Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
109/20.4TXCBR-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL VALONGO
Descritores: PERDÃO DE PENA
Data do Acordão: 10/28/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (TRIBUNAL DE EXECUÇÃO DAS PENAS – J3)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 2.º E 10.º DA LEI N.º 9/2020, DE 10 DE ABRIL; ART. 13.º DA CRP
Sumário: I - O perdão de penas consagrado no artigo 2.º da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, só é concedido a reclusos, condenados por sentença transitada em julgado em data anterior à da entrada em vigor daquele diploma legal, ficando, consequentemente, excluídos da medida de graça referida os condenados que não tenham ingressado em estabelecimento prisional.

II - Esta interpretação normativa da disposição legal referida não viola o princípio constitucional da igualdade decorrente do artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa.

Decisão Texto Integral:





Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

1. No âmbito do Processo Supletivo n.º 109/20.4TXCBR-A, do Juízo de Execução das Penas de Coimbra – Juiz 3, por despacho judicial de 30-04-2020 foi decidido julgar perdoada a pena de 20 dias de prisão subsidiária aplicada ao arguido V. no âmbito do processo nº 491/09.4 TAACB, por decisão proferida em 27.9.2018 transitada em julgado a 5.11.2018, perdão concedido sob condição resolutiva do beneficiário não praticar infracção dolosa no ano subsequente.

2. Inconformado com a decisão recorreu o Ministério Público, formulando as seguintes conclusões:

“1ª - O perdão previsto no artigo 2º da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, só pode ser aplicado a reclusos, condenados por sentença transitada em julgado em data anterior à da sua entrada em vigor, excluindo os condenados que não tenham ainda ingressado fisicamente no estabelecimento prisional;

2ª - O artigo 7º, n.º 1, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março de 6 de Abril, suspendeu todos os prazos para a prática de actos processuais que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, até à cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19;

3ª - Pelo que, enquanto durar a situação excepcional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infecção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, está suspensa toda a tramitação processual tendente à emissão e execução de mandados de captura na sequência de condenação transitada em julgado;

4ª - Desta forma se evitará que, durante esse mesmo período, ingressem no estabelecimento prisional novos reclusos, e assim se logrará garantir que não seja ocupado o espaço prisional deixado livre pela libertação dos reclusos abrangidos pelo perdão;

5ª - Restringir a aplicação do perdão previsto na Lei n.º 9/2020 aos condenados que se encontram já recluídos à data da entrada em vigor daquela mesma lei, excluindo os condenados ainda não recluídos, não viola o princípio da igualdade plasmado no art. 13.º da Constituição da República Portuguesa;

6ª – Ao perdoar a pena de prisão aplicada ao arguido V. no âmbito do processo nº 491/09.4TAACB, não estando este preso à data da entrada em vigor da Lei n.º 9/2020, o tribunal proferiu decisão ilegal, por violação no disposto no art. 2º, n.º 1, desse mesmo diploma legal.

Nestes termos, e pelos mais que V. Ex.as, por certo e com sabedoria, não deixarão de suprir, concedendo-se provimento ao presente recurso e, consequentemente, revogando-se a decisão recorrida, far-se-á JUSTIÇA.”

3. Foi proferido despacho de admissão do recurso.

4. Ao recurso respondeu o arguido/condenado, concluindo:

“1. O arguido foi condenado a 20 dias de prisão subsidiária por um crime não excluído daquele diploma.

2. Recai sobre o arguido o cumprimento de uma pena inferior a dois anos, transitada em julgado antes da entrada em vigor da lei 9/2020, por um crime não excluído daquele regime excecional.

3.Sucede que, apesar de decisão transitada em julgado o arguido não se encontra recluído.

4. E considerando a não reclusão do arguido, o Ministério Público alega que tais medidas são de aplicação exclusiva a arguidos reclusos sustentado no argumento do elemento literal e, por conseguinte, o regime não se aplica ao caso sub judice.

5. De pensamento oposto, defende o Exmo. Desembargador José Quaresma (vide ebok-CEJ) que a circunstância do arguido condenado, mas não recluído, não afasta a aplicabilidade daquele diploma de carater excecional por questões de igualdade constitucional.

6. Caso contrário, afastar a aplicabilidade da norma aos arguidos condenados não reclusos, por crimes não excluídos do nº 1 e 6 do art. 2º significaria diferentes tratamentos entre arguidos em posições materialmente idênticas, o que violaria o princípio constitucionalmente consagrado da igualdade do art.13 º da Constituição da República Portuguesa.

7. Ao abraçarmos uma interpretação literal e restritiva da expressão “reclusos” estamos a devolver a liberdade a uns e a recluir outros, sendo que entre eles poderão existir cidadãos condenados em condições materialmente análogas.

8. De modo que, em ordem ao cumprimento dos princípios constitucionais a única interpretação a fazer é a de que o referido perdão deverá ser aplicado a todos os cidadãos punidos com penas e crimes abrangidos pelo âmbito da norma, transitadas à data da entrada em vigor da lei.

9. Por outro lado, atendendo à ratio legis da norma, melhor descrita na exposição dos motivos proposta de lei que deu origem ao aludido diploma concluímos que, a mesma foi gizada por imperativos de condições de salubridade no meio prisional para se conseguir gerir a atual crise sanitária. Isto é, a norma foi criada por razões de saúde pública face à pandemia instalada.

10. Acresce que, ao não aplicarmos a norma aos arguidos não reclusos, que apenas aguardam a emissão de mandados, logo que termine o regime de suspensão dos prazos processuais em vigor durante o estado de emergência, estamos a permitir que tais arguidos venham a ser recluídos, nomeadamente, no caso concreto, em pleno estado de pandemia.

11. Desde logo, porque haja ou não estado de emergência, a pandemia está instalada e o seu fim não se compadece com uma cessação daquele.

Os prazos iniciaram-se, e a pandemia, isto é, o perigo de contágio do vírus, infelizmente, permanece.

12. O que significa que, o arguido, hoje não recluso, poderá amanhã entrar no ambiente prisional, ainda em pleno período de pandemia.

13. Destarte, prolongando-se a situação de pandemia para além do estado de emergência justifica-se a adoção deste regime excecional para segurança de todos sem exceção e a sua aplicabilidade a todos os arguidos condenados, reclusos ou não reclusos, sem exceção, para evitar a reclusão em tempo de propagação do vírus.

14. Com efeito, no caso dos autos, deverá considerar-se perdoada a pena aplicada, em honra ao princípio da igualdade e por razões de saúde pública, direitos, liberdades e garantias, em homenagem aos valores constitucionalmente consagrados e por conseguinte, manter-se a decisão proferida.

Nestes termos e nos Melhores de Direito, requer-se, seja negado provimento ao douto recurso apresentado pelo Ministério Público e consequentemente manter-se a decisão proferida.”


*

5. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu o seguinte parecer:

(…) 4. Quanto ao recurso do Ministério Público, dir-se-á que concordamos com a motivação do recurso pelo que, aceitando integralmente a bem elaborada e bem fundamentada motivação do recurso apresentado pelo Exmo. Procurador da República junto da 1.ª instância, aqui a damos por integralmente reproduzida, pouco mais tendo a acrescentar.

5. De facto, atento o teor do disposto no art 2º nº 1 da Lei 9/2020, de 10 de Abril, e a razão de ser da mesma, cremos que outro não pode ser o objectivo da lei que não seja o indicado pelo recorrente, restringindo-se, consequentemente, a aplicação do perdão nela previsto aos reclusos condenados que se encontrassem privados da liberdade aquando da entrada em vigor do diploma, por decisão transitado em julgado.

Acresce que, os nºs 7 e 8 do artº 2 prevêem expressamente que:

(…)

“7 — O perdão a que se referem os nºs 1 e 2 é concedido a reclusos cujas condenações tenham transitado em julgado em data anterior à da entrada em vigor da presente lei e sob a condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce a pena perdoada.

8 — Compete aos tribunais de execução de penas territorialmente competentes proceder à aplicação do perdão estabelecido na presente lei e emitir os respectivos mandados com caráter urgente.”

Logo tratando-se de norma de caracter excepcional outra não pode ser a interpretação da letra da lei que não seja a antes indicada.

6. Nestes termos, sufragando a motivação de recurso apresentada pelo Ministério Público na 1.ª instância, somos de parecer que o recurso apresentado por este deverá proceder, revogando-se consequentemente a decisão recorrida.


*

6. Cumprido o n.º 2, do artigo 417.º do CPP, o recorrido não reagiu.

7. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cabendo, pois, decidir.

II. Fundamentação

1. Objecto do recurso

Tendo presente as conclusões, pelas quais se delimita o objecto do recurso, no caso em apreço importa decidir se o despacho recorrido, ao aplicar o perdão à pena de prisão subsidiária, resultante da conversão da pena de multa em que o arguido foi condenado por sentença transitada em julgado em data anterior à da entrada em vigor da Lei n.º 9/2020, de 10.04.2020, violou o artigo 2.º do mesmo diploma.

2. A decisão recorrida

Ficou a constar do despacho em crise (transcrição]):

“V.  foi condenado, por decisão proferida em 09/03/2010, no âmbito do processo nº 491/09.4TAACB, já transitada em julgado, na pena de 45 dias de multa.

Por decisão proferida em 27/09/2018, transitada em julgado em 05/11/2018, foi o remanescente da dita pena de multa convertido em 20 dias de prisão subsidiária.

O condenado ainda não iniciou o cumprimento da aludida pena.

Do exame do respectivo CRC resulta que o condenado não tem qualquer outra pena de prisão para cumprir.

Em 11 de Abril de 2020, entrou em vigor a L 9/2020, de 10 de Abril, que no art. 2º estatui que “1 - São perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração igual ou inferior a dois anos./ 2 - São também perdoados os períodos remanescentes das penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração superior à referida no número anterior, se o tempo que faltar para o seu cumprimento integral for igual ou inferior a dois anos, e o recluso tiver cumprido, pelo menos, metade da pena./3 - O perdão referido nos números anteriores abrange a prisão subsidiária resultante da conversão da pena de multa e a execução da pena de prisão por não cumprimento da pena de multa de substituição e, em caso de cúmulo jurídico, incide sobre a pena única./4 - Em caso de condenação do mesmo recluso em penas sucessivas sem que haja cúmulo jurídico, o perdão incide apenas sobre o remanescente do somatório dessas penas, se o tempo que faltar para o seu cumprimento integral for igual ou inferior a dois anos./5 - Relativamente a condenações em penas de substituição, o perdão a que se refere este artigo só deve ser aplicado se houver lugar à revogação ou suspensão./6 - Ainda que também tenham sido condenados pela prática de outros crimes, não podem ser beneficiários do perdão referido nos n.os 1 e 2 os condenados pela prática: a) Do crime de homicídio previsto nos artigos 131.º, 132.º e 133.º do Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março, na sua redação atual; b) Do crime de violência doméstica e de maus tratos previstos, respetivamente, nos artigos 152.º e 152.º-A do Código Penal; c) De crimes contra a liberdade pessoal, previstos no capítulo IV do título I do livro II do Código Penal; d) De crimes contra a liberdade sexual e autodeterminação sexual, previstos no capítulo V do título I do livro II do Código Penal; e) Dos crimes previstos na alínea a) do n.º 2 e no n.º 3 do artigo 210.º do Código Penal, ou previstos nessa alínea e nesse número em conjugação com o artigo 211.º do mesmo Código; f) De crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal, previstos no título III do livro II do Código Penal; g) Dos crimes previstos nos artigos 272.º, 273.º e 274.º do Código Penal, quando tenham sido cometidos com dolo; h) Do crime previsto no artigo 299.º do Código Penal; i) Pelo crime previsto no artigo 368.º-A do Código Penal; j) Dos crimes previstos nos artigos 372.º, 373.º e 374.º do Código Penal; k) Dos crimes previstos nos artigos 21.º, 22.º e 28.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, na sua redação atual; l) De crime enquanto membro das forças policiais e de segurança, das forças armadas ou funcionários e guardas dos serviços prisionais, no exercício das suas funções, envolvendo violação de direitos, liberdades e garantias pessoais dos cidadãos, independentemente da pena; m) De crime enquanto titular de cargo político ou de alto cargo público, magistrado judicial ou do Ministério Público, no exercício de funções ou por causa delas; n) Dos crimes previstos nos artigos 144.º, 145.º, n.º 1, alínea c), e 147.º do Código Penal. /7 - O perdão a que se referem os n.os 1 e 2 é concedido a reclusos cujas condenações tenham transitado em julgado em data anterior à da entrada em vigor da presente lei e sob a condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce a pena perdoada. /8 - Compete aos tribunais de execução de penas territorialmente competentes proceder à aplicação do perdão estabelecido na presente lei e emitir os respetivos mandados com caráter urgente. /9 - O perdão a que se referem os n.os 1 e 2 só pode ser aplicado uma vez por cada condenado.”

 Questão que se coloca, assim, é a de se saber se o predito perdão concedido pela citada Lei é, ou não, aplicável no caso dos autos.

Com efeito, o crime por que o arguido foi condenado no processo nº 491/09.4TAACB não é um daqueles excluído do referido perdão nos termos do citado art. 2º, nº 6 e, por outro lado, a pena que lhe foi aplicada e que terá de cumprir é inferior a dois anos de prisão.

No entanto, o mesmo, neste momento, não se encontra ainda recluído em estabelecimento prisional.

Salvo o devido respeito, na esteira do que defende o Sr. Desembargador José Quaresma – em artigo publicado em e-bok do CEJ, em edição actualizada em 22 de Abril de 2020, disponível na página do CEJ – tal orientação não é constitucionalmente correcta. Com efeito, a mesma potencia diferenças de tratamento entre pessoas situadas em posições materialmente idênticas, como tal lesando drasticamente o principio constitucional da igualdade decorrente do artigo 13º da Constituição da República Portuguesa.

De facto, o uso legal da expressão recluso nos preceitos constantes da Lei 9/2020 mais não poderá significar do que reportar-se à situação daquelas pessoas cuja decisão condenatória já transitou em julgado e a quem foi aplicada pena susceptível de ser executada em estabelecimento prisional e, assim, passíveis de serem objecto de mandados de detenção para cumprimento da referida pena.

 Na verdade, a defender-se a interpretação da norma que apenas integre no seu âmbito de destinatários efectivos aqueles já em cumprimento de pena, estaria criada a possibilidade de se estar a devolver à liberdade pessoas com tempo de prisão para cumprir inferior ou igual a dois anos para, depois, ocupar o espaço prisional assim deixado livre com a reclusão de pessoas autores de factos idênticos aos libertados e punidos com penas iguais – ou até inferiores. Além de a solução ser manifestamente indefensável de um ponto de vista material e constitucional, faria gorar a intenção do legislador de criar condições de salubridade no meio prisional, dado que impediria a criação do espaço suficiente para permitir uma gestão sanitariamente adequada da prisão.

Assim sendo, a única leitura admitida pela norma em causa – sobre o ponto de vista constitucional mas também pragmático – é a do perdão ser aplicável a todos os cidadãos punidos com penas e crimes abrangidos pelo âmbito da norma com decisões transitadas em julgado à data da entrada em vigor do examinado instrumento legal.

Dir-se-á, todavia, que as objecções supra referidas serão ultrapassadas desde que a emissão dos mandados e a detenção assim ordenada         sejam suspensas, ficando a aguardar a cessação da declaração do estado de emergência.

Dessa forma, de facto, a actual situação – legalmente impeditiva da entrada de condenados nos estabelecimentos prisionais – deixará de existir, permitindo a prisão posterior dos arguidos nessas condições.

Considera-se, no entanto, que tal hipotética actuação não se coaduna com os ditames do estado de direito, bem como desatende as razões que motivaram a existência do perdão constante da Lei 9/2020.

Começando pela última das afirmações efectuadas, deve assinalar-se que o perdão de penas que se considera não se legitimou pela declaração do estado de emergência, mas sim pela condição sanitária que determinou tal declaração. Ou seja, uma eventual cessação do estado de emergência não representará, infelizmente, o afastamento da pandemia e a restauração de uma situação de inexistência da possibilidade de propagação do vírus que a causa.

Assim sendo, a delicada situação de saúde do país e o condicionalismo específico dos estabelecimentos prisionais continuarão a justificar a adopção de especiais cautelas contrárias a uma qualquer espécie de gestão temporal de mandados de detenção. Com efeito, o estado de saúde pública do país – e particularmente o de espaços públicos como as prisões – manterá a necessidade de se observar prudência nos contactos e cautelas com a segurança de todos, desaconselhando a normal densidade de ocupação dos estabelecimentos prisionais.

Por outro lado, a sustação e adiamento da emissão dos mandados de detenção são práticas de passiveis de, também elas, colidirem frontalmente com as implicações do princípio da igualdade. Equivalem, até, a uma manobra feita propositadamente para impedir que um eventual condenado com decisão transitada em julgado, cuja pena ainda não tenha começado a respectiva execução, seja tratado de forma diferente de outro, eventualmente condenado até em pena mais grave, com emissão de mandados de detenção mais lesta e, por isso, já recluso.

Ora tal prática não pode, em caso algum, ser admitida.

Finalmente, acrescenta-se, nos termos da L 9/2020 cabe ao TEP a declaração do perdão previsto na lei citada.

Assim, face ao exposto, julga-se a pena aplicada no âmbito do processo nº 491/09.4TAACB perdoada nos termos dos mencionados preceitos, mas sob condição resolutiva do beneficiário não praticar infracção dolosa no ano subsequente, caso em que, a pena aplicada a tal infracção, acrescerá à agora perdoada. V. foi condenado, por decisão proferida em 09/03/2010, no âmbito do processo nº 491/09.4TAACB, já transitada em julgado, na pena de 45 dias de multa.

3. Apreciação

A questão que cabe decidir traduz-se em saber se, no caso concreto a pena de prisão subsidiária resultante da conversão do remanescente da pena de multa, não se mostrando o arguido recluído, poderia ter sido - como o foi no despacho em crise - declarada perdoada (cf. artigo 2.º, da Lei n.º 9/2020, de 10.04.2020).

A Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, veio estabelecer um Regime excepcional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID-19, prevendo um leque de medidas, entre as quais o perdão parcial das penas de prisão.

Excluindo a aplicação de tais medidas a condenados por crimes cometidos contra elementos das forças e serviço de segurança, bem assim das forças armadas, no exercício das respectivas funções (artigo 1.º, n.º 2), colocando igualmente fora do âmbito do perdão os condenados pela prática dos ilícitos típicos referidos nas diferentes alíneas do n.º 6, do seu artigo 2.º e ainda os casos em que o sujeito activo revista alguma das qualidades aí previstas, no que à decisão a proferir importa, sob a epígrafe “Perdão”, dispõe o artigo 2.º:

“1 – São perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração igual ou inferior a dois anos.

(…)

3 – O perdão referido nos números anteriores abrange a prisão subsidiária resultante da conversão da pena de multa e a execução da pena de prisão por não cumprimento da pena de multa de substituição e, em caso de cúmulo jurídico, incide sobre a pena única.

(…)

7 – O perdão a que se referem os n.ºs 1 e 2 é concedido a reclusos cujas condenações tenham transitado em julgado em data anterior à da entrada em vigor da presente lei e sob condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce a pena perdoada.

8 – Compete aos tribunais de execução de penas territorialmente competentes proceder à aplicação do perdão estabelecido na presente lei e emitir os respetivos mandados com caráter urgente.

(…)”.

Prevê, por seu turno, o artigo 10.º da Lei n.º 9/2020, na redação introduzida pela Lei n.º 16/2020, de 29.05, cuja entrada em vigor ocorreu em 03.06.2020, que a cessação da sua vigência acontecerá «na data a fixar em lei que declare o final do regime excecional de medidas de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça no âmbito da prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19».

Como se conclui no acórdão desta Relação de 30 de Setembro de 2020, relatora Des Maria José Nogueira “ o perdão só pode incidir sobre penas relativas a pessoas condenadas, por sentença transitada em julgado em data anterior à da entrada em vigor do Regime excecional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID-19, que no momento da sua aplicação se encontrem efetivamente recluídas.”, ou seja, em efectivo cumprimento de pena de prisão em estabelecimento prisional, o que resulta de uma interpretação gramatical, sistemática e teleológica Lei n.º 9/2020.

Tese defendida também no acórdão deste Tribunal da Relação de Coimbra de 9.9.2020, proferido no proc. nº 178/20.7TXCBR-B.C1, relatora Des. Rosa Pinto, assim sumariado: “O perdão previsto no artigo 2º da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, só pode ser aplicado a reclusos, condenados por sentença transitada em julgado em data anterior à da sua entrada em vigor, excluindo os condenados que não tenham ainda ingressado fisicamente no estabelecimento prisional”.

O que merece a nossa concordância já que se trata de uma lei de carácter excepcional e temporário justificado pela existência de uma situação de infecção pandémica (vírus SARS-CoV-2) que conduziu à declaração do estado de emergência no país, pelo que não consente qualquer interpretação analógica ou extensiva.

Com efeito, é entendimento uniforme e pacífico de que “as leis de amnistia (num sentido amplo, aqui incluindo as leis que consagram perdões de penas), como providências de excepção, devem ser interpretadas e aplicadas nos seus precisos termos, sem extensões nem restrições que nelas não venham expressas” (cf. Ac. STJ de 07-12-2000, proc. n.º 2748/2000 – 5.ª; SATJ, n.º 46, 45) - Cf. Maia Gonçalves, Código Penal Português, Anotado, 16.ª ed., pág. 439.

Veja-se ainda a exposição de motivos da Proposta de Lei 23/XIV (que deu origem à Lei n.º 9/2020); a posição de Nuno Brandão, em estudo publicado na Revista Julgar - A libertação de reclusos em tempos de COVID-19, Um primeiro olhar sobre a Lei n.º 9/2020, de10/4», Julgar online, abril 2020, p. 6-7; a posição de Vítor Pereira Pinto, em estudo publicado no SIMP - O perdão previsto no art.º 2.º da Lei n.º 9/2020 – SIMP – Actualidade - de 13/04/2020 e a interpretação desta lei do perdão à luz do disposto no artigo 9º do Código Civil, no sentido de que “na interpretação da norma jurídica, não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. E na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”. - apud ac Rel Coimbra de 7 de Outubro de 2020, Des Luís Teixeira – Relator.

A decisão recorrida entende que tal interpretação lesa drasticamente o princípio constitucional da igualdade decorrente do artigo 13º da Constituição da República Portuguesa.

A este propósito e como se afirma no acórdão antes citado, é certo que “…o perdão, como qualquer outra lei de amnistia, pode colocar problemas do ponto de vista do princípio constitucional da igualdade, na medida em que se aplica apenas a reclusos, ficando outros condenados excluídos da sua aplicação.

No entanto, tanto a doutrina como a jurisprudência têm vindo, de forma consistente, designadamente em matéria de amnistia ou perdão a considerar constitucionalmente conformes, as eventuais diferenças de tratamento, desde que as mesmas surjam materialmente fundadas e baseadas em critérios de valor objectivo”

E cita neste sentido as seguintes decisões jurisprudenciais:

“O princípio da igualdade não proíbe (…) que a lei estabeleça distinções. Proíbe, isso sim, o arbítrio; ou seja: proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor objetivo, constitucionalmente relevantes” - Ac. do Tribunal Constitucional n.º 149/93, de 28/01/1993.

“A igualdade em sentido material (e é esta a igualdade que o artigo 13º. expressa), pressupõe tratamento igual do que é igual e tratamento diferente do que é diferente, de acordo com a medida da diferença. Daí que, seguindo uma linha jurisprudencial constante que já remonta à Comissão Constitucional, este Tribunal afirme (…) que uma diferenciação de tratamento fundada em motivações objectivas, razoáveis e justificadas, não é atentatória do princípio da igualdade. Por outras palavras, utilizando uma formulação do Tribunal Constitucional Federal Alemão (BVerf GE 1,14 (52), citada por Alexy, Theorie der Grundrecht, Suhrkamp-Verlag, 1986, pág. 370) tratamentos legais diferentes, traduzem uma diferenciação arbitrária quando (...) não é possível encontrar um motivo razoável decorrente da natureza das coisas, ou que, de alguma forma, seja concretamente compreensível, para essa diferenciação” - Ac. do Tribunal Constitucional n.º 152/95, de 15/03/1995.

“O princípio da igualdade, enquanto parâmetro constitucional capaz de limitar as ações do legislador, comporta reconhecidamente várias dimensões: proibição do arbítrio legislativo; proibição de discriminações negativas, não fundadas, entre os sujeitos; assim como eventual imposição de discriminações positivas, com projeções distintas tendo em conta as especificidades do âmbito material em causa. Da extensa jurisprudência constitucional sobre a temática resulta que o princípio não proíbe em absoluto toda e qualquer diferenciação de tratamento, mas apenas as diferenciações (e a sua medida) materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável ou sem qualquer justificação objetiva e racional” – Ac. do Tribunal Constitucional n.º 273/2016, de 4/05/2016.

        Ou, como se decide no também recente acórdão deste Tribunal da Relação de Coimbra de 30-09-2020, proferido no proc. nº 47/20.0TXCBR-B.C1 (relatora Maria José Nogueira) “De resto, tal como vem concebida, uma suposta violação do princípio da igualdade dificilmente conviveria com qualquer “marco temporal” invariavelmente presente nas sucessivas leis de amnistia, o qual sempre permitiria questionar a justeza de tão díspares soluções, em substância equivalentes, apenas separadas por escassas horas”.

Impõe-se então concluir que esta aparente diferença de tratamento entre condenados por sentença transitada em julgado conforme sejam reclusos ou não reclusos, tem a sua explicação e/ou aceitação, conforme motivação expendida no mencionado aresto, que se corrobora:

“As razões para a discriminação são evidentes e têm um fundamento material bastante. Eliminar os riscos de contágio, que só existem relativamente aos reclusos detidos, uma vez que, relativamente aos já condenados por sentença transitada em julgado, o regime da suspensão dos prazos processuais logra o mesmo resultado.

E, nessa medida, segundo o sedimentado critério do Tribunal Constitucional, a norma do art. 2º, da Lei n.º 9/2020, na sua interpretação literal de só abranger os indivíduos que, à data da sua entrada em vigor, estivessem já presos em cumprimento de pena, é constitucionalmente conforme”.

Afigura-se-nos pois não ser de sufragar a tese defendida na decisão recorrida.

Lembrar por último a situação concreta referida no acordão desta Relação de 30 de setembro de 2020, Relatora Des Maria José Nogueira:

“Como justificar a aplicação do perdão ao arguido/condenado, cuja entrada no estabelecimento prisional poderá nunca vir a ocorrer? Que benefício para o propósito subjacente à adoção do regime de exceção decorre da aplicação, ao mesmo, do perdão? Indo mais além: mantendo-se o despacho em crise, admitindo agora, para efeito da aplicação da Lei n.º 9/2020, que a condição de recluso possa ocorrer até à cessação de vigência do regime excecional de medidas de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça no âmbito da prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19 (artigo 10.º), como explicar, com respeito pelos elementos teleológico e histórico, vindo o condenado a ser detido ou a apresentar-se – só a partir de então passando à reclusão - após cessada a vigência do regime excecional, o perdão já anteriormente concedido?

Com o devido respeito, não se nos afigura sustentável, enquanto nas circunstâncias declarou o perdão da pena, o despacho recorrido.

III. Dispositivo

Termos em que acordam os juízes que compõem este tribunal em conceder provimento ao recurso, revogando, em consequência, o despacho recorrido.

Sem tributação.

Coimbra, 28 de Outubro de 2020

Processado e revisto pela relatora       

Isabel Valongo - relatora

Jorge França - adjunto