Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3573/09.9TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: CONTRATO DE TRANSPORTE DE MERCADORIAS
RESPONSABILIDADE CIVIL
TRANSPORTADOR
DANOS
PRESUNÇÃO DE RESPONSABILIDADE
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 01/15/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - JL CÍVEL - JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.3, 4, 17, 18 CONVENÇÃO CMR
Sumário: 1.- No contrato de transporte de mercadorias impende sobre o transportador, e a favor do interessado na carga, uma presunção de responsabilidade, nos termos dos artigos 17º, nº1 e 18º nº1, da Convenção CMR .

2.- O transportador responde pelos atos de todos a quantos recorra, seja pelos atos dos seus auxiliares seja por situações em que recorra à subcontratação (artigo 3º CMR).

3.- O transportador poderá reverter aquela presunção e, findo o processo probatório, exonerar-se da responsabilidade que lhe havia sido presuntivamente assacada. Esta exoneração, ou o mero afastamento da presunção de responsabilidade, poderá fazer-se, seja provando as causas liberatórias do nº2 do artigo 17º, seja recorrendo aos designados factos liberatórios, ou causas privilegiadas de liberação (nº4 do artigo 17º.

4.- O ónus da prova da verificação de qualquer das situações que permitem a exclusão da responsabilidade cabe ao transportador .

5. Se a grua transportada se solta na sequência de um travagem brusca efetuada como modo de evitar uma colisão, vindo a cair pela parte lateral do camião, poder-se-á presumir o deficiente acondicionamento da mesma.

6. O transportador ficará isento de responsabilidade quando a queda da mercadoria resulta dos riscos particulares inerentes ao carregamento e acondicionamento da mercadoria pelo expedidor, nos termos da al. c), do nº4 da Convenção CMR.

Decisão Texto Integral:           


                   

                                                                  

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2ª Secção):

I – RELATÓRIO

A F (…), Lda., instaurou a presente ação declarativa sob a forma de processo sumário, contra:

1. U (…), S.A., e

2. F (…), S.A.,

Pedindo a condenação das Rés a:

a) pagar à Autora a quantia de €12.360,96 a título de danos patrimoniais por si suportados com a reparação da grua danificada;

b) pagar à Autora a quantia de €2.760,00 a título de danos patrimoniais sofridos com acidente, nomeadamente com transporte da grua danificada do local do acidente até às instalações da F (…) em Itália, bem como com arrendamento de espaço onde esteve a grua danificada após o acidente;

c) pagar à Autora a quantia de €5.000,00 a título de danos não patrimoniais por esta sofridos;

d) pagar os juros à taxa legal sobre as quantias peticionadas, desde a citação até ao seu integral e efetivo pagamento, acrescido de custas e demais encargos processuais;

e) pagar à Autora a título de sanção pecuniária compulsória o montante diário de €15,00.

Alegando, para tal e em síntese:

a A. celebrou com a 1ª. Ré um contrato de transporte de mercadorias para efetuar o transporte de várias gruas desde a sede da F (…), em Itália, para as suas instalações, em (...) , Leiria;

a 1ª Ré subcontratou a realização do transporte com a 2ª Ré, negócio que não teve qualquer intervenção da A.;

no âmbito da execução desse contrato de transporte, no dia 24 de setembro de 2008, próximo de s (...) , em Itália, uma das gruas transportadas, que era a de maiores dimensões, com cerca de 11,200 toneladas, caiu durante a viagem para a faixa de rodagem, vindo a ficar danificada por esta queda ao solo;

em virtude desses estragos, a grua em questão teve de ser removida da faixa de rodagem, sendo posteriormente, transportada novamente para as instalações da F (…)em Itália;

em virtude deste incidente, que ocorreu por culpa exclusiva do motorista da 2ª Ré, a A. teve de pagar à F (…), Itália, a quantia de €12.360,96 relativa à reparação da grua danificada;

teve ainda de suportar a quantia de €2.760,00 a título de transporte da grua danificada do local do acidente até às instalações da F (…) em Itália, bem como com arrendamento de espaço onde esteve a grua danificada após o acidente;

o cliente a quem se destinava aquela grua ficou deveras aborrecido com a situação, dizendo, após a entrega da grua, vários meses depois da data prevista, que não adquiriria à A. dali em diante qualquer outro equipamento, o que prejudicou o bom nome comercial da A., justificando que a mesma seja indemnizada em quantia não inferior a €5.000,00.

Citada para os termos da ação, a 1ª Ré não apresentou contestação.

Citada para os termos da ação, a 2ª Ré veio apresentar contestação, impugnando a matéria de facto alegada pela A. e defendendo que a queda da grua na faixa de rodagem se deveu a conduta exclusivamente imputável à F (…) Itália, porquanto a mesma, cabendo-lhe o acondicionamento da mercadoria bem como estivar aquela, por força do constante no respetivo CMR, não cumpriu os seus deveres, não tendo fixado devidamente a carga, pelo que, na sequência de travagem brusca a que se viu obrigado o motorista da 2ª R., para evitar o embate após ultrapassagem demasiado próxima e perigosa de um veículo ligeiro, a grua deslizou de cima dos barrotes em que vinha apoiada e caiu para a faixa de rodagem.

Mais impugna os danos alegados pela A. e os indicados valores, concluindo pela total improcedência da ação, deduzindo, ainda, incidente de intervenção acessória da G (…) – Companhia de Seguros, S.P.A. – Sucursal em Portugal, com a qual celebrara um contrato de seguro válido para a sua atividade de transporte de mercadorias por estrada, tem em conta que, em caso de condenação no âmbito destes autos, terá direito de regresso sobre aquela Companhia de Seguros.

A admitida a requerida intervenção acessória, a interveniente G (…) Companhia de Seguros, S.P.A. – Sucursal em Portugal, deduz articulado próprio, no qual:

 invoca a ilegitimidade da autora, por não ser interveniente no contrato de transporte em causa;

invoca a prescrição do direito da A. face à data em que alegadamente os factos terão ocorrido e a data da sua citação para os termos da ação;

acompanhando, no mais, a contestação da 2ª Ré, pugna pela total procedência da versão dos factos alegados pela 2ª R., com a total improcedência da ação.

Foi proferido despacho saneador a julgar improcedentes as invocadas exceções de ilegitimidade da autora e da prescrição.

Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença a julgar a ação parcialmente procedente, condenando solidariamente as 1ª e 2ª RR. a pagar à A. a quantia de €15.120,96, acrescida de juros de mora contados, à taxa legal, desde 01 de julho de 2009 até efetivo e integral pagamento, absolvendo as Rés do demais peticionado.


*

Inconformada com tal decisão, a Ré F (…), S.A., dela interpõe recurso de apelação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões[1]:

(…)


*

A Autora apresentou contra-alegações, no sentido da improcedência do recurso.
Cumpridos que foram os vistos legais, nos termos previstos no artigo 657º, nº2, in fine, do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo Civil –, as questões a decidir seriam as seguintes:
1. Impugnação da matéria de facto.
2. Responsabilidade das Rés U (…) e F (…).
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

1. Impugnação da matéria de facto

Os tribunais da Relação, sendo tribunais de segunda instância, têm atualmente competência para conhecer tanto de questões de direito, como de questões de facto.

Segundo o nº1 do artigo 662º do NCPC, a decisão proferida sobre a matéria de pode ser alterada pela Relação, “se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.

 Para que o tribunal se encontre habilitado para proceder à reapreciação da prova, o artigo 640º, do CPC, impõe as seguintes condições de exercício da impugnação da matéria de facto:

1 – Quando seja impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 – No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevante;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.”

A impugnação da matéria de facto que tenha por fundamento a errada valoração de depoimentos gravados, deverá, assim, sob pena de rejeição, preencher os seguintes requisitos:

a) indicação dos concretos pontos de facto considerados incorretamente julgados, que deverão ser enunciados na motivação do recurso e sintetizados nas conclusões;

b) indicação dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem decisão diversa, sobre os pontos da matéria de facto impugnados;

c) indicação, ou transcrição, exata das passagens da gravação erradamente valoradas. 

Estes requisitos visam assegurar a plena compreensão da impugnação deduzida à decisão sobre a matéria de facto, mediante a identificação concreta e precisa de quais os pontos incorretamente julgados e de quais os motivos de discordância, de modo a que se torne claro com base em que argumentação e em que elementos de prova, no entender do impugnante, se imporia decisão diversa da que foi proferida pelo tribunal.

Tais exigências surgem como uma decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo[2], assegurando a seriedade do próprio recurso intentado pelo impugnante.


*

(…)

*

A. Matéria de facto

São os seguintes os factos dados como provados na sentença recorrida, com as alterações aqui introduzidas em sede de impugnação, e que aqui reproduzimos na parte em que apresentam interesse para o objeto do recurso:

1. A segunda Ré fez o transporte, entre o mais, de uma grua da marca Fassi, modelo 1000A/1100AXP.26 s/n 1171, através do seu veículo pesado de mercadorias com a matrícula x (...) e reboque VI - 9401, tendo sido emitida a declaração de expedição internacional (CMR) que consta de fls. 12, cujo teor ora se dá por reproduzido.

2. Esse transporte foi feito a pedido da primeira Ré, sociedade transitária.

3. A qual, por sua vez, se comprometeu para com a Autora a efetivar tal transporte, tendo sido acordado entre esta e a primeira Ré o preço do transporte, condições contratuais e respetivo pagamento do serviço.

4. Entre Autora e segunda Ré não houve quaisquer contactos negociais antes de 24 de Setembro de 2008.

5. No dia 23 de Setembro de 2008, iniciou-se o transporte contratado.

6. No dia 24 de Setembro de 2008, em s (...) , Itália, ocorreu um sinistro envolvendo o veículo referido em 1. na sequência do qual a grua também ali identificada foi projetada para a via pública.

7. O contrato referido em 3. foi celebrado em 18 de Setembro de 2008.

8. E tinha como objeto a recolha de gruas em Itália, na sede da sociedade “F (…).”, em (...) , e a sua entrega na sede da Autora, em (...) , Leiria.

9. A grua acidentada regressou às instalações da expedidora a fim de ser reparada.

10. - Pois apresentava: (…).

11. - O que exigiu que fossem efetuadas reparações (…).

12. - A sociedade “F (…).” procedeu à reparação da grua pelo valor de €12.360,96 (doze mil trezentos e sessenta euros e noventa e seis cêntimos).

13. Valor esse faturado à Autora.

14. A qual depois faturou esse valor à primeira Ré, em 22 de Dezembro de 2008, emitindo a fatura n.º 98/08.

15. Fatura essa que não foi paga.

16. - A Autora suportou ainda a despesa de €2.760,00 (dois mil setecentos e sessenta euros), a título de despesas de transporte da grua para a expedidora a partir do local do sinistro e com a ocupação do espaço onde a grua permaneceu até ser reparada.

17. A grua referida em 1. já tinha sido alvo de encomenda à Autora pela sociedade “E (…).”, em 28 de Dezembro de 2007, pelo valor de € 132.809,60 (cento e trinta e dois mil oitocentos e nove euros e sessenta cêntimos).

18. E destinava-se a ser entregue a esta referida sociedade nesse mês de Setembro de 2008.

19. Mas acabou por ser entregue meses depois.

20. O que fez com que os legais representantes dessa sociedade ficassem desapontados e arreliados com a Autora dizendo que não tornariam a contratar com ela.

21. A grua foi colocada no reboque do veículo por equipamento manobrado pelos funcionários da expedidora da grua, a sociedade “F (…) tendo sido ali depositada no local indicado pelo motorista do veículo da 2ª R., sendo a grua presa ao reboque do veículo pelos funcionários daquela expedidora com as cintas que lhes foram entregues para o efeito por aquele motorista.

22. Aquando do sinistro, o veículo pesado circulava na auto-estrada n.º 6 (Turim - s (...) ) a uma velocidade em concreto não apurada.

23. - Foi, então, ultrapassado por um veículo ligeiro pela hemifaixa da esquerda, o qual retomou a hemifaixa direita por onde circulava o camião da 2ª R., de forma abrupta e desacelerando imediatamente a sua marcha.

24. - O veículo pesado só conseguiu evitar a colisão com o veículo ligeiro mediante uma travagem brusca.

25. - Essa travagem teve lugar num local onde a via formava uma ligeira curva à esquerda.

26. Foi nesse momento que caiu a grua na via pela parte lateral direita do reboque.

27. A grua em causa pesava 11,200 toneladas e ocupava a parte central do reboque.

28. Aquando da queda, a grua, além de outros danos, deformou as réguas de proteção lateral em alumínio e rasgou o encerado lateral direito do reboque.

29. As demais gruas transportadas estavam intactas e bem presas ao reboque.

30. Os funcionários da fabricante F (…) não deixaram o motorista da Ré F(…) assistir ao carregamento das gruas no reboque do camião;

31. Os barrotes da grua que caiu e que pesava cerca de onze toneladas não estavam pregados ou por qualquer modo fixados nem ao estrado do camião nem à grua.


*

B. O Direito

1. Responsabilidade das Rés pelos danos provocados pela queda da grua durante a operação de transporte.

 Na sentença recorrida, partindo da afirmação de que os artigos 17º e 18º da Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada (Convenção CMR) estabelecem uma presunção de culpa do transportador e considerando que as Rés não lograram afastar a presunção de culpa que sobre elas impende, concluiu pela responsabilização de ambas as rés pelos prejuízos decorrentes para a autora da queda da grua durante a operação de transporte levada a cabo pela Ré F (…), por subcontratação da 1ª Ré U (…)

A Ré/Apelante F(…) insurge-se contra o decidido, alegando verificar-se a causa de exclusão da responsabilidade prevista no artigo 17º, nº4, al. c), da CMR, funcionando ainda aqui a presunção do nº2 do artigo 18º da CMR, mostrando-se o transportador isento de responsabilidade.

Vejamos, assim, se os factos dados como provados permitem afastar a responsabilidade das Rés, a primeira, transportadora contratual e a segunda, transportadora de facto.

Provada que seja a verificação do dano, ato contínuo, surge sobre o transportador e a favor do interessado na carga, uma presunção de responsabilidade[3], nos termos dos artigos 17º, nº1 e 18º nº1, da Convenção CMR[4].

O transportador responde pelos atos de todos a quantos recorra, seja pelos atos dos seus auxiliares seja por situações em que recorra à subcontratação (artigo 3º CMR)

Contudo, o transportador poderá reverter aquela presunção e, findo o processo probatório, exonerar-se da responsabilidade que lhe havia sido presuntivamente assacada.

Esta exoneração, ou o mero afastamento da presunção de responsabilidade, poderá fazer-se, seja provando as causas liberatórias do nº2 do artigo 17º, seja recorrendo aos designados factos liberatórios, ou causas privilegiadas de liberação (nº4 do artigo 17º.

O ónus da prova da verificação de qualquer das situações que permitem a exclusão da responsabilidade cabe ao transportador[5], o que resulta da própria letra do artigo 18º, nº1, como resultaria já dos princípios gerais sobre a repartição do ónus da prova (art. 342, nº2 CC).

Quanto às causas liberatórias, dispõe a tal respeito o nº2 do artigo 17º:

2. O transportador fica desobrigado desta responsabilidade se a perda, avaria ou demora teve por causa uma falta do interessado, uma ordem deste que que não resulte de falta do transportador, um vício próprio da mercadoria, ou circunstancias que o transportador não podia evitar e a cujas consequências não conseguia obviar.

Relativamente às causas liberatórias, Nuno Manuel Castello-Branco[6], sustenta que o transportador se liberará da sua responsabilidade uma vez que tenha provado o nexo causal concreto entre o dano e qualquer dos factos aí previstos, embora restando ao interessado na carga provieram desses factos e só desses factos. Assim sendo, segundo este autor, o transportador só se liberará inteiramente se conseguir provar que os danos provieram desses factos e só desses factos, sem embargo de se poder acolher presunções de experiência (presumptiones hominum), a fim de concluir tal prova.

O artigo 17º prevê ainda, no seu nº4, outros factos liberatórios ou causas de exclusão ou de irresponsabilidade:

“4. Tendo em conta o artigo 18º, parágrafos 2 a 5, o transportador fica isento da sua responsabilidade quando a perda ou avaria resultar dos riscos particulares inerentes a um ou mais dos factos seguintes:

a) Uso de veículos abertos e não cobertos com encerado, quando este uso foi ajustado de maneira expressa e mencionado na declaração de expedição;

b) Falta ou defeito da embalagem quanto às mercadorias que, pela sua natureza, estão sujeitas a perdas ou avarias quando não estão embaladas ou são mal embaladas;

c) Manutenção, carga, arrumação ou descarga da mercadoria pelo expedidor ou pelo destinatário ou por pessoas que atuem por conta do expedidor ou do destinatário;

d) Natureza de certas mercadorias, sujeitas, por causas inerentes a essa própria natureza, quer a perda total ou parcial, quer a avaria, especialmente por fratura, ferrugem, deterioração interna e 10 espontânea, secagem, derramamento, quebra normal ou ação de bicharia e dos roedores;

e) Insuficiência ou imperfeição das marcas ou dos números dos volumes;

f) Transporte de animais vivos.

5. Se o transportador, por virtude do presente artigo, não responder por alguns dos fatores que causaram o estrago, a sua responsabilidade só fica envolvida na proporção em que tiverem contribuído para o estrago os fatores pelos quais responde em virtude do presente artigo.”

Ao transportador compete a prova da ocorrência, no caso concreto, de um ou mais dos referidos riscos particulares (por ex., falta ou defeito da embalagem). Mas essa prova não chega. Terá ainda de estabelecer uma forte probabilidade de um nexo de causalidade entre o risco invocado e a perda ou avaria, ou seja, que, ante as circunstâncias do caso concreto, a perda ou avaria podia ter resultado desse risco[7].

Contudo, segundo Manuel Januário da Costa Gomes[8], embora o transportador que queira ver excluída a sua responsabilidade tenha o ónus da prova de que a perda ou avaria resulta dos “riscos particulares inerentes” a um dos factos indicados em alguma das alíneas do nº4 do artigo 17º, o transportador não precisa, porém, de fazer uma prova absoluta: “se ele lograr provar que, tendo em conta as circunstâncias de facto, a perda ou avaria pode ter resultado de um ou mais dos referidos riscos particulares, haverá presunção de que a perda ou avaria em causa resultou desse ou desses riscos. A partir daqui, inverte-se o ónus, cabendo ao interessado destruir a base da presunção até então favorável ao transportador, provando que a avaria não teve por causa total ou parcial o risco invocado pelo transportador.

Nuno Castello-Branco Bastos vê no nº4 do artigo 17º a consagração de um regime de prova mais favorável ao transportador:

“Provando tais factos e a mera relação abstrata de causalidade entre os danos verificados (isto é, entre aquele tipo de danos) e aqueles tipos abstratos de factos, o transportador gozará de uma presunção de causalidade, revertendo-se igualmente a presunção de responsabilidade, pois que, ictu oculi, é percetível que tais factos geram, habitualmente, os danos em causa.

Ao interessado na causa restará provar a ausência de um nexo de causalidade concreta, isto é, in casu, ou existindo este, a concorrência da negligência do transportador. Só refutando esta prova, a existir, é que, por fim, o transportador ficará exonerado da sua responsabilidade[9]”.

No caso em apreço, a grua veio a soltar-se do reboque e a cair na via na sequência de uma travagem brusca que o motorista do pesado teve de proceder a fim de evitar um acidente, encontrando-se tal travagem perfeitamente justificada pelas circunstâncias que a rodearam.

E, em princípio, não é suposto que a mercadoria transportada dentro de um camião vá acondicionada de modo a poder soltar-se e sair projetada do camião em caso de uma paragem brusca, desde logo, face ao perigo que tal representaria para o restante tráfego, sobretudo quando nos encontramos perante uma grua que pesa 11,200 toneladas.

Ou seja, se, face a uma travagem brusca – travagem que pode sempre vir a ocorrer no decorrer da circulação automóvel –, a Grua transportada se solta, na falta de outra explicação, teremos de afirmar que tal se terá devido a deficiente acondicionamento.

E, no caso em apreço, provou-se que quem procedeu às manobras de acondicionamento da mercadoria dentro do camião foi o pessoal da expedidora.

É certo que não ficou concretamente apurado qual o procedimento correto que deveria ter sido adotado para o tipo específico do objeto transportado – uma grua com um peso de cerca de 11,200 toneladas – sabendo-se, tão só, que os procedimentos que tenham sido adotados, sejam eles quais forem, se afiguraram manifestamente insuficientes para segurarem a carga numa situação que é absolutamente expetável na circulação rodoviária, uma travagem brusca.

Contudo, tal como se extrai das considerações que antecedem, o transportador só tinha de fazer a prova de que a queda da grua transportada se deveu à carga ou arrumação da mercadoria pelo expedidor – causa de exclusão da responsabilidade prevista na al. c) do nº4 artigo 17º –, para que goze da presunção de a queda se deveu ao modo como foi efetuado o carregamento e acondicionamento da grua, invertendo-se a partir daqui o ónus da prova, e passando a incumbir ao expedidor a prova de que a queda da mercadoria não se terá devido a qualquer deficiência no acondicionamento – nomeadamente, que usou nela todos os cuidados necessários e exigíveis para garantir a segurança do transporte tendo em consideração o tipo de mercadoria em causa.

Atentas as regras de distribuição do ónus de prova aqui em vigor, a ausência de prova sobre qual o procedimento necessário a um adequado acondicionamento da grua e se o mesmo foi respeitado virar-se-á contra a expedidora.

E, ainda que se pudesse afirmar que a deficiência do acondicionamento estaria no número insuficiente de cintas usadas, como sustentou o juiz a quo na sentença, se foi ela que procedeu ao carregamento e acondicionamento da grua, a utilização de um número insuficiente de cintas só à expedidora poderá ser imputado.

 A apelação será de proceder.

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, revogando-se a decisão recorrida e, julgando-se a ação totalmente improcedente, absolvem-se as Rés do pedido.

Custas pelos Apelados.                    

Coimbra, 15 de janeiro de 2019

  
V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC.
1. Se a grua transportada se solta na sequência de um travagem brusca efetuada como modo de evitar uma colisão, vindo a cair pela parte lateral do camião, poder-se-á presumir o deficiente acondicionamento da mesma.
2. O transportador ficará isento de responsabilidade quando a queda da mercadoria resulta dos riscos particulares inerentes ao carregamento e acondicionamento da mercadoria pelo expedidor, nos termos da al. c), do nº4 da Convenção CMR.


Maria João Areias ( Relatora )
Alberto Ruço
Vítor Amaral


[1] Que aqui se não reproduzem dado o nítido incumprimento do dever de nelas sintetizar os seus fundamentos de recurso (artigo 639º CPC).
[2] Cfr., António Santos Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina 2013, pág. 127.
[3] Nuno Manuel Castelo-Branco, “Direito dos Transportes”, IDET, Almedina, pp.93-94.
[4] Dispõe o nº1 do artigo 17º: “O transportador é responsável pela perda, total ou parcial, ou pela avaria que se produzir entre o momento do carregamento da mercadoria e o da entrega, bem como pela demora na entrega”; dispondo o nº1 do artigo 18º: “Compete ao transportador fazer prova de que a perda, avaria ou demora teve por causa algum dos factos previstos no artigo 17º, parágrafo 2”.
[5] Manuel Januário da Costa Gomes, “A Responsabilidade do Transportador no Acto Uniforme da Ohada Relativo ao Transporte Rodoviário de Mercadorias”, disponível online, http://www.fd.ulisboa.pt/wp-content/uploads/2014/12/Gomes-Januario-Costa-A-RESPONSABILIDADE-DO-TRANSPORTADOR-NO-ACTO-UNIFORME-DA-OHADA-RELATIVO-AO-TRANSPORTE-RODOVIARIO-DE-MERCADORIAS.pdf.
[6] Obra citada, p. 95.
[7] Alfredo Proença e J. Espanha Proença, “Transporte de Mercadorias”, Almedina 2004, p. 124.
[8] Artigo e local citados, p. 22.
[9] Obra citada, p. 96.