Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3962/12.1TBVIS-M.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
CAUSA PREJUDICIAL
SUA CESSAÇÃO
DESPACHOS INTERLOCUTÓRIOS
CASO JULGADO FORMAL
Data do Acordão: 02/23/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 276º, Nº 1, AL.C); 620º, 625º, Nº 2 E 628º DO NCPC.
Sumário: 1. Se o juiz suspendeu a instância com o fundamento de pendência de causa prejudicial, a suspensão cessará com o julgamento definitivo dessa causa (art.º 276º, n.º 1, alínea c) do CPC).

2. A razão de ser da suspensão por pendência de causa prejudicial é a economia e coerência dos julgamentos.

3. A lei faz cessar a suspensão logo que esteja removido o evento que a determinou - cessa logo que desapareça a causa que a determinara, sem que seja necessário despacho do juiz a ordenar o prosseguimento da instância.

4. Os despachos interlocutórios, proferidos ao longo do processo, limitam a sua força obrigatória ao processo, sendo nele inadmissível - e, por isso, ineficaz (art.º 625º, n.º 2 do CPC) - decisão posterior sobre a mesma questão que deles tenha sido objecto.

5. Tendo-se decidido (com trânsito em julgado) suspender a instância em razão da pendência de causa prejudicial, não poderá o mesmo tribunal e no mesmo processo e perante idêntico quadro factual e jurídico, pronunciar-se em novo despacho em sentido contrário, sob pena de violar o caso julgado formal (art.ºs 620º, n.º 1, 625º e 628º do CPC).

Decisão Texto Integral:

Apelação 3962/12.1TBVIS-M.C1

Relator: Fonte Ramos

Adjuntos: Alberto Ruço

                  Vítor Amaral

               Sumário do acórdão:       

1. Se o juiz suspendeu a instância com o fundamento de pendência de causa prejudicial, a suspensão cessará com o julgamento definitivo dessa causa (art.º 276º, n.º 1, alínea c) do CPC).

2. A razão de ser da suspensão por pendência de causa prejudicial é a economia e coerência dos julgamentos.

3. A lei faz cessar a suspensão logo que esteja removido o evento que a determinou - cessa logo que desapareça a causa que a determinara, sem que seja necessário despacho do juiz a ordenar o prosseguimento da instância.

4. Os despachos interlocutórios, proferidos ao longo do processo, limitam a sua força obrigatória ao processo, sendo nele inadmissível - e, por isso, ineficaz (art.º 625º, n.º 2 do CPC) - decisão posterior sobre a mesma questão que deles tenha sido objecto.

5. Tendo-se decidido (com trânsito em julgado) suspender a instância em razão da pendência de causa prejudicial, não poderá o mesmo tribunal e no mesmo processo e perante idêntico quadro factual e jurídico, pronunciar-se em novo despacho em sentido contrário, sob pena de violar o caso julgado formal (art.ºs 620º, n.º 1, 625º e 628º do CPC). 

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Na acção declarativa comum movida por C..., S. A., contra F..., Lda., por despacho de 17.5.2019 foi declarada “suspensa a instância nestes autos e apensos, até decisão definitiva proferida na (…) providência relativa a procedimento de formação de contratos administrativos - ou a acção que lhe venha[1] a suceder - pendente sob o n.º ..., do Tribunal Administrativo de Círculo de ... 3”, ficando “sem efeito as datas designadas para julgamento”.

Por despacho de 07.10.2020, a Mm.ª Juíza a quo considerou inexistir “qualquer causa prejudicial que obste ao prosseguimento dos autos” e decidiu “marcar julgamento”.

Inconformada, a Ré interpôs a presente apelação, formulando as seguintes conclusões:

...

Concluiu pela revogação da decisão recorrida por outra que determine a manutenção da suspensão da instância, por existência de causa prejudicial e violação de caso julgado, ou sendo declarada a nulidade ora arguida, com as consequências legalmente previstas.

Não houve resposta.

Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa apreciar e decidir, sobretudo, se existe fundamento para a cessação da suspensão da instância, atento o disposto no art.º 276º, n.º 1, alínea c), 1ª parte, do CPC.

II. 1. Para a decisão do recurso releva a realidade (fáctica e processual) que resulta do relatório que antecede e a seguinte:

a) Na presente acção, instaurada em 26.12.2012, foi pedido: a) Seja declarada a restituição definitiva e manutenção da posse do centro de inspecção automóvel de ..., bem como a manutenção da posse das instalações propriedade da Requerida, onde o mesmo se encontra localizado (…), bem como de todas as infra-estruturas, equipamentos e meios de produção que ali se encontram afectos ao desenvolvimento da actividade de inspecção de veículos por parte da Autora, pelo período em que esta se encontre obrigada a nelas permanecer, por força de decisão judicial ou por força de decisão da entidade administrativa competente[2]; b) Consequentemente seja a Ré intimada no sentido de que se deve abster de praticar quaisquer actos que possam condicionar, limitar ou impedir o acesso e utilização das referidas instalações para os efeitos acima mencionados, por parte da Autora, bem como de que se deve abster de, por actos ou omissões, interferir ou por qualquer modo condicionar a exploração e gestão do centro de inspecções de ... por parte da Autora.

b) Foi ainda pedida a condenação da Ré no pagamento à A. de diversas quantias a título de indemnização (por prejuízos materiais, lucros cessantes e danos morais e de imagem).

c) Por requerimento de 28.3.2019, a Ré/Recorrente veio dar conhecimento aos autos de que, na sequência do procedimento administrativo prévio, fora deliberado pelo Conselho Directivo do Instituto da Mobilidade e dos Transportes, IP (IMT), promover a assinatura de contrato administrativo de gestão, a que se refere o n.º 1 do art.º 34º da Lei n.º 11/2011, de 26.4 (com a redação dada pelo DL n.º 26/2013 de 19.02), com a F... (Ré), o que viria a suceder em 17.12.2018 e que, por essa via administrativa superveniente, “(…) o resultado, embora contraposto, pretendido por cada uma das partes com a instauração das ações pendentes em juízo foi atingido por via de meio diverso do solicitado pelas partes ao Tribunal (…)”, tendo “subjacente a avaliação a que procedeu o IMT, IP sobre qual das Partes efetivamente explorava o CITV de ... (código 248)”, “até porque a questão da propriedade das instalações e equipamentos nunca se suscitou”.

Em consequência do que peticionou ao Tribunal a declaração de extinção da instância por inutilidade da lide ou, assim não o entendendo o Tribunal, a suspensão da instância por verificação de causa prejudicial (porquanto a eventual pertinência da presente lide ficará dependente de decisão a proferir em sede administrativa que dirima em definitivo o eventual e possível litígio entre as aqui partes e o IMT).

d) Sobre o ali requerido recaiu a decisão de 17.5.2019 que, ao abrigo do disposto no art.º 272º, n.º 1, do CPC, declarou «suspensa a instância nestes autos e apensos, até decisão definitiva proferida na dita providência relativa a procedimento de formação de contratos administrativos – ou a acção que lhe venha a suceder – pendente sob o n.º ..., do Tribunal Administrativo de Circulo de Lisboa - Unidade Orgânica 3».

e) Na fundamentação da dita decisão considerou o Tribunal, nomeadamente:

«(…) Como já vimos no processo pendente na jurisdição administrativa, o IMT celebrou com a Ré F..., Lda., o contrato administrativo de gestão visando a reabertura do CITV FTP de ..., Código ...

Ora perante a articulação e conjugação destes pedidos, é fácil constatar - cremos que sem dúvidas de maior - que com essa solução, parte substancial ou a quase totalidade dos pedidos formulados nestas acções, ficam sem base de sustentação, sem relevo, assumem-se como inúteis, já que, como é óbvio, não se pode vir a concluir que deve ser ordenada a “restituição definitiva e manutenção da posse do centro de inspeção automóveis de ...” à (…) Autora C... - Centro de Inspecção Mecânica em Automóveis, S. A., quando a decisão recente decide exactamente em sentido contrário, ou seja, atribui essa gestão à aqui Ré.

Mutatis mutantis no que tange ao pedido deduzido no processo ...[3] pois que se não deve determinar a entrega de um estabelecimento no qual se exercia a descrita actividade de inspeção automóvel, quando essa função é atribuída exactamente a quem é titular do espaço, já que a aqui Autora apenas requeria ou pedia a restituição de posse, com base num protocolo celebrado para exploração do dito Centro de Inspecções.

Revertendo estes factos ao regime jurídico, diremos que regula o art.º 272º, n.º 1 do vigente Código de Processo Civil (CPC) que “o tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado”.

Nesta sede não se pode olvidar que, na perspectiva da suspensão da instância por pendência de causa principal, o Prof. Alberto dos Reis (Comentário ao CPC, Vol. 3, pág. 206) entende que “uma causa é prejudicial em relação a outra quando a decisão daquela pode prejudicar a decisão desta, isto é, quando a procedência da primeira tira a razão de ser à existência da segunda”.

Em sede jurisprudencial, ainda que no domínio do anterior CPC, segundo o Acórdão da RP de 07.01.2010 (dgsi.pt/, processo 940/08.9TVPRT.P1).

“I - Para efeitos do disposto no art.º 279º, n.º 1 do CPC, uma causa está dependente do julgamento de outra já proposta, quando a decisão desta pode afectar e prejudicar o julgamento da primeira, retirando-lhe o fundamento ou a sua razão de ser, o que acontece, designadamente, quando, na causa prejudicial, esteja a apreciar-se uma questão cuja resolução possa modificar uma situação jurídica que tem que ser considerada para a decisão do outro pleito.

II - Entende-se, assim, por causa prejudicial aquela onde se discute e pretende apurar um facto ou situação que é elemento ou pressuposto da pretensão formulada na causa dependente, de tal forma que a resolução da questão que está a ser apreciada e discutida na causa prejudicial irá interferir e influenciar a causa dependente, destruindo ou modificando os fundamentos em que esta se baseia.

III - Existindo entre duas acções esse nexo de prejudicialidade, deverá ser suspensa a instância na causa dependente, até à decisão da causa prejudicial”.

Tal o que sucede nos autos, vista a instauração do aludido procedimento cautelar.

Como assim há fundamento para a suspensão da instância.»

f) A decisão mencionada em d) e e) não foi objeto de oposição ou recurso de apelação.

g) A A. instaurou contra o IMT, no Tribunal Administrativo de Círculo (TAC) de Lisboa, procedimento cautelar pedindo “a suspensão da execução do Contrato administrativo de Gestão do Centro de Inspecção Automóvel de ... celebrado em 17.12.2018 entre o IMT IP e a F..., Lda. e a sua intimação para que se abstenham de lhes dar execução”, que correu termos sob o processo n.º ... (pendente à data da prolação da decisão referida em d) e e)).

h) O TAC de Lisboa indeferiu tal “providência cautelar” e absolveu a entidade requerida do pedido, decisão (de 02.12.2019) confirmada por acórdão do TCA do Sul de 16.4.2020 (cf. fls. 171 a 225).

i) Considerou o TAC de Lisboa, designadamente, que “perante uma eventual suspensão da execução do contrato em causa, a situação da Requerente não sofreria qualquer alteração”, pois “não está autorizada a reiniciar actividade no Centro em questão, uma vez que o IMT entendeu não se encontrarem reunidas as condições para que fosse concedida tal autorização” (fls. 198).

j) Por seu lado, o TCA do Sul afirmou que “a decisão recorrida nada decidiu quanto ao mérito da pretensão deduzida na acção principal” e que o TAC de Lisboa decidiu aplicando o preceituado no art.º 132º do CPTA, ponderando devidamente os interesses em presença (fls. 219 e seguintes).

k) A fundamentação da decisão recorrida (de 07.10.2020) é a seguinte:

«A signatária tomou hoje conhecimento dos presentes autos no qual se decidiu apensar 3 ações distintas que envolvem as mesmas partes. / A primeira constatação é que existiram já inúmeros processos, de todo o tipo (crime, comércio, administrativo, cautelar cível) entre as partes sobre o mesmo litígio que dura há anos. / Face ao teor das várias decisões judiciais e de entidades administrativas conclui-se ainda que todas elas são maioritariamente favoráveis à aqui Ré e que, entretanto, viu “licenciada”, pelo IMT, a actividade para o estabelecimento que aqui se discute. / Sem prejuízo de uma conciliação das partes, que neste momento é mais viável por essas razões, e pelo inerente e natural cansaço de anos de litígios, em termos processuais não vemos razão para que os autos estejam suspensos e não prossigam. / Explicando: / Todas as ações existentes entre as partes (ou entre partes que se podem considerar as mesmas) não têm força de caso julgado material, desde logo porque não existe uma identidade de pedidos e porque as decisões proferidas no âmbito dos procedimentos cautelares não resolvem definitivamente o mérito e, como tal, não têm esse efeito. / Já outra questão é ser ponderada a autoridade de caso julgado relativamente a parte dos factos assentes em ações onde as partes sejam as mesmas ou consideradas como tal (…). / (…) grande parte da extensa factualidade assente constante da decisão do tribunal administrativo ora junta, será idêntica à que aqui se dará por provada, com base nos documentos juntos[4]. / Aliás, essa decisão constituiu, para este tribunal, uma ferramenta útil para a (…) decisão destas três causas. // Mas (…) não vislumbramos razões para a suspensão destes autos e nem que a decisão do tribunal administrativo possa implicar a extinção destas ações. / Em primeiro lugar, porque se tratou de procedimento cautelar e não de ação definitiva. / Em segundo lugar, porque não é o indeferimento da suspensão da eficácia do ato, ou seja, não é o procedimento cautelar, mas o próprio contrato de gestão celebrado entre o IMT e a F..., que permite a esta a actividade de inspeção no local referido nesta ação, que terá implicações na decisão desta causa cível. / Ou seja, inexiste qualquer causa prejudicial que obste ao prosseguimento dos autos. / E esse prosseguimento não pode ser outro senão o de marcar julgamento. // (…) / O contrato celebrado com o IMT revela a nível de improcedência dos pedidos e não propriamente na inutilidade da ação. / O tribunal não está ainda habilitado, nesta fase processual e face aos vários pedidos das ações, a decidir de imediato do mérito da causa. (…)»

l) No despacho sobre o requerimento de interposição de recurso, a Mm.ª Juíza a quo, pronunciando-se sobre a nulidade arguida, referiu, nomeadamente: «(…) a decisão [recorrida] não revoga ou sequer contraria o anteriormente decidido já que o dispositivo da decisão coloca como alternativa para o fim da suspensão da instância a decisão da providência cautelar, que se veio a verificar. / Mas é verdade que entendeu o tribunal não se justificar já a suspensão deste processo e durante anos a fio até uma decisão definitiva a proferir nos tribunais administrativos, pelas razões invocadas no despacho objeto de recurso (...). / (…) A signatária entendeu, não se verificar essa real e efetiva prejudicialidade e, por isso, não há caso julgado formal. / (…) / A decisão proferida reporta-se ao expediente processual, com vista ao andamento regular do processo, sendo proferido no âmbito de um poder discricionário – art.ºs 630º, n.º 1 e 152º, n.º 4 do CPC. / Mas ainda que se entenda que se trate de poder vinculado e que, por conseguinte, é suscetível de recurso, isso não implica que estejamos perante uma decisão nula por violação do princípio do contraditório ou por qualquer outra razão. / É que, no caso, o contraditório está cumprido a partir do momento em que há uma decisão transitada em julgado que diz suspender a instância até decisão definitiva proferida na dita providência relativa a procedimento de formação de contratos administrativos e que essa decisão transitada foi aqui junta e notificada às partes, sem que nada tenha sido requerido. (…)»

2. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

A instância suspende-se, entre outros casos, quando o tribunal ordenar a suspensão ou houver acordo das partes (art.º 269º, n.º 1, alínea c) do CPC).

O tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado (art.º 272º, n.º 1 do CPC). Quando a suspensão não tenha por fundamento a pendência de causa prejudicial, fixa-se no despacho o prazo durante o qual estará suspensa a instância (n.º 3).

A suspensão por uma das causas previstas no n.º 1 do art.º 269º cessa, no caso da alínea c), quando estiver definitivamente julgada a causa prejudicial ou quando tiver decorrido o prazo fixado (art.º 276º, n.º 1, alínea c) do CPC). Se a decisão da causa prejudicial fizer desaparecer o fundamento ou a razão de ser da causa que estivera suspensa, é esta julgada improcedente (n.º 2).

As sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo (art.º 620º, n.º 1, do CPC, sob a epígrafe “caso julgado formal”). Excluem-se do disposto no número anterior os despachos previstos no art.º 630º[5] (n.º 2).

Havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar (art.º 625º, n.º 1 do CPC). É aplicável o mesmo princípio à contradição existente entre duas decisões que, dentro do processo, versem sobre a mesma questão concreta da relação processual (n.º 2).

3. Suspensa a instância em consequência de determinado evento, a suspensão cessa (o processo volta a correr) logo que esteja removida a causa que determinara a paralisação.

Se o juiz suspendeu a instância com o fundamento de pendência de causa prejudicial, a suspensão cessará com o julgamento definitivo dessa causa, isto é, quando transitar em julgado a sentença proferida nessa causa.

A suspensão só cessa quando a causa prejudicial estiver definitivamente julgada, qualquer que seja o lapso de tempo de pendência dessa causa e ainda que se ache parada por negligência das partes.

O que justifica a suspensão é a pendência da causa prejudicial; extinta a instância prejudicial, desaparece a pendência e, portanto, o evento que determinara a suspensão.

Pode suceder que a decisão da causa prejudicial faça desaparecer o fundamento ou a razão de ser da causa dependente. Se assim for, a decisão definitiva da causa prejudicial tem como consequência, não o prosseguimento da causa dependente, mas a sua improcedência – em vez de a instância dependente prosseguir, extingue-se, mediante sentença que julgue improcedente a acção respectiva.[6]

A razão de ser da suspensão por pendência de causa prejudicial é a economia e coerência dos julgamentos.

A suspensão da instância tem, pela sua própria natureza, carácter temporário. A lei faz cessar a suspensão logo que esteja removido o evento que a determinou - cessa logo que desapareça a causa que a determinara, sem que seja necessário despacho do juiz a ordenar o prosseguimento da instância (é necessário despacho para fazer suspender a instância; não é necessário, para a pôr, de novo, em andamento).[7]

4. Os despachos interlocutórios, proferidos ao longo do processo, limitam a sua força obrigatória ao processo, sendo nele inadmissível - e, por isso, ineficaz (art.º 625º, n.º 2 do CPC) - decisão posterior sobre a mesma questão que deles tenha sido objecto. O despacho que recai unicamente sobre a relação processual não é apenas o que se pronuncia sobre os elementos subjectivos e objectivos da instância e a regularidade da sua constituição, mas também todo aquele que, em qualquer momento do processo, decide uma questão que não é de mérito.[8]

Tratando-se de caso julgado meramente formal, a estabilidade é restrita ao processo respectivo, e por isso tudo se reduz ao fenómeno da preclusão.[9]

5. O poder de ordenar a suspensão duma causa até que seja decidida outra não é livre, não é discricionário; a lei exige expressamente que a decisão da causa a suspender esteja dependente do julgamento de outra já proposta; o requisito da dependência constitui evidentemente um limite ao exercício do poder referido, limite que, mediante recurso, pode ser sujeito à apreciação dos tribunais superiores (cf. o art.º 644º, n.º 2, alínea c) do CPC).

O que carateriza o poder discricionário é a ausência de limites.[10]

6. Ao proferir o despacho de 17.5.2019, o Mm.º Juiz invocou a existência de causa prejudicial[11], considerando, pois, que por uma razão de conveniência  a presente acção deveria ficar suspensa enquanto não for decidida outra de que está dependente, aí identificada.

Dizendo-se pendente causa prejudicial, julgou-se conveniente [atentas as circunstâncias descritas em II. 1. e), supra] aguardar que ela seja decidida.[12]

No mencionado despacho, ao abrigo do disposto no art.º 272º, n.º 1, do CPC, declarou-se «suspensa a instância nestes autos e apensos, até decisão definitiva proferida na dita providência relativa a procedimento de formação de contratos administrativos - ou a acção que lhe venha a suceder - pendente sob o n.º ... do Tribunal Administrativo de Circulo de Lisboa».

7. Os procedimentos cautelares carecem de autonomia, enquanto pressupõem uma acção de outro tipo (não cautelar) - já pendente ou a propor em curto prazo (cf. o art.º 364º, n.ºs 1, 2ª parte, e 4 do CPC).[13]

8. Face aos elementos disponíveis será de concluir que a decisão mencionada em II. 1. h) a j), supra, “nada decidiu quanto ao mérito da pretensão deduzida na acção principal”, ou seja, não logrou proceder a uma composição definitiva do litígio, não constituindo verdadeira decisão definitiva.[14]

Ademais, o aduzido na alegação de recurso também pressupõe a existência de uma acção principal administrativa que corre seus termos no Tribunal Administrativo (de Lisboa) - “em que é impugnada a legalidade da celebração do contrato de gestão entre o IMT com a Recorrente[15] -, faltando proferir decisão final (cf., v. g., a “cláusula 5ª” da alegação de recurso, ponto I., supra).

Por conseguinte, persistindo as circunstâncias que determinaram a suspensão da instância declarada pelo mencionado despacho de 17.5.2019, deverá manter-se a suspensão da presente instância até ser definitivamente decidida a causa prejudicial administrativa pendente.

9. Salvo o devido respeito por entendimento contrário, ao pretender afirmar circunstancialismo diverso do considerado no despacho de 17.5.2019 (que determinou a suspensão da instância com fundamento na existência de causa prejudicial) e ao concluir por uma resposta adjectiva de sentido contrário (determinando a cessação da suspensão da instância, sem qualquer modificação superveniente que não tenha sido a notícia do indeferimento do procedimento cautelar, confirmado por acórdão do TCA, mantendo-se, contudo, pendente a acção principal), a decisão recorrida afrontou, claramente, a estabilidade (e correlativa preclusão) inerente à figura do caso julgado formal - formação de caso julgado formal da decisão que decretou a suspensão da instância (art.º 620º, n.º 1 do CPC).

No despacho recorrido, a Mm.ª Juíza a quo conheceu da mesma matéria objecto daquele anterior despacho, transitado em julgado, sendo que não poderia o mesmo tribunal e no mesmo processo e perante idêntico quadro factual e jurídico, pronunciar-se em novo despacho em sentido contrário, assim violando o caso julgado formal (art.ºs 620º, n.º 1, 625º, 628º e 644º, n.º 2, alínea c) do CPC) e não podendo, também por essa razão, esse despacho subsistir. 

10. Dir-se-á, ainda, que, se porventura existisse a tal decisão definitiva a que se alude no despacho de 17.5.2019, a Mm.ª Juíza a quo não teria de declarar, formalmente, o que seria sequente e evidente (cf. II. 3., in fine, supra).

Porém, se dúvidas houvesse e as circunstâncias assim o ditassem, seria então conveniente a prévia audição das partes (art.º 3º, n.º 3 do CPC[16]).

11. Procedem, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso.

III. Pelo exposto, na procedência da apelação, revoga-se o despacho recorrido, com os efeitos referidos em II. 8., supra.

 Sem custas.


23.02.2021


***


[1] Rectificou-se lapso manifesto.
[2] Sublinhado nosso, como o demais a incluir no texto sem outra menção.
[3] Nesta acção (de reivindicação) que tem como sujeitos processuais as mesmas partes, ainda que em posições inversas, a aqui Ré pede que o tribunal reconheça o seu direito de propriedade sobre o mesmo estabelecimento, adquirido por usucapião, e que a CIMA seja condenada a entregar-lhe o estabelecimento - cf. a decisão de 17.5.2019 (fls. 160).
   Foram juntas aos autos cópias das decisões proferidas no apenso de Arresto (apenso A) - cf. fls. 260 e seguintes e 278 e seguintes.
   E na outra acção apensa, processo 3391/12.7TBVIS, a aqui Ré, como A., pede “que o tribunal declare como inexistente e ineficaz o direito de que a Ré se arroga de, com base nos Protocolos denunciados, impugnar o direito de propriedade da A. e de fazer extinguir a exploração do estabelecimento de inspecção de veículos automóveis (…)” - ibidem, fls. 160 verso.
[4] Sublinhado da Mm.ª Juíza a quo.

[5] Que estabelece: Não admitem recurso os despachos de mero expediente nem os proferidos no uso legal de um poder discricionário (n.º 1). Não é admissível recurso das decisões de simplificação ou de agilização processual, proferidas nos termos previstos no n.º 1 do art.º 6º, das decisões proferidas sobre as nulidades previstas no n.º 1 do art.º 195º e das decisões de adequação formal, proferidas nos termos previstos no art.º 547º, salvo se contenderem com os princípios da igualdade ou do contraditório, com a aquisição processual de factos ou com a admissibilidade de meios probatórios (n.º 2).
[6] Vide Prof. Alberto dos Reis, CPC Anotado, Vol. I, 3ª edição (reimpressão), Coimbra Editora, 1982, pág. 388 e Comentário ao CPC, Vol. 3º, Coimbra Editora, 1946, págs. 310 e seguintes.
[7] Vide Prof. Alberto dos Reis, Comentário ao CPC, Vol. 3º, cit., págs. 272 e 302 e seguinte.
[8] Vide J. Lebre de Freitas, e Outros, CPC Anotado, Vol. 2º, Coimbra Editora, 2001, pág. 681.
[9] Vide Prof. Alberto dos Reis, CPC Anotado, Vol. V (reimpressão), Coimbra Editora, 1984, pág. 157.
[10] Ibidem, pág. 253.
[11] Na formulação dada pelo Prof. Alberto dos Reis, in Comentário ao CPC, Vol. 3º, cit., pág. 206 (cf. II. 1. e), supra).
[12] Vide Prof. Alberto dos Reis, Comentário, cit., págs. 266 e seguintes e 291.
[13] Vide, nomeadamente, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág. 8.
[14] Já não assim se a situação dos autos se enquadrasse na previsão dos art.ºs 364º, n.º 1, 1ª parte; 369º; 371º e 376º, n.º 4 do CPC.

[15] Como bem se refere na alegação de recurso, «o contrato de gestão é um título administrativo novo, diferente e autónomo que permite e tem permitido à Recorrente explorar um novo e diferente estabelecimento nas suas instalações e com os seus equipamentos, uma vez que a autorização administrativa com que o fazia, embora concedida à A., só poderá vir a ser eventualmente repristinada em caso de procedência da ação administrativa pendente».
[16] Normativo que reza o seguinte: «O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.»