, de acordo com o relatório de fls. 23-24 (resposta aos arts. 24.º e 25.º da base instrutória).

29) Sofreu e sofre dores intensas, incluindo enxaquecas e dores lombares (resposta ao art. 26.º da base instrutória).

30) Durante todo o período de tempo decorrido entre o momento do acidente e a sua saída dos Hospitais, bem como nas várias semanas seguintes a autora, sofreu dores muito fortes.

31) Essas dores afectam-na sempre que caminha, não podendo manter-se de pé mais de 30 minutos (resposta ao art. 27.º da base instrutória).

32) Bem como quando faz esforços com os membros inferiores e com a região da anca, principalmente nas mudanças de tempo (resposta ao art. 28.º da base instrutória).

33) Fica com a perna esquerda dormente com muita frequência (resposta ao art. 29.º da base instrutória).

34) Em consequência do acidente, após o atropelamento, A... temeu pela perda da sua vida (resposta ao art. 30.º da base instrutória).

35) Sentiu-se angustiada, ansiosa, desgostosa e desesperada por não poder sair da cama e por, depois, ter de reaprender a movimentar-se (resposta ao art. 31.º da base instrutória).

36) Passou por um grande sentimento de angústia, ansiedade, desgosto e desespero, pois estava com problemas de locomoção motora, dado ter estado imobilizada sem poder sair da cama, pelo que quando começou a fazer a fisioterapia tinha bastantes dores musculares, tendo que reaprender a marchar, movimentar-se e andar.

37) E por não saber se voltaria a poder trabalhar e a conviver com os seus familiares como havia feito até então (resposta ao art. 32.º da base instrutória).

38) Toda esta situação e as sequelas que sofre, deixaram a autora nervosa e angustiada, sofrendo medo e temendo pela vida, pois não sabia em que estado de saúde realmente se encontrava e se poderia voltar a trabalhar e a levar uma vida normal, bem estar com os filhos, marido e familiares, como sucedia até ao acidente.

39) Ficou sem menstruação durante um ano (resposta ao art. 33.º da base instrutória).

40) A autora sofreu também intensamente com a imobilidade a que ficou sujeita e com o afastamento da família, dos amigos, e da sua casa e do seu local de trabalho.

41) A autora sofreu ainda os efeitos das anestesias gerais às quais foi obrigada a submeter-se; sofreu clausura hospitalar e os incómodos relativos aos períodos de acamamento e internamento hospitalar, no Hospital Santo André e Centro Hospital S. Francisco em Leiria e na Clinica da Marinha Grande; sofreu assim privação da sua liberdade pessoal, correspondente aos períodos de acamamento.

42) Durante esses períodos, nomeadamente naqueles em que se manteve em internamento hospitalar, viu-se limitada da companhia dos seus dois filhos, do marido e demais familiares; nesses períodos em que esteve internada, acamada, ou em recuperação, não pôde brincar com os filhos como fazia antes do acidente.

43) …(eliminado)

44) À data do sinistro, A... era uma mulher sã, e não padecia de doenças ou defeitos físicos (resposta ao art. 35.º da base instrutória).

45) Depois do sinistro, deixou de fazer actividades como dançar, correr, andar de bicicleta, saltar, fazer caminhadas, fazer desporto, tendo ficado com diminuição da força muscular e eficácia dos movimentos do membro inferior esquerdo (resposta ao art. 36.º da base instrutória).

46) Antes do embate, A... fazia ginástica duas vezes por semana, e há cerca de um ano antes do embate; por outro lado, gostava particularmente de dançar, designadamente em bailes e festas, sendo por tal facto reconhecida por quem a conhecia.

47) Deixou de se sentir atraente e bonita, sentindo complexos em consequência das diversas cicatrizes e mazelas no corpo, não vestindo calções nem mostrando as pernas (resposta ao art. 37.º da base instrutória).

48) Por causa disso, custa-lhe ir à praia no Verão, ou à piscina (resposta ao art. 38.º da base instrutória).

49) Sente-se uma pessoa “aleijada e deficiente” (resposta ao art. 39.º da base instrutória).

50) Sofreu stress pós-traumático com contornos psico-patológicos, manifestado em medo de andar de automóvel (resposta ao art. 40.º da base instrutória).

51) Pelo menos no ano seguinte à data do embate, evitou passar no local do embate.

52) Tem perturbações de humor e irritabilidade fácil e chora compulsivamente, sobretudo quando recorda o acidente (resposta ao art. 41.º da base instrutória).

53) Sofreu depressão reactiva à situação clínica, e um forte abalo moral e psíquico. É uma pessoa diferente após o embate, mais introvertida, e mais frágil emocionalmente.

54) A autora sentiu e sente, em consequência das dores, aborrecimentos e privações, depressões, infelicidade, sentimento de inferioridade e de diminuição das suas capacidades, bem como profundo desgosto pela sua total dependência de terceiros durante a convalescença, quer para se mover quer para tratar de outros assuntos.

55) Antes do sinistro, A... trabalhava como empregada de escritório (resposta ao art. 42.º da base instrutória).

56) Era ainda ela quem cuidava das refeições caseiras e das tarefas domésticas, como lavar e passar a roupa, lavar a loiça, limpar e arrumar a casa (resposta ao art. 43.º da base instrutória).

57) Passou a precisar da ajuda de uma terceira pessoa para o fazer; A... contratou uma empregada doméstica duas tardes por semana, a quem pagou seis euros à hora, e fez, pelo menos, 12 horas por semana, durante dois anos; posteriormente, foi ajudada por amigas na realização de tarefas domésticas, o que ainda hoje se mantém; sem ajuda de terceira pessoa na realização das tarefas domésticas, a autora realiza tais tarefas com dificuldades acrescidas pelas suas limitações funcionais decorrentes do embate, fazendo tais tarefas com mais dificuldade, demorando mais tempo na sua realização, e com dores, o que lhe causa grande desgosto no prejuízo estético e funcional (resposta aos arts. 44.º, 45.º, 46.º, da base instrutória).

58) Em cada uma das horas em que esteve internada, acamada, ou em recuperação, em consequência do acidente supra referido, a autora A... poderia ao invés ter aproveitado para sair, tomar café, passear, namorar, divertir-se, ou fazer qualquer outra coisa que lhe apetecesse, o que deixou de fazer, em consequência do referido acidente.

59) Em cada uma das horas em que esteve internada, acamada, ou em recuperação, em consequência do acidente supra referido, a autora sentiu-se triste, angustiada, deprimida, perturbada, inquietada, revoltada com a sua situação, por não poder dedicar mais tempo aos filhos e marido como antes do acidente, e receosa com o futuro.

60) B... , à data do sinistro, efectuava serviços ligeiros de transporte de mercadorias por conta de outrem em veículo próprio (resposta ao art. 47.º da base instrutória).

61) Esses serviços eram feitos tanto em território nacional como em países europeus (resposta ao art. 49.º da base instrutória).

62) Devido ao sinistro, B... reduziu o seu horário de trabalho, a fim de poder buscar e levar os filhos à escola e tratar deles, tratando deles á noite, lavando-os, alimentando-os e acarinhando-os, atendendo a situação difícil porque que passavam, face á ausência da mãe, e para realizar parte das tarefas domésticas, e dar instruções à empregada doméstica, face à ausência de A... (resposta ao art. 49.º da base instrutória).

63) Passou a aceitar apenas serviços em território nacional, na zona centro, de modo a demorar poucas horas na sua execução (resposta ao art. 50.º da base instrutória).

64) …(eliminado)

65) B... temeu pela perda da vida de A... , sua esposa de quem muito gosta e estima (resposta ao art. 52.º da base instrutória).

66) Sentiu-se triste, desgostoso e angustiado por causa do sucedido a A... e ao seu agregado familiar (resposta ao art. 53.º da base instrutória).

67) As lesões sofridas pela Autora em consequência do embate e a diminuição do seu desejo sexual decorrente dessas lesões e das dores inerentes originaram uma situação de abstinência sexual por período não concretamente apurado (resposta aos arts. 54.º e 55.º da base instrutória).

68) …(eliminado)

69) Também os filhos do casal, que ficaram sem o apoio materno durante o internamento de A... , temeram pela perda da vida da mãe (resposta ao art. 57.º da base instrutória).

70) Andaram tristes e angustiados, nervosos e ansiosos, pela ausência da sua companhia e carinho durante os meses de internamento (resposta ao art. 58.º da base instrutória).

71) Pois temeram perder a sua mãe, bem como estiveram privados, durante largos meses, da convivência, companhia, cuidados e carinho maternos, tendo passado a época festiva do Natal e Ano Novo de 2005 sem a sua companhia, sentido muito a sua falta, o que os deixou tristes e angustiados.

72) A D... , após o sinistro, foi acompanhada por psicólogo (resposta ao art. 59.º da base instrutória).

73) Teve medo de estar sozinha em casa e de adormecer sem a mãe, vivendo em estado de ansiedade até que esta a fosse buscar à escola ou surgisse em casa (resposta ao art. 60.º da base instrutória).

74) O acidente da progenitora deixou marcas profundas na vida da D... (que a partir dessa altura, desenvolveu angústias maciças de perda, originando um sofrimento colossal, não querendo deixar a mãe sozinha, tendo dificuldade em ver a mãe numa cama de hospital e ainda fantasiando permanentemente situações de ameaça e perigo iminente), que do ponto de vista psico-afectivo, em muito contribuíram para o agravamento das suas angústias, ansiedade e consequentemente da sua situação social e individual, contribuindo para um aumento substancial da sua insegurança emocional.

75) No ano escolar de 2005/2006, e nos que se seguiram, os filhos do casal viram diminuído o seu aproveitamento escolar por falta de empenho e zelo, o que não sucedia antes do sinistro (resposta aos arts. 61.º e 62.º da base instrutória).

76) Depois do sinistro, C... passou a ser uma criança fechada e triste, antipática, irritadiça, revoltada (resposta ao art. 63.º da base instrutória).

77) Com as limitações físicas da Autora, os menores deixaram de ter a sua companhia e colaboração nas mais variadas brincadeiras, como saltar à corda, jogo da macaca, e práticas desportivas, que com ela mantinham, dada a grande cumplicidade existente no agregado familiar, o que se projectou na formação da sua personalidade; Os menores sentiram-se sozinhos e abandonados, perante uma situação para a qual em nada contribuíram e que resultou directamente do acidente em causa nos presentes autos, sofrido pela sua mãe.

78) Ainda hoje se sentem revoltados tristes e amargurados ao ver a sua mãe a chorar e a ver o constante sofrimento físico e emocional, vendo que ela não pode fazer muitas das coisas que gostava de fazer, nomeadamente nas brincadeiras e actividades com os seus filhos.

79) Ainda hoje os filhos sofrem por causa das limitações físicas da mãe e do seu sofrimento emocional (resposta ao art. 65.º da base instrutória).

80) Teor dos relatórios periciais de fls. 178-198, aqui dado por reproduzido, designadamente:

- a data da consolidação das lesões é fixável em 22/05/2007;

- período de défice funcional temporário total fixável em 114 dias;

- período de défice funcional temporário parcial fixável em 416 dias;

- período de repercussão temporária na actividade profissional total fixável em 317 dias;

- período de repercussão temporária na actividade profissional parcial fixável em 213 dias;

- quantum doloris (corresponde à valoração do sofrimento físico e psíquico vivenciado pela vítima durante o período de danos temporários, isto é, entre a data do evento e a cura ou consolidação das lesões) fixável no grau 5/7;

- défice funcional permanente da integridade Físico-Psíquica fixável em 31 pontos;

- Na situação em apreço é de perspectivar a existência de dano futuro (considerando exclusivamente como tal o agravamento das sequelas que constitui uma previsão fisiopatologicamente certa e segura, por corresponder à evolução lógica, habitual e inexorável do quadro clínico), o que pode obrigar a uma futura revisão do caso.

- Na situação em apreço é de perspectivar agravamento das sequelas (artrose em evolução da anca esquerda e/ou eventual rejeição do material de osteossíntese no acetábulo esquerdo), o que poderá obrigar a uma futura revisão do caso.

- Terá dores para o resto da vida, as quais se poderão agravar com o agravamento das sequelas.

- As sequelas descritas são, em termos de repercussão permanente na actividade profissional, sede de esforços acrescidos.

- Dano estético permanente fixável no grau 3/7; após consolidação, cicatriz operatória da face externa da coxa esquerda com 23 cm de comprimento, e cicatriz de 1,5 cm da face interna do joelho esquerdo.

- Sono fragmentado ainda que suportado por psicofármacos. Diminuição da libido. Ideação suicida passiva. A... apresenta um quadro caracterizado por sintomas da linha depressiva que são reportados reactivamente às consequências do acidente de que foi vítima a 09/12/05, e que interferem com a eficiência e funcionamento a nível pessoal, social, e profissional. Esta depressividade é entendível num contexto pós-traumático e deixa perceber uma evolução (neurótica) vital (englobável na rubrica F48.9 da 10.ª Revisão da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas relacionados com a Saúde da Organização Mundial de Saúde, CID-10). Como parte integrante deste quadro apuram-se elementos como tristeza, elevados níveis de ansiedade, diminuição do interesse nas actividades de vida diárias, maior irritabilidade, tendência ao isolamento, dificuldades na concentração, alteração do padrão do sono, e ideação suicida passiva.

81) Os factos supra referidos resultaram do acidente supra referido.

82) Teor da sentença proferida no processo 1.287/06.0TTLRA. 


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Indemnização pelos danos patrimoniais sofridos pela Autora, A... (correspondentes ao valor que teve que pagar a uma empregada doméstica)

Relativamente a esta indemnização, a Apelante apenas contestava a sua atribuição por considerar que não haviam ficado provados os respectivos pressupostos de facto e impugnando, para o efeito, a decisão proferida relativamente ao ponto 57 da matéria de facto.

Improcedendo essa pretensão e mantendo-se o citado ponto da decisão e, consequentemente, os pressupostos de facto que fundamentaram a decisão, também terá que se manter a decisão que atribuiu tal indemnização, porquanto, nesta matéria, a Apelante não suscita qualquer questão de carácter jurídico.


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Indemnização pelos danos patrimoniais (lucros cessantes) sofridos pelo Autor, B...

Também no que toca a esta indemnização, a Apelante apenas contestava a sua atribuição com fundamento no erro de apreciação da prova que sustentava ter ocorrido relativamente aos pressupostos de facto que lhe estiveram subjacentes.

E, tendo procedido a argumentação da Apelante – com a consequente eliminação do ponto 64 da matéria de facto –, deixam de subsistir os pressupostos de facto da aludida indemnização, ficando por demonstrar a existência do alegado prejuízo, sob a forma de lucro cessante, que teria sido sofrido pelo Autor.

Impõe-se, portanto, revogar a decisão, na parte em que concedeu a aludida indemnização.


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Indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pela Autora, A...

Relativamente a esta matéria, a Apelante, além de impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto que esteve subjacente a tal indemnização, sustenta que o montante arbitrado sempre seria exagerado, aludindo a diversos acórdãos que, para casos mais graves, fixaram indemnizações inferiores. Sustenta ainda que esse valor é absolutamente arbitrário, na medida em que não foi especificado o critério utilizado para a sua determinação, não foram aferidos o grau de culpabilidade do agente, a situação económica do agente, nem a situação económica do lesado, razão pela qual o Tribunal não teria orientado a sua decisão por um critério equitativo, violando o disposto no artigo 566.º do Código Civil.

Sendo indiscutível, perante a matéria de facto provada, que a Autora sofreu danos de natureza não patrimonial cuja relevância e gravidade justificam a atribuição de uma indemnização à luz do disposto no art. 496º, nº 1, do CC, o que importa agora – porque é essa a questão suscitada no recurso – é apurar o valor da justa indemnização desse dano.

É evidente que estes danos são irreparáveis, no sentido de que não será possível repor a situação no estado anterior à lesão, mediante o pagamento de uma indemnização que seja de valor equivalente ao dano. O apuramento do valor dessa indemnização assume-se, portanto, como tarefa melindrosa por estarem em causa danos que, sendo insusceptíveis de avaliação pecuniária, não podem ser medidos e avaliados por padrões objectivos, tanto mais que a dor e o sofrimento causados por determinado facto, evento ou lesão, não são sentidos da mesma forma e com a mesma intensidade por todas as pessoas.

Estamos, portanto, perante danos em relação aos quais apenas se pode atribuir uma indemnização que, de algum modo, possa corresponder a uma efectiva e justa compensação pelo “mal” que foi causado e que não pode ser eliminado. Como se refere no acórdão do STJ de 29/10/2008, processo 08P3373[8], “…a indemnização por danos não patrimoniais tem por fim facultar ao lesado meios económicos que, de algum modo, o compensem da lesão sofrida, por serem susceptíveis de proporcionar-lhe um lenitivo mitigador do sofrimento causado. Por isso, deverá constituir uma efectiva e adequada compensação, tendo em vista o quantum doloris causado, oferecendo ao lesado uma justa contrapartida que contrabalance o mal sofrido, razão pela qual não pode assumir feição meramente simbólica”. Por outro lado, refere-se ainda no mesmo acórdão, “…na determinação da indemnização há que ter em atenção que a equidade é a justiça do caso concreto, humano, pelo que o julgador deverá ter presente as regras de boa prudência, do bom senso, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida”.

O apuramento do valor da indemnização destes danos há-de ser feita, portanto e como determinam os arts. 496º, nº 3 e 494º do CC, com recurso à equidade e tendo em atenção o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso, sem deixar de ter presente que a equidade, enquanto critério de julgamento e decisão, não equivale a arbitrariedade ou subjectividade, significando apenas que o juiz não está adstrito e vinculado a critérios de estrita legalidade (rigoroso respeito pelos critérios normativos), julgando e decidindo de acordo com razões de conveniência e oportunidade de forma a alcançar a justiça do caso concreto em que a equidade se funda.

No juízo de equidade que há-de presidir à fixação dessa indemnização, importará ter presente que o que está em causa é proporcionar ao lesado uma compensação monetária pelo sofrimento e dor que lhe foram causados e que não podem ser eliminados e, portanto, o respectivo valor não deverá assumir uma feição meramente simbólica – sob pena de se menosprezar o sofrimento alheio – devendo corresponder a uma efectiva e justa contrapartida que, de alguma forma, atenue ou ajude a suportar um dano que, na realidade, não pode ser eliminado e reparado. Mas, se é certo que tal indemnização não pode assumir uma feição meramente simbólica, certo é também que tal indemnização não pode ser fixada em valor superior àquele que constitui a justa e adequada compensação pelos danos efectivamente sofridos.

Nesse juízo de equidade, importa considerar a gravidade do dano, bem como as circunstâncias a que alude o art. 494º e, além das regras de bom senso e da criteriosa ponderação das realidades da vida, não nos poderemos alhear da prática jurisprudencial e da forma como esse dano tem sido avaliado pelas decisões proferidas nos nossos tribunais.

Feitas estas considerações de carácter geral e entrando na análise do caso concreto que é submetido à nossa apreciação, atentemos na matéria de facto que, com relevância nesta matéria, foi considerada provada.

Além das concretas lesões físicas que a Autora sofreu e que estão discriminadas na matéria de facto, a Autora esteve internada – primeiro no Hospital e depois numa clínica – durante cerca de quatro meses; foi submetida a duas intervenções cirúrgicas; sofreu um longo período de doença (um total de 506 dias, 210 dos quais com afectação da capacidade de trabalho geral e profissional); fez fisioterapia durante cerca de um ano; sofreu muitas dores, tendo sido fixado em grau 5 numa escala de 7 o quantum doloris correspondente à valoração do sofrimento físico e psíquico; ficou com duas cicatrizes determinantes de um dano estético permanente fixável em grau 3, numa escala de 7; além de todos os incómodos, sofrimentos, receios e angústias que são inerentes a um acidente, a um internamento, à falta de mobilidade e às limitações daí decorrentes, ficou afectada das sequelas descritas na matéria de facto que lhe determinaram – e continuarão a determinar durante toda a vida – dores fortes que a afectam sempre que caminha, quando faz esforços com os membros inferiores e com a anca e que não lhe permitem manter-se de pé durante muito tempo; além de ter ficado sem menstruação durante um ano, a Autora deixou de poder executar actividades que antes praticava (como seja fazer desporto e dançar), a Autora ficou com o sono fragmentado e com diminuição da libido, apresentando um quadro caracterizado por sintomas da linha depressiva e que interferem com a sua eficiência e funcionamento a nível pessoal, social e profissional, tendo-lhe sido atribuído um défice funcional permanente de 31 pontos.

Perante este quadro factual, é evidente que a Autora sofreu danos de natureza não patrimonial de substancial gravidade.

Mas, ainda assim e sem qualquer desconsideração pelos danos que a Autora sofreu – e que foram realmente graves – parece-nos que a indemnização de 150.000,00€ que a decisão recorrida lhe atribuiu é exagerada e desproporcionada relativamente aos danos sofridos, designadamente quando comparada com as indemnizações que normalmente são atribuídas pelos nossos tribunais, indemnizações estas que, naturalmente, também têm que ser ponderadas.

E, para demonstrar esse exagero, basta atentar, desde já, no Acórdão do STJ de 12/12/2013[9], onde se atribuiu precisamente uma indemnização daquele valor (150.000,00€) numa situação em que os danos assumiram uma gravidade bem superior aos que foram sofridos pela aqui Autora. Com efeito, no caso tratado no aludido acórdão, o lesado havia sofrido lesões físicas gravosas que culminaram na amputação de um membro inferior; foi submetido a diversos internamentos e procedimentos cirúrgicos ao longo de um período de quase três anos; fez tratamentos de fisioterapia com reeducação funcional, ficando com uma IPG inicial de 50% e a incapacidade definitiva para qualquer trabalho, com absoluta e permanente dependência de terceiros para a realização das actividades pessoais diárias, com degradação plena e irremediável do padrão e qualidade de vida; um quantum doloris de grau 6 numa escala de 7; um dano estético de grau 5 na escala de 7 e gravíssimas sequelas, quer ao nível da capacidade de movimentação e autonomia, quer ao nível psíquico, consubstanciadas em depressão pós amputação. Ora, não obstante a gravidade das lesões sofridas pela Autora, parece-nos claro que – felizmente – elas não assumem as proporções da situação retratada no citado acórdão, sendo evidente, por isso, que o valor de 150.000,00€ - atribuído pela sentença recorrida – é claramente excessivo.

Atente-se também no Acórdão da Relação do Porto de 31/03/2009[10], proferido no processo nº 3138/06.7TBMTS.P1 (que foi confirmado pelo Ac. do STJ de 22/10/2009[11]), onde foi atribuída uma indemnização de 45.000,00€, numa situação em que a vítima esteve em coma, foi submetida a cirurgia, sofreu graves limitações temporárias, na medida em que, além de ter ficado totalmente dependente de terceiros, inclusive para a sua higiene, ida à casa de banho e para comer ou beber, usou fraldas durante um ano e ficou com uma incapacidade de 25%.

No acórdão do STJ de 19/02/2015[12] (processo nº 99/12.7TCGMR.G1.S1) considerou-se que: “é adequada a quantia de €20 000 arbitrada a título de danos não patrimoniais tendo em atenção que (i) à data do acidente o autor tinha 43 anos de idade; (ii) em consequência di acidente sofreu traumatismo do ombro direito, com fractura do colo do úmero, fractura do troquiter, traumatismo do punho direito, com fractura do escafóide, traumatismo do ombro esquerdo, com contusão, (iii) foi submetido a exames radiológicos e sujeito a imobilização do ombro com “velpeau”; (iv) foi seguido pelos Serviços Clínicos em Braga e submetido a uma intervenção cirúrgica ao escafóide; (v) foi submetido a tratamento fisiátrico; (vi) mantém material de osteossíntese no osso escafóide; (vii) teve de permanecer em repouso; (viii) ficou com cicatriz com 5 cms, vertical, na face anterior do punho; (ix) teve dores no momento do acidente e no decurso do tratamento; e (x) as sequelas de que ficou a padecer continuam a provocar-lhe dores físicas, incómodos e mal-estar que o vão acompanhar toda a vida e que se acentuam com as mudanças do tempo, sendo de quantificar o quantum doloris em grau 4 numa escala de 1 a 7”.

Veja-se ainda o Ac. STJ de 10/10/2012[13] – proferido no processo nº 632/2001.G1.S1 – onde a indemnização por danos não patrimoniais foi fixada em 45.000,00€, estando em causa uma vítima com 19 anos, que sofreu fractura dos dentes e de ambas as pernas, suportou um internamento de oitenta dias e três intervenções cirúrgicas, andou de cadeira de rodas, esteve totalmente dependente de terceiros, ficou com várias cicatrizes na perna, com perda de massa óssea, encurtamento da perna e marcha claudicante, com um período de incapacidade para o trabalho de 1629 dias, com um quantum doloris de 5,5 numa escala de 7, um dano estético de 4 numa escala de 7, um prejuízo de afirmação pessoal de 2/5 e uma IPG de 17,06%.

Veja-se ainda o acórdão do STJ de 07/05/2014[14], onde se atribuiu uma indemnização de 80.000,00€, num caso em que a vítima tinha apenas 25 anos e em que, apesar de o tratamento não ter sido tão penoso como o da Autora, ficou com sequelas que, na nossa perspectiva, são bem mais graves, porquanto, além de as lesões terem demandado um período longo até à estabilização, a vítima ficou com paralisia parcial, com parestesias nos dedos da mão esquerda, na metade esquerda dos lábios, hemilíngua e hemiface esquerda; passou a sentir dormência na cara e ponta dos dedos e lado esquerdo, com dificuldades em comer e mastigar principalmente do lado esquerdo; perdeu força na mão, braço e perna esquerdas; tem desequilíbrios na perna esquerda; abandonou o desporto (sendo que era jogadora federada) e a dança; sofre irritabilidade, insónias, alguma perda de memória e coordenação de ideias, tendo momentos de grande depressão e ansiedade; ficou com duas cicatrizes de 6X2 cm na face anterior duma das pernas, não indo, por isso, à praia, nem usando calções e saias.

Assinale-se ainda o Acórdão da Relação de Coimbra de 10/12/2013[15], onde se fixou uma indemnização de 50.000,00€ para uma situação que é descrita nos seguintes termos:  “…a autora, por força do facto ilícito – de que resultou perigo para a vida - sofreu fractura exposta dos ossos da perna esquerda e do fémur esquerdo e traumatismos toráxico, crâneo-encefálico e na coluna vertebral e, para tratamento das lesões do membro inferior esquerdo foi submetida a duas intervenções cirúrgicas; a autora passou horas de agonia e angústia, sem saber se conseguiria sobreviver, durante as quais sofreu dores, quer do ponto de vista físico, quer psicológico; a autora apresenta sequelas definitivas no membro inferior esquerdo, nomeadamente o seu encurtamento em, pelo menos, 3 centímetros, o que lhe causa dificuldades no equilíbrio e na locomoção em geral, sofre, de forma cíclica, de dores ao nível da coluna vertebral, que lhe causam perturbações do sono e cansaço físico durante todo o dia, tem dificuldades, e não consegue correr, dançar e praticar desporto; apresenta cicatrizes extensas e inestéticas, que a levam a abster-se de usar roupa que não as esconda, como saias e calções, e de frequentar a praia, piscinas, parques lúdicos e ginásios; mercê das sequelas a autora sente desgosto, inibição e complexos; durante o período de convalescença a autora sofreu choque emocional traduzido em pânico, angústia e desespero, dificuldades em adormecer, pesadelos, perante a perspectiva da necessidade de recorrer a intervenções cirúrgicas que lhe causariam o encurtamento do membro inferior esquerdo e, ainda hoje, sofre pesadelos nos quais reproduz o acidente, e, consequentemente, chora, sente-se angustiada e deprimida; a autora que era uma mulher saudável, amante da vida, que desempenhava com gosto as suas tarefas profissionais e domésticas, patenteia alterações nervosas e psicológicas, carecendo de recorrer a médicos especialistas do foro neuro-psicológico e ao uso diário de medicamentos calmantes, analgésicos, ansiolíticos e anti-depressivos, continuando a necessitar de ajuda médica e medicamentosa, que se prolongará durante a sua vida”.

Não obstante se reconheça a relevância e gravidade do dano suportado pela Autora – designadamente as dores que sentiu e sente, o período de internamento, os exames, tratamentos e intervenções cirúrgicas a que foi sujeita, bem como os incómodos, sofrimentos, angústias e receios que são inerentes a essas situações, a verdade é que, ainda que tenha ficado com sequelas que condicionam e limitam a sua qualidade de vida – seja ao nível físico, por via das dores que sente quando efectua determinados movimentos ou permanece em pé, seja ao nível emocional – a Autora, ressalvando, naturalmente, o período inicial em que permaneceu internada, não ficou (felizmente e ao contrário do que acontece nalguns dos casos a que se reportam os acórdãos supra citados) dependente de terceiros para a realização das tarefas básicas (como sejam a realização da sua higiene) e não ficou impedida ou limitada de se deslocar pelos seus próprios meios e de fazer a sua vida normal, ainda que tenha dificuldade em executar determinados movimentos.

Parece-nos, portanto, em face do exposto, que o valor de 150.000,00€ é desproporcionado face aos danos sofridos.

E, nada existindo de relevante a assinalar e a considerar nos termos do art. 494º do CC, parece-nos que o valor razoável e ajustado para compensar a Autora pelos danos não patrimoniais que sofreu não poderá ser superior a 75.000,00€, tendo em conta, designadamente, os valores normalmente adoptados pelas diversas decisões que sobre esta matéria têm sido proferidas pelos nossos tribunais relativamente às mais diversas situações (de gravidade variável), sem deixar de ponderar que a prática jurisprudencial é um elemento relevante que contribui para a uniformização de critérios e, como tal, para reduzir as injustiças decorrentes da atribuição de indemnizações com grande disparidade para situações semelhantes e sem esquecer, naturalmente, as particularidades do caso concreto que o distinguem dos demais.


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Indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pelos Autores, B... , C... e D...

No que toca a esta matéria, a Apelante, além de impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto (questão que já apreciámos), sustenta que tais indemnizações, além de excessivas, estão em contradição com o Direito vigente por visarem indemnizar um dano reflexo dos familiares da vítima, o que não é consentido pelo art. 496º, nº 2, do CC, citando diversos acórdãos que assim o consideraram.

Dispõe, efectivamente, o citado art. 496º - no seu actual nº 4 (por força da redacção introduzida pela Lei nº 23/2010, de 30/08) que corresponde ao anterior nº 3 – que “…no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos do número anterior”.

Resulta, portanto, da citada disposição que as pessoas ali mencionadas (familiares da vítima) apenas poderão ter direito a indemnização por danos não patrimoniais em caso de morte da vítima, não lhes assistindo o direito de serem indemnizadas pelos danos não patrimoniais que sofrem quando a vítima sobrevive. O legislador optou, portanto – e, ao que parece, conscientemente – por recusar qualquer tutela aos direitos de natureza não patrimonial de qualquer outra pessoa que não seja a vítima directa do acto lesivo, quando esta se mantém viva.

Mas não obstante esse facto, começou a surgir – na doutrina e na jurisprudência – o entendimento de que a compensação dos danos não patrimoniais sofridos por pessoa diferente da vítima deveria ser estendida – com base numa interpretação extensiva ou actualista da norma citada – aos casos em que, apesar de a vítima se manter viva, os danos sofridos pelos familiares mais próximos assumem um especial relevo ou gravidade.

A controvérsia jurisprudencial que se criou a propósito dessa questão veio dar origem ao Acórdão do STJ nº 6/2014[16], onde se uniformizou jurisprudência nos seguintes termos:

Os artigos 483.º, n.º 1 e 496.º, n.º 1 do Código Civil devem ser interpretados no sentido de abrangerem os danos não patrimoniais, particularmente graves, sofridos por cônjuge de vítima sobrevivente, atingida de modo particularmente grave”.    

 Ainda que os acórdãos de Uniformização de Jurisprudência não tenham carácter vinculativo para os Tribunais – ao contrário do que acontecia com os anteriores Assentos – isso não significa que o julgador possa e deva tomar as suas decisões de acordo com a interpretação da lei que entende ser a mais correcta com total desconsideração pela jurisprudência uniformizada, sendo que, como refere Abrantes Geraldes[17], a jurisprudência uniformizada do STJ, embora não seja vinculativa, tem força persuasiva e, como tal, deverá merecer da parte de todos os juízes uma atenção especial. Assim, afirma o citado autor, “…o respeito pela qualidade e pelo valor intrínseco da jurisprudência uniformizada do STJ conduzirá a que só razões muito ponderosas poderão justificar desvios de interpretação das normas jurídicas em causa (v.g. violação de determinados princípios que firam a consciência jurídica ou manifesta desactualização da jurisprudência face à evolução da sociedade)”. E, continua, “a discordância, a existir, deve ser antecedida de fundamentação convincente, baseada em critérios rigorosos, em alguma diferença relevante entre as situações de facto, em contributos da doutrina, em novos argumentos trazidos pelas partes e numa profunda e serena reflexão interior”.

A decisão que uniformiza jurisprudência deve, portanto, ser respeitada, a não ser que existam novos factos, argumentos, razões ou circunstâncias que, não tendo sido considerados no acórdão uniformizador, possam justificar uma nova e diferente decisão e, porque nada disso acontece no caso sub judice, terá que ser respeitado e acolhido o entendimento firmado pelo STJ.

É certo, portanto, que a aplicação e interpretação do citado art. 496º não deverá excluir a possibilidade de compensação dos danos não patrimoniais que são sofridos pelo cônjuge da vítima sobrevivente e, como expressamente se considerou no aludido Acórdão, ainda que a decisão proferida apenas se reporte ao cônjuge, ela não poderá “...ser interpretada como excluidora de outros”, sendo certo que, “…para além do cônjuge, outros podem e devem beneficiar da tutela deste tipo de danos”, como será, naturalmente, o caso dos filhos.

Todavia, ainda que, em abstracto, não possa ser excluída a possibilidade de indemnizar os danos não patrimoniais sofridos pelo cônjuge e filhos da vítima, a verdade é que, como também decorre do aludido acórdão, essa possibilidade está limitada aos danos particularmente graves, como evidenciam os seguintes excertos:

Assim como não podemos abrir a compensabilidade a todo um “coro de chorosos”, também não a podemos abrir a todo o dano não patrimonial que, no caso do lesado, justificaria a tutela do direito.

Toda a argumentação que justifica a interpretação actualista que vimos assumindo tem como pressuposto que os danos do lesado sejam particularmente graves e que tenham determinado no outro sofrimento muito relevante. Já Vaz Serra, no apontado texto da RLJ, justificava a sua posição com o caso dum filho que é atingido tão gravemente que os pais têm sofrimento não inferior ao que teria lugar se tivesse falecido. Do mesmo modo os textos internacionais citados supra são especialmente limitadores”.

Temos de ter sempre presente que estamos a abrir uma brecha na dogmática geral de que é a vítima, se sobreviver, a pessoa a indemnizar. Não podemos interpretar o preceito acabado de referir como se dissesse “Na fixação das indemnizações …”.

Por isso, entendemos dever reservar a extensão compensatória apenas para os casos de particular gravidade”.

E, como expressamente ali se refere, essa particular gravidade é exigida em duas vertentes: “uma, quanto aos ferimentos da vítima sobrevivente e outra quanto ao sofrimento do cônjuge”.

É certo, portanto, em face do exposto, que os danos não patrimoniais sofridos pelo cônjuge e filhos da vítima sobrevivente apenas podem e devem ser indemnizados se as lesões sofridas pela vítima assumirem particular gravidade e se o sofrimento do cônjuge e/ou filhos se assumir também com contornos de particular e especial gravidade, devendo, na nossa perspectiva, limitar-se aos casos em que a dor, o sofrimento, as limitações e as privações impostos aos familiares da vítima, como decorrência de graves lesões por esta sofridas, são de tal modo graves e relevantes que seria chocante a sua total desconsideração pelo Direito.

Não será fácil, contudo, estabelecer a exacta delimitação dos danos cuja particular gravidade justifica aquela indemnização, tarefa que, aliás, terá que ser feita de forma casuística e tendo em conta as concretas circunstâncias de cada caso.

Há casos, naturalmente, em que a extrema gravidade dos danos sofridos pelos familiares próximos da vítima não deixa margem para dúvidas, como será o caso, da imensa dor e sofrimento causado a familiares (pais, filhos, cônjuge) com as lesões graves e totalmente incapacitantes sofridas pelo familiar que perdeu, de forma irreversível, toda a sua autonomia, situações em que, além da dor e sofrimento que essa situação lhes provoca, esses familiares também ficam afectados na sua liberdade pela necessidade de cuidar, de forma permanente, do seu familiar tendo em vista a satisfação das suas necessidades básicas.

Mas outras situações existem em que tal conclusão não é linear.

No caso que analisamos, os danos sofridos são, no essencial, comuns e inerentes a toda e qualquer situação de acidente e subsequente internamento; um acidente implica, na maioria dos casos, algum receio pela perda da vida, porquanto, pelo menos até ao momento em que a vítima seja observada por um médico, não será fácil ter a percepção exacta da gravidade dos ferimentos e da sua potencialidade para provocar a morte e um internamento hospitalar provoca sempre incómodos relevantes e alterações substanciais no quotidiano e na organização do agregado familiar, além de determinar uma privação dos contactos regulares, em termos físicos e afectivos, com a vítima. Até mesmo a abstinência sexual (circunstância que, no âmbito de uma relação matrimonial, poderá determinar um dano especialmente grave, na medida em que, além da frustração e falta de realização pessoal, interfere com a qualidade da relação afectiva do casal) é inerente à grande maioria das lesões, designadamente, quando exigem internamento hospitalar, desde que, evidentemente, ela se circunscreva ao período de internamento e recuperação e não se reconduza a um dano de natureza permanente ou muito prolongada. Daí que admitir a compensação destes danos equivaleria, na nossa perspectiva, a alargar de forma excessiva (a todos os acidentes que envolvessem lesões e internamento hospitalar) uma possibilidade que o legislador havia pretendido restringir aos casos de morte da vítima e que tão pouco parece integrar-se na doutrina formulada pelo Acórdão Uniformizador de Jurisprudência acima assinalado.

Note-se que, no caso tratado no aludido Acórdão, a vítima, além de outras lesões e sequelas, sofreu amputação do membro pelo terço médio da coxa, ficou com uma incapacidade de 80%, precisava de ajuda permanente de uma terceira pessoa que o ajudasse a vestir, a tomar banho, a barbear, a acompanhá-lo para ir tomar um café, passando a ali autora a viver para o marido que não era capaz de sair de casa sozinho e, ainda assim, podemos ali encontrar votos de vencido com a justificação de que esses danos não assumiam a particular gravidade que seria necessária para que fosse admissível a sua compensação.

 Ora, no caso sub judice, a gravidade das lesões sofridas pela Autora, A... , e a gravidade dos danos sofridos pelos demais Autores fica muito aquém, porquanto, não obstante as dores que sente e a dificuldade de execução de alguns movimentos, a Autora não ficou privada de nenhuma parte do seu corpo, não ficou privada da sua liberdade e autonomia e não ficou dependente de terceira pessoa para todas as tarefas básicas do seu dia-a-dia (ressalvando, naturalmente, o período de internamento hospitalar e sem prejuízo de necessitar ainda de alguma ajuda na execução de algumas tarefas que lhe exijam mais esforço); por outro lado, essas lesões e sequelas não têm aptidão para causar aos demais Autores um desgosto e sofrimento de particular e extrema gravidade e tão pouco são idóneas para lhes determinar uma alteração significativa no seu quotidiano e na sua liberdade pessoal. Note-se, por outro lado, que não decorre da matéria de facto provada que a situação de abstinência sexual originada pelo acidente tenha ultrapassado o período correspondente ao internamento e à recuperação das lesões sofridas – período em que ela surge como uma situação normal e comum a todos os acidentes que provoquem lesões e internamento – e nada de concreto se provou que permita concluir que essa situação tenha carácter permanente ou prolongado e que, nessa medida, possa afectar, em termos especialmente graves, a qualidade da relação afectiva e matrimonial ou a realização pessoal do Autor.

Diremos, em suma, que, não obstante a indiscutível relevância e gravidade dos danos não patrimoniais sofridos pelo marido e filhos da vítima, esses danos circunscrevem-se, fundamentalmente, com essa gravidade, ao período do acidente e subsequente internamento; tais danos perdurarão, naturalmente, após esse período (pela percepção das dores, dificuldades e limitações sentidas pela vítima) mas com muito menos intensidade e gravidade; a gravidade desses danos assume, portanto, um carácter temporário (que é comum à maior parte das lesões que envolvem internamento), sem que os mesmos possam ser considerados como particularmente graves, ao ponto de justificarem a atribuição de uma indemnização de acordo com o entendimento firmado pelo STJ (entendimento este que – refira-se – já vai muito além daquilo que foi previsto na lei, onde se limita o direito de indemnização por danos não patrimoniais dos familiares aos casos de morte da vítima[18]). E, ainda que a vítima (a Autora, A... ) tenha sofrido lesões graves que lhe determinaram um período de internamento de quatro meses e um período de recuperação de duração muito relevante, a verdade é que as lesões ou sequelas que subsistem, de forma permanente, após esse período, não a incapacitam de forma grave e não limitam, de forma substancial, a sua autonomia e independência e, portanto, ainda que correspondam a danos graves que justificam, indiscutivelmente, a atribuição de uma indemnização à aludida Autora, não assumem a particular gravidade que seria necessária para que justificassem a atribuição de uma indemnização por danos não patrimoniais ao seu marido e filhos.   

Parece-nos, portanto, em face do exposto, que os danos sofridos pelos Autores (marido e filhos da vítima) não assumem a particular gravidade que é exigida, de acordo com a jurisprudência uniformizada pelo STJ, para que possam e devam ser indemnizados e tão pouco se pode afirmar que a Autora, A... (directamente lesada pelo acidente), tenha sido atingida de modo particularmente grave, como também exige aquela jurisprudência.

Daí que, de acordo com a jurisprudência firmada pelo STJ, tais danos não possam ser indemnizados.

Impõe-se, portanto, em face do exposto, revogar parcialmente a sentença recorrida, condenando-se a Ré a pagar à Autora, A... , a quantia de 75.000,00€ a título de indemnização pelos danos não patrimoniais e a quantia de 7.488,00€ a título de indemnização pelos danos patrimoniais correspondentes ao valor que pagou a uma empregada doméstica, absolvendo-se a Ré do demais que havia sido peticionado.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

I – Estando em causa uma acção interposta por vários autores que se apresentam a reclamar uma quantia determinada para cada um deles – tendo em vista a indemnização de danos que, embora tenham uma causa comum, são danos próprios de cada um deles – os limites quantitativos do pedido que o Tribunal não pode exceder (art. 609º, nº 1, do CPC) são aferidos em face do pedido formulado por cada um dos autores, não podendo o Tribunal atribuir a um deles uma quantia superior àquela que o mesmo peticionou com o pretexto de essa condenação não ultrapassar o valor global dos pedidos que por todos havia sido formulado.

II – Ainda que se materializem na execução de uma prestação de carácter pecuniário de idêntica natureza, os pedidos de indemnização por danos emergentes futuros e de indemnização por perda de capacidade aquisitiva decorrente de dano biológico correspondem a pedidos ou pretensões diferentes, que assentam em pressupostos de facto diferentes e que, como tal, radicam em causas de pedir diferentes.

III – Assim, pedindo o lesado uma indemnização por danos emergentes futuros (correspondentes às quantias que, desde o sinistro e até ao fim da sua vida, teria que despender com a contratação de uma empregada doméstica), não pode o Tribunal – sob pena de condenação em objecto diverso do que havia sido pedido e correspondente nulidade da sentença – atribuir-lhe uma quantia equivalente mas para indemnização de um dano totalmente diferente e que o lesado não havia invocado (o dano decorrente da perda de capacidade aquisitiva por força do dano biológico, configurado e apurado como um dano patrimonial futuro qualificável como lucros cessantes e com base em pressupostos de facto que não haviam sido invocados).

IV – Tendo em conta o entendimento firmado pelo Acórdão do STJ para Uniformização de Jurisprudência nº 6/2014, apenas podem/devem ser indemnizados os danos não patrimoniais sofridos pelo cônjuge da vítima sobrevivente que sejam particularmente graves e desde que a vítima tenha sido atingida de modo particularmente grave (entendimento esse que deve considerar-se extensível aos filhos da vítima).

 V – Para os efeitos aí previstos, não poderão ser considerados como particularmente graves, os danos não patrimoniais sofridos pelos aludidos familiares da vítima que decorrem, essencialmente, dos receios, sofrimento, incómodos e privação do contacto regular, em termos físicos e afectivos, com a vítima, emergentes da produção das lesões e subsequente internamento (ainda que este tenha tido a duração de quatro meses), quando as lesões ou sequelas que subsistem, de forma permanente, após esse período, não incapacitam a vítima de forma grave e não limitam, de forma substancial, a sua autonomia, liberdade pessoal e independência; a maior gravidade desses danos – que, no essencial, são comuns à generalidade das lesões que envolvem internamento – circunscreve-se ao período do acidente, internamento e recuperação, assumindo, portanto, um carácter temporário (ainda que esse internamento e recuperação não tenham sido muito curtos), não subsistindo, com especial gravidade, após esse período e não assumindo, por isso, a particular gravidade que é exigida pelo Acórdão supra citado para que se justifique a sua indemnização.


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IV.
Pelo exposto, concedendo-se parcial provimento ao presente recurso, revoga-se parcialmente a sentença recorrida e, em consequência:
► Condena-se a Ré a pagar à Autora, A... , a quantia de 75.000,00€ (setenta e cinco mil euros) a título de indemnização pelos danos não patrimoniais e a quantia de 7.488,00€ (sete mil quatrocentos e oitenta e oito euros) a título de indemnização pelos danos patrimoniais correspondentes ao valor que pagou a uma empregada doméstica, acrescidas de juros nos termos que constam da sentença recorrida;
► Absolve-se a Ré do demais que havia sido peticionado.

As custas do presente recurso e as devidas em 1ª instância serão suportadas pelos Autores e pela Ré, na proporção do respectivo decaimento.
Notifique.

Maria Catarina Gonçalves (Relatora)

Nunes Ribeiro

Helder Almeida


[1] Diploma a que se reportam as demais disposições legais que venham a ser citadas sem menção de origem.
[2] Cfr. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed., Revista e Actualizada, pág. 675.
[3] Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, reimpressão, pág. 52.
[4] Ob. Cit., pág. 56.
[5] Cfr. Acórdão do STJ de 14/11/2006, processo nº 06B3290, disponível em http://www.dgsi.pt.
[6] Proc. nº  189/11.3TBCBR.C1, disponível em http://www.dgsi.pt.
[7] Ob. Cit., pág. 70.
[8] Disponível em http://www.dgsi.pt.
[9] Proferido no processo nº 105/08.0TBRSD.P1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt.
[10] Disponível em http://www.dgsi.pt.
[11] Também disponível em http://www.dgsi.pt.
[12] Disponível em http://www.dgsi.pt.
[13] Disponível em http://www.dgsi.pt.
[14] Proferido no processo nº 436/11.1TBRGR.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt.
[15] Proferido no processo nº 53/10.3TBPNH.C1, disponível em http://www.dgsi.pt.
[16] Publicado no DR. I Série, de 22/05/2014.
[17] Recursos em Processo Civil, Novo Regime, págs. 443 e 444.
[18] Note-se que o aludido Acórdão para Uniformizador de Jurisprudência tem vários votos de vencido com o argumento de que, ao fixar jurisprudência nestes termos, o intérprete estava a invadir o campo de actuação do legislador, porquanto estava, no essencial, a criar uma norma que, conscientemente, o legislador havia optado por não introduzir.