Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4/22.2T8PBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO DOMINGOS PIRES ROBALO
Descritores: ACÇÃO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS
UTILIZAÇÃO DE CARTÃO BANCÁRIO
Data do Acordão: 07/12/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE POMBAL DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTIGO 573.º DO CÓDIGO CIVIL E ARTIGO 941.º DO CPC
Sumário: I - A obrigação de prestar contas decorre de uma obrigação de carácter mais geral que é a obrigação de informação.

II – A mera utilização de um cartão bancário pertencente a outrem, entretanto falecido, não constitui só por si o utilizador de tal cartão na obrigação de prestar contas dessa utilização aos herdeiros do titular do cartão.  

Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Cível (3.ª Secção), do Tribunal da Relação de Coimbra

Proc.º n.º 4/22.2T8PBL.C1

                                               1.-Relatório

1.1.-  A Requerente AA propôs a presente acção com processo especial para prestação de contas contra BB e CC.

Visa, para tanto, que os mesmos sejam condenados a prestar contas nos presentes autos.

Invocou a Requerente AA, no seu requerimento inicial, que é, tal como os Requeridos BB e CC, descendente e herdeira de DD e de EE. Os quais faleceram, respectivamente, em 8 de Julho de 2013 e em 22 de Dezembro de 2018. Estabelecendo, ademais, que os Requeridos BB e CC, após o fenecimento de DD, se apoderaram dos cartões de acesso às contas bancárias dos progenitores. Tendo concretizado movimentações bancárias sem nunca justificar os correspondentes movimentos. No que considera que os Requeridos BB e CC administraram as contas bancárias de DD e de EE ao ponto de lhe assistir o direito de exigir prestação de contas pela actuação desenvolvida.

                                                                       ***

1.2. - Citados que foram os Requeridos BB e CC, foi oferecida a contestação de fls. 20. Onde aqueles põem, desde logo, em causa a existência de uma qualquer obrigação de prestar contas. Refutando que tenha ocorrido administração de bens alheios, o que, aliás, invocam também não estar evidenciado ou alegado no requerimento inicial. Refutando, por outra via, que se tenham apoderado de um qualquer cartão bancário.

                                                                       ***

1.3.- Foi proferido despacho a fls. 54 por intermédio do qual se convidou a Requerente AA a alegar factos que permitissem aferir, por referência ao artigo 941.o do Código de Processo Civil, se existe uma efectiva obrigação de prestação de contas. E, como tal, se ocorreu uma relação de administração de bens alheios.

                                               ***

1.4. - A Requerente AA ofereceu então o articulado de fls. 58 onde, no essencial, renova o já anteriormente explicitado.

Cumpre, pois, solucionar, ainda que nos termos sumários previstos no n.o 3 do artigo 942.o do Código de Processo Civil, o litígio posto em relevo.

O Tribunal é competente em razão da matéria, da hierarquia e da nacionalidade, o processo encontra-se isento de nulidades que o invalidem na totalidade, as partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente patrocinadas.

 Não há outras nulidades ou excepções dilatórias que cumpra, para já, conhecer.

            Após foi proferida decisão do seguinte teor:

“Estabelece o artigo 942.o do Código de Processo Civil, sob a epígafe «Citação para a prestação provocada de contas», que

1 - Aquele que pretenda exigir a prestação de contas requer a citação do réu para, no prazo de 30 dias, as apresentar ou contestar a ação, sob cominação de não poder deduzir oposição às contas que o autor apresente; as provas são oferecidas com os articulados.

2 - Se o réu não quiser contestar a obrigação de prestação de contas, pode pedir a concessão de um prazo mais longo para as apresentar, justificando a necessidade da prorrogação.

3 - Se o réu contestar a obrigação de prestar contas, o autor pode responder e, produzidas as provas necessárias, o juiz profere imediatamente decisão, aplicando-se o disposto nos artigos 294.º e 295.º; se, porém, findos os articulados, o juiz verificar que a questão não pode ser sumariamente decidida, manda seguir os termos subsequentes do processo comum adequados ao valor da causa.

4 - Da decisão proferida sobre a existência ou inexistência da obrigação de prestar contas cabe apelação, que sobe imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

5 - Decidindo-se que o réu está obrigado a prestar contas, é notificado para as apresentar dentro de 20 dias, sob pena de lhe não ser permitido contestar as que o autor apresente.

A tramitação legalmente prevista para esta tipologia de processo desdobra-se, como tal, em dois momentos... Um primeiro centrado na aferição se os visados estão obrigados a prestar contas e uma segunda fase em que, a dar-se resposta afirmativa àquela primeira indagação, serão as mesmas prestadas e se aferirá da correspondente bondade.

A primacial questão a decidir nesta fase centra-se, pois, no saber se os Requeridos BB e CC concretizaram uma qualquer administração do património de DD e EE. Temática por reporte à qual Tribunal está já em condições de se pronunciar atentas as posições assumidas pelos sujeitos processuais nos seus articulados. E sem necessidade, como tal, de qualquer diligência ou produção probatória adicional.

Estipula, nesse sentido, o artigo 941.o do Código de Processo Civil que a acção de prestação de contas pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objecto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação do saldo que venha a apurar-se.

Decorre deste normativo, como constitui jurisprudência pacífica, que a obrigação de prestação de contas está diretamente relacionada com a qualidade de administrador em que o obrigado se encontra investido relativamente a bens que lhe não pertencem ou não pertencem por inteiro e cuja administração lhe foi confiada (Conferir, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Janeiro de 1975, in BMJ, n.o 243, página ).

. A propósito de norma equivalente, escreveu, aliás, ALBERTO DOS REIS que “pode formular-se este princípio geral: quem administra bens ou interesses alheios está obrigado a prestar contas da sua administração ao titular desses bens ou interesses (...) A questão de saber quando existe a obrigação de prestação de contas, é questão de direito substantivo, a decidir segundo as disposições da lei civil ou comercial que for aplicável ou mesmo da lei processual, funcionando como lei substantiva” (cfr. ALBERTO DOS REIS, in Processos Especiais, volume I, reimpressão, 1982, página 303).

Como elemento estruturante desta obrigação, que lhe serve de pressuposto e fundamento, está o dever de informação. Que se encontra previsto no artigo 573.o do Código Civil como a obrigação que se impõe sempre que o titular de um direito tenha dúvida fundada acerca da sua existência ou do seu conteúdo e outrem esteja em condições de prestar as informações necessárias. ( cfr. 3 SINDE MONTEIRO, in Responsabilidade por conselhos, recomendações ou informações, Almedina, página 410), define este dever de informação como um dever de prestação derivado que visa a preparação e comprovação de pretensões do legitimado contra o obrigado (potencial adversário processual) ou de excepção do primeiro contra pretensões do segundo, acrescentando que pode estar em causa a transmissão de uma informação, isto é, a comunicação de factos (normalmente por escrito) com base numa pergunta prévia, ou um mero pôr à disposição de objectos com vista à sua obtenção.

Por sua vez, diz-nos ANTUNES VARELA, in ANTUNES VARELA, in Anotação, RLJ, Ano 123, página 63,  que é muito amplo o raio de acção com que o artigo 573.o do Código Civil, ao criar uma nova modalidade de deveres (quanto aos sujeitos e quanto ao objecto), multiplica o número de obrigações com esse conteúdo, em perfeita consonância com a intensificação das relações de cooperação entre os homens, característica da chamada socialização do direito.

E a obrigação de prestação de contas pode derivar, desde logo, da lei, existindo um leque de preceitos do Código Civil, Código Comercial e do Código de Processo Civil que a impõem. Tal dever é, por outra via e como assinalam os Acórdãos da Relação do Porto de 26 de Abril de 2001 e da Relação de Lisboa de 17 de Dezembro de 1994, in In www.dgsi.pt, susceptível de resultar do próprio princípio geral da boa fé.

 Essencial será, nesse sentido, sempre e apenas a constatação de uma relação efectiva de administração de um património alheio – ainda que sem tutela jurídica – e a legitimidade activa daquele que peticiona as contas enquanto pessoa com direito a exigi-las sobre tal administração.

Divisam-se, ainda assim, situações tendencialmente típicas a dar causa à obrigação de prestação de contas. Como refere LUÍS PIRES DE SOUSA, in Acções Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas, Coimbra Editora, 2011, página 125.

Prevê a lei a obrigação de prestação de contas designadamente nos seguintes casos:

a) Curador Provisório (artigo 95.o, n.o 1 do Código Civil);

b) Administrador de associações ou comissões sem personalidade jurídica (artigos 172.o, n.o 2, 173.o, no 1 do Código Civil ex vi artigo 195.o, n.o 1 do Código Civil);

c) Procurador que aja com poderes de representação (artigo 262.o do Código Civil);

d) Gestor de negócios (artigo 465.o, alínea c) do Código Civil);

e) Concedente na consignação de rendimentos, continuando os bens em seu poder (artigo 662.o, n.o 1 do Código Civil);

f) Administrador da sociedade civil (artigo 987.o, n.o 1 e 1161.o, alínea d) do Código Civil);

g) Gerente de facto ou administrador de bens de sociedade irregular;

h) Pelo mandatário, findo o mandato ou quando o mandante as exigir (artigo 1161.o, alínea, d) do Código Civil);

i) Administrador do condomínio (artigo 1436.o, alínea j) do Código Civil);

j) Os pais em caso de má administração dos bens do filho (artigo 1920.o, n.o 1 e 2 do Código Civil);

k) Tutor (artigo 1944.o, n.o 1 do Código Civil);

l) Administrador de bens do menor (artigo 1971.o, n.o 1 do Código Civil);

m) Adoptante (artigo 20002.o-A do Código Civil);

n) Cabeça-de-Casal (artigo 2093.o, n.o 1 do Código Civil);

o) Testamenteiro (artigo 2332.o, n.o 1 do Código Civil);

p) Depositário judicial (artigo 843.o, n.o 1 do Código de Processo Civil);

q) O exequente no âmbito da execução para prestação de facto (artigo 936.o do Código de Processo Civil);

r) Liquidatário judicial (artigo 1126.o, n.o 1 do Código de Processo Civil);

s) Os membros da administração das sociedades comerciais (artigo 65.o do CSC);

t) Os liquidatários das sociedades (artigos 155.o e 157.o, n.o 1 do CSC);

u) A administração do agrupamento complementar de empresas (artigo 8.o, n.o 1 do Decreto- Lei n.o 430/73, de 25 de Agosto);

v) O associante no contrato de associação em participação (artigo 31.o, n.o 1 do Decreto-Lei n.o 231/81, de 28 de Julho);

w) O mediador de seguros que cobra prémios dos clientes da seguradora com a obrigação de lhes entregar, recebendo em contrapartida comissões acordadas;

x) O arrematante de prédio não pertencente ao executado, vindo o proprietário a reivindicar triunfantemente o prédio (artigo 909.o, n.o 1, alínea d) do Código de Processo Civil) (...).

No caso sub judice, afigura-se que a Requerente AA faz radicar a obrigação de prestação de contas na constatação que os Requeridos BB e CC se apoderaram dos cartões bancários de DD e EE. E que concretizaram, nesse seguimento, movimentações bancárias nas correspondentes contas. E é também nessa simples constatação que, mesmo após o convite ao aperfeiçoamento, continua a ancorar a pretensão materializada nos presentes autos.

Não se acha, como tal, assacada uma qualquer administração de um património alheio. A Requerente AA não estabelece, sequer remotamente, que os Requeridos BB e CC estivessem a gerir o património [mesmo que com carácter restrito aos saldos bancários] dos seus progenitores. O que se acha, para tanto, enunciado aproxima-se mais de uma «usurpação» de bens titulados por DD e EE [“apoderaram-se” (artigo 3.o da p.i.), “movimentavam a mencionada conta a seu belo prazer” (artigo 5.o do articulado de fls. 58)] do que, verdadeiramente, de uma gestão de coisa alheia. E para que nasça a obrigação de prestação de contas, necessário se torna que entre as partes ocorram actos de governo de bens e/ou interesses, sendo da respectiva prática que decorre aquele encargo. No que essa mesma prestação de contas não se basta com uma pura ingerência em bens de terceiro [a qual poderá fundar outros tipos de responsabilização, nomeadamente de índole criminal]... Que é, pura e simplesmente, o que se acha articulado pela Requerente AA.

Como se referiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Janeiro de 2022 [Processo n.o 1132/18.4T8LRA-C1.S1],

Contudo, destes deveres que impenderam sobre a Ré durante os trinta anos em que desempenhou funções de contabilidade para o Autor, não deflui qualquer obrigação de gerir o património deste, por forma a que daí adviesse uma obrigação acrescida de lhe prestar contas: uma coisa é ocupar-se da contabilidade de alguém a título individual, ou de uma sociedade, coisa diversa é gerir o seu património, nele praticando actos de administração ordinária e/ou extraordinária, geradores de outras obrigações.

Não tendo sido alegado pelo Autor, nem tão pouco provado, tal como lhe competia, a existência entre ambos de uma relação deste tipo, o que sempre se imporia para a exigência que é formulada: trata-se de um princípio geral, segundo o qual quem geriu negócios em nome ou por conta de outrem deve justificar a sua gestão para permitir ao administrado o controlo dos actos realizados e é perante a gestão que a atribuição de poderes postula que se julga a obrigação do procurador de prestar contas ao representado, o que na espécie não se lobriga, nem alcança.

Não se divisa, assim, a enunciação de uma qualquer relação de gestão ou administração de coisa alheia passível de justificar a imposição de uma obrigação de prestação de contas aos Requeridos BB e CC. Ao ponto de a acção, assim, naufragar!

V. DISPOSITIVO

Em face a todo o exposto, julga-se improcedente a pretensão da Requerente AA, absolvendo-se os Requeridos BB e CC do pedido formulado.

Custas pela Requerente AA [artigo 527.o do Código de Processo Civil]

Notifique”.

                                                           ***

1.5. – Inconformada com tal decisão dela recorreu a requerente, AA, terminando a sua motivação com as conclusões que se transcrevem:

“1 - A Recorrente, salvo o devido respeito por opinião contrária, não se conforma com a douta sentença proferido pelo Tribunal “a quo”, por entender que a acção deveria ter sido julgada totalmente procedente e os Requeridos condenados a prestar contas.

2 - Requerente e Requeridos são descendentes e herdeiros dos falecidos DD e EE.

3 – Após o falecimento de DD, foram os Requeridos, em exclusivo, que movimentaram a conta bancária existente no Banco 1..., titulada por EE, com o número ...72, através de um só cartão de débito.

4 - Cartão, este, que passou a estar na posse dos Requeridos, face à idade avançada do malogrado EE.

5 - Os Requeridos movimentavam a mencionada conta a seu belo prazer, não dando contas da mesma ao seu titular ou a quem quer que fosse, até 26/12/2018.

6 - Pelo que, não restam dúvidas de que administraram as contas bancárias dos falecidos, desde .../.../2013 até 26/12/2018.

7 – Existindo, assim, uma obrigação de prestar contas pelos Requeridos, uma obrigação de informação, na medida em que a Requerente é titular de um direito, existindo uma dúvida fundada acerca da sua existência ou do seu conteúdo e os Requeridos estão em condições de prestar as informações necessárias.

8 - Ao decidir em sentido contrário, o Tribunal violou diversas disposições legais, designadamente o plasmado nos artigos 941o e seguintes do CPC.

Nestes termos e nos melhores de Direito, deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e, consequentemente serem os Requeridos condenados a prestar contas pela actuação desenvolvida.

Só assim se decidindo se fará acostumada Justiça!”.

                                                           ***

1.6. – Feitas as notificações a que alude o art.º 221.º, do C.P.C., responderam  CC e BB, terminando a sua motivação com as conclusões que se transcreve:

“1ª. A sentença proferida, pela Primeira Instancia encontra-se, devidamente, fundamentada não se, verifica qualquer erro na aplicação do direito.

2ª. A factualidade alegada, pela Recorrente, foi sindicada e, sujeita ao escrutínio e, ponderação pelo Tribunal recorrido; ao direito aplicável e, na Jurisprudência dos Tribunais Superiores tendo, aliás sido, convidada anteriormente, a Recorrente, ao seu aperfeiçoamento para colmatar as imprecisões e, deficiências constatadas e que, não olvidou.

3ª E, inexistindo a verificação dos pressupostos dos artigo 941º e ss do Código de Processo Civil não existe, qualquer obrigação de prestar contas de administração de património alheio.

Pelo exposto,

Deve, o recurso interposto, pela Recorrente ser julgado totalmente, improcedente por não se, verificar qualquer vicio na subsunção dos factos alegados ao direito, aplicável.

JUSTIÇA!”

                                                           ***

1.7. – Foi proferido despacho a receber o recurso do seguinte teor:

I. Por estar em tempo (artigo 638.o, n.o 1 do Código de Processo Civil), ser admissível (artigo 629.o do Código de Processo Civil) e a Recorrente ter legitimidade (artigo 631.o do Código de Processo Civil), admito o recurso interposto pela Requerente AA.

Recurso que é de Apelação (artigo 644.o do Código de Processo Civil), com subida imediata nos próprios autos (artigo 645.o, n.o 1, alínea a) do Código de Processo Civil) e com efeito meramente devolutivo (artigo 647.o, n.o 1 do Código de Processo Civil).

II. Subam os autos ao Venerando Tribunal da Relação de Coimbra”.

                                                           ***

1.8. – Com dispensa de vistos cumpre decidir.

                                                           ***

                                               2. Fundamentação

Factos aludidos pela requerente no requerimento inicial e no requerimento apresentado após convite, com interesse.

2.1. - A Autora e os Réus são descendentes e herdeiros dos falecidos DD (falecida no dia .../.../2013, no estado de casada em primeiras e únicas núpcias com EE) e EE (falecido no dia .../.../2018, no estado de viúvo de DD, sem deixar testamento ou outra disposição de última vontade), residentes que foram na Travessa ..., ..., em ... – Doc. nº 1. (requerimento inicial)

2.2. - Das referidas heranças ilíquidas e indivisas aberta por óbitos dos malogrados DD e EE, existem diversos bens mobiliários e imobiliários. (requerimento inicial).

2.3. Acontece que, desde o falecimento da ascendente DD, os Réus apoderaram-se dos cartões de acesso às contas bancárias dos seus progenitores. (requerimento inicial)

2.4. Foram os Requeridos, em exclusivo, que movimentaram a conta bancária existente no Banco 1..., com o número ...72,  unicamente titulada pelo ascendente EE (requerimento de aperfeiçoamento).

2.5. O referido EE era detentor de um só cartão de débito (requerimento aperfeiçoado).

2.6.- Cartão, esse, que passou a estar na posse dos Requeridos, face à idade avançada do malogrado EE (requerimento de aperfeiçoamento).

2.7. - Desde a referida as contas bancárias dos falecidos foram movimentadas pelos Réus (requerimento inicial).

2.8. Os réus nunca justificaram os movimentos bancários efetuados até à data de falecimento do progenitor EE (requerimento inicial)

                                                           ***

                                                             3. Motivação

É sabido que é pelas conclusões das alegações dos recorrentes que se fixa e delimita o objeto dos recursos, não podendo o tribunal de recurso conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (artºs. 635º, nº. 4, 639º, nº. 1, e 608º, nº. 2, do CPC).

Constitui ainda communis opinio, de que o conceito de questões de que tribunal deve tomar conhecimento, para além de estar delimitado pelas conclusões das alegações de recurso e/ou contra-alegações às mesmas (em caso de ampliação do objeto do recurso), deve somente ser aferido em função direta do pedido e da causa de pedir aduzidos pelas partes ou da matéria de exceção capaz de conduzir à inconcludência/improcedência da pretensão para a qual se visa obter tutela judicial, ou seja, abrange tão somente as pretensões deduzidas em termos do pedido ou da causa de pedir ou as exceções aduzidas capazes de levar à improcedência desse pedido, delas sendo excluídos os argumentos ou motivos de fundamentação jurídica esgrimidos/aduzidos pelas partes, bem como matéria nova antes submetida apreciação do tribunal a quo – a não que sejam de conhecimento oficioso - (vide, por todos, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in “Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 3ª. ed., Almedina, pág. 735.

Calcorreando as conclusões das alegações do recurso, verificamos que a questão a decidir consiste em saber:

Se a decisão recorrida deve ser revogada e substituída por acórdão onde se decida, condenar os réus a prestar contas.   

Segundo a recorrente verificam-se os requisitos da prestação de contas, será assim?

A ação de prestação de contas, nos termos do art.º 941.º do CPC (1014.º do VCPC), pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objeto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se.

Em termos de direito substantivo, a obrigação de prestar contas decorre de uma obrigação de carácter mais geral que é a obrigação de informação, consagrada no Art.º 573º do Código Civil (cfr. neste sentido Ac.  Relação, datado de Lisboa, de 5/2/2019, proc.º n.º 16126/17.9T8SNT.L1.7, relatado por José Capacete).

Nos termos deste preceito, a obrigação de informação existe, sempre que o titular de um direito tenha dúvida fundada acerca da sua existência ou do seu conteúdo e outrem esteja em condições de prestar as informações necessárias; e cujo fim é estabelecer o montante das receitas cobradas e das despesas efectuadas, de modo a obter-se a definição dum saldo e a determinar a situação de crédito ou de débito.

A jurisprudência tem enfatizado que a ação especial de prestação de contas é uma das formas de exercício deste direito de informação, afirmando designadamente que a obrigação de prestação de contas é estruturalmente uma obrigação de informação, que existe sempre que o titular de um direito tenha dúvida fundada acerca da sua existência ou do seu conteúdo e outrem esteja em condições de prestar as informações necessárias (Artigo 573º do Código Civil) e cujo fim é o de estabelecer o montante das receitas cobradas e das despesas efetuadas, de modo a obter-se a definição de um saldo e a determinar a situação de crédito ou de débito.

Obrigação que se encontra casuisticamente consagrada em várias/inúmeras normas da lei (cfr. Ac. Rel. de Lisboa, supra citado); razão por que é usual afirmar-se, dada a frequência com que a lei a estabelece, que “quem administra bens ou interesses alheios está obrigado a prestar contas da sua administração, ao titular desses bens ou interesses” (cfr. Alberto dos Reis, Processos especiais, Vol. I, pág. 303) ou, dito doutro modo, que tal obrigação tem lugar todas as vezes que alguém trate de negócios alheios ou de negócios, ao mesmo tempo, alheios e próprios (cfr. Ac. da Rel. de Lisboa de 24/05/1990, in CJ, III, pág. 125/7, citado no Ac. desta Relação, datado de Coimbra, 20/02/2019, relatado por Barateiro Martins).

A obrigação de prestar contas pode também derivar de negócio jurídico ou mesmo do princípio geral da boa fé.

Escreveu a este propósito VAZ SERRA, in Obrigação de prestação de contas e outras obrigações de informação”, in B.M.J. n.º 79, pp. 149-150, que: “Uma modalidade que as obrigações podem apresentar, no que respeita ao seu conteúdo, é a das obrigações de prestação de contas.

A obrigação de prestação de contas existe em numerosos casos. Pode resultar de disposição especial da lei (v.g., mandatário, administrador de pessoas coletivas, tutor, curador, gestor de negócios, cabeça-de-casal, marido, depositário judicial, credor anticrético ou pignoratício com o direito de cobrar os rendimentos), do princípio da boa fé ou de negócio jurídico.

Dada a frequência com que a lei a estabelece, e a regra da boa fé, pode firmar-se o princípio de que esta obrigação tem lugar todas as vezes que alguém trate de negócios alheios ou de negócios, ao mesmo tempo, alheios e próprios.

A obrigação de prestação de contas, se não for ditada por norma de ordem pública, deve poder ser afastada por convenção das partes”.

No Parecer, in Scientia Iuridica, 1969, p. 115, afirmou perentoriamente o mesmo Mestre “Não importa a fonte de administração: o que importa é o facto da administração de bens alheios seja qual for a sua fonte”.

Por sua vez Alberto dos Reis, in Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 2.º, p 303,  dava conta de “pode formular-se este princípio geral: quem administra bens ou interesses alheios está obrigado a prestar contas da sua administração, ao titular desses bens ou interesses”.

Face aos ensinamentos supra, e não tendo a requerente alegado qualquer ato de administração, (pois limitou-se a referir que os requeridos, utilizam o cartão bancária), o que é fundamental, para haver prestação de contas, ou como se refere na sentença recorrida “Não se divisa, assim, a enunciação de uma qualquer relação de gestão ou administração de coisa alheia passível de justificar a imposição de uma obrigação de prestação de contas aos Requeridos BB e CC.

Ao ponto de a acção, assim, naufragara”.

            Pelo exposto, não vemos razão para alterar a decisão recorrida, pelo que a pretensão da recorrente terá de improceder.

                                                           ***

                                                      4. Decisão

            Face ao exposto acorda-se negar provimento ao recurso e manter a decisão recorrida.

            Custas pela recorrente.

            Coimbra, 12/7/2022

            Pires Robalo (relator)

            Sílvia Pires (Adjunta)

            Henrique Antunes (Adjunto)Desta forma, pressupõe (a norma processual do art.º 941.ºdo CPC) a existência de normas de direito substantivo que imponham a obrigação de prestar contas.