Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5142/21.6T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: DOENÇA DE ALZHEIMER
DIAGNÓSTICO POSTERIOR A ELABORAÇÃO DE TESTAMENTO
COM DATA ANTERIOR A ESTE
ANULAÇÃO DO TESTAMENTO
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 03/14/2023
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL E CRIMINAL DA GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE, COM VOTO DE VENCIDO
Legislação Nacional: ARTIGO 662.º, 1, CPC
ARTIGO 2199.º CÓDIGO CIVIL
Sumário: I. A existência de um diagnóstico de Alzheimer, posterior à elaboração do testamento, embora reportando como seu possível início uma data anterior a este, não afasta o ónus da prova a cargo do Autor, quem pretende a anulação do ato, no contexto do art. 2199 do Código Civil.
II. O diagnóstico de Alzheimer, nos seus efeitos concretos, deve ser aferido caso a caso; podendo suportar uma presunção judicial de incapacidade, é no quadro do julgamento de toda a matéria de facto que devemos julgar a sua força probatória.
III. Assim, no caso, a questão a decidir é essencialmente factual e passa por julgar a divergência quanto à valoração da prova, indagando sobre a capacidade do testador, não se provando a referida incapacidade no momento do testamento.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

AA intentou ação contra BB, pedindo a nulidade ou, se assim não se entender, a anulação do testamento de CC, lavrado a 28 de fevereiro de 2020.

Para tanto, o Autor alega, em síntese:

 Desde cedo o testador demonstrou sinais de demência, sendo esta reconhecida por sentença transitada em julgado em 30 de julho de 2021, que fixou que o referido estado provinha de maio de 2015.

O testamento não exprime a real vontade do testador por o mesmo se encontrar impedido de entender o sentido da sua declaração.

O Réu contestou e deduziu pedido reconvencional, alegando, em síntese, que, a aceitar-se que o falecido padecia de doença, o seu quadro clínico foi evolutivo e com agravamento progressivo, não se aceitando que a sua capacidade cognitiva, mesmo que de modo acidental, estivesse comprometida em 28 de fevereiro de 2020, data da realização do testamento.

O Réu pede que se julgue a validade do testamento.

Realizado o julgamento, foi proferida a seguinte sentença:

Decide-se em julgar a presente ação parcialmente procedente, por provada, e a Reconvenção improcedente, por não provada e, em consequência:

Absolver o Réu BB do pedido de declaração de

nulidade do testamento de CC, lavrado a 28 de fevereiro de 2020, no Cartório Notarial em ... de DD, formulado pelo Autor AA;

Julgar procedente o pedido subsidiário deduzido pelo Autor AA e, consequentemente, anular-se o testamento outorgado por CC, lavrado a 28 de fevereiro de 2020, no Cartório Notarial em ... de DD, testamento esse mediante o qual o Réu BB foi instituído único e universal herdeiro do aludido testador;

Absolver o Autor do pedido formulado pelo Réu.


*

Inconformado, o Réu recorreu e apresenta as seguintes conclusões:

1. O Recorrente considera que foram incorretamente julgados como provados alguns factos pelo Tribunal a quo.

2. Os factos que ora se impugnam são os que infra se transcrevem: “5. Sucede que, o testador desde cedo demonstrou sinais de demência, sendo notória a qualquer pessoa que com ele convivesse (artigo 5º da petição inicial); 6. Nessa sequência, o Autor, porque sempre manteve o contacto, mesmo residindo no Luxemburgo, testemunhou uma rápida evolução da demência do testador, verificando que o mesmo se encontrava cada vez mais afetado a nível cognitivo e a nível comportamental. (artigo 6º da petição inicial); 14. À data da celebração do testamento, já o testador padecia de demência de alzheimer, remontando esta a, pelo menos maio de 2015. (artigo 18º da petição inicial); 15. À data do testamento, a saúde mental do testador já se encontrava bastante deteriorada, (artigo 21º da petição inicial); 16. O testamento não exprime a real vontade do testador, por o mesmo se encontrar impedido de entender o sentido da sua declaração. (artigo 22º da petição inicial); 17. O testador já possuía um discurso confuso, com falhas de memória associadas e alterações comportamentais adjacentes à progressão da demência de alzheimer. (artigo 23º da petição inicial); 18. O Réu bem sabia que, à data do testamento, o testador já não se encontrava em plenas capacidades mentais. (artigo 24º da petição inicial); 21. Bem sabia o Réu que o testador tinha uma relação bastante próxima com o Autor, nutrindo um grande carinho pelo mesmo. (artigo 27º da petição inicial); 22. O Réu, não mantinham uma relação sólida, mas antes uma relação meramente circunstancial que apenas ocorreu após o falecimento da mãe do Autor. (artigo 28.º da petição inicial); 29. O testador não estava a expressar a sua vontade livremente no momento da celebração do

testamento. (artigo 35.º da petição inicial); 31. Nunca o testador, em perfeito juízo, iria beneficiar o Réu. (artigo 40.º da petição inicial); 34. Fazia o Autor questão de manter o contacto telefónico com o testador para o acompanhar (artigo 45º da petição inicial); 35. Viu-se privado de o fazer em janeiro de 2020, o Autor, por diversas vezes tentou contactar

telefonicamente o testador, como sempre fazia, para inclusivamente o parabenizar pelo seu aniversário. (artigo 46º da petição inicial).”

3. Com o devido respeito, que é muito, fazendo-se a subsunção da matéria de facto

considerada provada à prova produzida em sede de audiência final, parece ao Recorrente que a decisão proferida pelo Tribunal a quo não foi a mais justa.

4. Começa a decisão por considerar provado que o testador, desde cedo, demonstrou sinais de demência (facto provado com o n.º 5).

5. A decisão ora recorrida deu como provada a demência de Alzheimer do testador

desde maio de 2015. Para tal, teve em consideração o relatório médico-legal, realizado pelo IML – Delegação do Centro, junto aos autos de Processo n.º 247/20...., que correu termos no Juízo de Competência Genérica ... e que decretou a medida de acompanhamento ao testador (sentença transitada em julgado a 30.07.2021).

6. No entanto, tal não resulta do depoimento das testemunhas que com ele conviviam que fosse notório qualquer sinal de demência por parte do testador.

7. Nesta senda, despôs a testemunha EE, onde afirmou que o Autor do

testamento e o Recorrente tinham uma relação próxima e de verdadeira amizade e que, por diversas vezes, almoçava com os mesmos.

8. Asseverou que o falecido CC tinha um discurso coerente não

havendo evidências de ter um discurso ilógico.

9. No seu depoimento, a testemunha disse ter encontrado o testador pela última vez, aproximadamente há dois anos atrás (altura que remonta à celebração do testamento, que foi feito a 28.02.2020) e que, aparentemente, o mesmo encontrava-se bem de saúde e sem qualquer sinal de demência (gravação de 00:01:33 – 00:13:17).

10. Também não foi tido em linha de conta o atestado médico, junto como Documento n.º 3 da Contestação, emitido a .../.../2019 pelo Dr. FF, onde não identificou qualquer sinal de demência sofrida por CC que obstasse à revalidação da carta de condução do testador.

11. No seu depoimento, FF, médico reformado, que exerceu funções

numa Clínica Privada, emitindo atestados para a revalidação de cartas de condução, admitiu que se fossem notórios sinais de demência não teria emitido o referido atestado onde consta que o testador preenchia as condições clínicas para que a sua carta de condução fosse revalidada.

12. A testemunha foi perentória ao asseverar que se resultasse do seu diagnóstico que o utente padecia da doença de Alzheimer tal seria um impedimento intransponível para a emissão do referido atestado (gravação 00:08:01 a 00:08:30)

13. Considerou o Tribunal a quo como provado que o atestado não resulta de uma

observação sumária e superficial feita pelo médico e que, caso fosse notório que o condutor não estivesse apto para a condução o médico poderia solicitar uma avaliação psicológica o que não o fez pelo que, é admitido pelo Tribunal de 1.ª Instância o rigor feito nesta avaliação.

14. Aliás, o médico quando confrontando com o facto de o testador alegadamente sofrer de doença de Alzheimer, pelo menos, desde 2015, manifestou espanto porquanto, caso chegasse a essa conclusão não emitiria o atestado (gravação 00:13:14 – 00:14:59).

15. Pelo que, uma vez mais, resulta do depoimento desta testemunha que o testador não padecia da doença de Alzheimer desde 2015 e, a considerar-se a alegada enfermidade, é notório que o mesmo tinha momentos de total lucidez como afirmado no depoimento das testemunhas tendo, o testamento sido celebrado em circunstâncias de total lucidez como foi corroborado pelas testemunhas presentes no ato da sua celebração.

16. Com o devido respeito, parece também não terem sido devidamente considerados os depoimentos das testemunhas que estiveram presentes no ato de celebração do testamento sendo que estas tiveram oportunidade de avaliar se o Sr. CC estava lúcido e se eram notórios alguns sinais de demência ou limitação à sua capacidade volitiva aquando a manifestação de vontade em celebrar o testamento.

17. Afirmou a testemunha GG - testemunha do testamento – que o Sr. CC lhe pareceu normal e quando comentou com o testador que o seu irmão estaria doente o mesmo ficou comovido, pelo que se conclui que estava ciente da gravidade da doença do seu amigo caso contrário, não teria tido essa reação (gravação 00:08:13 – 00:10:15).

18. Também a testemunha Dra. HH, testemunha no ato solene de testamento afirmou que o testador CC, lhe aparentava estar normal (gravação 00:08:41 – 00:10:54).

19. A Sr.ª Notária, que celebrou o testamento, prestou o seu depoimento afirmando

recordar-se do testador e de ter conversado com o mesmo.

20. Asseverou que a conversa foi mais ou menos longa. Recorda-se que o mesmo, no dia da celebração do testamento se encontrava triste, mas que, de nenhuma forma, lhe pareceu nervoso, pressionado ou com a sua capacidade de lucidez afetada.

21. Mais referiu que fez algumas questões ao testador, facto que também foi corroborado pela testemunha HH e que, pese embora, não se recordar das perguntas concretas que fez não lhe restou qualquer dúvida de que o testador estava lúcido (gravação 00:08:00 – 00:12:43).

22. Pelo que, as testemunhas que estiveram presentes no ato notarial do testamento

todas elas indicaram, que o testador naquele dia aparentava estar lúcido não sendo notório qualquer sinal de que estava pressionado ou que limitasse a sua capacidade volitiva.

23. Ainda que o Tribunal a quo considerasse que o testador padecia da doença de

Alzheimer, o que levanta reservas ao Recorrente, todas as testemunhas afirmaram que o testador, no momento da celebração do testamento, encontrava-se normal, não havendo dúvidas quanto à lucidez do testador.

24. De frisar que o processo de acompanhamento de maior só foi instaurado pelo

Recorrido após o mesmo ter conhecimento do referido testamento.

25. Resultou provado que entre o Recorrente e o testador existia uma relação de verdadeira amizade, não sendo esta meramente circunstancial.

26. Assim asseverou a testemunha II acrescentando que o testador não

apresentava sinais de qualquer doença dizendo conhecer o Recorrente e o testador por irem ao estabelecimento onde trabalha todas as semanas.

27. Tendo a testemunha afirmado notar uma relação de amizade recíproca bem como, que o testador conversava bastante e nunca se apercebeu que o mesmo tivesse doente.

28. Afirmou ainda ter acreditado que o Recorrente e o testador eram pai e filho devido à relação tão próxima que tinham (gravação 00:01:32 a 00.03.57).

29. Também a testemunha JJ, cozinheira do restaurante “Quinta ...”, afirmou que conhecia tanto o Recorrente como o testador, que iam juntos ao restaurante e que até acreditou que eram pai e filho (gravação 00:02:25 a 00:03:10).

30. A testemunha KK, afirmou ver diversas vezes o Recorrente e o testador juntos e que o mesmo lhe confidenciou, frente ao Recorrido, que ia fazer um testamento, deixando os bens ao Recorrente tendo, ainda, confessado que o cunhado e o sobrinho não se preocupavam com ele e que era da sua vontade deixar os bens ao Recorrente (gravação 00:10:46 – 00:11:23).

31. Pese embora os depoimentos das testemunhas, decidiu o Tribunal a quo “Julgar procedente o pedido subsidiário deduzido pelos Autor AA e, consequentemente, anular-se o testamento outorgado por CC, lavrado a 28 de fevereiro de 2020, no Cartório Notarial em ... de DD, testamento esse mediante o qual o Réu BB foi instituído único e universal herdeiro do aludido testador”.

32. Considerou o Tribunal a quo que o testador CC, no momento da celebração do testamento – 28.02.2020 – encontrava-se incapaz, não estando no pleno uso das suas faculdades mentais, o que não lhe permitiu compreender o sentido da declaração, condicionando o exercício da sua livre vontade quando celebrou testou a favor do Recorrente, deixando-o como seu único e universal herdeiro.

33. No entanto, todas as testemunhas presentes no ato do testamento asseveraram que o testador se encontrava lúcido, que não pareceu pressionado e que, a notária fez algumas questões às quais o mesmo respondeu não denotando qualquer demência ou estado de confusão que obstasse à sua vontade em celebrar o testamento, deixando o Recorrente como seu beneficiário.

34. O Tribunal a quo considerou que o ónus da prova cabia ao Autor, tendo de provar que o testador padecia de Alzheimer, mas também cabia ao Réu provar que no momento da celebração do testamento o mesmo encontrava-se lúcido.

35. Com o devido respeito, as únicas pessoas que podem atestar o estado mental do testador aquando a celebração do testamento são as pessoas que estiveram presentes naquele ato, sendo que todas informaram que o testador se apresentava lúcido naquele ato notarial.

36. Destaca-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 29/06/2017,

processo n.º 13/15.8T8VCT.G1 (…)

37. No que respeita à capacidade testamentária, estatui o artigo 2188.º do Código Civil que “Podem testar todos os indivíduos que a lei não declare incapazes de o fazer.”,

exceção feita aos casos previstos no artigo seguinte, 2189.º.

38. Assim, são incapazes de testar os menores não emancipados (alínea a) e, para o que aqui nos interessa, os maiores acompanhados, apenas nos casos em que a sentença

de acompanhamento assim o determine (alínea b).

39. No que ao segundo caso diz respeito, haverá que distinguir entre os interditos e aqueles que não o sejam, não obstante padecerem igualmente de uma anomalia.

40. Também o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 29/06/2017, processo n.º 13/15.8T8VCT.G1 julgou que (…)

41. E, ainda, no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 17/12/2020, processo n.º 109/17.1T8BJA.E1: (…)

42. Atentar ainda que, conforme prescreve o artigo 2191.º do Código Civil, a capacidade do testador se afere no momento da outorga do testamento, no momento da sua elaboração, perante oficial público, naquele dia, naquele momento, e em nenhum outro.

43. Releva a data do testamento, para se aferir da capacidade do testador. E, nesse

preciso momento, estavam presentes, para além do testador, a Notária, e as duas testemunhas que presenciaram a outorga do testamento.

44. Conforme resulta do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 16-06-09, (…)

45. Tratou-se de testamento público, acto jurídico regulado pela lei substantiva de

forma extremamente rigorosa, o que, por exemplo, se revela através da sua natureza pessoal, nos termos que constam do art. 2182º do CC, ou da previsão de um conjunto de indisponibilidades relativas decorrentes dos arts. 2192º e segs. semelhante rigor foi espelhado na solenidade que rodeia a sua outorga.

46. Sendo lavrado pelo próprio Notário, segundo as declarações do testador, o testamento fica exarado no respectivo Livro de Notas. Na ocasião em que recebe a declaração, cumpre ao Notário esclarecer o testador acerca dos seus efeitos, devendo estar atento ainda a qualquer aspeto que faça duvidar das suas faculdades mentais.

47. Mais do que acontecerá com a generalidade das pessoas, os Notários são profissionais familiarizados tanto com as dificuldades e motivações das pessoas de idade que se apresentam a outorgar testamentos, como com as situações de aproveitamento por parte de terceiros das debilidades físicas ou mentais dos testadores ou dos efeitos que podem projetar-se a partir de situações de dependência em que se encontrem».”

48. Pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 29/05/2012, processo n.º 37/11.4TBMDR.C1: (…)

49. E ainda nos termos do mencionado aresto, (…)

50. Ainda no mesmo Acórdão, (…)

51. Por conseguinte, não pode deixar de se entender que, tendo o testamento sido

exarado perante notário, existe uma forte presunção de que o testador tem aptidão para entender o que declara.

52. Acresce que não existe, como vimos, apesar das dúvidas manifestadas pelo autor, qualquer irregularidade formal no testamento em causa, não se observando nele qualquer anormalidade das condições em que a testadora se encontrava.”

53. “(…) Situação semelhante à dos autos foi objecto do acórdão desta Relação, de 13-7-05, CJ, tomo IV, do mesmo relator, com o seguinte sumário: (…)

54. Assim, salvo o devido respeito que é muito, não deveria o douto Tribunal a quo ter concluído da forma como concluiu, pois, tal não resulta dos depoimentos da Sra. Notária e das testemunhas ali presentes, únicas que podem asseverar da capacidade do testador no dia 28 de fevereiro de 2020.

55. Ademais, no caso concreto, não se pode deixar de salientar a importância do depoimento prestado pela testemunha Dr. FF.

56. Vem referido na douta decisão de que ora se recorre que, uma vez feita a prova do estado de demência de que o testador padecia, é de presumir, sem mais, que no momento da outorga do testamento, aquele se encontrava numa situação de incapacidade de entender e de querer o sentido da disposição testamentária.

57. Presunção que opera nos termos e para os feitos do disposto no artigo 349.º do

Código Civil, cabendo ao Recorrente ilidir essa presunção, ao demonstrar que o testador se encontrava, naquele momento, num intervalo de lucidez.

58. Porém, em conformidade com o versado no Acórdão do Tribunal da relação de Guimarães de 28/04/2022, processo n.º 3162/20.7T8GMR.G1, (…)

59. Entende o Recorrente que, no momento da outorga do testamento, perante os depoimentos de todos quantos estavam presentes no cartório notarial, não se consegue concluir que o testador se encontrasse incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou que não tivesse o livre exercício da sua vontade.

60. Concluímos assim, com o douto aresto do Tribunal da Relação de Guimarães, de 29/06/2017, processo n.º 13/15.8VCT.G1, (…)

61. Por fim, diga-se também, que não foi cumprido o contraditório no processo de

maior acompanhado, cujo relatório consta da prova tida em conta pelo douto tribunal recorrido para firmar a sua convicção.

62. Ora, “Conforme decorre do art. 421º CPC, a prova admitida num outro processo pode ser invocada noutro processo contra a mesma parte. Para tanto será necessário que se verifiquem os seguintes requisitos: - tenha havido audiência contraditória, nos termos do art. 415º CPC; o que significa que a parte contra quem a prova é produzida [aquela que resulte desfavorecida com o resultado probatório] há de ter tido possibilidade de intervenção no ato de produção ou no procedimento de admissão da prova; - seja a mesma, nos dois processos, a parte contra quem a prova é produzida; - o ato de produção de prova não tenha sido anulado.” (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 04/05/2015, processo n.º 1267/12.7TVPRT.P1). “O relatório médico a que os recorrentes se referem é um parecer de um técnico da especialidade que pode ser junto nos termos do artigo 525º do C. Processo Civil, mas que, como é evidente, é de livre apreciação.

63. “A capacidade de testar é dos problemas mais difíceis de apreciar e muito em

particular se, como acontece muitas vezes, o testador já morreu”, devendo aplicar, neste caso, o princípio “in dúbio pro reo”. (…)

64. Tal sucede quanto aos diversos documentos sujeitos a livre apreciação, não se

mencionando as razões por que foram valorizados ou desvalorizados em ordem à convicção formada.

65.Entende o Recorrente, com o devido respeito que é muito, que não resulta provado que, no momento em que foi lavrado o testamento, o testador não tinha capacidades de entender e querer o sentido da declaração testamentária, como se procurará demonstrar.

66. Nesta senda, acompanhando o versado no Acórdão do Tribunal da Relação de

Lisboa, de 22/05/2018, processo n.º 2414/15.2T8CSC.L1-7, (…)

67. O Ac. TRC de 29/05/2012, proc.37/11.4TBMDR.C1, (…)

68. A partir destes, podemos dizer, com Pires de Lima e Antunes Varela, que «a simples presença do notário (aditada à das testemunhas que, segundo a lei notarial, devem presenciar o ato) é uma primeira e qualificada garantia de que o testador gozava ainda, no momento em que foi revelando a sua vontade, de um mínimo bastante de capacidade anímica para querer e para entender o que afirmou ser sua vontade (Código Civil Anotado, vol. VI, 1998, nota 3 ao art. 2205).”

69. Acrescentando (…); (Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 17/12/2020, processo n.º 109/17.1T8BJA.E1).

70. Ou seja, conforme refere o douto acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 29/06/2017, processo n.º 13/15.8T8VCT.G1, (…)

71. Efetivamente, foi referido pela própria Notária que, caso duvidasse da capacidade do testador, aquando da celebração do ato jurídico, teria diligenciado de acordo com essa constatação, o que efetivamente não fez.

72. Do depoimento da senhora notária, prestado em sede de audiência final, resultou claro que, na situação em apreço, como é prática sua, seguiu o mesmo formalismo que subjaz a qualquer outro testamento, tendo, designadamente, iniciado o procedimento com a realização de algumas questões ao testador, uma conversa, que lhe permite aferir da sua capacidade para o ato, concluindo, pelas respostas que lhe foram dadas pelo testador, que não se manifestava a doença e que o testador não foi influenciado pelo estado demencial de que padecia, sendo capaz de transmitir de forma livre e esclarecida a sua vontade e sendo capaz de entender o sentido e o alcance da sua manifestação, portanto, nada impedindo a realização do ato jurídico em causa.

73. Conforme esclarece o douto aresto do Tribunal da Relação do Porto, de 19/11/2020, processo n.º 5271/18.3T8MTS.P1, (…)

74. Relativamente à anulabilidade do testamento, pode ler-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 04/10/2017, processo n.º 1108/14.0TJVNF.G1, (…)

75. O artigo 257º do CC, acabado de citar, prevê a anulabilidade da declaração feita por quem se encontre em incapacidade acidental (quem, devido a qualquer causa, se

encontre acidentalmente incapacitado de entender o sentido da declaração ou não tenha o livre exercício da sua vontade), mas quanto falamos de testamento não se exige que o facto seja notório ou conhecido do beneficiário, “… porque agora não há que proteger substancialmente as expectativas de um declaratário, mas prioritariamente preservar a liberdade e a vontade real do testador.”

76. Salvo o devido respeito que é muito, não se logrou provar que, no momento em que foi lavrado o testamento, o testador se encontrava num estado de demência que afetasse e o incapacitasse, nesse momento, de entender o sentido da sua declaração e que impedisse do livre exercício da sua vontade.

77. “O que se provou foi que efectivamente ao testador tinha sido diagnosticada a

doença de Alzheimer, mas a data mais recuada que foi possível estabelecer para esse diagnóstico foi setembro de 2005.

78. Assim, temos alguém a quem é diagnosticada a doença de Alzheimer em setembro de 2005, e que em abril de 2008 faz um testamento. E a questão que se coloca é a de saber se na data em que fez o testamento já a doença o tinha privado da capacidade de formar livre e esclarecidamente a sua vontade e de a manifestar perante terceiros.

79. A resposta a tal pergunta, não tendo sido possível recorrer a perícia médico-neurológica no momento do testamento, só pode emergir de prova circunstancial, ou seja, de prova que nos diga qual o comportamento do testador no momento em que expressou a sua vontade perante o Notário.” (Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 28/04/2022, processo n.º 3162/20.7T8GMR.G1).

80. Por fim, também no Ac. do STJ, de 25-3-03, na CJSTJ, tomo I, pág. 109, (…)

81. “As testemunhas que estiveram presentes no momento da outorga do testamento foram credíveis nos seus depoimentos, tendo contrariado a tese da incapacidade alegada pelo autor.

82. Desde logo, o Sr. Notário foi perentório em afirmar que não hesitaria em recusar o testamento se não estivesse absolutamente certo da livre vontade do testador. É, de resto, essa a sua prática habitual: quando se lhe suscitam dúvidas quanto à capacidade do testador -designadamente se o mesmo padece de alguma doença que pode ser incapacitante-, faz-se acompanhar de médicos, recusando o acto se estes não atestarem a capacidade. Por vezes, mesmo conhecendo a capacidade do testador, visando acautelar impugnações futuras, designadamente se aquele for muito idoso, faz-se também acompanhar de médicos que atestam a capacidade para o acto.

83. Daí que, se previamente à celebração do testamento lhe tivesse sido comunicado que o testador padecia de Alzheimer (como se viu supra, em setembro de 2005 já estaria medicado para a doença), só celebraria o testamento se médicos atestassem a capacidade.

84.Porém, uma vez que nada lhe foi referido nesse sentido, seguiu os procedimentos habituais, falando com o testador durante algum tempo, para perceber a sua vontade, só depois celebrando o acto.

85. Nessa conversa não se lhe suscitou qualquer dúvida, quer quanto à capacidade do testador, quer quanto à sua real vontade, pois, como se disse já, se tal dúvida tivesse, não celebraria o testamento.

86. Ora, estando em causa um notário, experiente e visivelmente preocupado em não desvirtuar a vontade dos testadores, não há razão alguma para duvidar de que manteve com o autor do testamento um tipo de conversa que lhe permitiu, por um lado, perceber se o mesmo estava capaz, por outro, se o texto do testamento correspondia efectivamente ao que aquele pretendia.” (Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 28/04/2022, processo n.º 3162/20.7T8GMR.G1).

87. À luz Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 29/06/2017, processo n.º 13/15.8T8VCT.G1 (…)

88. (Acórdão uniformizador do Supremo Tribunal de Justiça, de 26/05/1964, processo nº 059307).

89. Capacidade que, com o devido respeito, logrou o Recorrente provar com os depoimentos da Sr.ª Notária e das testemunhas do testamento.

90. Face a tudo supra exposto, parece-nos apodítico que o Réu logrou provar que, aquando da celebração do testamento, em 28.02.2020, o testador encontrava-se lúcido não se tendo verificado qualquer circunstância que limitasse a capacidade volitiva do testador.

D) Do Pedido: No contexto enunciado, deve ser concedido provimento ao presente Recurso revogando-se a decisão de primeira instância nos termos e com os fundamentos alegados, produzindo-se outra em sua substituição, na qual se declare a existência e validade do testamento, declarando-se o teor do mesmo como válido, suficiente e eficaz, com força probatória plena, para os fins tidos por convenientes, declarando-se a existência do direito Recorrente a ser legitimamente considerado herdeiro único e universal do testador.


*

            O Autor contra-alegou, defendendo a correção do decidido.

*

A questão a decidir é essencialmente factual e passa por julgar a divergência quanto à valoração da prova, indagando sobre a capacidade do falecido para testar, como testou.

Já não se discute a nulidade do testamento (parte da sentença transitada), mas apenas a sua anulação, no contexto e âmbito do art. 2199 do Código Civil.


*

Reapreciação da matéria de facto.

Está em causa a referida incapacidade acidental.

O Recorrente invoca as declarações de EE, FF, GG, HH, DD, II, JJ e KK.

Documentalmente, o Recorrente dá relevo ao atestado de 13.8.2019 e ao teor do testamento.

Na reapreciação dos factos, o Tribunal da Relação altera a decisão proferida sobre a matéria de facto se a prova produzida, reapreciada a pedido dos interessados, impuser decisão diversa (art.662, nº1, do Código de Processo Civil (doravante CPC)).

Este tribunal forma a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos impugnados. (Abrantes Geraldes, Recursos, 3ªedição, 2010, Almedina, pág.320.)

Os elementos probatórios apresentados e disponíveis para a concreta reapreciação são sujeitos à livre apreciação do julgador, sem prejuízo do que é atestado pela Sra. Notária.

Lembremos que a aplicação do regime processual em sede de modificação da decisão da matéria de facto conta necessariamente com a circunstância de que existem fatores ligados aos depoimentos que, sendo passíveis de influir na formação da convicção, não passam nem para a gravação nem para a respectiva transcrição. É a imediação da prova que permite detetar diferenças entre os depoimentos, tornando possível perceber a sua maior ou menor credibilidade.

Ora, reapreciadas as provas documental e testemunhal, a nossa convicção vai em sentido diverso do formado pelo tribunal recorrido, ou seja, resulta da reapreciação feita que não há uma prova segura da incapacidade do testador, no momento do testamento, devendo antes presumir-se a sua capacidade e entendimento do ato.

Vejamos:

Após 2015, existem sinais de demência e de lucidez do testador.

Os primeiros revelam-se nos episódios documentados de 14.5.2015 e de 16.3.2020 (internamento de 22.4.2020). A respeito da demência, os testemunhos de LL, MM, NN, OO e o depoimento de parte de AA são relativamente generalistas, pouco concretos dos episódios reveladores daquela.

Por outro lado, sinais de lucidez do testador encontramos na renovação da carta de condução (atestado de 13.8.2019 e depoimento de FF), na renovação do cartão de cidadão (12.7.2020) e na autorização de débito direto (1.6.2020), estes dois últimos posteriores ao testamento e assinalados pelo próprio Autor. A respeito da lucidez, os testemunhos de PP, QQ, II, JJ e KK são uma expressão generalista de uma normal conduta e de um discurso lógico.

Percebe-se que, no referido contexto e no seu pressuposto da falta de uma prova segura do estado do testador no momento do testamento, o Sr. Julgador em 1ª instância apoiou-se na presunção de que a doença diagnosticada afeta a capacidade do testador após 2015 e, consequentemente, o afetou em 28.2.2020.

De qualquer maneira, o uso dessa presunção não afastou a sua decisão da prova do facto 62, não impugnado. (Da existência da doença diagnosticada ao testador não resulta que esta tivesse alguma vez atingido o estado grave, pelo que o seu diagnóstico não gera necessariamente incapacidade permanente, mas antes intermitente, havendo dias melhores e dias piores.)

A doença em questão é uma doença de progressão gradual de perda das capacidades cognitivas. Quando a incapacidade se vai instalando, são frequentes casos em que existem intervalos de lucidez ou em que a perda das faculdades é gradual, tornando inviável a formulação de um juízo único, seguro e relativo a todo o período correspondente.

O testador tomava medicamentos para a doença.

Estando provado que a incapacidade do testador era intermitente (não permanente), não havendo uma prova de contexto do específico tempo do testamento, entendemos existir antes uma forte presunção em sentido inverso (relativamente à escolhida pelo Tribunal recorrido), emergente do facto de o testamento ter sido exarado perante Notário. A presença deste e das duas testemunhas é uma relevante garantia de que o testador gozava de um mínimo bastante de capacidade para querer e para entender o que afirmou ser sua vontade.

Do depoimento da senhora notária, corroborado pelos testemunhos de GG e HH, resulta que a mesma seguiu um formalismo de cuidado, tendo iniciado este com a realização de algumas questões ao testador, que lhe permitiu aferir da sua capacidade para o ato, não se manifestando a doença, e que o testador estava capaz de transmitir de forma livre e esclarecida a sua vontade.

Já os indícios obtidos sobre o viver do testador (de sentidos contrários) e os dados provados sobre o seu estado no período específico do testamento não nos permitem concluir que ele estivesse também incapaz nesse momento.

Agora concretamente sobre os pontos de facto impugnados:

Facto 5: como vimos, testemunhas há que referem sinais e episódios de demência do falecido. Certo é que foi no âmbito do exame médico de .../.../2021 (posterior ao testamento), que foi conferida a demência daquele, conforme o fixado no facto 8. O dito exame foi produzido em processo em que o Réu não foi parte; apesar disso, o exame é aqui aceite na falta de uma outra prova infirmatória. Conferindo a aparente contradição nos testemunhos, é possível afirmar que o testador, a partir de maio de 2015, apresentou sinais de demência, mas não se pode afirmar que ela era notória a qualquer pessoa que com ele convivesse. Importa então alterar o facto (ver infra).

Facto 6: o Autor vivia no Luxemburgo, vindo habitualmente a ... 3 a 4 vezes por ano; ele instaurou o processo de acompanhamento de maior em 2020, já depois do testamento; está por provar “a rápida evolução da demência”.  Importa então alterar o facto (ver infra).

Facto 14: vale o que se disse para o facto 5, não havendo razões para alterar a redação.

Facto 15: o relatório médico não diz isso e as testemunhas não o certificam, sendo a expressão “bastante deteriorada” inalcançável. O facto não está provado.

Facto 16: de acordo com a nossa declarada motivação, este facto não está provado.

Facto 17: de acordo com essa nossa motivação, apenas está provado que, em certos momentos, anteriores a 2021, o testador apresentou um discurso confuso, com falhas de memória associadas e alterações comportamentais relativos à progressão da demência de alzheimer.

Facto 18: naturalmente, o estado do testador, conforme configurado, seria percetível ao Réu, mas não se prova que a perda da capacidade tivesse ocorrido no momento do testamento e que isso fosse do conhecimento do Réu; assim, altera-se a redação para o seguinte teor: o Réu sabia, a partir de momento não apurado, que o falecido já não se encontrava no uso regular das suas plenas capacidades mentais.

Facto 21: é irrelevante e não há prova desse específico conhecimento. O facto não está provado.

Facto 22: o que se prova e apenas se prova, pelos testemunhos de PP, II, JJ e KK, é que o Réu mantinha uma relação de amizade com o falecido.

Facto 29: de acordo com a nossa declarada motivação, este facto não está provado.

Facto 31: prova-se a relação de amizade e que o Réu mostrava preocupação com o bem-estar do falecido; ver ainda os factos 65 e 68; neste contexto, não podemos dar como provado que nunca o testador, em perfeito juízo, iria beneficiar o Réu.

Facto 34: conforme as declarações de parte, plausíveis e apoiadas neste particular, este facto está provado.

Facto 35: é irrelevante; neste particular, as declarações de parte não têm apoio de outros meios de prova.

Pelo exposto, julgamos parcialmente procedente a impugnação da matéria de facto apresentada pelo Recorrente, alterando os factos referidos, como assinalado e ainda mencionado infra, no lugar respetivo.


*

            Consideram-se provados os seguintes factos:

1. Em 14 de agosto de 2021, faleceu CC, no estado de solteiro, com ultima residência na Rua ..., ..., deixando

apenas o Autor como descendente, sendo este seu sobrinho.

2. O Autor tomou conhecimento de que o seu tio tinha celebrado testamento através do Réu, não tendo tido conhecimento do teor do mesmo.

3. Apenas teve conhecimento do teor do testamento em dezembro de 2020, após consulta do processo n.º 172/20...., que correu termos na Procuradoria do Juízo Local Criminal ..., no qual o Réu juntou cópia do testamento.

4. O falecido, em .../.../2020, havia celebrado testamento a favor do Réu, no Cartório Notarial ..., instituindo-o como seu único e universal herdeiro;

5. (Alterado). O testador apresentou sinais de demência a partir de maio de 2015.

6. (Alterado). O Autor testemunhou a evolução da demência do testador.

7. (Aditada agora o ano). Em 2020, o Autor requereu o Acompanhamento de Maior do testador, por considerar que o mesmo se encontrava incapaz de gerir a sua pessoa e de administrar os seus bens.

8. O relatório da perícia médico-legal realizado pelo IML-Delegação do Centro que é parte integrante do Processo n.º 247/20...., que correu termos no Juízo de Competência Genérica ..., conclui que o testador padecia de demência de alzheimer que se fixava, pelo menos, desde maio de 2015.

9. Consta no relatório, que “a Demência na doença de Alzheimer é um quadro neurodegenerativo, progressivo e irreversível, caracterizado por défices em múltiplos domínios cognitivos, nomeadamente atenção, memória, linguagem, praxia, gnosia, capacidade visuoconstrutiva e função executiva, que acarretam impacto no funcionamento, afetando a autonomia, a independência e a responsabilidade social da pessoa”.

10. E que, “no caso em apreço, o examinando apresenta, pelo menos, alterações na atenção, memória, linguagem e função executiva. Evidencia também alterações do comportamento. O quadro clínico descrito apresenta uma evolução crónica e irreversível, com tendência ao declínio e agravamento progressivos. (…) o quadro apresentado condiciona a sua capacidade para exercer plena, pessoal e conscientemente os seus direitos ou cumprir os seus deveres. De igual modo, esta condição limita-lhe a capacidade para a celebração de negócios de vida corrente.”

11. Após a audição do testador em sede de Audiência, à Mma. Juiz e ao Sr. Procurador, não restaram dúvidas de que o testador já não se encontrava capaz de gerir a sua pessoa e os seus bens.

12. Por sentença transitada em julgado em 30 de julho de 2021, foram decretadas

medidas de acompanhamento que restringiram o exercício de direitos pessoais (como gerir a sua saúde e tratamentos médicos; de perfilhar ou de adotar; de exercer responsabilidades parentais ou exercer as funções de tutor; de elaborar testamento; de decidir das suas relações afetivas; de desemprenhar, por si, as funções de cabeça-de-casal e a restrição na administração de todos os seus bens, a qual seria efetuada pelos acompanhantes nomeados para o cargo), tendo sido o Autor e a esposa nomeados como Acompanhantes do testador e, ao Autor, atribuído o poder de representação geral do testador e a administração total dos bens, concretamente os de, em substituição do testador, realizar os atos necessários à gestão imediata dos seus bens, proceder à abertura de contras bancárias em nome do testador, receber a sua pensão de invalidez, para custear as despesas diárias deste e exclusivamente para esse fim.

13. Na sentença, foi fixado que o estado demencial do testador provinha de maio de 2015.

14. (Mantido). À data da celebração do testamento, já o testador padecia de demência de alzheimer, remontando esta a, pelo menos, maio de 2015.

15. Não provado.

16. Não provado.

17. (Mantido). Em certos momentos, anteriores a 2021, o testador apresentou um discurso confuso, com falhas de memória associadas e alterações comportamentais relativos à progressão da demência de alzheimer.

18. (Alterado). O Réu sabia, a partir de momento não apurado, que o falecido já não se encontrava no uso das suas plenas capacidades mentais.

19. Foi a mãe do Autor, irmã do testador, já falecida que, desde que lhe foi diagnosticada a demência, cuidava da sua pessoa e dos seus bens, nomeadamente da alimentação, limpeza e vestuário.

20. Após o falecimento da irmã, o testador manteve sempre contacto com o seu sobrinho, o Autor, mesmo à distância, como sempre fez.

21. Não provado.

22. (Alterado). O Réu mantinha uma relação de amizade com o falecido.

23. Verifica-se a existência de diferenças na assinatura do testador no momento do testamento e em posterior assinatura no cartão de cidadão.

24. Na assinatura do testamento, feita num espaço considerável, é omissa a preposição “da”, sendo a assinatura relativamente confusa.

25. Na renovação do cartão de cidadão, no dia 2 de julho de 2020, o testador assinou de forma legível e completa

26. O local disponibilizado para a assinatura no cartão de cidadão é mais limitado, o que torna mais complexo de proceder à assinatura do que propriamente no testamento.

27. Além do testador não estar em plenas condições cognitivas, também se encontrava nervoso e pressionado.

28. O testador, assinou a autorização de débito direto para pagamento das mensalidades da Residência A... de forma completa e legível, sendo o campo da assinatura bastante reduzido, contrariamente ao do testamento.

29. Não provado.

30. As testemunhas constantes no testamento, apesar de serem Advogados, são pai e filha com o mesmo domicílio profissional.

31. Não provado.

32. O Autor reside no Luxemburgo.

33. No entanto, tinha uma relação muito próxima com o seu tio, vindo a ... entre 3 a 4 vezes por ano, onde permanecia entre 8 a 15 dias, para que pudesse estar com o testador.

34. (mantido). Fazia o Autor questão de manter o contacto telefónico com o testador para o acompanhar.

35. Não provado.

36. O veículo automóvel do testador encontrava-se, e ainda se encontra, na garagem do Réu, fazendo este uso do mesmo sem autorização do testador.

37. Enquanto o testador esteve internado no Hospital ..., na ..., entre 16 de março de 2020 a 11 de maio de 2020, o Réu, para obter informações sobre o estado de saúde daquele, identificou-se como seu familiar, bem sabendo que estava a dar uma falsa informação pois não possuíam qualquer grau de parentesco.

38. Ainda durante a estadia do testador no hospital, o Réu ficou com o seu cartão multibanco e despendeu 260,81 euros na compra de equipamentos (cadeira de rodas, andadeira fixa), pagou medicação e fez vários levantamentos na conta do testador, desconhecendo-se os motivos de tais acções.

39. O Réu, sem ainda saber qual seria o destino do testador, inscreveu-o no Lar de Idosos “B...”, em ..., concelho ..., tendo pago parte da mensalidade do mês de abril, no valor de 500,00 euros.

40. Pagou ainda, no dia 4 de maio de 2020, a mensalidade do mês de maio no montante de 1.050,00 euros e no dia 9 de junho de 2020, pagou a mensalidade do mês de junho de igual montante.

41. O testador apenas teve alta do Hospital ... em 11 de maio de 2020, tendo permanecido na Unidade de Convalescença de ... até ao dia 25 de maio de 2020, dia em que passou para a Unidade de Média Duração de ... e onde permaneceu até dia 30 de junho de 2020.

42. A partir do dia 30 de junho de 2020, passou a residir na Residência A..., em ....

43. O Réu despendeu do dinheiro do testador, pagando sempre com o cartão multibanco deste, quando não havia previsões de o testador ter alta hospitalar.

44. O Réu bem sabia que estava a usar algo que não lhe pertencia, fazendo-o ainda de forma abusiva, porque, mesmo tendo um testamento a favor, ainda não era beneficiário do mesmo já que o testador, naquelas datas, se encontrava vivo.

45. Não foi dada oportunidade ao Réu para exercer o contraditório sobre o relatório da perícia médico-legal realizado pelo INML –Delegação do Centro.

46. O relatório foi realizado com recurso à videoconferência, devido às restrições

subjacentes à Pandemia da Covid-19.

47. A perita do INML afirma no seu relatório que o testador “evidencia Demência na Doença de Alzheimer, enquadrável no código 6D80 da 11.ª Revisão da Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde da Organização Mundial de Saúde.”

48. Seguidamente, descreve a doença que diagnostica ao examinando, que se consubstancia num quadro “neurodegenerativo, progressivo e irreversível”.

49. A demência num estado não grave, sem mais pormenorizada caracterização, não gera necessariamente incapacidade permanente, mas mera intermitência nas faculdades de entender e querer, sem afastar períodos de plena lucidez.

50. O exame do INML, realizou-se após um acidente sofrido pelo testador, ocorrido em 15 de março de 2020, que motivou o último internamento hospitalar do testador, estando o testador, de acordo com o relatório da alta, emitido pela Unidade Local de Saúde ..., E.P.E. “durante o internamento desenvolveu síndrome confusional agudo em provável contexto de reserva cognitiva baixa, associado a processo orgânico desencadeado pelas múltiplas fraturas e infeção respiratória”.

51. Na nota de alta, quanto à demência do testador, e após se mencionar apenas um anterior internamento, e depois de observado pelo serviço de psiquiatria levantou-se a “hipótese de quadro demencial”.

52. A Senhora Notária, redigiu o testamento, após o que o mesmo foi lido ao testador e explicado o seu conteúdo, em voz alta e na presença simultânea de todos os intervenientes, nomeadamente das testemunhas GG e HH.

53. Não suscitou o testador então qualquer dúvida ou discordância entre a declaração de vontade que manifestou e a que ficou exarada no documento.

54. Se a Senhora Notária considerasse que o testador não estava apto, isto é, em condições psíquicas de fazer o testamento, sempre poderia suscitar a intervenção de peritos médicos para abonarem a sanidade mental do testador.

55. Não o fez porque. (artigo 43º da contestação)

56. No atestado médico elaborado em 13 agosto de 2019, quando o testado foi habilitado, para efeitos de renovação da sua carta de condução, consta que “está apto para a condução de veículos das seguintes categorias do Grupo 1: B1, B, sem restrições e/ou

adaptações”.

57. O sobredito relatório médico é emitido, nos termos do disposto no Regulamento da Habilitação Legal para Conduzir(RHLC), aprovado pelo Decreto-Lei nº 138/2012, de 5 de julho, alterado pelos Decretos-Lei n.º s 37/2014, de 14 de março e 40/2016, de 29 de julho e visa atestar a aptidão física, mental e psicológica do condutor.

58. O atestado em causa não resulta de uma observação sumária e superficial pelo médico, dado ser emitido de acordo com as disposições legais, regulamentares e técnicas que disciplinam a avaliação da aptidão física, mental e psicológica para o exercício da condução de veículos a motor, considerando o inquestionável risco envolvido na atividade de condução, sendo que se o médico entendesse que o condutor não estaria apto em termos psíquicos sempre poderia solicitar um relatório de avaliação psicológica.

59. O médico não o fez.

60. O testador, na data de celebração do testamento, era maior e não interdito.

61. O testador exprimiu-se, não se limitando a sinais ou monossílabos, em resposta a perguntas feitas.

62. Da existência da doença diagnosticada ao testador não resulta que esta tivesse alguma vez atingido o estado grave, pelo que o seu diagnóstico não gera necessariamente

incapacidade permanente, mas antes intermitente, havendo dias melhores e dias piores.

63. Consta do relatório do episódio de urgência, datado de 16 de março de 2020, onde se refere que apesar da queda de 4 metros o testador, após observação clínica, se encontrava “consciente, aparentemente orientado”.

64. Até ao internamento hospitalar, em 16 de março de 2020, o testador, lia o jornal, fazia compras sozinho e pagava as refeições nos restaurantes que frequentava.

65. Testador e Réu partilhavam o dia a dia, tomavam refeições juntos, quer em restaurantes, quer em casa, acompanhavam-se em idas a cafés, designadamente ao “Café ...” e ao “Café ...”, ambos em ..., onde assistiam aos jogos do ..., club de futebol do qual o testador era um fervoroso adepto.

66. O Réu é solteiro, e motorista de profissão, mas devido à doença de que padece, lúpus, encontra-se longos períodos de baixa médica e era nesses longos períodos que privava da companhia e entreajuda com o testador.

67. Na presente data, a viatura do testador encontra-se na garagem do Réu, porque encontra-se arrolado, sendo o Réu o fiel depositário, no âmbito dos Autos com n.º 382/21...., que correm os seus termos Tribunal Judicial da Comarca ... Juízo de Competência Genérica ... -Juiz ....

68. O Réu, era portador de uma chave de casa deste, à qual acedia livremente e, bem assim, do cartão de multibanco e do respetivo código.

69. O Réu, após contacto com o Lar “B..., Lda., contratou, em 24 de abril de 2020 os serviços de apoio social ao testador.

70. Foi acordado o pagamento imediato de parte da mensalidade de abril, no montante de 500,00 euros e o pagamento da mensalidade referente ao mês Maio/2020, no montante de 1.000,00 euros,

71. A fotocópia do testamento foi habilitada, em juízo, pelo Réu/Reconvinte ao Autor/Reconvindo.

72. Até ao momento não foi possível ao Réu/Reconvinte proceder à habilitação de herdeiros dado que o original do testamento desapareceu do Cartório Notarial ....

73. O Autor/Reconvindo conhece este facto, relativo ao desaparecimento do testamento, em virtude de correr termos no Judicial da Comarca ... -Juízo de Competência Genérica ... -Juiz ... – o processo com n.º 382/21...., relativo a uma providência cautelar requerida pelo Réu/Reconvinte contra o Autor/Reconvindo.

74. Além do original do testamento que despareceu do Cartório Notarial.

75. Casa do testador cujas fechaduras foram arrombadas e substituídas pelo Autor/Reconvindo, em 11 de maio de 2020, data em que o testador ainda seria vivo.

76. Sobre o testamento, foi o Réu/Reconvinte informado, após o falecimento do testador, pelo Cartório Notarial ..., que o mesmo não estava a ser localizado.

77. Foi emitido pelo referido Cartório Notarial um certificado, datado de 14 de setembro de 2021, no qual se atesta que o testamento, que deveria estar arquivado, foi dado como desaparecido e que estão a ser encetadas as diligências necessárias à reconstituição/reforma iniludível do testamento, de forma a cumprir a vontade do testador.

78. Esse certificado foi junto aos sobreditos autos de arrolamento, tendo o Tribunal considerado, com base na prova documental oferecida e no testemunho da Senhora Notária, em sede de julgamento, que resultava indiciariamente apurado que: “Em 28 de fevereiro de 2020, foi outorgado no Cartório Notarial ..., perante a notária Sra. Dra. DD, um testamento, pelo qual o testador CC, declarando não ter descendentes nem ascendentes vivos, instituiu seu único e universal herdeiro o Requerente BB, com o cartão de cidadão n.º ..., e com o número de identificação fiscal n.º ....

79. Até ao momento presente, o Réu/Reconvinte não foi informado pela Senhora Notária sobre o resultado das eventuais diligências que conduziriam à reconstituição do testamento desaparecido.

80. O Autor/Reconvindo apenas teve conhecimento da existência do testamento porque o Réu o informou de tal facto.

81. No entanto, numa das diligências efetuadas pelas GNR na casa do testador, o Réu/ Reconvinte, perante as testemunhas que ali estavam, exibiu um documento aos militares da GNR, desconhecendo, contudo, se na realidade se trataria de documento com a mesma força legal que o testamento, apesar de o Réu expressar em viva voz que se trataria de tal.

82. O Réu/ Reconvinte havia junto esse documento - que se desconhece, mais uma vez, se seria um documento com força legal igual ao testamento -, porque teve acesso ao

mesmo, sem que o testador tivesse falecido, já que o processo n.º 172/20.... é anterior ao falecimento do testador.


*

Nos termos do artigo 2199 do Código Civil, é “anulável o testamento feito por quem se encontrava incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o

livre exercício da sua vontade por qualquer causa, ainda que transitória.

O julgamento da matéria de facto revela que, aquando da celebração do testamento, em 28.02.2020, o testador encontrava-se lúcido, não se provando qualquer circunstância que limitasse a sua capacidade e a sua vontade.

O testador, na data do testamento, era maior de idade e não interdito.

            Sendo assim, o testamento não deve ser anulado.


*

Decisão.

            Julga-se o recurso procedente e, mantendo o demais decidido, julga-se a ação improcedente, a reconvenção procedente e, em consequência, absolve-se o Réu BB do pedido subsidiário deduzido pelo Autor AA, declarando o testamento identificado válido e eficaz, no qual o referido Réu foi instituído herdeiro único e universal do testador.

            Custas pelo Recorrido, vencido (art.527º, nº 2, do Código de Processo Civil), em ambas as instâncias.

            Coimbra, 2023-03-14


(Fernando Monteiro)

(Carlos Moreira, com declaração de voto de vencido.)


«Considerando, vg. que a imediação e a oralidade dão ao juiz um plus averiguatório que escapa ao Tribunal ad quem, não me parece que a prova produzida tenha força para impôr, como exige a lei - artº 640º do CPC - não bastando sugerir - a alteração da matéria de facto nos termos em que o foi.

Na verdade: «Quando o pedido de reapreciação da prova se baseie em elementos de características subjectivas, a respectiva sindicação tem de ser exercida com o máximo cuidado e só deve o tribunal de 2.ª instância alterar os factos incorporados em registos fonográficos quando efectivamente se convença, com base em elementos lógicos ou objectivos e com uma margem de segurança muito elevada, que houve errada decisão na 1.ª instância, por ser ilógica a resposta dada em face dos depoimentos prestados ou por ser formal ou materialmente impossível, por não ter qualquer suporte para ela.» – Ac. do STJ de.20.05.2010, p. 73/2002.S1 in dgsi.pt.

O que perpassa de todos os factos provados - mesmo considerando apenas os provados no recurso - devida e sagazmente interpretados, é que houve por parte do réu um aproveitamento ilegítimo e indevido das fragilidades pessoais do testador.

Por conseguinte, confirmaria a sentença.»

(Carlos Moreira.)


(Rui Moura)