Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
24/20.1GDCNT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: OLGA MAURÍCIO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
PENA ACESSÓRIA
EXTORSÃO
CONCURSO EFECTIVO
Data do Acordão: 01/13/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE COIMBRA – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ART.ºS 50.º, N.ºS 1, 2, 3, 51.º, 52.º, 152.º, N.ºS 4 E 5; 30.º, N.ºS 2 E 3, DO CP; ART. 34.º-B DA LEI N.º 112/2009
Sumário: I – Nos termos da lei, é possível aplicar ao condenado por violência doméstica uma pena de prisão com execução suspensa, suspensão esta obrigatoriamente condicionada a regras de conduta de protecção da vítima, e uma pena acessória de proibição de contactos com a vítima.

II – A extorsão de várias pessoas determina um concurso efectivo de crimes, havendo tantos crimes quantos os ofendidos. Tal fundamenta-se no facto de ser elemento essencial da extorsão a lesão de bens eminentemente pessoais, desde logo e sempre, a lesão da liberdade de acção. A mesma razão leva à exclusão da figura do crime continuado, afirmando-se tantos crimes quantas as vezes que o crime de extorsão tiver sido cometido mesmo que contra a mesma pessoa.

Decisão Texto Integral:






RELATÓRIO


1.

O arguido DC foi condenado pela prática, em autoria material, concurso efectivo e na forma consumada de:

- dois crimes de violência doméstica, nas pessoas de MF e de MG, do art. 152º, nº 1, al. d), e nº 2, al. a), do Código Penal, nas penas de dois anos e nove meses de prisão por cada um;

- dois crimes de extorsão, na forma continuada, dos art. 30º, nº 2, e 223º, nº 1, do Código Penal, nas penas de um ano e seis meses de prisão por cada um.

            Feito o cúmulo jurídico, o arguido foi condenado na pena única de cinco anos de prisão.

A execução desta pena foi suspensa por igual período de tempo, mediante regime de prova e proibição de contacto com os pais, com fiscalização pelos serviços de reinserçãosocial, e com a obrigação de se submeter a um programa de tratamento eacompanhamento psiquiátrico.

O arguido foi, também, condenado nas penas acessórias de proibição de contacto com os pais e de proibição de uso e porte de armas, por cinco anos, e obrigação de frequentar programas específicos de prevenção da violência doméstica, nos termos do art. 152º, nº 4 e 5, do Código Penal.

2.

O arguido recorreu, concluindo do seguinte modo:

- a proibição de contactos com os pais, determinada no acórdão condenatório, não pode ser simultaneamente pena acessória e condição de suspensão;

- enquanto pena acessória a proibição de contactos tem autonomia própria e não pode ser fundamento para a revogação da suspensão;

- a questão da violência está duplamente valorada e punida, porque foi valorada para a condenação a título de extorsão e também por violência doméstica;

- o que consubstancia tal violência e ameaças são factos iguais para ambos os crimes, havendo pontos de contacto e relação umbilical;

- nada mais houve do que um prolongar a ilicitude, que foi contínua e não autonomizável, não devendo a tónica ser colocada no preenchimento isolado dos diversos tipos legais de crime, sob pena de violação dos princípios ne bis in idem e da culpa;

- as diversas acções imputadas radicam numa matriz comum do contexto de violência doméstica, ilícito que consume todos os demais, verificando-se concurso aparente;

- a decisão padece de erro e vício de contradição insanável entre a fundamentação e decisão, pois tendo o tribunal a quo determinado que se tratava de crime continuado e que não se tratava de crime contra bens eminentemente pessoais, condenou o arguido por dois crimes continuados de extorsão;

- (…);

- o acórdão violou os art. 30º, nº 2, (…) do Código Penal, (…) e os princípios da culpa, da legalidade, tipicidade, igualdade, proporcionalidade e da proibição do excesso, ne bis in idem, proibição da dupla valoração, bem como das finalidades das penas e exigências de prevenção.

            3.

(…)    

            4.

            Proferido despacho preliminar foram colhidos os vistos legais.

Realizada a conferência cumpre decidir.


*

FACTOS PROVADOS

5.

O acórdão recorrido julgou provados os seguintes factos:

«1- O arguido DC nasceu a 9 de Abril de 1995, estando registado como filho de MF e MG.

2- MF nasceu a 18 de Dezembro de 1952 e MG nasceu a 9 de Abril de 1956.

3- MF e MG residem na (…).

4- MF empresário na área de Serralharia Civil, encontra-se reformado e MG era assistente operacional no Centro Hospitalar (...) e está aposentada há cinco anos.

5- MG tem dificuldades de saúde, nomeadamente, problemas psicológicos relacionados com ansiedade, que se agravaram com a conduta do arguido DC ao longo dos últimos anos, um problema nas cordas vocais que lhe provocou dificuldades em falar, tendo necessidade de fazer terapia da fala, e duas hérnias que lhe provocaram dores nas costas e dificuldades em andar normalmente.

6- MF igualmente apresenta problemas de saúde, nomeadamente, diabetes para o que toma medicação, problemas cardíacos, e de locomoção devido ás dores que tem nos ossos, e encontrava-se debilitado física e psicologicamente.

7- O arguido sofre de problemas psicológicos, tendo crises de ansiedade, foi seguido no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, onde já esteve internado no serviço de psiquiatria, por várias vezes.

8- Quando não tomava a medicação o arguido tornava-se instável emocionalmente e agressivo em relação aos seus pais, para o que contribuiu, também, o consumo de haxixe e marijuana.

9- Aos 18 anos de idade, o arguido ingressou no Serviço Militar como voluntário, onde cumpriu 3 anos, após o que rescindiu o contrato.

10- Após sair do Exército, o arguido voltou a morar em casa dos pais.

11- O arguido teve diversos empregos mas não se fixou em nenhum, razão porque tem dependido economicamente dos seus pais.

12- Durante os últimos quatro anos, desde data indeterminada de 2016, em numero que não foi possível contabilizar, o arguido vem exigindo dinheiro aos pais.

13- O arguido exigiu dinheiro aos pais, invocando que precisava de comprar tabaco ou outras despesas, ao mesmo tempo que lhes dizia que iria pôr fogo à casa onde viviam ou partir o carro deles, se não lhe dessem dinheiro, que não tinha medo deles, que um dia os mataria, e que não tinha medo de ir preso.

14- Assim, tanto a mãe, como o pai, lhe entregavam as quantias em dinheiro que o arguido pretendia por terem medo que o mesmo concretizasse tais afirmações.

15- No dia 3 de Julho de 2019, no envolvimento de uma discussão, o arguido, munido de um tubo de ferro, desferiu com o mesmo uma pancada num dos braços e mão de MF.

16- Na mesma data, disse aos pais que iria partir a viatura automóvel de marca Kia, dos mesmos, porque estes recusaram entregar-lhe os 10 euros que o arguido lhes exigiu.

17- Nesse dia, o arguido foi levado ao Serviço de Urgência do CHUC onde foi examinado e registado o consumo de canabis e referidos “traços desadaptativos de personalidade com baixa tolerância à frustração e impulsividade”.

18- Em dia não concretamente determinado de Agosto de 2019, na casa onde todos moravam, o arguido disse aos pais que poria fogo à habitação dos mesmos, e que partiria tudo o que tinha á frente, sendo que, munido de um martelo, fez menção de partir o pára-brisas do veiculo destes.

19- Na mesma altura, o arguido apelidou o pai de “cobarde” e disse à mãe para “meter na cona” umas bolachas que a mesma lhe tinha dado.

20- Entre 09 e 19 de Agosto de 2019, o arguido DC esteve internado no Centro de Responsabilidade Integrado de Psiquiatria do CHUC devido a “alterações de comportamento com elevada impulsividade e agressividade heterodirigida”, apresentando “consumo regular de canabinoides e esporádico de outras substâncias psicoactivas, nomeadamente anfetaminas”.

21- Desse internamento, o arguido teve alta com diagnóstico de “perturbação depersonalidade”.

22- Em Setembro de 2019, o arguido deixou de residir em casa dos pais.

23- Em meados de Janeiro de 2020, o arguido voltou para casa dos pais, retomando o mesmo tipo de comportamentos.

24- Desde então, o arguido, por diversas vezes, no interior da casa onde todos moravam, disse aos pais as seguintes palavras “eu mato-vos e pego fogo a esta merda toda”, e desferiu empurrões nos mesmos.

25- Por volta do dia 20 de Janeiro de 2020, no interior da residência, o arguido desligou o aquecedor que a mãe estava a utilizar, na sala, e começou a “dizer palavrões” para uma pessoa com quem esta falava ao telefone.

26- A mãe pediu-lhe para sair daquela divisão ao que o arguido lhe retorquiu “o quê que tu queres caralho?”, frase que repetiu muitas vezes.

27- Acto contínuo, o arguido caminhou para a mãe e abanou a mesa da cozinha na direcção desta, fazendo menção de a agredir.

28- O arguido ainda tentou tirar o telefone à mãe, sem sucesso, quando esta tentava ligar ao pai MF a pedir ajuda.

29- No dia 28 de Janeiro de 2020, no interior da residência, o arguido disse a MF "és um cobarde", “não tenho medo de nada não tenho medo de vocês", "és um velho, um porco porque me foste denunciar á GNR".

30- Depois, o arguido dirigindo-se ao pai e à mãe e disse-lhe que "os mataria", que "não tinha medo de pegar numa faca ou numa arma", "partia os carros, destruía tudo e punha fogo á casa", palavras que repetiu várias vezes.

31- Por isso, MF chamou a GNR, tendo comparecido a GNR de Cantanhede.

32- De seguida, após a intervenção da GNR, os pais convidaram o arguido para almoçar, no sentido de o acalmar.

33- Quando ia para se sentar à mesa, o arguido disse aos pais que "cuspia na comida e virava a mesa para cima deles", tendo o pai questionado o denunciado "diz-me o que é que queres, para te ajudar, para não viveres na rua".

34- O arguido respondeu que queria 600 euros, para comprar um telemóvel e ir para França e que já não dormiria naquela casa naquele dia.

35- Então, o arguido saiu e levou algumas coisas suas, depois do pai lhe ter entregue 200 euros em dinheiro e um telemóvel da mãe, no valor de 349 euros.

36- No dia 1 de Fevereiro de 2020, cerca das 22:00 horas, o arguido DC telefonou ao pai a pedir o resto do dinheiro.

37- No dia 2 de Fevereiro de 2020, cerca 10:00 horas MF pediu a um vizinho, para entregar o restante dinheiro ao arguido, o que aconteceu.

38- No dia 17 de Maio de 2020, o arguido registou novo episódio de urgência no CRIP do CHUC por “agravamento da sintomatologia depressiva e ansiosa” após desentendimento com os pais e consumo de cocaína, álcool e canabinóides.

39- Com os referidos comportamentos, o arguido quis infligir sofrimento físico e psíquico aos pais, no interior da casa onde moravam, ofendendo-os na sua honra e consideração.

40- O arguido não ignorava que lhes devia respeito e consideração, por serem seus pais e bem assim pela idade e doenças de que sofrem, do que tinha consciência.

41- O arguido quis desenvolver os descritos comportamentos, nomeadamente ameaças e violência contra os pais, por forma a atemorizá-los e deixá-los na impossibilidade de resistir ás exigências que lhes fazia, obrigando-os desta forma a entregar-lhe quantias em dinheiro.

42- O arguido bem sabia que actuava contrariando a vontade dos mesmos e bem assim que as quantias que recebeu não lhe eram devidas.

43- O arguido agiu o arguido num contexto de desemprego e de adição a consumo de estupefacientes, aproveitando-se do facto de nem sempre os pais lhe negarem a entrega dos montantes em dinheiro que pretendia.

(…).


*

DECISÃO

Atento o disposto no art. 412º, nº 1, in fine, do C.P.P., as questões a conhecer são as seguintes:

- legalidade da determinação de proibição de contactos como pena acessória e como condição de suspensão, porque enquanto pena acessória tem autonomia própria e não pode fundamentar a revogação da suspensão;

- (…);

- relação de consumpção entre os crimes de violência doméstica e extorsão;

- violação do art. 30º do Código Penal, derivada da condenação por dois crimes de extorsão;

- (…).


*

I - legalidade da determinação de proibição de contactos como pena acessória e como condição de suspensão, por enquanto pena acessória ter autonomia própria e não poder fundamentar a revogação da suspensão

O tribunal recorrido suspendeu a execução da pena de prisão aplicada ao arguido condicionando a suspensão, além do mais, à proibição de contacto com os pais.

O tribunal condenou, também, na pena acessória de proibição de contacto com os pais, nos termos do art. 152º, nº 4 e 5, do Código Penal.

O arguido questionou a bondade destas decisões, alegando «que tal proibição de contactos não pode ser simultaneamente pena acessória bem como condição de suspensão. E isto pelo simples facto de enquanto pena acessória ter autonomia própria e não poder ser fundamento para a revogação da suspensão, mas antes de prática de novo crime».

Vejamos o que dizem as normas legais convocadas para o caso.

Nos termos do nº 1 do art. 50º do Código Penal, o tribunal pode suspender a execução de pena de prisão não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade, condições de vida e conduta do agente e às circunstâncias do crime, concluir que a simples censura do facto e ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

E determinam os nº 2 e 3 da norma que o tribunal pode subordinar a suspensão da execução da pena ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou a ambos, ou ao regime de prova, nos termos dos artigos seguintes, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição.

Dos art. 51º e 52º constam os elencos exemplificativos de deveres e regras de conduta aos quais se pode subordinar a suspensão da execução da pena de prisão podendo, nos termos do nº 2 do art. 52º, o tribunal impor ao condenado a proibição de frequentar certos lugares e residir em certos lugares.

A Lei nº 112/2009, de 16/9, estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica e à protecção e assistência das suas vítimas.

Esta lei admite a possibilidade de suspensão da execução da pena de prisão aplicada a condenado pelo crime de violência doméstica do art. 152º do Código Penal, mas esta, diz o nº 1 do seu art. 34º-B, «é sempre subordinada ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou ao acompanhamento de regime de prova, em qualquer caso se incluindo regras de conduta que protejam a vítima, designadamente, o afastamento do condenado da vítima, da sua residência ou local de trabalho e a proibição de contactos, por qualquer meio».

Finalmente, o art. 152º do Código Penal, que prevê e pune o crime de violência doméstica, dispõe, nos nº 4 e 5, o seguinte:

4 – podem ser aplicadas ao condenado por crime de violência doméstica «as penas acessórias de proibição de contactos com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica»;

5 – «a pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância».

Do exposto resulta, portanto, que a lei responde de forma directa à objecção levantada pelo arguido, de a proibição de contactos não poder ser simultaneamente pena acessória e condição de suspensão.

Por um lado o art. 34º-B, nº 1, da Lei 112/2009, de 16/9, impõe que a suspensão da execução da pena de prisão pela prática do crime de violência doméstica seja sempre subordinada ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou ao acompanhamento de regime de prova, mas em qualquer destes casos deve incluir regras de conduta de protecção da vítima, designadamente o afastamento da residência.

Ou seja, a suspensão da execução da pena de prisão de condenado por violência doméstica tem sempre que ser condicionada a regras de conduta de protecção da vítima. E a regra de conduta dirigida especificamente à protecção da vítima que surge imediatamente na mente de todos é a obrigação de o agente do crime se afastar da vítima do crime.

Por outro lado, o art. 152º, nº 4 e 5, do Código Penal prevê a aplicação ao condenado por violência doméstica de penas acessórias, onde se inclui a pena de proibição de contacto com a vítima.

Sendo verdade que esta pena acessória se pode aplicar ao condenado em prisão efectiva, para prevenir a aproximação à vítima quando ocorram saída pontuais do estabelecimento prisional, o seu relevo primordial verifica-se nos casos em que o condenado fica em liberdade.

É nesta situação que urge garantir a segurança da vítima, de modo a que esta possa viver o seu dia-a-dia com a maior normalidade e tranquilidade possíveis, sem o medo de novos ataques e represálias por parte do condenado ou, pelo menos, sem o constrangimento e sobressalto de temer perseguições por parte deste.

Portanto, nos termos da lei, é possível aplicar ao condenado por violência doméstica uma pena de prisão com execução suspensa, suspensão esta obrigatoriamente condicionada a regras de conduta de protecção da vítima, e uma pena acessória de proibição de contactos com a vítima.

Sendo o foco do legislador a protecção da vítima, é compreensível esta opção do legislador. Desta forma a protecção é acrescida.

Para além de ser legal, esta opção não viola princípios gerais do direito, pois não se afigura que tal represente um excesso de consequências retirados do mesmo comportamento.

Como todos sabemos, um mesmo comportamento tem, muitas vezes, consequências várias em termos legais.

Além disso é, em tese, mais favorável ao agente, porque não multiplica obrigações que este tenha que observar.

Depois, o único dever do condenado, de não se aproximar da vítima, depende exclusivamente de si próprio, da sua vontade, não carecendo de intervenção de terceiros ou do Estado. É sempre, e só, o livre arbítrio do condenado que determina o cumprimento ou a violação.

Poder-se-á dizer que estabelecendo como condição da suspensão da execução da pena a obrigação de afastamento do arguido da vítima a aplicação da pena acessória de proibição de contactos será inútil.

Pode ser inútil, mas não é ilegal.

Finalmente, quanto às consequências derivadas da violação da condição imposta à suspensão da execução da pena e da pena acessória, nem a revogação da suspensão da execução da pena de prisão decorre automaticamente da violação dos deveres ou regras de conduta a que aquela seja subordinada, nem a verificação do crime de violação de imposições, proibições ou interdições decorre automaticamente da violação das penas acessórias aplicadas. Uma e outra dependem do juízo culposo feito pelo tribunal acerca do comportamento do condenado.

Neste sentido veja-se, precisamente, o acórdão desta relação proferido em 28-1-2015 no processo 112/09.5GASJP-A.C1, que o arguido invoca no seu recurso.

É certo que este acórdão decidiu, tal como o arguido referiu, que a violação da pena acessória de proibição de contacto com a vítima de crime de violência doméstica não determina a revogação da suspensão da pena de prisão, mas no nosso caso não estamos a apreciar as eventuais consequências de uma violação da pena acessória. Portanto, as consequências legais da violação desta pena não relevam quando a discussão é saber se a proibição de contactos pode fundamentar também a suspensão da execução da pena de prisão.

No caso deste acórdão o agente estava condenado em pena de prisão, suspensa com sujeição a regime de prova e a regra de conduta, e em duas penas acessórias.

O tribunal de recurso teve esta condenação por boa, como resulta do seguinte trecho: «Os termos da condenação acima transcritos são claros, ou seja, temos de ter presente que A... não foi condenado a uma pena de prisão, suspensa na sua execução por determinado período, sujeita ao dever de cumprimento de duas penas acessórias: obrigação de afastamento da ofendida e proibição de uso e porte de armas.

Podia tê-lo sido, mas não foi».

Concluindo, a proibição de contactos entre o agente e a vítima pode integrar a medida de coacção, pode condicionar a suspensão da execução da pena do condenado e pode ainda surgir enquanto pena acessória, podendo coexistir no processo, sendo que como medida de coacção e como condição de suspensão e/ou pena acessória nunca a sua aplicação será simultânea, pois que estas valem a partir do momento em que a condenação transita em julgado, que é o momento em que a medida de coacção deixa de vigorar.


*

(…).

*

III - relação de consumpção entre os crimes de violência doméstica e de extorsão

            O tribunal recorrido decidiu haver concurso efectivo entre os crimes de violência doméstica e extorsão.

            O arguido pôs em causa a decisão alegando que, com a condenação pelos crimes de violência doméstica e extorsão, a violência foi duplamente valorada e punida, porque a violência foi duradoura e reiterada, abarcando os episódios de extorsão, que a violência e ameaças decorreram de uma mesma conduta reiterada e que embora haja distinção de bens jurídicos, o crime de extorsão não pode ser punido autonomamente porque não se verifica um comportamento ilícito autónomo que permita a perfeição de tal crime.

            O conceito de crime assenta na acção humana ilícita.

            Mas nem toda a acção ilícita constitui crime. Para o ser tem que ser descrito como tal e punido pela lei: «As normas de direito criminal, fixando os pressupostos de aplicação das reacções criminais, proíbem ou impõem concretamente as respectivas condutas que descrevem – e a violação destes comandos é que constitui, justamente, o ilícito criminal» - Eduardo Correia, Direito Criminal, I, reimpressão, pág. 11.

            Crime é o facto descrito e declarado punível enquanto tal pela lei penal – art. 1º do Código Penal.

            Mas a tipificação assenta em bens jurídicos, a cuja tutela o respectivo tipo se dirige. No tipo legal de crime o legislador descreve as acções humanas que «encarnam a negação dos valores jurídico-criminais …» - autor e obra citada, pág. 275.

            Portanto, o crime é a acção humana que preenche determinado tipo legal de crime, isto é, que nega determinado bem jurídico-criminalmente tutelado.

            No entanto, esta valoração não é meramente formal, valorativamente neutra, pois exige uma atitude interior do agente, de adesão, maior ou menor, à acção e ao resultado. O tipo assenta em elementos descritivos e normativos.

            Por isso não há crime sem dolo ou pelo menos, nos casos em que a lei o admita, sem negligência.

            Nos termos do art. 30º, nº 1, do Código Penal «o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente».

Dizem, depois, os nº 2 e 3 deste art. 30º:

«2 - Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.

3 - O disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais».

            Portanto, a violação de uma pluralidade de bens jurídicos determina a verificação de pluralidade criminosa. Mas a violação plúrima do mesmo bem jurídico também pode determinar uma pluralidade de crimes.

À pluralidade de crimes é necessária uma pluralidade de resoluções criminosas.

            Mas há casos em que várias resoluções criminosas podem ser tratadas como um crime único e uma só resolução criminosa pode configurar vários crimes.

            De facto, a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da mesma solicitação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente, constituirá um só crime, continuado, excepto se o mesmo tipo de crime cometido várias vezes ou os vários tipos de crime cometidos violarem bens eminentemente pessoais, caso em que ocorrerá concurso efectivo de crimes.

            O crime de violência doméstica tutela a dignidade humana, compreendendo nesta a saúde, a integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e a honra, de tal forma que a violência desenvolvida pelo agente sobre a vítima redunde num abuso de poder daquele e numa situação de degradação e humilhação desta. Os factos praticados, isolados ou reiterados, integrarão este tipo legal de crime se, apreciados à luz do circunstancialismo concreto da vida familiar e sua repercussão sobre a mesma, transmitirem este quadro de degradação da dignidade de um dos elementos, incompatível com a sua dignidade e liberdade pessoais.

Mas podendo dizer-se que qualquer crime contra as pessoas atenta contra a sua dignidade, então a violação em causa terá que revelar a tal especial gravidade que determina o surgimento do tipo especial que a tutela, que é o crime de violência doméstica.

            Quanto ao crime de extorsão, socorrendo-nos do que consta do II volume do Comentário Conimbricense do Código Penal, pág. 343, em anotação ao art. 223º, o tipo visa garantir a liberdade de disposição patrimonial. Por isso se diz que ele é, «em primeiro lugar, um crime contra o bem jurídico património».

            No entanto, este tipo legal não protege, apenas, o património. Como se diz naquela obra, à tutela do património acresce «a tutela do bem jurídico liberdade de decisão e de acção, cuja lesão é conatural à extorsão, o que fundamenta uma agravação das penas relativamente às aplicáveis aos crimes que lesam exclusivamente o património …».

            Tutelando, a um tempo, o património e a liberdade de decisão e acção, resulta que o crime de extorsão protege, também, bens eminentemente pessoais (neste sentido vide os acórdãos da Relação de Lisboa, Évora e Guimarães de 24-4-2002, 22-11-2011 e 25-3-2019, proferidos nos processos 0019783, 3/07.4GACVD.E1 e 484/17.8GBPVL.G1).

            Tendo presente o que acima dissemos, a violação de bens eminentemente pessoais integra a prática de vários crimes se vários bens forem violados e/ou se o mesmo bem for violado várias vezes e/ou se forem várias as pessoas ofendidas, tudo isto mesmo que se trate de uma só acção.

Considerando que, nos termos dos nº 2 e 3 do art. 30º do Código Penal, a realização plúrima do mesmo tipo de crime, ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada de forma homogénea e no quadro da mesma solicitação exterior não constituirá crime continuado se os crimes praticados violarem bens eminentemente pessoais, resulta que a condenação do arguido também por dois crimes de extorsão não violou qualquer norma ou princípio de direito.

A este propósito diz a obra acima citada, a pág. 350, que «A extorsão de várias pessoas determina um concurso efectivo de crimes, havendo tantos crimes quantos os ofendidos. Tal fundamenta-se no facto de ser elemento essencial da extorsão a lesão de bens eminentemente pessoais, desde logo e sempre, a lesão da liberdade de acção. A mesma razão leva à exclusão da figura do crime continuado, afirmando-se tantos crimes quantas as vezes que o crime de extorsão tiver sido cometido mesmo que contra a mesma pessoa».

Por todo o exposto, discordando do acórdão recorrido quando decidiu que «O crime de extorsão não abrange bens eminentemente pessoais» - de cuja conclusão resultaria a incompreensão pela condenação em dois crimes, uma vez que da descrição dos respectivos factos integradores não decorre que os factos praticados sobre cada uma das vítimas fossem autónomos -, concordamos com a condenação do arguido pela prática de dois crimes de extorsão, pelas razões apontadas.

 (…).


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DISPOSITIVO

Pelos fundamentos expostos, na procedência parcial do recurso, decide-se:

I – condenar o arguido DC na pena de 1 ano de prisão por cada um dos dois crimes de extorsão cometidos;

II – condenar o arguido na pena única de 4 anos e seis meses de prisão;

III – manter, em tudo o mais, o decidido no acórdão recorrido.

Sem custas.

Elaborado em computador, revisto e assinado electronicamente – art. 94º, nº 2, do C.P.P.

Coimbra, 13 de Janeiro de 2021

Olga Maurício (relatora)

Luís Teixeira (adjunto)