Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
146/08.7TBSAT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: INVESTIGAÇÃO DA PATERNIDADE
PRAZO DE CADUCIDADE
Data do Acordão: 01/11/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: SÁTÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 1817º, Nº 1, DO C. CIVIL
Sumário: I – A declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, decorrente do Acórdão nº 23/2006 do Tribunal Constitucional, da norma constante do nº 1 do artigo 1817º do CC, apenas abrangeu o específico prazo de dois anos de caducidade do direito de investigar a paternidade, prazo previsto, então, nessa mesma norma.

II - Este pronunciamento do Tribunal Constitucional não incidiu, assumidamente, sobre a questão da sujeição a prazos de caducidade desse tipo de acções, no que ultrapassasse esses dois anos.

III - Face a esta declaração de inconstitucionalidade, que teve como efeito directo a eliminação da nossa ordem jurídica da norma contendo esse concreto prazo de dois anos, prefigura-se como alternativa ao efeito repristinatório do direito anterior, face à constatação da inadequação da recuperação desse direito, a possibilidade do subsequente intérprete suprir a falta de um prazo, criando, ele próprio, dentro do espírito do sistema, nos termos previstos no artigo 10º, nº 3, do CC, uma “norma” visando o caso concreto, contendo um (outro) prazo de caducidade deste tipo de acções que seja superior aos dois anos subsequentes à maioridade do investigante, enquanto único prazo efectivamente afastado pelo Tribunal Constitucional.

IV - A subsequente fixação pelo legislador, através da nova redacção conferida ao artigo 1817º, nº 1, do CC pela Lei nº 14/2009, de 1 de Abril, de um prazo geral de dez anos, contados da maioridade do investigante, referido à caducidade das acções de investigação da paternidade, pretendeu suprir a falta de um prazo decorrente da mencionada declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral.

V - Tal (novo) prazo continua, todavia, por ainda se afigurar curto, a não expressar, do ponto de vista dos valores constitucionais envolvidos, um adequado ponto de equilíbrio entre a profunda densidade axiológica do direito à identidade pessoal, traduzido no direito de investigar a respectiva paternidade, e o valor da segurança jurídica representado pela necessidade de estabilização a longo prazo das relações familiares no seu elemento patrimonial, valor este referenciado à existência de um prazo geral de caducidade das acções de investigação da paternidade, que actue por sobreposição e antecipação às contagens dos prazos previstos nos artigos 2059º, nº 1 e 2075º, nº 2 do CC.

VI - Tal prazo de dez anos – rectius, a actual redacção do nº 1 do artigo 1817º do CC, aplicada às acções de investigação da paternidade, contendo esse prazo – viola, assim, o disposto nos artigos 26º, nº 1 e 18º, nº 2 da Constituição, originando uma recusa de aplicação dessa norma, por inconstitucionalidade material, nos termos do artigo 204º da Constituição.

VII - Face à recusa da norma contendo o mencionado prazo de dez anos, dando seguimento ao critério de supressão da falta de um prazo enunciado no ponto III deste sumário, a fixação pelo intérprete de um prazo alargado de vinte anos contados da maioridade do investigante, tomando por referência o prazo ordinário de prescrição (artigo 309º do CC), representa um justificado ponto de equilíbrio entre os valores conflituantes indicados no ponto V do presente sumário.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – A Causa


1. Em 8 de Maio de 2009[1], M… (A. e Apelado no contexto deste recurso), nascido em 23 de Julho de 1934 (tinha, pois, 74 anos à data da propositura da presente acção) demandou A… e B… (RR. e aqui Apelantes), as duas filhas, “descendentes de C…” (falecera este, com 93 anos, cerca de um ano antes, em 05/01/2008[2]), pedindo, por aplicação conjugada dos artigos 1869º, 1871º, nº 1, alínea a) e 1873º, todos do Código Civil (CC)[3], o reconhecimento de ser o referido “C…” o seu pai, invocando ser ele (o Autor) “[…] fruto de uma relação amorosa entre D [a mãe dele A.] e C […]” (fls. 3)[4], sendo que este último sempre o teria tratado como se seu filho fosse (ele próprio – A. – sempre se entendeu como filho do C…), qualidade esta que lhe seria, nos mesmos termos, publicamente outorgada por todos, designadamente pela “família paterna”.

No articulado inicial desta acção fez o A. constar o seguinte trecho argumentativo: “[o] A. tem legitimidade e está em prazo, conforme Acórdão do Tribunal Constitucional 23/2006, de 10 de Janeiro” (fls. 4).

1.1. As RR. contestaram a fls. 22/31, negando a generalidade dos factos invocados pelo A., concretamente a circunstância dele ser filho do pai delas e o reconhecimento dele (A.) como tal, nos diversos contextos por este assinalados na petição inicial.

1.2. Finda a fase dos articulados, foi o processo tabelionicamente saneado a fls. 50, fixando-se o rol dos factos assentes (fls. 50/51) e elaborando-se a base instrutória (fls. 52/54).

1.3. Na fase de instrução realizou-se, envolvendo o A. e as RR., a perícia médico-legal de investigação de paternidade, cujo relatório consta de fls. 71/73 e remata com as seguintes conclusões:


“[…]
A análise dos diversos marcadores genéticos de:
· A… (filha do pretenso pai C…)
· B… (filha do pretenso pai C…)
· M…
1ª Não permite excluir A… e B… como meias-irmãs paternas de M...
2ª Utilizando o programa «Famílias 1.81», a probabilidade de C…, ser pai de M… é de 99,73% (IP=367.1), a que corresponde uma «paternidade praticamente provada», segundo a escala de Hummel que se junta.
[…]”
            [transcrição de fls. 72, o sublinhado foi aqui acrescentado]

            1.4. Chegados os autos a julgamento, realizou-se a respectiva audiência, documentada a acta a fls. 82/83, desta constando o seguinte trecho:
“[…]
Declarada aberta a audiência pelo A. e RR., bem assim pelos mandatários das partes foi dito acordarem para efeitos probatórios em aditar à Base Instrutória a seguinte matéria sob o ponto 22º:
O A. nasceu fruto de uma relação de cópula completa entre D… e C…, havida nos primeiros 180 dias dos 300 que imediatamente antecederam o nascimento do primeiro
De seguida o Mmo. Juiz proferiu o seguinte despacho:
Em face do acordo que antecede e a relevância para a discussão da causa da factualidade oportunamente alegada pelo A. na sua petição inicial, objecto do aditamento ora requerido, validando-se aquele acordo e mesmo ao abrigo do artigo 650º, nº 2, al. f) do Código de Processo Civil, adita-se à base instrutória a matéria objecto do mesmo nos seus precisos termos, sob o ponto 22.
[…]
Seguidamente pelas partes foi dito não terem prova suplementar a oferecer à matéria ora aditada para além da já indicada/produzida nos autos.
De imediato por ambas as partes foi dito que em face da prova já produzida nos autos prescindem de todas as testemunhas arroladas.
[…]”
            [transcrição de fls. 82/83]

            1.5. Findo o julgamento, fixada que foi, por referência à base instrutória, a matéria de facto (despacho de fls. 84)[5], proferiu o Tribunal a Sentença de fls. 87/90 – constitui esta a decisão objecto do presente recurso –, julgando a acção procedente, declarando ser o A. filho de C…, mencionando-se a avoenga paterna.

            Para este efeito estribou-se o Tribunal no seguinte entendimento:
“[…]
Conseguida a prova directa (laboratorial) da filiação biológica, tanto basta para se concluir pela procedência do pedido, independentemente da alegada posse de estado, prejudicada que está a caducidade da acção em resultado da jurisprudência obrigatória fixada pelo Acórdão do TC nº23/2006 in D.R. 8.02.2006 I Série, em torno da (in)constitucionalidade do artigo 1817º, nº1, ex vi do artigo 1873º, ambos do CC.
O citado Acórdão do TC nº 23/20006, de 10.01, declarou inconstitucional, com força obrigatória geral, a norma do nº1 do art. 1817º do CC, reconhecendo que o direito do filho ao apuramento da paternidade biológica é uma dimensão do “direito fundamental à identidade pessoal” (artigos 25º, nº1 e 26º, nº1, da Constituição).
Esta doutrina é aplicável às acções de investigação e impugnação da paternidade mesmo na actual redacção do artigo 1817º do CC (aprovada pela Lei nº 14/2009, de 1 de Abril, e aplicável aos processos pendentes), na medida em que é limitador da possibilidade de investigação/impugnação, a todo o tempo, da paternidade.
[…]”
[transcrição de fls. 89, com sublinhado aqui acrescentado dada a relevância do trecho em destaque para a subsequente exposição]

            1.6. Inconformadas com esta decisão estabelecendo a paternidade do A., interpuseram as RR. a presente apelação – adequadamente recebida a fls. 108[6] –, motivando tal recurso a fls. 92/102, aí formulando as conclusões que aqui se transcrevem:
“[…]
            [transcrição de fls. 99/102]


II – Fundamentação


            2. Relatada a marcha do processo, importa proceder à apreciação do recurso, sublinhando-se que a incidência temática da impugnação resulta da delimitação operada pelas Apelantes através das conclusões acabadas de transcrever. É o que resulta da conjugação dos artigos 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do Código de Processo Civil (CPC).

            2.1. A questão central do recurso – e trata-se da única questão verdadeiramente relevante colocada pelas Apelantes na motivação – corresponde à afirmação da caducidade da acção de investigação de paternidade[7], proposta pelo A. em 08/05/2009, aos 74 anos de idade, um ano e cinco meses após a morte da pessoa a quem o A. atribuiu (com razão, como se demonstrou) essa paternidade[8]. A caducidade refere-se aqui, tendo em conta a aplicação directa (no sentido de não processualmente retroactiva) das alterações introduzidas nos prazos de investigação de paternidade pela Lei nº 14/2009, de 1 de Abril [v. nota 2 (b), supra], ao esgotamento, desde há muito, à data da propositura desta acção, do prazo de 10 anos, posterior à maioridade do A., previsto no artigo 1817º, nº 1 do CC – estamos a pressupor aqui, relativamente ao regime pregresso, que o (novo) prazo estabelecido no nº 1 desta disposição, introduzido pelo artigo 1º da Lei nº 14/2009 (cifra-se este em 10 anos, contados após a maioridade), implicou a fixação de um prazo que, sendo mais longo que o(s) anterior(es), já estava esgotado ao abrigo da lei antiga, preenchamos este elemento referencial (lei antiga) como preenchermos[9], não correspondendo esta situação, portanto, à facti species do artigo 297º, nº 2 do CC (não estamos, face à nova lei, perante um prazo que ainda estivesse em curso e no qual, portanto, houvesse que computar o tempo já decorrido desde o seu termo inicial).

            É esta a questão – qual o prazo de caducidade desta acção –, como já se mencionou, que verdadeiramente importará dilucidar no presente recurso.

            2.1.1. Note-se, todavia – e continuamos a isolar, preambularmente, todos os fundamentos da apelação suscitados pelas Apelantes nas diversas conclusões –, que o recurso aspira a incidir, paralelamente, sobre uma pretensa nulidade resultante da quesitação de matéria dita “versa[r] direitos indisponíveis” (v. conclusão 11., supra transcrita), sendo que isto haveria sucedido através do aditamento do quesito 22º em julgamento (aditamento que as Apelantes – lembramo-lo –, propuseram em conjunto com o A/Apelado e, como tal, aceitaram expressa e inequivocamente, cfr. o relato constante do item 1.4. deste Acórdão).

Vamos “esquecer” que as Apelantes pretendem criticar o que, conjuntamente com o Apelado, propuseram e aceitaram nos passos introdutórios do julgamento, não deixaremos de observar, todavia, que a afirmação de uma hipotética impossibilidade de quesitação de matéria respeitante a direitos indisponíveis, referida ao teor do quesito 22, constitui um argumento incoerente e sem qualquer sentido (quesitar corresponde, tão-só, e disso não restam dúvidas, a formular perguntas para depois obter, através da prova, respostas; quesitar não corresponde, portanto, a fixar um facto como provado com base numa afirmação de pendor confessório). Com efeito, traduz a asserção defendida pelas Apelantes, em si mesma, um verdadeiro solecismo. Esquecem as Apelantes que ninguém declarou provado, desde logo, esse quesito 22; quesitou-se essa matéria porque ainda não estava (não podia estar) provada e se ia fazer incidir sobre a mesma, posteriormente, a prova existente e que viesse a existir, sendo isso, tão-só, o que o Tribunal a quo aqui fez: respondeu, posteriormente, à matéria quesitada – e é óbvio que respondeu bem –, com base na prova pericial da qual dispunha no processo, sendo que só não dispôs de outra prova, porque ambas as partes – as Apelantes também – prescindiram da produção de qualquer prova adicional (prescindiram concretamente da prova testemunhal que haviam oferecido).

            E o mesmo sucede com a invocação do suposto carácter conclusivo do quesito – do quesito cuja redacção, pasme-se de novo, também foi proposta pelas Apelantes –, configurando-se aqui a redacção desse quesito, melhor ou pior que ela tenha sido alcançada, como perfeitamente contida na alegação inicial do A. de ser filho de C… (v. artigo 5º da p.i., transcrito no texto para o qual remete a nota 5, supra), não correspondendo à verdade – traduz outro dos erros argumentativos das Apelantes – dizer (v. a conclusão 13., supra transcrita) que a causa de pedir foi a “posse de estado” e que isso bloquearia a “prova directa” da relação biológica de filiação, enquanto suposta causa de pedir diversa.

A causa de pedir nas acções de investigação da paternidade é sempre a mesma, nunca é a chamada “posse de estado”, já que ninguém adquire a qualidade jurídica de filho de alguém por ser tratado como tal; a causa de pedir corresponde nestas acções, sempre, “[ao] facto naturalístico da procriação biológica do filho pelo réu a quem a paternidade é imputada, perspectivado como facto natural dotado de relevância jurídica”[10], tratando-se as situações indicadas nas diversas alíneas do nº 1 do artigo 1871º do CC, designadamente a da alínea a) – “[q]uando o filho houver sido reputado e tratado como tal pelo pretenso pai e reputado como filho também pelo público (a tal “posse de estado”) –, apenas a presunções legais de paternidade reportadas à demonstração daquela causa de pedir e cujo afastamento depende da existência de dúvidas sérias sobre a realidade da paternidade por elas fortemente indiciada (nº 2 do artigo 1871º)[11].

            Não existe qualquer razão, pois, para que a resposta ao indicado quesito 22 seja aqui considerada “não escrita”, nos termos do artigo 646º, nº 4 do CPC, como pretendem as Apelantes, e não vislumbra esta Relação qualquer fundamento sério para alterar os factos considerados provados na primeira instância, nos termos do artigo 712º, nº 1, alínea a) do CPC, como também pretendem as Apelantes, com base numa argumentação manifestamente improcedente.

            2.2. Valem estas considerações pela afirmação de terem sido correctamente fixados todos os factos na instância precedente, não se justificando qualquer intervenção deste Tribunal a esse respeito.

Assim, sem esquecer que a presente acção foi proposta em 8 de Maio de 2009[12], os factos a considerar – os fixados pelo Tribunal a quo – são os que aqui se deixam transcritos, tendo por base o texto da Sentença:


“[…]
            [transcrição de fls. 88]

            2.3. À não prova dos quesitos correspondentes ao que se designa habitualmente por “posse de estado” (quesitos 3 a 21, v. fls. 52/54, cfr. fls. 84), elemento também alegado pelo A. na estruturação argumentativa da acção, paralelamente ao nexo de filiação biológica, àquela não prova, dizíamos, correspondeu a prova directa deste nexo, através do método cientifico documentado no relatório pericial de fls. 71/72 (v. artigos 1801º e 388º ambos do CC) e não por simples funcionamento de uma presunção relativamente à qual se não suscitaram “dúvidas sérias” (v. artigo 1817º, nºs 1 e 2 do CC). Ficou afastada, assim, a eventualidade de aferição da questão da paternidade aqui colocada, no que respeita ao exercício tempestivo do correspondente direito de acção, face aos prazos e modo de contagem destes, previstos nos nºs 2, 3 e 4 do artigo 1817º do CC. O prazo a considerar aqui é, pois, exclusivamente, o prazo geral de 10 anos – chamemos-lhe assim – indicado no nº 1 do mesmo artigo 1817º do CC, na redacção neste introduzida pela Lei nº 14/2009.

            A indicada prova directa, que veio a ter reflexo no circunstancialismo contido na alínea I) do elenco fáctico acima transcrito, decorrente da resposta positiva ao já referido quesito 22, implicou a afirmação da asserção positiva quanto ao nexo de derivação biológica do A. relativamente ao C…, pai das RR. Sabe-se, pois, que o A. é biologicamente irmão das RR., partilhando estas com aquele o mesmo pai. A prova desta asserção de facto foi, com efeito, directamente alcançada na presente acção.

            Sendo certo que se atingiu aqui a fase de julgamento, nada há a objectar, bem pelo contrário, à fixação desse facto como provado pelo Tribunal. Porém, o estabelecimento, em função desse mesmo facto, da relação jurídica expressa na filiação, sempre dependerá do preenchimento de um outro requisito com suporte legal, concretamente da circunstância dessa prova directa ter sido alcançada – e esta constitui uma afirmação que a ulterior exposição justificará – por via de uma adjectivação situada dentro de um determinado prazo, sendo este, à partida, atendendo à data da propositura da acção e como antes se disse, o de dez anos, previsto no nº 1 do artigo 1817º do CC[13], correspondendo ele a um prazo de caducidade reportado ao direito de acção[14].

            Tratar-se-ia, pois, para o Tribunal a quo, observando o disposto no artigo 1817º, nº 1 do CC, na redacção em vigor no dia 8 de Maio de 2009, de aplicar esse prazo ao caso concreto e, aplicando-o, de constatar que o mesmo já se havia esgotado nessa data, correspondente à propositura da acção, com a consequente verificação da excepção peremptória correspondente a essa extinção do direito invocado.

            2.3.1. A primeira instância só assim não procedeu por ter considerado, como se depreende do texto da Sentença, não obstante a letra da lei, inexistir qualquer prazo, seguindo a tal respeito um entendimento que se vem expressando em variadíssimos precedentes persuasivos decorrentes da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça. Com efeito, seguindo esta linha jurisprudencial, neste tipo de acções – rectius, nas acções visando a investigação da paternidade –, inexiste qualquer prazo, seja ele qual for, de caducidade[15], entendimento este que o Supremo Tribunal vem reportando interpretativamente à invocação de um aprofundamento do sentido do Acórdão do Plenário do Tribunal Constitucional nº 23/2006 (Paulo Mota Pinto)[16], quanto à materialização da investigação da paternidade em termos de garantia do direito fundamental à identidade e historicidade pessoais.

Este Acórdão do Tribunal Constitucional, como é sabido, declarou, em sede de fiscalização abstracta sucessiva (face a três decisões positivas de inconstitucionalidade, v. artigo 281º, nº 3 da Constituição), a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, “[…] da norma constante do n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil, aplicável por força do artigo 1873.º do mesmo Código, na medida em que prevê, para a caducidade do direito de investigar a paternidade, um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante, por violação das disposições conjugadas dos artigos 26.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa” (sublinhado acrescentado)[17].

            2.3.1.1. Tenha-se presente que este pronunciamento do Tribunal Constitucional não incidiu sobre a questão geral da existência de prazos para efeito de investigação de paternidade, esgotando-se, assumidamente, na simples apreciação da conformidade constitucional de um determinado prazo – do prazo de dois anos que então constava do artigo 1817, nº 1 do CC.

            Nisto mesmo, aliás, colocou o Tribunal um particular ênfase no próprio texto da fundamentação desse Acórdão nº 23/2006, como se alcança através do trecho que aqui transcrevemos:
“[…]
Importa começar por deixar bem vincado que, na averiguação da conformidade constitucional da solução limitativa, actualmente consagrada na norma ora em apreço, o que está em questão não é qualquer imposição constitucional de uma «ilimitada (…) averiguação da verdade biológica da filiação». Pese embora a tese defendida pelo recorrente, de que qualquer caducidade da acção de investigação de paternidade é inconstitucional, no presente recurso está apenas em questão o concreto limite temporal previsto no artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, de dois anos a contar da maioridade ou emancipação (portanto, no máximo, os vinte anos de idade do investigante). Não constitui, assim, objecto do presente processo apurar se a imprescritibilidade da acção corresponde à única solução constitucionalmente conforme. Antes o que está em causa é, apenas, a constitucionalidade da específica limitação prevista nesta norma, que (salvo casos excepcionais, como o da existência de «posse de estado») exclui o direito a averiguar a paternidade depois dos 20 anos de idade: a acção «só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dois primeiros anos posteriores à sua maioridade ou emancipação». É este limite temporal de «dois anos posteriores à maioridade ou emancipação», e não a possibilidade de um qualquer outro limite, que cumpre apreciar – e, consequentemente, só sobre aquele específico limite temporal, previsto actualmente no artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, se poderá projectar o juízo de (in)constitucionalidade a proferir.
Nem é, aliás, o regime de imprescritibilidade a única alternativa pensável ao regime do artigo 1817.º, n.º 1, do actual Código Civil. Importa, na verdade, considerar que a norma em apreço exclui a possibilidade de investigar a paternidade depois de esgotado um prazo de dois anos que se conta a partir de um dies a quo puramente objectivo, isto é, que não depende de quaisquer elementos relativos à possibilidade concreta do exercício da acção – como, por exemplo, a procedente impugnação da paternidade (cfr., sobre esta hipótese, o já citado acórdão n.º 456/2003), fundadas dúvidas sobre a paternidade que esteja estabelecida, ou, mesmo em caso de inexistência de paternidade determinada, o conhecimento ou a cognoscibilidade supervenientes de factos ou circunstâncias que possibilitem ou justifiquem a investigação.
Aliás, é também logo por estes elementos serem irrelevantes no regime legal, e antes o prazo, de apenas dois anos, se contar imediatamente a partir da maioridade ou emancipação, mesmo que não existam quaisquer elementos relativos ao possível ou provável progenitor (ou, por exemplo, para duvidar de uma paternidade estabelecida, ou apenas socialmente conhecida), que também não pode proceder, como justificação para a exclusão do direito à investigação da identidade dos progenitores, a invocação da inércia ou do desinteresse do filho nesta investigação. Tal ideia («dormientibus non succurrit jus») pressuporia que o prazo apenas se contasse a partir do momento em que se tornou possível a acção, ou, pelo menos, que o prazo para ela, ainda que contado a partir de um dies a quo objectivo, fosse muito mais alargado. A inércia ou pouca diligência do filho na promoção da investigação não é, pois, normalmente referida como fundamento para a admissibilidade do regime ora em questão, que, reconhecendo um direito (ou a dimensão de um direito) fundamental dirigido ao conhecimento da paternidade, costuma apoiar-se, antes, na existência de outros valores ou interesses, dignos de tutela, que seriam susceptíveis de justificar a exclusão do direito a averiguar a filiação biológica, ou de relativizar esta.
Seja como for – e é o ponto que, para deixar claro o alcance do juízo que o Tribunal profira, importa frisar –, no presente processo está apenas em apreciação o prazo de dois anos a contar da maioridade ou emancipação, e não a possibilidade de um qualquer outro limite temporal para a acção de investigação de paternidade, conte-se este a partir também da maioridade ou da emancipação, ou tenha outro dies a quo.
[…]”
            [sublinhado aqui acrescentado]

            Aliás, delimitando o ponto de consenso reflectido no pronunciamento do Plenário do Tribunal Constitucional quanto às possíveis externalidades deste elemento estruturante do entendimento plasmado na solução que aí fez vencimento, temos o voto concordante particular da Exma. Conselheira Maria dos Prazeres Beleza nesse Acórdão nº 23/2006[18], no qual esta Magistrada deixou nota do seguinte:
“[…]
Votei a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral – e não o Acórdão n.º 11/2005, do qual me distanciei pelas razões constantes da declaração de voto que então juntei –, porque a entendo como apenas julgando censurável a fixação de um prazo impreterível de dois anos para a caducidade do direito de propor a acção, e como não impedindo, nos casos de fiscalização concreta, julgamentos de não inconstitucionalidade como o que foi proferido no acórdão n.º 525/2003, de que fui relatora, no qual foi tomado em conta, nomeadamente, o prazo decorrido entre a data em que o investigante atingiu a maioridade e a data da propositura da acção de investigação.
[…]”

            Foi neste estado de coisas – o que podemos expressar na afirmação: é inconstitucional que a acção de investigação tenha de ser proposta, improtelavelmente, “[…] nos dois primeiros anos posteriores à […] maioridade […]” do investigante –, tão-só, que o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 23/2006, deixou a aludida questão dos prazos, valendo isto pela afirmação de que a nossa jurisprudência constitucional nunca se pronunciou pela desconformidade ao texto constitucional de um entendimento que sujeitasse a algum prazo de caducidade (algum prazo mais longo que o de dois anos posteriores à maioridade do investigante) as acções de investigação de paternidade. Diversamente, o Tribunal Constitucional sempre teve o cuidado de subtrair (no Acórdão nº 23/2006 e noutros) o seu pronunciamento a essa hipotética externalidade.  

            No Acórdão desta Relação de 23/06/2009 (referido na nota 2 (b), supra[19]), teve o ora relator (acompanhado pelos Exmos. Adjuntos Desembargadores Jacinto Meca e Luís Falcão de Magalhães) o ensejo de equacionar, num caso com pontos de contacto com o presente, mas dele distinto na sua essência profunda, as possibilidades que o indicado Acórdão nº 23/2006 abria ao subsequente interprete quanto à existência de prazos para a propositura de acções de investigação da paternidade:
“[…]
A consequência para a norma em causa nesta decisão do Tribunal Constitucional, resulta, para dizer-mos o óbvio, do texto da Constituição (artigo 282º, nº 1) e traduziu-se na produção de «[…] efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional […] determina[ndo] a repristinação das normas que ela haja eventualmente revogado».
[…]
O efeito normal – chamemos-lhe assim – da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral contida no Acórdão nº 23/2006, traduzir-se-ia, pois, na repristinação da norma antecessora do artigo 1817º, nº 1 do CC. Ora, sendo certo que o prazo nesta previsto foi desde logo introduzido pela versão inicial do Código Civil de 1967 (Decreto-Lei nº 47344, de 25 de Novembro de 1966), seríamos remetidos, por via do efeito repristinatório, para uma «recuperação do regime do Código de Seabra, no trecho temporal deste posterior à chamada «Lei da protecção dos filhos da I República (Lei nº 2 de 25 de Dezembro de 1910, publicada no Diário do Governo, nº 70, de 27 de Dezembro de 1910).
[…]”
            [notas de rodapé no original aqui omitidas]

            E acrescentámos mais adiante na indicada decisão desta Relação, a propósito da eventualidade de um efeito repristinatório referido à legislação correspondente da I República (o tratamento legal da questão que, aparentemente, poderia ser feita “renascer” pela declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, num encadeamento lógico projectado retroactivamente):
“[…]
[S]eria a recuperação serôdia do sistema […] antecedente do Código Civil (a recuperação do sistema que vigorou entre 1910 e 1967), que a ideia de repristinação introduziria, após a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral. Cabe sublinhar, todavia, que a aceitação incondicional dos efeitos repristinatórios neste caso não se afiguraria uma solução particularmente feliz, no sentido de adequada à realidade presente: traduziria a reintrodução de um regime de complicada compatibilização prática com o actual, encarado este na sua unidade estrutural, dado que assentava e pressupunha (o sistema anterior a 1967) conceitos de difícil transposição para o presente, prefigurando-se neste caso a repristinação como uma solução pouco razoável, desfasada do nosso tempo (que não é o de 1967, mas também não é o de 1910) exterior ao espírito do sistema e que não contribuiria para a unidade lógica deste[[20]]. Isso mesmo, aliás, foi intuído e afirmado pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, quando foi confrontada com a questão das consequências da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do artigo 1817º, nº 1 do CC. É este o sentido, com efeito, da afirmação contida no Acórdão do STJ de 17/04/2008 (Fonseca Ramos)[[21]], de que “[a] questão decidida pelo Tribunal Constitucional, no sentido da inconstitucionalidade do prazo de caducidade, não repristina qualquer norma, apenas deixa sem prazo tais acções”.
[…]”
[sublinhado e notas de rodapé no original, estas, todavia, com distinta numeração]

            A alternativa interpretativa seguida pelo Supremo Tribunal de Justiça, face ao Acórdão nº 23/2006 do Tribunal Constitucional, foi, como acima já se indicou neste Acórdão (na nota 16 e no texto para o qual esta remete) a de considerar inadequado – no sentido de estar constitucionalmente vedado[22] – o estabelecimento de qualquer prazo para as acções visando a investigação da paternidade.

            Existiria, todavia, não deixando de preencher o mesmo desiderato de dar seguimento à declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral constante desse Acórdão nº 23/2006, com a consequente eliminação do prazo de dois anos, uma outra alternativa interpretativa. A ela aludimos nesse Acórdão desta Relação de 23/06/2009 (o identificado nas notas 2 (b) e 20, supra), caracterizando a incidência dessa possibilidade – aí meramente hipotética – nos seguintes termos:


“[…]
Claro que existiria, para o intérprete aplicador, uma outra alternativa de resposta ao efeito de desaparecimento do prazo do nº 1 do artigo 1817º do CC, decorrente da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral. Referimo-nos à supressão dessa falta de prazo – tendo presente que o Tribunal, como se disse antes, não inviabilizou a fixação de todo e qualquer prazo –, através da criação, “[…] dentro do espírito do sistema […]” (integrado este à luz do pronunciamento do Tribunal Constitucional) de um (outro) prazo de caducidade das acções de investigação de paternidade que, alargando substancialmente os dois anos subsequentes à maioridade (que correspondem hoje em dia aos 20 anos de idade), criasse um espaço temporal de equilíbrio e viabilidade, referidos à maturidade do investigante, para o exercício do direito a ver judicialmente estabelecida a respectiva paternidade. Tratar-se-ia de uma opção assente na detecção de uma lacuna, enquanto incompletude (uma situação que deixou de estar prevista) de um sistema que na sua essência postularia uma regulação daquela situação, através do estabelecimento de um prazo[[23]]. Agir-se-ia, assim, num quadro de integração de uma lacuna, com base no nº 3 do artigo 10º do CC, ou seja, «criando» o próprio intérprete a norma (contendo o prazo) como «[…] se [este] houvesse de legislar dentro do espírito do sistema«.
Constituiria este um caminho possível – sublinhamos aqui o adjectivo «possível» –, face ao Acórdão nº 23/2006, caminho este que reputamos de perfeitamente conforme às legis artis interpretativas.
[…]”
            [notas de rodapé no original com distinta numeração]

            Como decorre de toda a antecedente exposição, não foi este o caminho seguido pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, quando confrontada com acções em que o investigante, ultrapassados os dois anos subsequentes à respectiva maioridade, pretendia estabelecer a respectiva paternidade.

            2.3.1.2. A decisão de primeira instância aqui apelada acaba por reflectir esse entendimento jurisprudencial, tal como assumidamente a reflectiu o Acórdão desta Relação de 06/07/2010[24], em cujo sumário (no trecho aqui relevante) se lê:


“[…]
IV – Com a publicação da Lei nº 14/2009, de 14/04, foram alterados os artigos 1817º e 1842º CC, aumentando-se os prazos de caducidade, cujo artigo 3º impõe a aplicação dessa lei aos processos pendentes – o artigo 1817º prevê, agora, o prazo-regra de 10 anos posteriores à maioridade ou emancipação (nº 1) e prazos especiais (nº 3, alíneas a), b) e c)).
V – Contudo, é dogmaticamente mais consistente a tese da imprescritibilidade deste tipo de acções, por estar em causa o direito à identidade pessoal, no qual se insere o chamado «direito ao conhecimento da ascendência biológica», enquanto direito fundamental – artigo 26º, nº 1, CRP –, tratando-se de um direito de personalidade imprescritível.
VI – Assim, deve entender-se que, nesta matéria, os prazos de caducidade, sejam eles quais forem, traduzem uma restrição desproporcionada ao direito fundamental à identidade pessoal, mais precisamente ao direito à historicidade pessoal, sendo, por isso, inconstitucionais as normas dos artigos 1817º e 1842º CC, na redacção introduzida pela Lei nº 14/2009, de 1/04, com o alargamento dos prazos.
VII – As acções de investigação de paternidade e de impugnação da paternidade presumida, instauradas pelo filho, não estão sujeitas a prazos de caducidade.
[…]”

            Incidindo precisamente sobre a questão da imprescritibilidade deste tipo de acções, consta deste último Acórdão um voto de vencido do ora relator, do qual se transcreve a seguinte passagem na qual este problema (que acaba por constituir o problema também aqui relevante) é abordado:


“[…]
[N]ão tenho por seguro que o «direito à historicidade pessoal», enquanto direito à investigação e estabelecimento do respectivo vínculo biológico (paternidade ou maternidade), no quadro do direito à identidade pessoal previsto no artigo 26º, nº 1 da CRP, acarrete a inconstitucionalidade material do estabelecimento de todo e qualquer prazo, seja ele qual for, de caducidade para este tipo de acções. Reconheço que o entendimento que aqui fez vencimento corresponde ao sentido invariavelmente afirmado pela mais recente jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores, concretamente pelo STJ. Todavia, não excluo que a fixação de um prazo de caducidade particularmente alargado, seguramente superior ao de 10 e de 3 anos decorrente da Lei nº 14/2009 – por exemplo, no caso do primeiro destes, um prazo de 20 anos, tomando por referência o estabelecido no artigo 309º do CC –, não excluo, dizia, que a fixação desse prazo alargado possa representar, mesmo pressupondo a enorme densidade axiológica do direito à identidade pessoal e a sua tendencial preponderância, um ponto de equilíbrio aceitável entre a afirmação deste e a do valor da segurança jurídica representado pela estabilização a longo prazo das relações familiares, designadamente no seu elemento patrimonial, enquanto solução conforme à actuação do princípio da proporcionalidade previsto no nº 2 do artigo 18º do texto constitucional.
Sublinho a este respeito que o Tribunal Constitucional nunca afirmou a inconstitucionalidade da existência de prazos, fossem eles quais fossem, de caducidade das acções visando o estabelecimento da paternidade ou da maternidade – o Tribunal, aliás, sempre recusou expressamente estender as suas apreciações para além dos específicos prazos que se lhe apresentavam no caso concreto –, permanecendo a possibilidade da existência de prazos como questão em aberto na nossa jurisprudência constitucional.
[…]”
[sublinhado no original com omissão das notas de rodapé]

            2.3.2. Ora, é o entendimento subjacente a este voto de vencido que aqui pretendemos adoptar, alcançado que foi o consenso entre os intervenientes no julgamento deste recurso, face às particulares incidências do caso concreto, a saber: uma acção de investigação de paternidade proposta, em 08/05/2009, mais de um ano após o falecimento da pessoa indicada como pai, tendo o investigante 74 anos de idade à data da propositura da acção[25].

            Defenderemos, pois, no trecho do percurso argumentativo que ora encetamos, a não existência de um fundamento constitucional que impeça, com carácter absoluto, contrariamente ao que é invariavelmente afirmado pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, o estabelecimento de um prazo – obviamente de um prazo particularmente alargado – de caducidade do reconhecimento judicial (da investigação) da paternidade e que, em função de tal entendimento, a supressão do ordenamento jurídico português do prazo de dois anos posteriores à maioridade do investigante, operada pelo Acórdão nº 23/2006 do Tribunal Constitucional, não inviabilizou a fixação de todo e qualquer prazo.

Assim, atendendo a que, posteriormente ao referido pronunciamento da jurisdição constitucional, o legislador acabou por fixar um outro prazo que aqui seria directamente aplicável (o prazo de dez anos decorrente da redacção introduzida no nº 1 do artigo 1817º do CC pela Lei nº 14/2009)[26], a questão da consideração de um prazo sempre terá de passar, neste caso, pelo controlo da conformidade constitucional da norma contendo esse concreto prazo, face à projecção actuante do direito à identidade pessoal (artigo 26º, nº 1 da Constituição) na leitura que a nossa jurisprudência constitucional vem efectuando deste por referência à adjectivação do reconhecimento judicial da relação de filiação.

Finalmente, considerando-se – como se considerará – que o novo prazo introduzido pelo legislador, num aparente cumprimento da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, continua a não respeitar integralmente a “enorme densidade axiológica d[esse] direito à identidade pessoal e a sua tendencial preponderância” (disse-se no voto de vencido do ora relator acima transcrito e aqui o repetimos), face a outros valores constitucionais potencialmente conflituantes, entendendo-se isto, dizíamos (e isto significará que dez anos continua a ser um prazo não aceitável), colocaremos em prática a possibilidade já equacionada no mencionado Acórdão desta Relação de 23/06/2009 (identificado nas notas 2 (b) e 20, supra), encarando a falta de um prazo[27] como uma lacuna – entendendo que o “sistema” postula uma legítima opção pela existência de um prazo de caducidade para investigar a paternidade –, e procedendo à integração dessa lacuna, faltando verdadeiramente um  “caso análogo” (artigo 10º, nº 1 do CC), através da criação pelo intérprete, “dentro do espírito do sistema”, de uma “norma”, com aparente vocação de generalidade, fixando um prazo de caducidade para esta acção, nos termos do nº 3 do artigo 10º do CC[28].

2.3.2.1. Como ponto de partida, já antes equacionado, sustentamos inexistir fundamento constitucional que impeça o estabelecimento de todo e qualquer prazo de caducidade para as acções de investigação da paternidade, decorrendo desta asserção a não aceitação do pendor absoluto e generalizante, referido ao estabelecimento de todo e qualquer prazo, que alguma jurisprudência, designadamente a do Supremo Tribunal de Justiça, vem assumindo ao afirmar a imprescritibilidade das acções de investigação de paternidade.

Vale aqui a já referenciada recusa – que como vimos é expressa – da nossa jurisprudência constitucional em afirmar (ou mesmo em sugerir) tal asserção de inadequação de todos os prazos para além – na situação que aqui nos interessa – do de dois anos especificamente previsto na redacção do nº 1 do artigo 1817º do CC visada no Acórdão nº 23/2006. Trata-se este de um argumento que, não sendo absolutamente decisivo (em rigor estamos a valorar, algo especulativamente, o que o Tribunal Constitucional não decidiu), assume, tal argumento, dizíamos, em nosso entender, um peso muito significativo.

É sintomática, com efeito, não se podendo dela fazer descaso, essa repetida preocupação do Tribunal Constitucional em situar os seus pronunciamentos de inconstitucionalidade no concreto (estreito) referencial da norma especificamente apreciada, sendo certo que esta delimitação aparece sempre associada, desde logo nesse Acórdão nº 23/2006, à afirmação de não ser “[…] o regime de imprescritibilidade a única alternativa pensável ao regime do artigo 1817.º, n.º 1, do actual Código Civil” (citação extraída da fundamentação do referido aresto; existindo afirmações de pendor idêntico noutros pronunciamentos do Tribunal). Dir-se-á que a essa preocupação presidem, primeiramente, razões de precisão quanto à delimitação do thema decidendum em causa nas diversas situações concretas.

Cremos que é, efectivamente, assim.

Porém, num segundo plano – que é o que nos legitima a esgrimir aqui esse argumento –, a reiteração da afirmação afigura-se-nos expressiva e intencional, quanto à não consideração de que estejam abrangidas por essa fundamentação hipotéticas fixações de outros prazos pelo legislador. Em suma, estamos em crer que o Tribunal nunca pretendeu caucionar com o seu entendimento a consideração de todas as acções de investigação de paternidade como imprescritíveis, nunca tendo partilhado os argumentos presentes na aludida jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça.

Como se indica no Acórdão nº 626/2009 do Tribunal Constitucional (João Cura Mariano)[29], “[o] parâmetro constitucional mais relevante para a aferição da legitimidade da previsão legal de limitações temporais ao direito de investigar a paternidade encontra-se no artigo 26º, nº 1 da Constituição, nos termos do qual é reconhecido o direito à identidade pessoal a todos os cidadãos”. Uma dimensão relevante desta materializa-se no que poderemos referir como o direito à “identidade biológica” sendo que terá de pressupor uma possibilidade efectiva de adjectivação, situada dentro de limites temporais tendencialmente amplos, da determinação dessa identidade através de um Tribunal (isto é, o direito ao reconhecimento judicial desta), realizando-se este, no caso da determinação de uma paternidade omissa no registo, através da chamada acção de investigação.

A sujeição desta a prazos deve ser vista, pois, como uma restrição de um direito – não como a simples “configuração” de um direito, como até 2003 o Tribunal Constitucional tendeu a considerar[30] – e, nesse sentido, como restrição de um direito que é, devem os limites a essa adjectivação passar no crivo do princípio da proporcionalidade decorrente do nº 2 do artigo 18º da Constituição[31], encontrando-se uma justificação suficiente para a limitação, ponderando-se se esta é referenciável à garantia de um outro direito, também ele dotado de estalão constitucional, e se a mesma se afigura como adequada à estrutura identitária de ambos os direitos.

Voltando ao percurso argumentativo seguido pelo Tribunal Constitucional no indicado Acórdão nº 626/2009 – que aqui seguimos como paradigma do modelo interpretativo expositivo normalmente presente na jurisprudência do Tribunal –, diremos que “[a] importância da identidade biológica é fácil de alcançar já que o conhecimento dos progenitores significa o conhecimento do princípio da existência de cada indivíduo e responde ao interesse de todo o ser humano em saber donde provém a sua própria vida e quem o precedeu biológica e socialmente”, embora – acrescenta-o também o Tribunal Constitucional no aresto que vimos citando – “[i]sso não impe[ça] […] que o legislador possa modelar o exercício de um tal direito em função de outros interesses ou valores constitucionalmente tutelados”.

Ora, na determinação destes interesses ou valores dotados de um referencial constitucional suficiente para serem incluídos num par de comparação valorativa (e a comparação não pressupõe qualquer paridade valorativa, pressupõe apenas a sede desses valores no – porventura a não indiferença desses valores ao – texto constitucional), vamos encontrar – e volvemos agora ao voto de vencido já antes mencionado do ora relator –, longinquamente, dada “[…] a enorme densidade axiológica do direito à identidade pessoal e a sua tendencial preponderância […]”, vamos encontrar, dizíamos, quando já passaram bastantes anos – e cremos que terão de ser muitos anos –, “[…] o valor da segurança jurídica representado pela estabilização a longo prazo das relações familiares, designadamente no seu elemento patrimonial […]”, enquanto valor que acaba por adquirir, nessas circunstâncias de tempo, um sentido comparativo preponderante sobre os interesses que se expressam nesse estabelecimento de uma filiação, já tão desfasada no tempo. Nestes casos – quando já passaram muitos anos sobre a maioridade do investigante e não se coloca uma questão de conhecimento muito recente das circunstâncias atributivas da paternidade ao investigado[32]a actuação de um prazo (obviamente expresso num lapso de tempo – e a repetição sublinha o sentido profundo do argumento aqui esgrimido – particularmente longo) de caducidade das acções de investigação de paternidade, por exemplo, no caso do prazo geral previsto no nº 1 do artigo 1817º do CC, um prazo de 20 anos (após a maioridade do investigante), tomando por referência o prazo ordinário de prescrição previsto no artigo 309º do CC, afigura-se-nos, este prazo, dizíamos, uma solução correcta, “[…] conforme à actuação do princípio da proporcionalidade previsto no nº 2 do artigo 18º do texto constitucional” (as diversas citações provêm do voto de vencido acima mencionado).

É este o sentido profundo do argumento em favor da existência de um prazo geral de caducidade da investigação e é este o prazo – 20 anos posteriormente à maioridade do investigante – que consideramos como o mais adequado. “Criá-lo-emos”, pois, ad hoc, em vista do caso concreto, dentro do espírito do sistema, nos termos já anteriormente mencionados.

Acrescentaremos entretanto, completando a caracterização da posição aqui defendida, que as incidências práticas – as incidências menos valiosas – da total ausência de um prazo para a propositura da acção visando o estabelecimento da paternidade não passaram desapercebidas à doutrina portuguesa. Elas são expressivamente equacionadas por Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, nos seguintes termos:


“[…]
E se a ausência de prazos permite que uma acção seja intentada muito tempo depois do que podia e devia, perturbando nitidamente o suposto pai, com o mero intuito de o irritar ou de obter proveitos materiais, ofendendo, em alguma medida, os seus direitos à reserva da intimidade e ao desenvolvimento da personalidade, e o direito à reserva da intimidade da sua família, temos de admitir que, depois de se dar ao filho um direito imprescritível, uma acção pode merecer o obstáculo do sistema jurídico, ao menos em casos-limite. Os obstáculos resultarão das potencialidades da norma geral sobre o «abuso do direito», ou de um remédio específico como o que vigora no direito de Macau, que determina a «ineficácia patrimonial» do estabelecimento do vínculo (artigo 1656º CC Macau) quando a acção é intentada mais de quinze anos depois do conhecimento dos factos de onde se podia concluir a paternidade[[33]] e, além disto, quando se mostre que a intenção principal do autor é a obtenção de benefícios patrimoniais. De uma maneira ou de outra, nesses casos-limite o autor seria tratado como se não tivesse o direito que invoca – porque nunca o quis usar quando podia fazê-lo, porque se guardou para um momento em que o suposto pai organizou a sua vida em favor de outros herdeiros, porque o autor não pretende mais do que facturar no seu activo patrimonial.”[34]
            [nota de rodapé acrescentada]

            A possibilidade de se recorrer ao instituto geral do abuso do direito (artigo 334º do CC) subsistirá sempre, com ou sem um prazo geral, como válvula de escape do sistema, apta a propiciar uma valoração das incidências concretas de uma determinada situação, mesmo que isso suceda em circunstâncias temporais menos alargadas que os 20 anos posteriores à maioridade do investigante, enquanto prazo por nós antevisto como o adequado.

A questão da existência de um prazo (de um prazo geral) com essa dimensão de duas décadas posteriores à maioridade do investigante prende-se com um elemento relativamente ao qual, não sendo totalmente irrelevante a valoração das incidências concretas do comportamento desse mesmo investigante, entendemos ser adequada uma definição geral colhida dentro do espírito do sistema.

Com efeito, se no nosso Direito, a generalidade das relações patrimoniais se consolidam definitivamente, em última análise, passados 20 anos de estabilização com determinado conteúdo, entendemos que a referenciação de um prazo de caducidade do direito de acção expresso na investigação da paternidade a esse lapso de tempo, contado este desde o momento em que se atingiu a maioridade (e descontando o conhecimento de circunstâncias supervenientes, enquanto questão-outra, a tratar no quadro dos nºs 2, 3 e 4 do artigo 1817º do CC), entendemos que o estabelecimento de um tal prazo geral, dizíamos, se prefigura como uma solução adequada e fortemente sugerida pela teleologia imanente ao sistema. Não se trata, pois, de fixar algo arbitrariamente um prazo, em simples desafio aos dez anos introduzidos no artigo 1817º, nº 1 do CC pela Lei nº 14/2009, pois encontramos para este prazo (20 anos) um referencial específico, tomado da realidade subjacente ao artigo 309º do CC[35].

            Mas debrucemo-nos antes sobre a questão da existência de um prazo de caducidade da investigação de paternidade, no quadro da afirmação, já antes feita e agora reiterada, de que o sistema vigente entre nós sobre o exercício do direito de investigar a paternidade, sugere que o legislador – quem dispõe de legitimidade directa para esse efeito – pretende a sujeição da adjectivação desse direito a um prazo (para sermos rigorosos, a prazos, moldados por classes de situações tipo).

Com efeito, existe uma intencionalidade diacrónica na nossa legislação sugerindo essa fixação de um prazo geral, enquanto opção legislativa recorrente. A recente edição da Lei nº 14/2009, de 1 de Abril, reflecte, aliás, a persistência dessa intencionalidade – embora de forma que entendemos ter sido menos conseguida –, demonstrando que o legislador pretende, subsistentemente, face às incidências da jurisprudência do Tribunal Constitucional, sujeitar estas situações a um prazo geral, intuindo que o Tribunal Constitucional não pretendeu inviabilizar essa opção. Já antes referimos a legislação da I República (a Lei nº 2 de 25/12/1910), enquanto expressão, anterior ao actual Código Civil, de propiciar um alargamento da investigação da filiação, ultrapassando a proibição até aí existente de obtenção de um reconhecimento judicial da paternidade ilegítima, proibição então decorrente do artigo 130º do Código de Seabra na sua redacção original. Note-se que, todavia, a introdução dessa possibilidade, nos casos em que ocorria para além do prazo geral, então previsto no corpo e nº 1 do artigo 37º dessa Lei nº 2, ou seja nos casos do nº 2 deste artigo 37º desse Diploma, essa possibilidade era condicionada pelas “[…] regras gerais acerca da prescrição dos bens”[36]:

Artigo 37º
A acção de investigação de paternidade ou maternidade só pode ser intentada em vida do pretenso pai ou mãe, ou dentro do ano posterior à sua morte, salvas as seguintes excepções:
1º. Se os pais falecerem durante a menoridade ou demência dos filhos, porque neste caso, têm estes o direito de intentar a acção, contanto que o façam antes que expirem os primeiros quatro anos da sua emancipação ou maioridade ou do estabelecimento da sua razão;
2º. Se o filho obtiver, depois do prazo de um ano indicado neste artigo, um documento escrito e assinado pelos pais, em que estes revelem a sua paternidade; porque, neste caso, pode propor a acção a todo o tempo em que haja alcançado o sobredito documento, se realmente provar que o obteve dentro dos seis meses que procederam a proposição da demanda; isto sem prejuízo das regras gerais acerca da prescrição dos bens.
            [sublinhado acrescentado]


            O sentido da existência de uma limitação temporal alargada referida à ideia de estabilização das relações patrimoniais preenche um dos elementos tradicionalmente indicados pela nossa jurisprudência constitucional. Não se trata, a esse respeito, de algo que tenha perdido, face à evolução da ciência, muito do seu sentido, como sucedeu, como paradigmaticamente o demonstra a presente acção, com o que tradicionalmente se identificava, justificando a existência de prazos relativamente curtos, como “progressivo «envelhecimento» das provas”.

Estamos perante uma realidade (a estabilização das relações dominiais, derivadas das relações familiares, passados lapsos de tempo muito significativos) cujo sentido permanece actual e até, porventura, potenciado nos dias de hoje. É essa a génese teleológica do indicado artigo 1656º do Código Civil de Macau (v. nota 34, supra), traduzindo uma incidência com sentido em sistemas cujo Direito sucessório prevê, como sucede com o nosso, a existência de legítima, enquanto parcela intangível dos bens do de cuius (v. artigo 2156º do CC)[37].
Claro que existem entre nós, concretamente na lei substantiva, outras disposições indutoras deste efeito de estabilização das relações patrimoniais, a longo prazo, aptas a actuar face a uma abertura serôdia do direito de petição de herança ou à latência alargada de um fenómeno de potencial aquisição por via hereditária. Referimo-nos aqui à caducidade (em dez anos) do direito de aceitação da herança, previsto no artigo 2059º, nº 1 do CC e à prescrição aquisitiva (usucapião) dos bens integrantes da herança possuídos por outrem (herdeiro ou não), prevista no artigo 2075º, nº 2 do CC, enquanto obstáculo ao acesso a estes bens por um herdeiro tardio[38]. Ambas as situações se deparam, todavia, com termos iniciais que podem projectar para muito tardiamente, o começo da contagem dos prazos respectivos. Com efeito, no caso do artigo 2059º, nº 1 do CC, os dez anos contam-se do conhecimento do chamamento[39], significando isto – na situação que aqui se configura, por exemplo –, que só o estabelecimento, mesmo que intoleravelmente tardio da paternidade relativamente ao de cuius, teria a potencialidade de determinar o início da contagem dos 10 anos (aqui começaríamos a contá-lo com o trânsito da decisão que estabelecesse a paternidade; terminaria ele próximo dos 90 anos do Apelado). Da mesma forma, a obstaculização pelo decurso da usucapião (artigo 2075º, nº 2 do CC), teria como termo inicial a distribuição hereditária dos bens, sendo que esta, num caso como o que aqui se configura (estabelecimento da filiação de alguém com 75 anos de idade, que “esperou” pela morte daquele a quem atribui a paternidade para desencadear esse estabelecimento, mas fê-lo próximo desta, numa espécie de exercício de “engenharia jurídica”), actuaria de forma intoleravelmente tardia relativamente às expectativas de consolidação de determinado estado de coisas com efeitos patrimoniais.

Vale isto por dizer, que a existência dos obstáculos de tempo que identificámos nos mencionados artigos 2059º, nº 1 e 2075º, nº 2, não afasta a relevância, do ponto de vista da ponderação de interesses aqui equacionada, da existência de um prazo muito amplo (mas actuante independentemente daquelas disposições) de caducidade, referido ao estabelecimento da própria relação de filiação.

É também este o sentido teleológico do estabelecimento de prazos de caducidade autónomos para a investigação de paternidade.      

            2.3.2.2. É sabido – e já foi referido por inúmeras vezes ao longo deste texto – que o legislador, na sequência do Acórdão nº 23/2006 do Tribunal Constitucional (que fez desaparecer o prazo de dois anos anteriormente previsto no artigo 1817º, nº 1 do CC), fixou um novo prazo geral para a propositura das acções de investigação da paternidade, sendo este de dez anos (porventura decalcado, enquanto caso paralelo, do prazo previsto no nº 1 do artigo 2059º do CC). Referimo-nos à redacção introduzida nesse nº 1 do artigo 1817º (aplicável à investigação de paternidade ex vi do artigo 1873º do CC) pelo artigo 1º da Lei nº 14/2009, de 1 de Abril.

            Ora, sendo certo que essa nova redacção do artigo 1817º, nº 1 (esse prazo de dez anos) tem aplicação directa no presente caso, não configurando este uma acção já pendente ao tempo da publicação da Lei nº 14/2009, a não consideração desse mesmo prazo de dez anos, só pode decorrer, no quadro argumentativo que vimos desenvolvendo, da recusa (artigo 204º da Constituição) por desconformidade ao texto constitucional (direito à identidade pessoal previsto no nº 1 do artigo 26º da Constituição, na dimensão já antes caracterizada) do disposto no artigo 1817º, nº 1 do CC, na redacção da Lei nº 14/2009, enquanto previsão de um prazo de dez anos, contados da maioridade ou emancipação do investigante, para o efeito de intentar uma acção visando investigar a respectiva paternidade.

            Já antes aludimos à grande densidade axiológica desta dimensão do direito à identidade pessoal[40]. Trata-se aqui de realizar uma aplicação prática desse elemento, relacionando-o com um prazo de dez anos. Ora, em função dessa particular incidência consideramos, como referimos anteriormente, que o prazo de dez anos ainda se afigura como constituindo uma expressão insuficiente – se preferirmos, ainda temporalmente escassa – desse muito significativo peso valorativo, não existindo no nosso direito uma alternativa de adjectivação do direito de investigar quem é o pai, que não arraste, fora do condicionalismo do artigo 2075º, nº 2 do CC (aplicando-se este), estabelecida que seja a paternidade, as consequências patrimoniais decorrentes desse estabelecimento, por mais tardio que ele seja.

            É neste sentido que assumiremos, adiante, na formulação decisória do presente recurso, a recusa por inconstitucionalidade desse prazo de dez anos, nos termos do artigo 204º da Constituição.

            2.3.2.3. Essa recusa – que, aliás, compartilhamos com a decisão da primeira instância[41] – não nos conduzirá, todavia, como decorre da antecedente exposição, e contrariamente à primeira instância, a entender que deixou de existir qualquer prazo de propositura das acções de investigação de paternidade, passando estas a assumir um carácter imprescritível absoluto.

            Reconhecendo que esse caminho foi seguido pela jurisprudência constante do Supremo Tribunal de Justiça – e que a decisão aqui recorrida é conforme a essa jurisprudência – entendemos, no entanto, nos termos já antes desenvolvidos, por referência à existência de uma lacuna (a falta de um prazo que o sistema sugere como pretendido) sem caso análogo a aplicar, justificar-se o recurso ao artigo 10º, nº 3 do CC, criando ad hoc a “norma” contendo a fixação do prazo que temos por constitucionalmente adequado. Esse prazo é, como também já dissemos, o de 20 anos, contados da maioridade do investigante, ficando essa norma ad hoc, criada pelo intérprete, a ter a seguinte expressão verbal: a acção de investigação de paternidade só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos vinte anos posteriores à sua maioridade ou emancipação.

            Ora, e este constitui o ponto culminante da apreciação do presente recurso, tomando por base este prazo de 20 anos posteriores à maioridade do investigante, constata-se que, tendo este – o A. aqui Apelado – nascido no dia 23 de Julho de 1934, os vinte anos subsequentes à respectiva maioridade já se encontravam esgotados há muito, no dia 8 de Maio de 2009, quando este decidiu propor – como propôs – a presente acção.

            O direito de investigar a respectiva paternidade havia-se, pois, já esgotado (havia já caducado), sendo que esta circunstância conduzia – conduz aqui na fase em que nos encontramos – à improcedência da acção, independentemente do facto fixado em I) do elenco acima transcrito no item 2.2., que o mesmo é dizer, independentemente da recolha de prova quanto ao nexo biológico de filiação.

            Com ou sem esse elemento o direito pretendido fazer valer através da presente acção já estaria, com base no entendimento aqui adoptado, extinto por caducidade em 8 de Maio de 2009.

            2.4. Aqui chegados, resta-nos fixar sequencialmente as asserções decisórias decorrentes do antecedente percurso interpretativo, com a consequente procedência final do recurso, não sem que antes sumariemos esse mesmo percurso:

I – A declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, decorrente do Acórdão nº 23/2006 do Tribunal Constitucional, da norma constante do nº 1 do artigo 1817º do CC, apenas abrangeu o específico prazo de dois anos de caducidade do direito de investigar a paternidade, prazo previsto, então, nessa mesma norma;
II – Este pronunciamento do Tribunal Constitucional não incidiu, assumidamente, sobre a questão da sujeição a prazos de caducidade desse tipo de acções, no que ultrapassasse esses dois anos;
III – Face a esta declaração de inconstitucionalidade, que teve como efeito directo a eliminação da nossa ordem jurídica da norma contendo esse concreto prazo de dois anos, prefigura-se como alternativa ao efeito repristinatório do direito anterior, face à constatação da inadequação da recuperação desse direito, a possibilidade do subsequente intérprete suprir a falta de um prazo, criando, ele próprio, dentro do espírito do sistema, nos termos previstos no artigo 10º, nº 3 do CC, uma “norma” visando o caso concreto, contendo um (outro) prazo de caducidade deste tipo de acções que seja superior aos dois anos subsequentes à maioridade do investigante, enquanto único prazo efectivamente afastado pelo Tribunal Constitucional;
IV – A subsequente fixação pelo legislador, através da nova redacção conferida ao artigo 1817º, nº 1 do CC pela Lei nº 14/2009, de 1 de Abril, de um prazo geral de dez anos, contados da maioridade do investigante, referido à caducidade das acções de investigação da paternidade, pretendeu suprir a falta de um prazo decorrente da mencionada declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral.
V – Tal (novo) prazo continua, todavia, por ainda se afigurar curto, a não expressar, do ponto de vista dos valores constitucionais envolvidos, um adequado ponto de equilíbrio entre a profunda densidade axiológica do direito à identidade pessoal, traduzido no direito de investigar a respectiva paternidade, e o valor da segurança jurídica representado pela necessidade de estabilização a longo prazo das relações familiares no seu elemento patrimonial, valor este referenciado à existência de um prazo geral de caducidade das acções de investigação da paternidade, que actue por sobreposição e antecipação às contagens dos prazos previstos nos artigos 2059º, nº 1 e 2075º, nº 2 do CC;
VI – Tal prazo de dez anos – rectius, a actual redacção do nº 1 do artigo 1817º do CC, aplicada às acções de investigação da paternidade, contendo esse prazo – viola, assim, o disposto nos artigos 26º, nº 1 e 18º, nº 2 da Constituição, originando uma recusa de aplicação dessa norma, por inconstitucionalidade material, nos termos do artigo 204º da Constituição;
VIII – Face à recusa da norma contendo o mencionado prazo de dez anos, dando seguimento ao critério de supressão da falta de um prazo enunciado no ponto III deste sumário, a fixação pelo intérprete de um prazo alargado de vinte anos contados da maioridade do investigante, tomando por referência o prazo ordinário de prescrição (artigo 309º do CC), representa um justificado ponto de equilíbrio entre os valores conflituantes indicados no ponto V do presente sumário.  
III – Decisão
            3. Em função do tudo o que se acabou de expor, decide-se:
A) Recusar a aplicação, por inconstitucionalidade material, nos termos do artigo 204º da Constituição, da norma constante do nº 1 do artigo 1817º do CC, na redacção neste introduzida pelo artigo 1º da Lei nº 14/2009, de 1 de Abril, aplicável neste caso por força do artigo 1873º do mesmo Código, ao prever, para as acções de investigação de paternidade, um prazo geral de caducidade de dez anos contados da maioridade do investigante, por violação das disposições conjugadas dos artigos 26º, nº 1 e 18º, nº 2 da Constituição;
B) Suprir a ausência de um prazo geral de caducidade das acções de investigação da paternidade, decorrente da recusa da norma contendo esse prazo que seria aplicável à situação, através da formulação, nos termos do nº 3 do artigo 10º do CC, da seguinte “norma” visando a aplicação ao caso concreto: a acção de investigação de paternidade só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos vinte anos posteriores à sua maioridade ou emancipação.
C) Constatar, fazendo incidir tal prazo de vinte anos na presente situação, que à data da propositura desta acção (8 de Maio de 2009), tendo em conta que o A. nasceu em 23 de Julho de 1934, tal prazo de caducidade já se mostrava esgotado.

3.1. E, em função de todas estas incidências, decide-se, enfim, julgar procedente a presente apelação, revogando-se a Sentença recorrida e julgando-se, consequentemente, verificada a caducidade da acção, a improcedência do pedido de estabelecimento da paternidade de C..., falecido em 5 de Janeiro de 2008, relativamente ao A./Apelado, M....
Procedendo o recurso, ficam as custas em ambas as instâncias a cargo do A./Apelado

J. A. Teles Pereira (Relator)
Manuel Capelo
Jacinto Meca

[1] O que induz duas constatações respeitantes a aplicação da lei no tempo a este caso:
(a) Vale por dizer, primeiramente, que se trata de processo iniciado posteriormente à entrada em vigor (01/01/2008) do Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, sendo-lhe aplicáveis, por isso, as alterações ao regime dos recursos introduzidas por este último Diploma (v. os respectivos artigos 11º, nº 1 e 12º, nº 1). Pela mesma razão, qualquer disposição do Código de Processo Civil adiante referida neste Acórdão, cujo texto tenha sido alterado pelo DL 303/2007, sê-lo-á na versão resultante deste Diploma.
(b) Vale tal dado de tempo, ainda, pela constatação de que a acção foi proposta posteriormente à publicação da Lei nº 14/2009, de 1 de Abril (entrou esta em vigor em 02/04/2009, v. o respectivo artigo 2º), aplicando-se este Diploma “directamente” – as aspas sublinham que não está em causa aqui a disposição transitória do artigo 3º da mesma Lei, não ocorrendo uma aplicação a um processo pendente à data das alterações introduzidas por esta Lei nos prazos do artigo 1817º do Código Civil, aplicação que esta Relação recusou por inconstitucionalidade, no Acórdão de 23/06/2009, proferido no proc. nº 1000/06.2TBCNT.C1, elaborado pelo ora relator, disponível na base do ITIJ, directamente, em: http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/51f7fd06d4beb50c802575e8002fedd4.   
[2] Havia este nascido em 25/11/1914 (v. Assento de Nascimento de fls. 36 e assento de óbito de fls. 9).
[3] Esta última disposição legal (o artigo 1873º) em função da remissão que estabelece para os artigos 1817º e 1819º, sendo o primeiro destes (o artigo 1817º), atendendo à data da propositura desta acção, na redacção introduzida pela Lei nº 14/2009, de 1 de Abril, como antes se indicou na nota 2 e aqui se reafirma.
[4] O Assento de Nascimento do A., junto a fls. 6, regista a omissão da paternidade e, tão-só, o estabelecimento da maternidade relativamente à indicada D….
[5] O “quesito 22º”, aditado em audiência, recebeu uma resposta fundamentalmente positiva.
[6] Designadamente quanto à fixação do efeito suspensivo (v. artigo 692º, nº 3, alínea a) do Código de Processo Civil).
[7] Tratando-se a caducidade de matéria de conhecimento oficioso (artigo 333º, nº 1 do CC), podia ela ser – como o foi – apreciada pelo Tribunal, independentemente da sua suscitação pelas partes, v. artigo 660º, nº 2, in fine do CPC.
[8] Esta afirmação intercalada no parênteses esgota-se, na economia argumentativa deste Acórdão, na constatação, por referência ao resultado da perícia realizada, da circunstância de existir – rectius, estar demonstrado cientificamente – a existência de um vínculo de derivação biológica do A. relativamente ao pai das RR. Ou seja – e este é o sentido do resultado da perícia –, conclui-se que o A. e as RR. têm um pai comum, sendo irmãos consanguíneos entre si. A relação de derivação do A. relativamente ao C... resulta, assim, da ponderação (que se trata de uma extrapolação) do dado consistente em a paternidade deste se encontrar estabelecida relativamente às RR.
Estamos a expressar aqui o sentido valorativo exacto, em termos de estabelecimento da filiação paterna do A., do resultado da perícia, sendo certo não ter esta envolvido o C…, mas as duas pessoas registadas como filhas deste. Claro que ninguém tem dúvidas quanto à circunstância das RR. serem filhas do referido C… e, portanto, da extrapolação que, com base neste dado, se efectua para o A. a partir das RR. O que aqui se sublinha é apenas o sentido científico exacto da perícia: o A. e as RR. têm o mesmo pai. 
[9] Implica esta afirmação o seguinte encadeamento de circunstâncias temporais referidas às leis que vigoraram ao longo do (longo) período de tempo – 75 anos de vida do A. – que aqui importará considerar:
(1) O A. nasceu em 23/07/1934 e atingiu a maioridade em 23/07/1955, segundo a lei então vigente (o artigo 311º do Código de Seabra, que fixava a maioridade “aos vinte e um anos completos”);
(2) Então, em Julho de 1955, vigorava, quanto a averiguação da paternidade “ilegítima”, por substituição do artigo 130º do Código de Seabra, o artigo 37º da Lei nº 2 de 25 de Dezembro de 1910 [v. a indicação do texto relevante desta Lei nº 2 na nota 26 do Acórdão desta Relação de 23/06/2009, mencionado na nota 2 (b) deste texto], do qual resultava, genericamente (existiam situações especiais dependentes de determinadas circunstâncias que aqui se não verificaram), a possibilidade de intentar a acção dentro de um ano após a morte do pretenso pai;
(3) Em 1967, com a entrada em vigor do actual Código Civil, quando o A. já atingira a maioridade há muito, foi introduzido o prazo de dois anos posteriores à maioridade (inicialmente no artigo 1854º, nº 1, depois do Decreto-Lei nº 496/77, de 25 de Novembro, no nº 1 do artigo 1817º), prazo este que já se encontrava esgotado, igualmente, face a essa “lei nova”;
(4) Posteriormente, ocorreu a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do prazo de dois anos previsto no artigo 1817º, nº 1 do CC, pelo Acórdão nº 23/2006 do Tribunal Constitucional, declaração cujo cumprimento conduziu à afirmação, concretamente pelo nosso Supremo Tribunal de Justiça, da impossibilidade de estabelecimento de qualquer prazo de investigação;
(5) Esta situação não corresponde, pois, aos casos em que o investigante, confiando no sentido induzido por essa jurisprudência do STJ (não há prazos!), intentou uma acção de investigação no pressuposto dessa inexistência, sendo surpreendido com a fixação retroactiva, pela Lei nº 14/2009, de um prazo aplicável às acções pendentes (situações do tipo da que este Tribunal tratou no referido Acórdão de 23/06/2009, identificado na nota 2, supra);
(6) Tal acção – e referimo-nos à presente acção – foi proposta posteriormente à entrada em vigor da Lei nº 14/2009, já com plena consciência de que o prazo estabelecido era, na situação que se veio a apurar, de 10 anos após a maioridade.
Estamos, pois, mesmo tomando por aceitável este novo prazo de 10 anos, ficcionando a sua aplicação à situação passada, perante o esgotamento desse prazo. Só o entendimento de inexistir qualquer prazo – note-se que o A. é maior há 55 anos – teria o condão de “tornar” esta acção tempestiva. Não é essa, como se verá, a posição desta Relação.   
[10] Carlos Lopes do Rego, “O Ónus da Prova nas Acções de Investigação da Paternidade: Prova Directa e Indirecta do Vínculo de Filiação”, in Comemorações dos 35 Anos do Código Civil e dos 25 Anos da Reforma de 1977, vol. I, Coimbra, 2004, p. 781; no mesmo sentido, v. Francisco Pereira Coelho, Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, vol. II, tomo I, Coimbra, 2006, p. 216.
[11] Carlos Lopes do Rego, “O Ónus da Prova…”, cit., p. 782; Francisco Pereira Coelho, Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, cit. pp. 224 e ss.
[12] Trata-se este de um “facto processual”, documentalmente estabelecido, relevante para a resolução do recurso, como adiante se verá.
[13] Estabelece este que “[a] acção de investigação [de paternidade] só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dez anos posteriores à sua maioridade ou emancipação” (compôs-se a norma ex vi do disposto no artigo 1873º do CC).
[14] “A caducidade, também dita preclusão, é o instituto pelo qual os direitos que, por força da lei ou de convenção, se devem exercer dentro de certo prazo, se extinguem pelo seu não exercício durante esse prazo” (Luís A. Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, II, 4ª ed., Lisboa, 2007, p. 699).
A questão do prazo de exercício do direito de acção – logo a questão da (não) caducidade deste – foi suscitada pelo A. logo no seu articulado inicial (v. item 1. deste Acórdão). Tratava-se, todavia, de uma questão de conhecimento oficioso (v., expressamente sobre as acções de investigação de paternidade, J. P. Remédio Marques, A Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, Coimbra, 2007, p. 290).
O Tribunal a quo resolveu expressamente esta questão – entendeu inexistir prazo de caducidade da acção – e, no que tange a esta Relação, trata-se, como se disse, do fundamento central do presente recurso, sobre o qual nos cumpre tomar posição. 
[15] Como exemplo deste entendimento (relativamente ao qual não conhecemos na jurisprudência do STJ posições discrepantes), veja-se o Acórdão de 08/06/2010 (Serra Baptista), proferido no processo nº 1847/08.5TVLSB-A.L1.S1, disponível na base do ITIJ, na pesquisa nestes campos ou, directamente, em: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/b32e46ade0311f538025773c00594732.
Lê-se no sumário deste aresto recolhido na mesma base:
“[…]
1. O direito à identidade pessoal, constitucionalmente consagrado, no art. 26.º, nº 1 da CRP, inclui, além do mais, os vínculos de filiação, existindo um direito fundamental ao conhecimento e reconhecimento, desde logo, da paternidade, ou seja, das raízes de cada um.
2. Tal direito fundamental, do conhecimento da ascendência biológica, por banda do investigante, é um direito personalíssimo e imprescritível.
3. Configurando os prazos de caducidade – sejam eles quais forem – uma restrição desproporcionada de tal citado direito à identidade pessoal ou à historicidade pessoal, violadora da Constituição da República.
4. Sendo, assim, também inconstitucional, o novo prazo de investigação estabelecido pela actual Lei 14/2009, de 1 de Abril.

[…]”.
[16] Disponível no sítio do Tribunal em: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20060023.html e publicado no Diário da República, I Série – A, nº 28/06, de 8 de Fevereiro de 2006.
[17] O sumário deste Acórdão, recolhido na base interna de jurisprudência do Tribunal Constitucional é o seguinte:
I – O parâmetro constitucional mais significativo para aferição da legitimidade das limitações ao direito de investigar a paternidade encontra-se no "direito à identidade pessoal".
II – Tem-se admitido, porém, que outros valores, como os relativos à certeza e à segurança jurídicas,
possam intervir na ponderação dos interesses em causa; aliás, da perspectiva do pretenso pai invoca-se
também, por vezes, o seu "direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar".

III – Para a decisão da questão de constitucionalidade não basta optar pela qualificação como norma
restritiva ou condicionadora para, aplicando ou não o regime do artigo 18.º da Constituição, logo se
concluir sobre a sua conformidade constitucional, tornando-se antes necessário analisar, numa perspectiva
substancial, se o tipo de limitação ao direito fundamental em causa, pela gravidade dos seus efeitos e
pela sua justificação, é ou não actualmente aceitável, à luz do princípio da proporcionalidade.

IV – Nessa análise não pode ignorar-se a evolução dos elementos relevantes para a questão de
constitucionalidade, que, entre outras, tem determinado também a alteração de soluções legislativas e
doutrinais; tal alteração dos dados normativos do sistema (incluindo a nível constitucional) e dos
elementos sociológicos e científico técnicos, que como que "envolvem" a questão de constitucionalidade do prazo de investigação de paternidade previsto no artigo 1817.º do Código Civil, não deve ser
desconhecida.

V – Não deve, igualmente, ignorar-se a valorização da verdade e da transparência, com a possibilidade de
acesso a informação e dados pessoais e do seu controlo, com a promoção do valor da pessoa e da sua
"auto-definição", que inclui, inevitavelmente, o conhecimento das origens genéticas e culturais - a
Constituição consagra, no seu artigo 26.º o "direito ao desenvolvimento da personalidade", comportando
dimensões como a liberdade geral de acção e uma cláusula de tutela geral da personalidade, e, se tanto o
pretenso filho como o suposto progenitor podem invocar este preceito constitucional, não é excessivo
dizer-se que ele "pesa" mais do lado do filho, para quem o exercício do direito de investigar é
indispensável para determinar as suas origens.

VI – O concreto regime em apreço, ao excluir totalmente a possibilidade de investigar judicialmente a
paternidade (ou a maternidade), logo a partir dos vinte anos de idade, tem como consequência uma
diminuição do alcance do conteúdo essencial dos direitos fundamentais à identidade pessoal e a constituir
família, que incluem o direito ao conhecimento da paternidade ou da maternidade.

VII – Viola também a exigência da proporcionalidade (em sentido amplo), consagrada no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição.
[18] A Exma. Conselheira Maria dos Prazeres Beleza havia votado vencida no julgamento ao qual viria a corresponder o Acórdão nº 11/2005 (http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20050011.html), afirmando este aresto (implicitamente, por se tratar aí, tão-só, da recusa de um recurso para o plenário do Tribunal relativamente ao Acórdão nº 486/2004) a inconstitucionalidade desse artigo 1817º, nº 1 do CC (prazo de dois anos) numa situação em que o investigante havia intentado “[…] a acção bastante depois de esgotado o prazo de dois anos a contar da sua maioridade […]”. Disse aí esta Magistrada: “[…] [v]encida; concederia provimento ao recurso tendo em conta que, tratando-se de um processo de fiscalização concreta da constitucionalidade, o Tribunal não está impedido de considerar o prazo decorrido entre a data em que o investigante atingiu a maioridade e a data da propositura da acção de investigação, nos termos e pelos fundamentos constantes do Acórdão nº 451/89 (DR, II, de 21/9/1989), para a qual remeti no Acórdão nº 525/03”.
[19] Disponível no sítio do ITIJ, nos campos indicados nessa nota ou, directamente, no endereço: http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/51f7fd06d4beb50c802575e8002fedd4.
Transcrevemos aqui o trecho do sumário desse Acórdão, na parte que apresenta relevância quanto à questão do prazo (do prazo aí mandado aplicar pela Lei nº 14/2009, retroactivamente, aos processos pendentes):
“[…]

I – A declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma constante do nº 1 do artigo 1817º do CC, aplicável ex vi do artigo 1873º do CC, constante do Acórdão nº 23/2006 do Tribunal Constitucional, foi generalizadamente interpretada, designadamente pela jurisprudência do STJ, como significando a imprescritibilidade do direito de investigar a paternidade, com o fim da sujeição deste a prazos;

II – Esta circunstância conduziu ao intentar, subsequentemente à publicação do Acórdão contendo essa declaração (08/02/2006), de diversas acções de investigação de paternidades assentes na inexistência de qualquer prazo de caducidade;

III – A posterior aplicação retroactiva às acções intentadas neste pressuposto do prazo de caducidade constante da redacção introduzida no artigo 1817º do CC, operada pela Lei nº 14/2009 e decorrente do artigo 3º desta (determinando a aplicação da nova redacção aos processos pendentes à data da entrada em vigor do Diploma) ofende ostensivamente as expectativas fundadamente criadas ao abrigo do entendimento referido em I;

IV – Essa aplicação retroactiva viola, em tais situações, o princípio da confiança ínsito no princípio do Estado de direito democrático decorrente do artigo 2º da CRP, acarretando a inconstitucionalidade do artigo 3º da Lei nº 14/2009, quando aplicado a acções intentadas posteriormente à publicitação do Acórdão nº 23/2006 e anteriormente à entrada em vigor (02/04/2009) desta Lei;

[…]”.
[20] Diz-nos a doutrina, que “[e]mbora não se estabeleçam restrições aos efeitos repristinatórios, estes não devem aceitar-se incondicionalmente. Tendo em conta a sua razão de ser, é lógico que […] entre nenhuma norma e a norma repristinada, seja esta a solução mais razoável […]” (J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, cit. pp. 1004/1005).
[21] Correspondente ao processo com o nº 08A474, estando este disponível no sítio do ITIJ, em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/9192ebc240ebcdf28025742e0039f69e.
[22] Esta linha interpretativa tem subjacente um entendimento, que assenta numa assumida leitura de amizade ou conformidade constitucional, referida ao direito à integridade moral e à identidade pessoal (artigos 25º, nº 1 e 26º, nº 1 da Constituição), na dimensão identificada como correspondente ao direito a saber de onde se vem ou de quem se vem, direitos relativamente aos quais o estabelecimento de prazos de caducidade referidos à adjectivação traduziria sempre uma compressão intolerável. É este o sentido profundo da recusa da existência de prazos, de todos os prazos, sejam eles curtos ou longos, tratando-se de uma espécie de decalque dos argumentos do Tribunal Constitucional na jurisprudência que viria a culminar com o Acórdão nº 23/2006. Tal entendimento passa, em muitas situações não abrangidas pelo pronunciamento específico do Tribunal Constitucional nesse Acórdão, pela recusa, nos termos do artigo 204º da Constituição, de normas contendo outros prazos para situações “aparentadas” mas que não são iguais. É o que sucede, relativamente à acção de impugnação de paternidade, quanto ao prazo previsto no artigo 1842º, nº 1, alínea a) do CC (três anos para a impugnação da paternidade própria pelo marido da mãe). Esta norma foi considerada inconstitucional (o prazo respectivo) pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07/07/2009 (Oliveira Rocha) publicado na Colectânea de Jurisprudência – STJ, tomo II/2009, pp. 168/170 [note-se que este entendimento quanto à desconformidade constitucional dessa norma foi desatendido pelo Tribunal Constitucional no Acórdão nº 446/2010 (Joaquim de Sousa Ribeiro), disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20100446.html; já anteriormente, a propósito da mesma norma, o Tribunal, no Acórdão nº 589/07 (Carlos Fernandes Cadilha), disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20070589.html, havia recusado a existência de paridade de situação entre os prazos de caducidade dos artigos 1817º, nº 1 e 1842º, nº 1, alínea a) do CC, “em termos de se poder aplicar neste último caso as razões que conduziram o Tribunal Constitucional a declarar a inconstitucionalidade daquele outro preceito”]. 
[23] Nisto reside a essência do conceito de lacuna jurídica (v. J. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, 1983, p. 194).
[24] Relatado pelo Exmo. Desembargador Jorge Arcanjo, proferido no processo nº 651/06.0TBOBR.C1, disponível na base do ITIJ na pesquisa através dos campos indicados ou, directamente, no endereço: http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/c3c8fa1f4a7e00358025779a0033c527.
[25] Não sendo também irrelevante, enquanto dado valorativo da situação, a incidência concreta traduzida na circunstância de o investigante alegar logo à partida ter tido conhecimento desde sempre da atribuição da sua paternidade à pessoa como tal indicada na acção.
[26] Sem que aqui se coloquem as questões, respeitantes ao princípio da confiança, detectadas no Acórdão desta Relação de 23/06/2009, identificado nas notas 2 (b) e 20, supra.
[27] Decorrente da recusa, nos termos do artigo 204º da Constituição, da norma constante do nº 1 do artigo 1817º do CC, na redacção introduzida pela Lei nº 14/2009, ao fixar um prazo de caducidade de dez anos para as acções de investigação da paternidade.
[28] A compaginação entre uma aparente vocação de generalidade da norma criada e a referenciação desta ao caso concreto expressa a essência, algo paradoxal, do mecanismo de criação da norma ad hoc prevista no nº 3 do artigo 10º do CC. Este aspecto é justamente sublinhado por J. Baptista Machado:
“[…]
[O] legislador não remete o intérprete para juízos de equidade, para a justiça do caso concreto, antes, bem ao contrário, o incumbe de elaborar e formular uma «norma», isto é, uma regra geral e abstracta que contemple o tipo de casos em que se integra o caso omisso. Esta norma será uma simples norma ad hoc, apenas para o caso sub judice, sem que de modo algum adquira carácter vinculante para futuros casos ou para outros julgadores. […].
[…]
Se é o caso concreto que nos indica qual o elemento da norma que carece de ser mais precisa e aprofundadamente interpretado, é o problema jurídico específico por ele suscitado que define o horizonte da questão jurídica e das suas soluções possíveis. Pelo que a generalização da regra resolutiva aos casos da mesma categoria significa, ao fim e ao cabo, uma generalização em função da descoberta do problema jurídico na sua especificidade – pois que é mediante o recorte específico do problema que podemos determinar os casos da mesma categoria. Pelo que esta categoria abstracta nada tem a ver com uma abstracção feita a partir dos factos como tais; antes, como conceito típico de uma hipótese normativa, apresenta-se já como mediador (instrumental) na resolução do problema” (Introdução ao Direito…, cit., p. 203).
[29] Disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20090626.html. Contém este um pronunciamento positivo de inconstitucionalidade referido ao nº 3 do artigo 1817º, nº 1 do CC, na redacção conferida pelo Decreto-Lei nº 496/77, de 25 de Novembro, “[…] quando interpretado no sentido de estabelecer um limite temporal de 6 meses após a data em que o autor conheceu ou devia ter conhecido o conteúdo do escrito no qual o pretenso pai reconhece a paternidade, para o exercício do direito de investigação de paternidade”.
[30] Pode dizer-se que até 2003 – até ao Acórdão nº 456/2003 (Maria Fernanda Palma), http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20030456.html – o Tribunal rejeitou que o estabelecimento de prazos de caducidade em acções de investigação de paternidade ou maternidade pudesse ser encarado como uma restrição de um direito, tratar-se-ia antes – dizia-o então a jurisprudência do Tribunal – de um condicionamento ou configuração [v., por exemplo, o Acórdão nº 451/89 (Luís Nunes de Almeida), http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19890451.html].
[31] Na teoria dos direitos fundamentais – e utilizamos aqui o modelo analítico da doutrina alemã – fala-se, por vezes, e trata-se de realizar uma distinção que conduz a consequências díspares, em “restrição” (einschränkung) e simples “configuração” (ausgestaltung) de direitos, reconhecendo-se que nem todas as normas de direito ordinário que têm que ver com algo abarcado pelo domínio de referência de um direito fundamental se traduzem em restrições deste, podendo antes configurá-lo. Esta natureza, algo fluida na sua caracterização, dispensa-las-ia – às normas que só “configurassem” – daquilo que se refere como uma justificação jusfundamental (a máxima de proporcionalidade actua como procura de uma justificação deste tipo, v. Robert Alexy, Theorie der Grundrechte, Frankfurt am Main, 1986, p. 300). Porém, como se extrai da jurisprudência do Tribunal Constitucional posterior ao Acórdão 456/2003, sobre esta matéria, algo que, na sua lógica de funcionamento, obsta ao exercício de um direito fundamental (aqui a concretização do direito à identidade pessoal), a partir de um determinado momento, não pode deixar de ser entendido como correspondente a uma restrição, sob pena de se estar a extrair uma solução interpretativa jogando, algo arbitrariamente, com o significado das palavras. Ora, sendo – não podendo deixar de ser vista como – uma restrição, não se pode isentar o estabelecimento de qualquer prazo de caducidade de acções de investigação da paternidade ou da maternidade a uma justificação constitucional, através da actuação do princípio da proporcionalidade, comparando, em termos de identidade e intensidade os valores, constitucionalmente relevantes, envolvidos nessa dinâmica relacional.
[32] Designadamente após a morte deste.
[33] Aqui o transcrevemos:

Artigo 1656º
(Ineficácia patrimonial)

1. A declaração de maternidade, a perfilhação e o estabelecimento da filiação em acção de investigação de maternidade ou de paternidade são ineficazes no que aproveite patrimonialmente ao declarante ou proponente, nomeadamente para efeitos sucessórios e de alimentos, quando:

a) Sejam efectuadas ou intentadas decorridos mais de 15 anos após o conhecimento dos factos dos quais se poderia concluir a relação de filiação; e

b) As circunstâncias tornem patente que o propósito principal que moveu a declaração ou proposição da acção foi o da obtenção de benefícios patrimoniais.

2. O prazo fixado na alínea a) do número anterior, para além de estar sujeito às restantes regras da prescrição, não começa nem corre enquanto:

a) O declarante ou proponente não for maior ou emancipado;

b) O declarante ou proponente se encontrar interdito por anomalia psíquica ou sofrer de demência notória;

c) Entre o filho e a pretensa mãe ou pai existir posse de estado; ou

d) Para efeitos das acções de investigação de maternidade ou paternidade propostas pelo filho, este e a pretensa mãe ou pai forem reputados e se tratarem entre eles respectivamente como filho e mãe ou filho e pai.

3. Existe posse de estado quando se verifiquem, cumulativamente, os seguintes requisitos:

a) Serem o filho e a pretensa mãe ou pai reputados e tratados entre eles respectivamente como filho e mãe ou filho e pai;

b) Serem reputados como tais nas relações sociais, especialmente nas respectivas famílias.
[34] Curso de Direito da Família, cit. p. 252.
[35] Não desconhecemos que o prazo de 10 anos também dispõe de um elemento de referência, algo sugestivo, no nosso direito. Estamos a referir-nos à caducidade do direito de petição de herança previsto no nº 1 do artigo 2059º do CC. 
[36] A usucapião era então referida como “prescrição aquisitiva” e a sujeição a prazos moldados neste instituto era completado, no artigo 2017º do Código de Seabra, pela – então assim qualificada – “prescrição do direito de petição de herança: “[o] direito de petição da herança prescreve, pelo mesmo tempo e forma, por que prescrevem os direitos imobiliários”.
[37] V. Carlos Pamplona Corte-Real, Direito da Família e das Sucessões, Vol. II, Lisboa, 1963, pp. 66 e seguintes.
Esta problemática não se colocará, com a intensidade que aqui é susceptível de apresentar, em sistemas que, mesmo pressupondo a existência de legítima, contenham disposições de ineficácia patrimonial relativamente a um estabelecimento tardio do vínculo de filiação. É o que sucede, como vimos, com o Código Civil de Macau (respectivo artigo 1656º). Neste, através de um ponto de equilíbrio que reputamos de particularmente feliz, assegura-se a todo o tempo o exercício do direito ao conhecimento das origens, subtraindo-se a este, depois de transcorridos muitos anos, o indesejável efeito sobre as relações patrimoniais.
Esse efeito é também grandemente evitado nas situações em que existam prazos gerais que obstaculizem à investigação de paternidade, como é tradicional na nossa ordem jurídica.
Esta questão tenderá a não se colocar – pelo menos com as indesejadas externalidades aqui referidas – nos sistemas de Common Law que desconhecem a figura da legítima. Nestes inexiste qualquer núcleo intangível dos bens do de cuius, no sentido de destinação vinculada quanto a determinados herdeiros, mesmo que supervenientes (v. Kate Standley, Family Law, 6ª ed., Basingstoke, Hampshire, 2008, pp. 98/99; “[t]here is complete freedom of testamentary disposition in England and Wales. Any adult person of sound mind may make a will disposing of his or her property to whomsoever he or she chooses […]”, p. 98). 
[38] Interessa aqui dar conta da compaginação interpretativa entre as duas disposições, no que seguimos a exposição de Antunes Varela:
“[…]
O direito de suceder, regulado nos artigos 2050º e seguintes do CC, tem de ser exercido no prazo de 10 anos (a contar do momento em que o sucessível haja tido conhecimento da vocação sucessória), sob pena de caducar. O direito de petição da herança pode ser exercido, mesmo por via judicial, a todo o tempo (artigo 2075º, nº 2 do CC).
O direito de petição da herança pode, no entanto, naufragar no seu exercício, quer concreta ou fragmentariamente, por encalhar na usucapião das coisas possuídas pelo demandado, quer globalmente, na sua universalidade, por deparar com a caducidade do direito de suceder.
Esta é a doutrina fixada, em termos inequívocos, pelo texto do nº 2 do artigo 2075º [do CC].
Desta mesma disposição se depreende que não há, na vigência do novo Código [CC actual], prescrição do direito de petição da herança (havendo apenas caducidade do direito de suceder).
Se o direito de suceder não houver caducado ou se o sucessível houver aceitado (expressa ou tacitamente) o chamamento, o seu direito à herança não prescreverá e a sua pretensão à entrega dos bens hereditários só pode soçobrar perante a usucapião invocada pelo demandado.
[…]” [Anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28/04/1983, na Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 120º (1987/1988), nº 3758, p. 154].
 
[39] Está aqui em causa, quanto ao começo da contagem do prazo de 10 anos, “[…] não [o] momento fixo da abertura da herança, mas a partir do momento variável do conhecimento que o sucessível tenha de haver sido chamado à herança” (Pires de Lima, Antunes Varela, Código Civil anotado, vol. VI, Coimbra, 1998. p. 99).
[40] E acrescentamos aqui, ainda no quadro de uma apreciação valorativa da jurisprudência do Tribunal Constitucional quando confrontada com esta questão, que é a especificidade desse direito à “historicidade pessoal” que conduziu aquele Tribunal, a propósito do limite global de cinco anos à interposição de um recurso extraordinário de revisão (prazo previsto no artigo 772º, nº 2 do CPC), a proferir uma decisão positiva de inconstitucionalidade no Acórdão nº 209/2004 (Gil Galvão) – http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20080279.html –, e uma decisão negativa no Acórdão nº 310/2005 (Rui Moura Ramos) – e http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20050310.html. Com efeito, estando em causa em ambas as decisões o mesmo prazo respeitante ao recurso extraordinário de revisão (e até os mesmos pressupostos do recurso de revisão), a especificidade da primeira situação (acção visando o estabelecimento da filiação) justificou a ultrapassagem desse prazo, coisa que não aconteceu no segundo caso, no qual estava em causa uma acção (um processo de inventário entre maiores) reportada a interesses de conteúdo exclusivamente patrimonial (v. Paula Costa e Silva, A Litigância de Má Fé, Coimbra, 2008, pp. 684/686).
[41] Embora esta tenha esquecido que só poderia considerar a acção tempestiva recusando, nos termos do artigo 204º da Constituição, o prazo de dez anos previsto no artigo 1817º, nº 1 do CC.