Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3/08.7GDFND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: HOMICÍDIO NEGLIGENTE
PROVA INDIRECTA
CRIMES DE RESULTADO
OBJECTO DO RECURSO
PENA ACESSÓRIA
Data do Acordão: 02/10/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO FUNDÃO – 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 351º, 439º DO CÓDIGO CIVIL,69º E 137º CP
Sumário: 1. A prova indirecta está sujeita à livre apreciação exigindo um particular cuidado na sua apreciação, apenas se podendo extrair o facto probando do facto indiciário quando seja corroborado por outros elementos de prova, por forma a que sejam afastadas outras hipóteses igualmente plausíveis.
2. Em matéria rodoviária, dado o enorme perigo que envolve a utilização do automóvel e a velocidade, a infracção de norma de trânsito constitui presunção – natural, judicial ou de prova, nos termos do art. 439º e 351º do C. Civil, que não presunção legal de culpa, inadmissível em processo penal face ao princípio in dubio pro reo – de que não foi cumprido o dever de cuidado específico imposto pela norma violada, desde que o resultado seja daqueles que a lei ou regulamento quis evitar.
3. Ao tribunal de recurso cabe apenas verificar se os juízos de racionalidade, de experiência e de lógica confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar.
4. Nos crimes de resultado, entre a acção e o resultado deve mediar uma relação de causalidade, ou seja, uma relação que permita, no âmbito objectivo, a imputação do resultado produzido ao autor da conduta que o causou.
5. A conduta do agente, ainda que violadora de normas de cuidado, pode não ser causal relativamente ao resultado, se se interpuser uma outra conduta ou um outro facto, esses sim causadores directos daquele.
6. No artigo 69º quer-se apenas abranger os crimes dolosos, excluindo-se a utilização negligente do veículo durante a mera condução, ainda que imprudente.
7. Ao arguido que não foi acusado pela prática de uma autónoma contra-ordenação grave, tendo-se apenas lançado mão das normas dos artigos 24º e 25º do CE para efeitos de indicação das infracções estradais causais da negligência evidenciada pelo comportamento do arguido não pode ser aplicada a pena acessória do artigo 69º.
Decisão Texto Integral: 1. No processo comum singular n.º 3/08.7GDFND do 2º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca do Fundão, por sentença datada de 3 de Setembro de 2009, foi
a) Condenado o arguido A... pela prática de um crime de homicídio negligente p. e p. pelo art. 137º, nº 1 do Código Penal, na pena de 260 (duzentos e sessenta) dias de multa, à taxa diária de 6,00 € (seis euros);
b) Condenado o arguido A... ao cumprimento de sanção acessória de inibição de condução de veículo com motor, pelo período de 9 (nove) meses, nos termos do artigo 69º/1 b) do Código Penal.

            2. Inconformado, o arguido A... recorreu da sentença, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
            «1. O recorrente impugna a matéria de facto dada como provada constantes dos n.°s 04, 05, 11, 12 e 14 da douta sentença recorrida, a qual deveria obter resposta diferente.
           
2. Ao afirmar-se que a velocidade a que o arguido ia era excessiva sem se provar a velocidade a que ia estão a retirar-se conclusões sem base fáctica que as sustentem.
Nos autos em momento algum é alegada pela acusação a velocidade a que seguia o arguido e muito menos se produziu qualquer tipo de prova de onde se possa concluir qual a velocidade a que seguia, pelo que o meritíssimo juiz “a quo” não deveria ter considerado que o arguido seguia em velocidade demasiado elevada.

3. Considerou o juiz “a quo” que a dinâmica do acidente se deu da forma constante nos n°s 04 e 05 dos factos provados da sentença recorrida, apoiando tal convicção no depoimento do Sr. J..., do GNR, AA..., no “croqui” dos autos e no depoimento do filho do falecido, L....
Considera o recorrente que tais factos foram incorrectamente julgados.
Analisando o depoimento do arguido, A… gravado na cassete n°01 lado A voltas 50, conforme acta da audiência, disse no local do acidente, perante dois veículos colocados em posição conforme o croqui dos autos, destacam-se as seguintes passagens:
Juiz - Confirma a posição dos carros?
Arguido - Os carros estavam mais para o meio da estrada, vinha junto desta linha (linha de berma do lado direito do trajecto do arguido) quando me apercebi. Havia mimosas altas eu não via. Apanho a cacetada na frente e o carro rabeou, rebentou o air-bag não vi mais nada.
Juiz - Viu o sítio da 2ª pancada?
Arguido - não me apercebi.
Juiz - Como é que explica que o carro tenha vindo para aqui (outra faixa de rodagem)?
Arguido - Piso estava escorregadio e os canos deslizam para onde querem ir.
A instância do advogado o arguido disse, ainda:
Adv. - O local onde se deu o acidente?
Arguido - Pus as mãos na cabeça e disse vamos morrer.
Adv. - Local onde viu o outro carro.
Arguido - já o vi em cima de mim na minha faixa, porque existiam mimosas altas.
Das passagens transcritas conclui-se que o acidente se deu na faixa de rodagem em que o arguido circulava, isto é na faixa da direita no sentido Fundão-Silvares, só o arguido se tendo apercebido do outro carro quando se deu o embate.
Considera o recorrente que a relevância dada ao depoimento do Sr. J..., condutor do outro veículo interveniente no acidente, não pode servir de base à condenação do arguido, antessim levanta sérias dúvidas quanto ao local do embate.
Analisando as passagens que se transcrevem do depoimento do Sr. J..., gravado na cassete n°01 lado A desde voltas 141, conforme acta da audiência, disse no local do acidente, o seguinte:
Procurador - O local do embate?
J... - Foi mais ou menos aqui assim, não sei ao certo.
Procurador - Foi na sua mão?
J... — Foi na minha mão, eu só abrandei a marcha ia a 40/50 kmh.
Procurador - Sentiu película gordurosa?
J...- Não senti nada.
Advogado - Viu o cano (do arguido) a mais de 200 metros.
J... - Sim.
Advogado - local do acidente não sabe?
J...- Não sei mas foi na minha mão.
Advogado - Porque é que não encostou aqui (berma)?
J... - Não dá para pensar na altura, abrandei.
Adv. - Buzinou, fez sinais de luz?
J...- Não fiz nada.
Adv. - Teve uma conversa com o tal sr. (falecido)?
J... - Ele começou a dizer deixa-te ir onde estás ele é que vem fora de mão, ele é que tem que se desviar não somos nós.
Juiz - ele (arguido) vinha um bocado mais depressa que o sr.?
J... - ele vinha mais depressa, ele não travou nem nada. Fui abrandando até se dar o embate visto que não se desviou.
O depoimento do condutor do veículo Citroen é muito vago, mantendo apenas uma linha central, afirmar que o acidente se deu na sua faixa de rodagem, pois caso contrário o causador do acidente foi ele depoente (J...).
Todas as testemunhas confirmaram, e está dado como provado na sentença, a existência no local do acidente existia uma película gordurosa.
O condutor do veículo onde seguia o falecido foi o único que não se apercebeu dela.
O local do embate não sabe onde foi, apenas, que foi na sua faixa de rodagem no sentido Silvares-Fundão.
A inverosimilhança do depoimento do Sr. J... acontece quando afirma ter visto o carro do arguido a mais de 200 metros de distância, quando seguia a uma velocidade de 40 a 50 kmh. e de não se ter desviado para a berma evitando o acidente, mantendo-se estoicamente’ na sua marcha aguardando que o carro do arguido percorra mais de 200 metros e venha a embater no seu citroen, o qual abrandou a velocidade, tudo porque o falecido lhe disse para não se desviar.
Tal depoimento confuso e nada credível não pode ser justificado pela idade da testemunha e falta de reflexos, a testemunha não é de idade avançada e não existem nos autos quaisquer circunstâncias que permitam afirmar que o J... tinha poucos reflexos.
O depoimento do Sr. J... não pode ser considerado para considerar os factos constantes dos n.°s 04 e 05 da sentença como provados.
O depoimento do Sr. J... levanta sérias dúvidas quanto ao local do acidente, levando a suspeitar que o Sr. J... pisou a película gordurosa, a qual não se apercebeu, e terá invadido a hemi-faixa do arguido (Fundão — Silvares) provocando o acidente, sendo o causador do mesmo.
O depoimento do militar da GNR, AA..., e o “croqui” por ele elaborado (auto de participação do acidente) não podem ser utilizados para condenar o arguido, pelo contrário as dúvidas que são levantadas pelo depoimento e pelo documento são muitas.
Analisemos as seguintes passagens do depoimento ONR, A…, gravado na cassete n°01 lado A desde voltas 246, conforme acta da audiência, o qual no local do acidente disse, o seguinte:
Adv. - Este carro (citroen) que aqui está, estava nesta posição ou mais para o interior da via?
GNR- Foi como estivemos a ver há pouco poderiam estar um bocado mais para ali cerca de 40/50 cm. (isto é os veículos poderiam estar 40/50 cm mais chegados à berma da direita no sentido Fundão-Silvares).
 Adv. - A situação que está assinalada no croqui?
GNR- Aí está correcto, poderíamos ter traçado e fazer a medida da linha para cá ou do alcatrão para cá.
Adv. - As medições é de onde começa o alcatrão ou da linha de berma?
GNR- O M/ colega pensa que os caros estavam mais para lá, pelo que as medidas foram tiradas do limite do alcatrão.
Adv. - Mas o sr. não sabe?
GNR - Uma coisa é certa mais para ali ou mais para aqui a posição (carros) é esta.
Adv. - Enviúzada?
GNR - Pronto.
Adv. - e o óleo estava?
GNR- Precisamente debaixo deste veículo (citroen)
Adv. - Onde?
GNR- Por baixo do motor.
Adv. - Recorda-se dos vestígios?
GNR- Não me recordo, a estrada foi lavada pelos bombeiros para um lado e para o outro das bermas.
Adv. - No sentido Silvares-Fundão existia uma película gordurosa em ambas as vias ou só na direita?
GNR- Em ambas.
Adv. - Para lá não se recorda?
GNR - Não me recordo.
Procurador - Os carros estão consoante as medidas da al. G do croqui?
GNR - Então a única diferença que está aqui é a faixa lateral.
Adv. - Os carros estão colocados tomando em consideração o interior da linha de berma?
GNR - Estão colocados do interior da linha de berma. (linha de berma da direita do sentido Fundão-Silvares - conferir acta a fls....).
Adv. - Estava a dizer há pouco pode ter sido de onde começa o alcatrão?
GNR- A diferença que nos dá na traseira de 40/50 cm, de início tirámos esta medida do limite do alcatrão, ao chegar o carro mais para aqui já daria a medida correcta.
Adv. - Já ia para a outra faixa.
Na primeira deslocação ao local (cfr. acta de julgamento), após medição efectuada verificou o juiz “a quo” que a largura da faixa de rodagem é de 5,85 m e não 5,95 m como consta do “croqui do acidente”.
Se verificarmos a medida da al.. E do croqui verificamos que o carro do arguido não pode estar colocado na posição constante do mesmo, a qual é tendencialmente persuasora.
Na verdade, o veículo do arguido está fora da faixa de rodagem.
Do depoimento do GNR resulta claro que não sabe de onde efectuou as medições laterais para a colocação dos veículos, sendo certo que as iniciou do lado direito do sentido Fundão - Silvares, não se lembra se começou a medir desde o interior da linha de berma ou do limite do alcatrão.
Esclarece, o GNR que a diferença de 40/50 cm que lhe aparece na traseira dos veículos é colmatada se começar a medir desde o limite do alcatrão, o que implica que os veículos tenham de ser colocados mais à direita do que o local onde foram desenhados.
Face ao exposto, tomando em consideração que o único vestígio que o GNR detectou foi o óleo por baixo do Citroen, apesar de outros detritos terem sido lavados para ambas as bermas, os quais não assinalou, o que o levou a “considerar como sendo o local do acidente onde se encontrava o óleo”. (conforme depoimento do AA... gravado em CD desde as 11.27.44h as 11.59.44h).
Temos de concluir, que a faixa de rodagem tem uma largura de 5,85 metros cujo eixo se situa a 2,92m de cada uma das linhas de berma.
O veículo n°02 na al. D do croqui está a 2,85m, a qual nos é apresentada no croqui como sendo tirada desde a linha de berma, efectuando esta medida desde o limite do alcatrão, teremos de retirar a essa medida 40/50cm, distância desde o limite do alcatrão até à linha de berma da direita sentido Fundão-Silvares.
Assim, compensando a medição com a margem de 40/50 cm, efectuando a medição desde o interior da linha de berma, o veículo citroen fica a 2,35/2,45/ metros desde a linha de berma da direita sentido Fundão Silvares; e a medida da al. C fica a uma distância de 3,15/3,25 metros desde a linha de berma da direita sentido Fundão-Silvares.
O mesmo equivale a dizer que o veículo citroen se imobilizou na mão de trânsito do arguido e que o óleo (vestígio relevante para o GNR fixar o local provável do embate) está na hemi-faixa da direita da faixa de rodagem no sentido Fundão-Silvares.
Face a estas considerações o embate deu-se na faixa da direita no sentido Fundão-Silvares, isto é foi o citroen quem invadiu a faixa de rodagem do arguido e provocou o embate, sendo os carros projectados para a posição final, muito estranha, enviúzada e ambos virados na direcção Fundão-Silvares, o que foi facilitado pela película gordurosa que permitiu o deslizamento dos veículos.
Tal gordura presente na via era muito acentuada, pois o Bombeiro, D…, com depoimento gravado em CD desde 10.45h às 10.56h, tal como consta da acta, disse: “vinha no sentido Silvares-Fundão e imobilizei o veículo que conduzia e mesmo assim fui bater no veículo da frente.”
A grande quantidade de gordura aliada à energia cinéctica do acidente, levou a que os carros rodopiassem, tal como arguido disse, e se colocassem na posição em que ficaram.
Para a boa decisão da causa, tem de se atentar no depoimento prestado pela D. F... - passageira do carro do arguido, cujas seguintes passagens do seu depoimento, gravado na cassete n°01 lado A desde voltas 410, conforme acta da audiência, se transcrevem:
Adv. — Iam na vossa faixa?
MJ - Sim.
Adv. - Onde foi a pancada?
MJ - As duas pancadas foram na frente.
Adv. - Onde é que ele vinha (referência ao carro)?
MJ - Vinha para cima de nós, uma pancada na frente e outra parece que veio do ar.
Adv. - Ele vinha fora de mão?
MJ – Veio para cima de nós.
Adv. - Existiam mimosas do tamanho de um homem? (por referência à berma da direita no sentido Fundão — Silvares)
MJ - Mais altas que um homem.
Conclui-se do depoimento desta testemunha presencial que o acidente se deu na faixa da direita no sentido Fundão-Silvares, isto é foi o Citroen quem invadiu a faixa de rodagem do arguido e provocou o embate frontal, dentro do sentido de marcha do arguido.
As situações e factos relatados levam a que se conclua pela não apreciação do auto do acidente e do Croqui dele constante, pois face às dúvidas que se levantaram, a sua análise é tendencialmente persuasora para a culpabilidade do arguido, pois coloca o local do embate fora do seu sentido de marcha, os veículos muito próximos e ambos na direcção de Silvares.
O próprio GNR que o elaborou não se recorda de onde iniciar as medidas na lateral da faixa de rodagem; as medidas quanto à largura da faixa veio-se a apurar que estava errada, tinha menos 10cm, pelo que o arguido duvida que as demais medidas estejam correctamente efectuadas.
Os depoimentos do GNR e do Sr. J... nos quais se baseou o meritíssimo juiz “a quo” para dar como provados os factos n°04 e 05 da douta sentença, não podem ser considerados pois levantam sérias dúvidas quanto à sua verificação.
O depoimento do perito de seguros baseia-se no que viu passou algum tempo sobre o acidente e pelo que lhe foi relatado tal como consta do seu relatório junto aos autos de fls.... não tem conhecimento directo dos factos.
Pelo que, o mesmo terá sido induzido em erro pela GNR.
Pelo que, tem de ser aplicado o principio do “in dubio pro reo”, considerando-se não provados os factos 04 e 05, isto é, não existem nos autos factos que permitam concluir com certeza, o local onde se deu o embate entre as duas viaturas e muito menos qual das viaturas saiu da sua mão de transito e invadiu a faixa de rodagem contrária.
Em consequência, os factos constantes do n.° 14 da sentença recorrida terão de ser considerados não provados, pois o arguido não violou regras de transito e o dever de cuidado a que estava obrigado, nem circulava em velocidade não adequada à via.

4ª- Os factos constantes do n.° 14 da sentença recorrida terão de ser considerados
não provados, pois o arguido não violou regras de trânsito e o dever de cuidado
a que estava obrigado, nem circulava em velocidade não adequada à via.


5ª- Quanto ao ponto n°12 dos factos provados, o mesmo deve ser corrigido devendo constar que: o falecido padecia de colesterol elevado, bronquite crónica e problemas cardíacos crónicos (hipertenso e arritmia cardíaca).
Tal conclusão retira-se do depoimento das testemunhas, gravado em CD: Dr. T... depoimento prestado em 30/07/09 desde 16.05.43h. às 16.24.39h, dos 00 aos 05min. e dos 06 aos 8.30min.; e da testemunha Dra R…, depoimento prestado em 07/07/09, desde 17.06.35h às 17.16.51h., desde 05 mm. Aos 05.56 mm e dos 07.31m aos 10m.
Dos quais se transcrevem as seguintes passagens:
O Dr. T... disse:
Adv.- Foi o anestesista que assistiu à intervenção cirúrgica do senhor que veio a falecer?
Dr. - Exactamente estava no serviço de urgência fui responsável assistência anestésica.
Adv. - Tomou algum cuidado em especial e algum problema de saúde?
Dr. - Sim consta da ficha anestésica.
Adv. - Consegue relatar ao tribunal quais as patologias que o doente trazia?
Dr. - Tratava-se de um doente Hipertenso e que já tinha tido um acidente vascular cerebral.
Adv.- O doente veio a falecer trombo embolia pulmonar sabe porque é que se formou esse trombo, qual o motivo?
Dr. -. É muito difícil dizer.
Adv. - Com certeza consegue?
Dr. - É impossível, mas o doente hipertenso só por si é susceptível de ter um AVC, é uma das causas criar uma avc.
Adv. - A intervenção cirúrgica também pode criar tromboembolia.
Dr.- Depende da cirurgia.
Adv. - Esta no caso concreto?
Dr. - Neste caso não, tratou-se de uma intersecção intestinal que não foi delicada quer pela cirurgia em si, considero que não podem ter relação directa cirurgia e tromboembolia.
A Drª R… disse com relevo para a boa decisão, o seguinte:
Adv. - Este doente tinha problemas cardíacos prévios?
Drª. - Sim, tinha já antecedentes bronquite crónica e provavelmente patologia cardíaca.
Juiz - Tinha antecedentes?
Drª.-  Tinha antecedentes bronquite crónica.
Juiz - Bronquite?
Drª - DPOC, doença pulmonar obstrutiva crónica e insuficiência cardíaca.
Do depoimento destas duas testemunhas deve-se concluir que o falecido padecia de insuficiência cardíaca, que tinha uma doença pulmonar obstrutiva crónica, que se tratava de doente hipertenso e que já tinha tido um acidente vascular cerebral, pelo que deve ser alterada a resposta ao ponto 12 dos factos provados.

6ª- Quanto aos factos constantes do ponto 11 da matéria de facto dada como provada, os mesmos devem considerar-se como não provados.
A tal conclusão chega-se através do depoimento prestado pelo Dr. Dr. T... depoimento prestado em 30/07/09 desde 16.05.43h. às 16.24.39h, dos 00 aos O5min. e dos 06 aos 8.30min, o qual disse:
Adv. - Foi o anestesista que assistiu à intervenção cirúrgica do senhor que veio a falecer?
Dr. - Exactamente estava no serviço de urgência fui responsável assistência anestésica.
Adv.- Tomou algum cuidado em especial e algum problema de saúde?
Dr. - Sim consta da ficha anestésica.
Adv. - Consegue relatar ao tribunal quais as patologias que o doente trazia?
Dr- Tratava-se de um doente Hipertenso e que já tinha tido um acidente vascular cerebral.
Adv.- O doente veio a falecer trombo embolia pulmonar sabe porque é que se formou esse trombo, qual o motivo?
Dr. – É muito difícil dizer.
Adv. - Com certeza consegue?
Dr.- É impossível, mas o doente hipertenso só por si é susceptível de ler um AVC, é uma das causas criar um avc.
Adv.- A intervenção cirúrgica também pode criar trombo embolia.
Dr.- Depende da cirurgia.
Adv. -. Esta no caso concreto?
Dr.- Neste caso não, tratou-se de uma intersecção intestinal que não foi delicada quer pela cirurgia em si considero que não podem ter relação directa cirurgia e tromboembolia.
Deste depoimento resulta claro para este técnico de saúde que a morte do Sr. B... nada teve a ver com a cirurgia dos autos.
Além disso, todos os outros médicos que prestaram depoimento durante o julgamento foram unânimes em afirmar que não podiam afirmar com certeza qual a causa que originou o trombo que causou a trombo embolia pulmonar, antessim afirmaram que o falecido tinha vários factores de risco para a verificação da trombo embolia pulmonar, designadamente a idade, a bronquite crónica, antecedentes de um AVC, patologia cardíaca crónica, colesterol elevado.
Além destes factores de risco a intervenção cirúrgica também aportou ao doente, o risco de uma trombo embolia.
Porém, nenhum médico afirmou com certeza quais os riscos que ocasionaram a trombo embolia se o risco criado com a operação, se os riscos derivados das doenças de que o falecido padecia ou ambos em conjunto.
Por tal, o princípio do in dubio pro reo tem de funcionar sob pena de se cometer uma inconstitucionalidade.
A estas conclusões chega-se com o depoimento supra referido e as passagens dos depoimentos que infra se transcrevem.
Dr. CA…. com depoimento gravado cm CD no dia 07/07/09 desde 15.04.46 h. e as 15.3 1.03h., passagens gravadas de O3min. aos 11.35 mm., médico que realizou a autópsia ao falecido, disse:
Adv. - Trombo de grandes dimensões na artéria pulmonar abrangendo a bifurcação?
Dr. - A artéria pulmonar sai do coração divide-se em duas, uma segue para a direita outra para a esquerda, há um trombo que está ligado ao coração que vem pela artéria pulmonar e que obstrui as duas artérias.
Adv.- A trombo embolia pode ser consequência indirecta das patologías cárdio respiratórias que sofria (referindo-se ao falecido)?
Dr. - Pode, estas patologias de “per si” podem desencadear fenómenos trombo embólicos..., Não se pode dizer com cem por cento de certeza a razão da trombo embolia.
Adv. -. O falecido tem 72 anos.
Dr. - Mais um factor de risco.
Adv. - Os 72 anos e as patologias são suficientes para trombo embolia, sem considerar a intervenção cirúrgica.
Dr.- A idade é um risco, são factores que podem ser agravados, um diabético tem mais problemas que os não diabéticos.
O Dr. PS…, com depoimento gravado em CD, conforme acta, no dia 07/07/09, desde as 16.50.05min. a 17.05.33min., aos 09 mm da gravação, médico que participou na cirurgia a que o falecido foi submetido, disse o seguinte:
Adv. - Pode dizer ao tribunal com certeza que esta trombo embolia pulmonar será causa directa da vossa cirurgia ou pode resultar problemas que o sr. (falecido) já tinha?
Dr. - Com certeza absoluta não lhe posso dizer, não lhe posso garantir se a trombo embolia é causada pela intervenção cirúrgica.
Adv. - O doente tinha 72 anos, sofrendo de patologias, já apresentava risco de trombo embolia pulmonar?
Dr. - Tinha, qualquer doente sofre um trauma num acidente de viação tem risco acrescido.
Adv. - Sim, pergunto é os outros já são factores de risco, a idade, patologia cardíaca e o colesterol alto, já é um risco?
Dr. – Sim.
O Dr. CG…, com depoimento gravado em CD, conforme acta, no dia 24/07/09, desde as 10.17.23min. as 10.44.24min., aos 09 mm. até 20.40min da gravação, médico que participou na cirurgia a que o falecido foi submetido, disse o seguinte:
Dr.- O sr. (falecido) estava tão bem disposto que se queria ir embora. Disse que só vai com a medicação senão tem que assinar termo de responsabilidade. Eu penso que não fazia medicação anteriormente.
Adv. - Tinha problemas crónicos de bronquite.
Dr.- Sim, sim, sim. E aproveitou-se o internamento para fazer sinesioterapia.
Adv. - Consegue verificar se tinha colesterol alto?
Dr.-. Não sei.
Adv. - O sr. tinha patologia cardio respiratóriaantes do acidente?
Dr. -. Sim.
Adv. - E factor de risco?
Dr. - Sim, há vários factores de risco descritos do ponto de vista da fisiopatologia e mecanismos mais íntimos em causa. De facto, a existência patológica foro cardíaco e respiratório são factores de risco.
Adv.- Colesterol alto?
Dr. -. É factor de risco.
Adv. - A situação de ter sido intervencionado, que se formam coágulos no pós-operatório é um factor de risco para a trombo embolia pulmonar?
Dr. - Logo à partida este sr. tem um factor que é a idade, a intervenção cirúrgica é um risco.
Adv. - Esse factor de risco está controlado com a medicação?
Dr. - Sim, sim. A medicação era relacionada com a arritmia cardíaca, andava com ela descontrolada.
Foi-lhe administrada terapêutica profiláctica, estas situações não são completamente acauteladas.
Adv. - Consegue garantir que a trombo embolia se deu pelos factores de risco iniciais ou pela intervenção cirúrgica?
Dr. - Não posso dizer qual o factor que deu origem.
Assim, face a todos estes depoimentos o meritíssimo Juiz “a quo” julgou mal os factos constantes do n° 11 dos factos provados da douta sentença.
Na verdade, ninguém consegue afirmar com certeza (absolutamente necessária em virtude do “in dubio pro reo”) que a trombo embolia pulmonar tenha causa directa com a intervenção cirúrgica e que seja uma consequência normal da mesma.
O falecido já sofria de patologias associadas à idade que por si só eram suficientes para provocar a trombo embolia pulmonar.
De notar que o falecido era portador de arritmia cardíaca, a qual não tratava, tal como supra afirmado pelas testemunhas.

7ª- Além disso, os pontos 09 e 10 da matéria de facto provada são importantes para aferir que o falecido e os seus familiares não se importavam muito com a saúde, pois no dia da alta clínica teve falta de ar e não recorreram ao tribunal.
Já nesta altura se estava a desenvolver a trombo embolia pulmonar.

8ª- A teoria da causalidade adequada não pode justificar o nexo de causalidade, pois todos os médicos disseram que a cirurgia é um risco acrescido para a ocorrência de uma trombo embolia pulmonar.
Porém, nem as modernas teorias a que Stratenwerth chama conexão ou relação com o risco, poderão completar o degrau de adequação.
Na verdade, a imputação está dependente de um duplo factor: primeiro que o agente tenha criado um risco não permitido ou tenha aumentado esse risco já existente e depois que esse risco tenha conduzido à produção do resultado concreto.
Acontece, que nenhum médico afirma com certeza qual o risco ou qual a causa que deu origem à trombo embolia pulmonar que vitimou o sr. B..., afirmam que há risco mas que não podem garantir qual o causou se os que já existiam independentemente da operação a que foi sujeito, se ambos em conjunto ou o novo risco isoladamente.
De qualquer modo, o nexo de causalidade é interrompido, pois no dia da alta e da manhã do falecimento, sr. B... queixava-se de falta de ar. não lhe tendo sido prestado o auxílio de que carecia, pelo caso fosse transportado ao hospital teria sido, eventualmente. medicado a tempo, sendo que esta dúvida tem de funcionar a favor do arguido.
Na dúvida, e as dúvidas neste processo, salvo melhor opinião, são muitas têm de levar à absolvição do arguido.
Caso não sejam consideradas estas dúvidas estar-se-á a violar como violou o juiz “a quo” o principio constitucional do “in dubio pro reo”.
Nestes termos, requer a V.Exas. se dignem considerar procedente e provado o presente recurso, e em consequência revogar a douta sentença e absolver o arguido».

            3. O Ministério Público em 1ª instância respondeu ao recurso, assim concluindo (em transcrição):
«1. O arguido limita-se a firmar que deveria ser lançado mão do princípio do in dubio pro reo e que não existe nexo causal entre o acidente e a morte do Sr. B…;
2. Não indica que preceitos legais foram violados, apenas apelando a conceitos jurídicos cujos conteúdos não estariam, para si, preenchidos;
3. Na verdade, ao arrepio de toda a prova produzida, quer quanto á dinâmica do acidente, quer quanto à causa de morte, o arguido limita-se a dar a sua versão dos factos;
4. Resultando de forma inequívoca que os dois veículos estavam na hemi-faixa de rodagem do automóvel onde seguia a vítima, e que era neste local que estavam todos os vestígios (vidros, plásticos e o óleo derramado pelo AX);
5. Não existindo qualquer vestígio do embate na hemi-faixa de rodagem onde seguia o arguido, na qual também (até por maioria dos depoimentos das testemunhas) para além da chuva, estava uma substância gordurosa;
6. Foi o arguido que alterou a trajectória do automóvel que conduzia e o fez embater no AX;
7. Sendo o único culpado do acidente, que só se deu por não ter adequado a velocidade às condições da estrada e à curva que se aproximava;
8. Em resultado do qual veio a falecer o Sr. B…;
9. Não existem dúvidas, e muito menos, alguma que seja séria e credível a ponto de se lançar mão do princípio do in dubio pro reo;
10. Também não restam dúvidas, assentes na prova produzida, que a causa de morte adveio do acidente sofrido, designadamente, porque a vítima sofreu um trauma muito violento, que teve de ser cirurgicamente intervencionada e porque teve de estar acamada;
11. Não foram violados quaisquer preceitos leais (nem os mesmos são indicados) ou princípios gerais do direito penal.
12. Assim, pelos motivos antes enunciados, deverá o recurso ser improcedente e mantida a decisão sob censura, assim se fazendo JUSTIÇA».
 
4. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se, a fls. 661 a 665, assim concluindo:
«Face ao exposto, acompanhando parcelarmente a resposta do Ministério Público na 1!’ instância, somos de parecer que o recurso do arguido deverá improceder na generalidade, ainda que, por diversas razões nem sequer invocadas, o mesmo deva obter parcial provimento, revogando-se a sentença no que toca à aplicação da sanção acessória de inibição (proibição) de conduzir».

            5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º 3, alínea c) do mesmo diploma.

            II – FUNDAMENTAÇÃO
           
 1. Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242 e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271).
             Assim, balizados pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso, a questão a decidir consiste em saber se a prova foi mal apreciada, devendo ou não dar-se resposta diversa aos factos dados como provados nos pontos 4, 5, 11, 12 e 14, dando-se os como não provados os factos 4, 5, 11 e 14 e corrigindo-se o teor do facto 12.
Terá assim de se desdobrar a argumentação deste tribunal em duas frentes:
o A)- Descrição do acidente e inerente culpabilidade do arguido;
o B)- O nexo de causalidade entre as lesões sofridas pela vítima em consequência do acidente e a morte desta).
A final, ainda abordaremos a questão da «pena acessória», suscitada pelo Exmº PGA, no seu visto.

            2. DA SENTENÇA RECORRIDA
            2.1. O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos, com interesse para a decisão deste recurso (transcrição):
1. «No dia 3 de Janeiro de 2008, cerca das 16,15 horas, o arguido conduzia o automóvel de marca Renault, modelo Laguna, de matrícula XX..., de sua propriedade, na estrada nacional n.º 238 sentido Fundão/Silvares, ao Km 122,870, área da comarca de Fundão.
2. Naquela mesma ocasião de tempo e lugar, o J… conduzia o automóvel de marca Citroen, Modelo AX, de matricula YY..., propriedade de B…, o qual seguia no mesmo ao seu lado, e circulavam em sentido inverso, ou seja, Silvares/Fundão.
3. O piso encontrava-se molhado pois que havia chovido, na altura ainda estava uma" chuva miudinha ", e havia uma substância oleosa no pavimento.
4. Porque o arguido imprimia uma velocidade demasiado elevada para a estrada onde seguia, cujo piso se encontrava "olhado, ao efectuar uma curva para a sua direita, atento o seu sentido de marcha, saiu da sua mão de trânsito e invadiu a faixa de rodagem do YY..., indo embater de forma violenta com a frente do automóvel que conduzia, na frente deste.
5. Este embate ocorreu a meio da hemi-faixa de rodagem do Citroen AX, ou seja, totalmente dentro do seu sentido de marcha.
6. Mercê deste violento embate, o B… ficou preso no interior do automóvel tendo sido necessário proceder ao seu desencarceramento.
7. Após ser desencarcerado o B… foi transportado para o Hospital da Covilhã, onde apresentava várias escoriações por todo o corpo, com predominância na face, cabeça, pulso direito partido e foi submetido a intervenção cirúrgica aos intestinos que ficaram perfurados.
8. Esteve internado desde a data do acidente neste hospital até 19 de Janeiro de 2008, tendo nesse período, por várias vezes, necessitado de receber oxigénio.
9. Logo naquele dia 19 de Janeiro, já em casa, o B... queixava-se da falta de ar.
10. No dia seguinte, logo pela manhã, o B... continuava a queixar-se da falta de ar, tendo vindo a falecer cerca das 10h42min desse mesmo dia.
11. A morte ficou-se a dever a tromboembolia pulmonar que foi provocada pelo traumatismo abdominal fechado com ruptura de vasos do intestino, traumatismo este causado pelo acidente de viação atrás descrito.
12. O falecido padecia durante o internamento de arritmia cardíaca, bronquite e  elevado colesterol.
13. O Sr. B... era beneficiário da Segurança Social 11210987052.
14. O arguido não agiu com o cuidado a que estava obrigado enquanto condutor de um automóvel na via pública, violando regras de trânsito, pois não adequou a velocidade à estrada no local, uma curva, e principalmente, ao piso molhado que torna mais difícil executar as manobras defensivas, como a travagem ou o desvio de obstáculos
15. O arguido é reformado, recebendo cerca de €500,00 de reforma. Vive com a sua esposa, que trabalha num lar, auferindo €550,00, e com uma filha de 23 anos, a seu cargo. Estudou até à 4.ª classe.
16. Não lhe são conhecidos antecedentes criminais.
17. É uma pessoa bem vista e considerada no seu meio.
2.2. Quanto A FACTOS NÃO PROVADOS, «não resultaram provados outros factos com relevância para a decisão da causa, nomeadamente:
a. Que o veículo onde seguia o falecido B… invadiu a hemi-faixa onde circulava o arguido após o seu condutor ter perdido o controlo do veículo ao pisar uma película gordurosa e deslizante que se encontrava no seu caminho, chocando depois as duas frentes dos veículos entre si.
b. Que depois teriam os veículos entrado em derrapagem, descrito dois “peões”, imobilizando-se no local que a GNR indicou como o local provável do embate.
c. Que o condutor do veículo Citroen AX de matrícula YY... não teria adequado a velocidade à estrada onde circulava, reduzindo-a, atendendo à circunstância que chovia e havia uma “película gordurosa” na estrada.
d. Que esta película teria sido criada numa operação de trasfega de óleos e combustíveis efectuada nas imediações do local do embate por dois camiões, que se derramaram para o asfalto.
e. Que o local do embate se situa dez metros antes do local assinalado pela GNR no sentido Silvares Fundão.

2.3. Para formar a sua convicção, argumentou assim o tribunal «a quo»:
«O Tribunal fundou a sua convicção na apreciação crítica da prova produzida, concretamente:
O tribunal ouviu o arguido e atendeu às suas palavras quanto às suas condições pessoais. Já no que concerne à maneira como ocorreu o acidente, o arguido repetiu a versão que expôs na sua contestação e que se concluiu não ser verídica.
A convicção do tribunal relativamente à forma como ocorreram os factos, especialmente quanto à dinâmica do embate, formou-se da conjugação dos contributos probatórios colhidos de J…, condutor do veículo que foi embatido pela viatura conduzida pelo arguido, com a descrição da situação em se encontravam as viaturas após a sua colisão, narrada pelo agente da GNR A… e por si representada no auto de participação de acidente de viação constante de fls. 41 a 44. Constatou-se que após o embate, o veículo dirigido pelo arguido se imobilizou localizado quase integralmente na berma do lado contrário ao da hemi-faixa onde deveria circular, no sentido Fundão-Silvares, com a frente voltada para o sentido inverso daquele onde se dirigia. O outro veículo ficou na sua hemi-faixa, virado para o sentido que seguia.
Esta configuração contraria frontalmente a argumentação do arguido e coaduna-se plenamente com a descrição das circunstâncias em que se deu o choque trazida por J…. Este viu o veículo do arguido aproximar-se ocupando a hemi-faixa onde circulava. Teria tido um diálogo com a vítima, que o aconselhou a não sair da sua marcha pois em caso de acidente poderia ser responsabilizado, o que se afigurou estranho. Todavia, esta estranheza, aos olhos do tribunal, conferiu credibilidade ao depoimento, considerada a afirmação da testemunha de que viu o veículo do arguido a cerca de 25 m e que seguia a cerca de 50 km/h, velocidade que o arguido igualmente atribui à sua condução. Seria uma velocidade que poderia permitir uma reacção do arguido e assim fazer gerar a ideia de que o arguido se iria desviar. E isto apesar da testemunha admitir que não avisou o arguido através de sinais sonoros ou luminosos. Tal atitude pode compreender-se considerando que a testemunha é pessoa de alguma idade, de reflexos e agilidade menos aguçados, sendo evidente, por exemplo, uma reduzida consciência sobre os factos ocorridos depois do embate. A testemunha perdeu os sentidos depois do choque, mostrando muito desconhecimento quanto ao que sucedeu depois.
Dos participantes e testemunhas do embate restou unicamente F..., que ocupava o lugar do passageiro da frente do veículo do arguido e que, com maior ou menor precisão, replicou a versão exposta pelo arguido, de que foram embatidos pelo outro veículo. Afirmou esta testemunha que depois o carro rodopiou e que bateram uma segunda vez. Todavia, não se afigura possível que um embate na sua hemi-faixa tenha sido capaz de transportar os dois veículos para a faixa contrária, posicionando-se o do arguido quase todo na berma mais distante do sentido que prosseguia, com o outro veículo parado muito próximo do seu. Haveria sim a forte possibilidade de um dos veículos se colocar na berma contrária.
Este testemunho foi infirmado pelos elementos já supra descritos.
Já Z..., trabalhando nas proximidades, se deslocou ao local depois de ouvir o barulho do choque, encontrando as viaturas aproximadamente no local assinalado pela GNR, auxiliando os feridos.
Todas estas pessoas foram ouvidas também no local, onde avivaram a sua memória e explicaram o seu testemunho, o que reforçou a convicção do tribunal.
L…, filho do falecido, afirmou que o seu pai lhe contou que o veículo do arguido vindo em contra-mão, e que aquele deveria vir a dormir ou distraído (o que pode ser considerado face ao disposto no art.º 129.º, n.º 1, do CPP).
Francisco Barros, um dos bombeiros que acorreu ao local confirmou a posição dos veículos depois da colisão.
P..., perito averiguador da companhia de seguros que cuidou do acidente, também se dirigiu ao local, umas semanas depois do embate, verificando a existência ainda de vestígios dos veículos (aliás, vestígios que o tribunal pôde ainda detectar), com maior concentração na berma situada à direita atento o sentido Silvares-Fundão.
G..., outro bombeiro que se deslocou ao local só se lembra que as frentes dos veículos muito próximas – como descrito pela GNR. 
Estes dados reforçaram o convencimento do tribunal.
A testemunha L... e N..., viúva de B…, relataram que este tinha uma vida activa, não lhe conhecendo doenças ou a tomada de medicação. Da mesma forma M..., cunhada do falecido, declarou que não lhe conhecia doenças.
Estas testemunhas referiram-se também aos acontecimentos ocorridos desde o acidente até ao falecimento.
O médico que procedeu à autópsia, C..., bem como o pessoal médico que prestou assistência ao falecido, E..., R…, U… e I… (médico que procedeu à operação e deu a alta clínica) foram unânimes ao considerar que as lesões sofridas pelo acidente, a cirurgia e a imobilização pós-operatória foram factores que potenciaram em elevado grau a possibilidade da ocorrência de uma tromboembolia, admitindo ainda a importância de outros factores detectados durante o internamento, como a circunstância de o falecido padecer de arritmia cardíaca, bronquite, ter elevado colesterol, e ainda a sua idade avançada. T..., o médico anestesista que interveio na intervenção cirúrgica, ouviu da boca do falecido a referência ao padecimento desses problemas de saúde quando preparou a cirurgia, existindo menção dos mesmos no processo clínico. Este médico relevou a importância destes problemas, mas admitiu a preponderância dos restantes factores advenientes do acidente. Relevaram estes testemunhos para a demonstração do relatado em §7 a §11.
FP…, VM…, MM…, familiares do arguido, DG…eJG…, respectivamente esposa e filha do arguido, além de confirmarem a matéria respeitante às condições pessoais do arguido em pouco contribuíram para a formação da decisão, pois não presenciaram o acidente, embora se tivessem deslocado ao local depois, confirmando em grande medida o posicionamento dos veículos.
Foram vários os relatos da existência de uma película gordurosa no pavimento: uns referindo derrame provindo dos veículos embatidos (o agente A…), outros como sendo preexistente (o bombeiro D…, que a sentiu antes de chegar perto do local). Deu assim o tribunal demonstrado esta circunstância como preexistente.
   As restantes testemunhas ouvidas não contribuíram significativamente para esta decisão pelo desconhecimento dos factos demonstrado.
Foram ainda analisados os elementos documentais recolhidos, a certidão de óbito de fls. 11, os elementos clínicos de fls. 77 a 126, a participação de acidente de fls. 41 a 44, prints referentes aos veículos de fls. 61 e 60, fotos de fls. 143 a 152 e CRC junto aos autos.
Quanto à factualidade considerada não provada, a sua qualificação nasce da contradição com os elementos instrutórios colhidos e da insuficiência destes para a confirmar».

            3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

            3.1. Vem o arguido A... interpor recurso da sentença em que foi condenado pela prática de UM crime de homicídio negligente, previsto e punível pelo artigo 137º, n.º 1, do Código Penal na pena de 260 dias de multa à taxa diária de 6 €, o que perfaz o montante global de 1.560 €.
Entende, em síntese, que a prova produzida foi mal apreciada, devendo dar-se resposta diversa aos factos dados como provados nos pontos 4, 5, 11 e 14, devendo dar-se diferente formulação ao facto 12.
Incide o recurso sobre dois segmentos:
o A)- Descrição do acidente e inerente culpabilidade do arguido;
o B)- O nexo de causalidade entre as lesões sofridas pela vítima em consequência do acidente e a morte desta).

3.2. Impugna, assim, a matéria de facto dada como provada[1], daí retirando a consequência jurídica da sua absolvição criminal.
É sabido que o Tribunal da Relação deve conhecer da questão de facto pela seguinte ordem:
- primeiro da impugnação alargada, se tiver sido suscitada (O NOSSO CASO);
- e, depois e se for o caso, dos vícios do n.º 2 do art. 410.º do C.P.Penal.
Não há que confundir estas duas formas de impugnação da matéria factual – por um lado, a invocação dos vícios previstos no artigo 410º, n.º 2, alíneas a). b) e c), e por outro, os requisitos da impugnação – mais ampla - da matéria de facto a que se refere o artigo 412º, n.º 3, alíneas a), b) e c), todos do CPP.

3.3. Estabelece o art. 410.º, n.º 2 do CPP que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
            Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.
No fundo, por aqui não se pode recorrer à prova documentada.
A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito.
A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.
Tal ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
Finalmente, o “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do artigo 410.º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes).
Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cf. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341).
Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cf. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74).
Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.
Existe tal erro quando, usando um processo racional ou lógico, se extrai de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.
Tal erro traduz-se basicamente em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando certo facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo (cf. Acórdão do STJ de 9/7/1998, Processo n.º 1509/97).
Ora, analisando a decisão recorrido, não vislumbramos qualquer indício desses vícios do artigo 410º/2 do CPP.

3.4. Já o erro de julgamento – ínsito no artigo 412º/3 - ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.
Aqui, nesta situação de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância.
Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.º 3 e 4 do art. 412.º do CPP.
Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
Como bem acentua Jorge Gonçalves nos seus acórdãos desta Relação, «o recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (sobre estas questões, cfr. os Acórdãos do S.T.J., de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, e de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, a consultar em www. dgsi.pt)».
E é exactamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, é que se impõe a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, já aqui aludida, prevista no artigo 412.º, n.º 3, do CPP.
A dita especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados, só se satisfazendo tal especificação com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.
Conforme jurisprudência constante, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, com base na audição de gravações, antes constituindo um remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. O recurso que impugne a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados[2].
            A delimitação dos pontos de facto constitui um elemento determinante na definição do objecto do recurso relativo à matéria de facto. Ao tribunal de recurso incumbe confrontar o juízo sobre os factos que foi realizado pelo tribunal a quo com a sua própria convicção determinada pela valoração autónoma das provas que o recorrente identifique nas conclusões da motivação.
Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (sobre estas questões, os Acordãos do S.T.J., de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, e de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, a consultar em www. dgsi.pt).
Nos termos do artº 428º do CPP, as relações conhecem de facto e de direito, podendo modificar a decisão de facto quando a decisão tiver sido impugnada nos termos do artº 412º, nº 3 do mesmo diploma – tal não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, como se a decisão da 1ª instância não existisse, mas apenas um remédio jurídico votado a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, expressamente indicados pelo recorrente.
Já o deixámos escrito - o recurso, no que tange ao conhecimento da questão de facto, não é um segundo julgamento, em que a Relação, agora com base na audição de gravações, e anteriormente com base na leitura de transcrições, reaprecie a totalidade da prova.
E se é certo que perante um recurso sobre a matéria de facto, a Relação não se pode eximir ao encargo de proceder a uma ponderação específica e autonomamente formulada dos meios de prova indicados, não é menos verdade que deverá fazê-lo com plena consciência dos limites ditados pela natureza do recurso como remédio e pelo facto de se tratar de uma apreciação de segunda linha, a que faltam as importantes notas da imediação e da oralidade de que beneficiou o tribunal a quo.
           
3.5. O artigo 127.º do C.P.P. consagra o princípio da livre apreciação da prova, o que não significa que a actividade de valoração da prova seja arbitrária, pois está vinculada à busca da verdade, sendo limitada pelas regras da experiência comum e por algumas restrições legais.
Tal princípio concede ao julgador uma margem de discricionariedade na formação do seu juízo de valoração, mas que deverá ser capaz de fundamentar de modo lógico e racional.
Os poderes do tribunal na procura da verdade material estão limitados pelo objecto do processo definido na acusação ou na pronúncia, guiado pelo princípio das garantias de defesa do artigo 32º da CRP.
Sobre o tribunal recai o dever de ordenar a produção da prova necessária à descoberta da verdade material, tanto relativamente aos factos narrados na acusação ou na pronúncia, como aos alegados pela defesa na contestação e aos que surgirem no decurso da audiência de julgamento em benefício do arguido.
Quanto à fundamentação da PROVA, há que atentar em certos princípios:
os dos artigos 124º, 125º e 126º do CPP (princípio geral da legalidade das provas);
A convicção sobre a realidade de certo facto existirá quando, e só quando, o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos, para além de toda a dúvida razoável;
Não se procura uma verdade ontológica e absoluta mas apenas a verdade judicial e prática – não pode ser uma verdade obtida a qualquer preço mas apenas a que assenta em meios de prova que sejam legais;
A livre apreciação da prova (ou do livre convencimento motivado) não se pode confundir com a íntima convicção do juiz, assente numa apreciação arbitrária da prova, impondo-lhes a lei que extraia delas um convencimento lógico e motivado, avaliadas as provas com sentido da responsabilidade e bom senso;
Não satisfaz a exigência de fundamentação da decisão sobre Matéria de Facto a mera referência genérica aos meios de prova produzidos, importando fazer a indicação dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do juiz, ou seja, os meios concretos de prova e as razões ou motivos que dos meios de prova relevaram ou que obtiveram credibilidade no espírito do julgador – não basta indicar o concreto meio de prova gerador do convencimento, urgindo expressar a razão pela qual, apoiando-se nas regras de experiência comum, o julgador adquiriu, de forma não temerária, a convicção sobre a realidade de um determinado facto.
A liberdade das provas não é, pois, absoluta, estando condicionada pela prudente convicção do julgador e temperada pelas regras da lógica e da experiência
            Porém, nessa tarefa de apreciação da prova, é manifesta a diferença entre a 1.ª instância e o tribunal de recurso, beneficiando aquela da imediação e da oralidade e estando este limitado à prova documental e ao registo de declarações e depoimentos.
            A imediação, que se traduz no contacto pessoal entre o juiz e os diversos meios de prova, podendo também ser definida como “a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá que ter como base da sua decisão” (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra, 1984, Volume I, p. 232), confere ao julgador em 1.ª instância certos meios de apreciação da prova pessoal de que o tribunal de recurso não dispõe.
É essencialmente a esse julgador que compete apreciar a credibilidade das declarações e depoimentos, com fundamento no seu conhecimento das reacções humanas, atendendo a uma vasta multiplicidade de factores: as razões de ciência, a espontaneidade, a linguagem (verbal e não verbal), as hesitações, o tom de voz, as contradições, etc.
As razões pelas quais se confere credibilidade a determinadas provas e não a outras dependem desse juízo de valoração realizado pelo juiz de 1.ª instância, com base na imediação, ainda que condicionado pela aplicação das regras da experiência comum.
            Assim, a atribuição de credibilidade, ou não, a uma fonte de prova testemunhal ou por declarações, tem por base uma valoração do julgador fundada na imediação e na oralidade, que o tribunal de recurso, em rigor, só poderá criticar demonstrando que é inadmissível face às regras da experiência comum (cf. Acórdão da Relação do Porto, de 21 de Abril de 2004, Processo: 0314013, www.dgsi.pt).
            Quer isto dizer que a ausência de imediação determina que o tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, possa alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b) do n.º3 do citado artigo 412.º] – neste sentido, o Ac. da Relação de Lisboa, de 10.10.2007, proc. 8428/2007-3, disponível para consulta em www.dgsi.pt).
A operação intelectual em que se traduz a formação da convicção não é, assim, uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis), e para ela concorrem as regras impostas pela lei, como sejam as da experiência, da percepção da personalidade do depoente – aqui relevando, de forma muito especial, os princípios da oralidade e da imediação – e da dúvida inultrapassável que conduz ao princípio “in dubio pro reo” (cf. Ac. do T. Constitucional de 24/03/2003, DR. II, nº 129, de 02/06/2004, 8544 e ss. e Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1ª Ed., 1974, Reimpressão, 205).

3.6. Com este pano de fundo, analisemos mais concretamente o recurso intentado, assente que existe aqui uma impugnação da matéria dada como provada, não se invocando os vícios – até de conhecimento oficioso – do artigo 410º/2 do CPP (já por nós considerados como inexistentes in casu, em 3.3.).
Houve, de facto, pontos de factos incorrectamente julgados?
As provas produzidas em julgamento impunham uma decisão de absolvição, em vez de um juízo condenatório?
No caso em apreço, o tribunal deu como provado na sentença o seguinte (assente que são estes os factos que o arguido entende que não deveriam ter sido dados como provados ou que deveriam ser dados como provados noutra formulação):
· DINÂMICA DO ACIDENTE
o FACTO 4 - Porque o arguido imprimia uma velocidade demasiado elevada para a estrada onde seguia, cujo piso se encontrava "olhado, ao efectuar uma curva para a sua direita, atento o seu sentido de marcha, saiu da sua mão de trânsito e invadiu a faixa de rodagem do YY..., indo embater de forma violenta com a frente do automóvel que conduzia, na frente deste.
o FACTO 5 - Este embate ocorreu a meio da hemi-faixa de rodagem do Citroen AX, ou seja, totalmente dentro do seu sentido de marcha.
o FACTO 14 - O arguido não agiu com o cuidado a que estava obrigado enquanto condutor de um automóvel na via pública, violando regras de trânsito, pois não adequou a velocidade à estrada no local, uma curva, e principalmente, ao piso molhado que torna mais difícil executar as manobras defensivas, como a travagem ou o desvio de obstáculos
· NEXO CAUSAL LESÃO PROVOCADA PELO ACIDENTE/MORTE DA VÍTIMA
o FACTO 11 - A morte ficou-se a dever a tromboembolia pulmonar que foi provocada pelo traumatismo abdominal fechado com ruptura de vasos do intestino, traumatismo este causado pelo acidente de viação atrás descrito.
o FACTO 12 - O falecido padecia durante o internamento de arritmia cardíaca, bronquite e elevado colesterol.
3.7. DINÂMICA DO ACIDENTE

3.7.1. Argumenta o recorrente que o acidente se ficou a dever a culpa exclusiva do condutor (J...) do veículo onde ia a vítima (Citroen), assente que, na sua versão, foi ele quem invadiu completamente a hemi-faixa onde o arguido circulava (eventualmente por ter pisado a tal substância gordurosa que estaria derramada na estrada) e que em momento algum é dado como provado que o arguido circulava em excesso de velocidade (não se tendo determinado o «quantum» exacto dessa velocidade.
Para si, o acidente deu-se na faixa de rodagem em que circulava e não da faixa onde seguia o dito Citroen.
Para tal, entende que foram sobrevalorizados os depoimentos do referido J..., condutor do Citroen, de A…, agente da GNR, autor da participação do acidente e do croqui do mesmo, e de P..., perito  de seguros.
Por outro lado, entende que deveria ter sido mais valorizado o testemunho de F..., que seguia no veículo do arguido, e que refere que o seu veículo seguia na sua via de trânsito.

3.7.2. Ouvidas as gravações dos depoimentos das referidas testemunhas [J... – sessões de 6/7 e de 21/7 (esta em cassete); A... – sessões de 6/7 e de 21/7; P... – sessão de 30/7 (no local do acidente – gravado em cassete) e F… – sessão de 7/7 e de 21/7), bem como as declarações do arguido, na sessão de 24/6 e de 21/7, esta em cassete, constatamos que carece de total razão o recorrente na forma como analisa criticamente a prova aí produzida, concluindo este tribunal que a decisão recorrida faz uma criteriosa, razoável e racional análise do material probatório que tinha entre mãos, concluindo de forma encadeada, lógica e verosímil.
Recordemos o que, nesta parte, ficou escrito na motivação da sentença recorrida:
«A convicção do tribunal relativamente à forma como ocorreram os factos, especialmente quanto à dinâmica do embate, formou-se da conjugação dos contributos probatórios colhidos de J…, condutor do veículo que foi embatido pela viatura conduzida pelo arguido, com a descrição da situação em se encontravam as viaturas após a sua colisão, narrada pelo agente da GNR A… e por si representada no auto de participação de acidente de viação constante de fls. 41 a 44.
Constatou-se que após o embate, o veículo dirigido pelo arguido se imobilizou localizado quase integralmente na berma do lado contrário ao da hemi-faixa onde deveria circular, no sentido Fundão-Silvares, com a frente voltada para o sentido inverso daquele onde se dirigia. O outro veículo ficou na sua hemi-faixa, virado para o sentido que seguia.
Esta configuração contraria frontalmente a argumentação do arguido e coaduna-se plenamente com a descrição das circunstâncias em que se deu o choque trazida por J.... Este viu o veículo do arguido aproximar-se ocupando a hemi-faixa onde circulava.
(…)
Dos participantes e testemunhas do embate restou unicamente F..., que ocupava o lugar do passageiro da frente do veículo do arguido e que, com maior ou menor precisão, replicou a versão exposta pelo arguido, de que foram embatidos pelo outro veículo. Afirmou esta testemunha que depois o carro rodopiou e que bateram uma segunda vez. Todavia, não se afigura possível que um embate na sua hemi-faixa tenha sido capaz de transportar os dois veículos para a faixa contrária, posicionando-se o do arguido quase todo na berma mais distante do sentido que prosseguia, com o outro veículo parado muito próximo do seu. Haveria sim a forte possibilidade de um dos veículos se colocar na berma contrária.
Este testemunho foi infirmado pelos elementos já supra descritos.
Já Z..., trabalhando nas proximidades, se deslocou ao local depois de ouvir o barulho do choque, encontrando as viaturas aproximadamente no local assinalado pela GNR, auxiliando os feridos.
Todas estas pessoas foram ouvidas também no local, onde avivaram a sua memória e explicaram o seu testemunho, o que reforçou a convicção do tribunal.
L…, filho do falecido, afirmou que o seu pai lhe contou que o veículo do arguido vindo em contra-mão, e que aquele deveria vir a dormir ou distraído (o que pode ser considerado face ao disposto no art.º 129.º, n.º 1, do CPP).
Francisco Barros, um dos bombeiros que acorreu ao local confirmou a posição dos veículos depois da colisão.
P..., perito averiguador da companhia de seguros que cuidou do acidente, também se dirigiu ao local, umas semanas depois do embate, verificando a existência ainda de vestígios dos veículos (aliás, vestígios que o tribunal pôde ainda detectar), com maior concentração na berma situada à direita atento o sentido Silvares-Fundão.
G..., outro bombeiro que se deslocou ao local só se lembra que as frentes dos veículos muito próximas – como descrito pela GNR. 
Estes dados reforçaram o convencimento do tribunal.
(…)
Foram vários os relatos da existência de uma película gordurosa no pavimento: uns referindo derrame provindo dos veículos embatidos (o agente A…), outros como sendo preexistente (o bombeiro D…, que a sentiu antes de chegar perto do local). Deu assim o tribunal demonstrado esta circunstância como preexistente.
(…)»
Para sustentar a sua versão dos acontecimentos, temos assim, e só, os depoimentos suspeitos do próprio arguido (que obviamente tudo faz para se livrar do peso desta culpa) e da sua sogra, F… que, também, nunca conseguiu de facto convencer o julgador – note-se que quando é ouvida, em 21/7, responde que iam na sua faixa (o que era verdade até acontecer a dita ocupação da faixa contrária), e respondendo à pergunta de saber se o veículo Citroen vinha fora de mão, limitou-se a dizer que “veio para cima de nós”, ficando nós sem saber se, ao vir para cima deles, seguia tal Citroen na sua hemi-faixa ou na do veículo do arguido.
Quanto à substância gordurosa, o depoimento de P... é demolidor – ele deslocou-se ao local do evento danoso, falou com ambos os condutores e referiu que nenhum dos condutores lhe disse ter derrapado por causa de qualquer substância gordurosa existente na via e ou que tinha visto o outro condutor a derrapar, e por isso a invadir a faixa de rodagem contrária – como tal, não vemos que a dita gordura tenha sido causal de algum despiste.

3.7.3. Quanto à velocidade, diga-se o seguinte:
Ficou provado que «porque o arguido imprimia uma velocidade demasiado elevada para a estrada onde seguia, cujo piso se encontrava molhado, ao efectuar uma curva para a direita, saiu da sua mão de trânsito e invadiu a faixa de rodagem do YY..., indo embater de forma violenta com a frente do automóvel que conduzia, na frente deste».
Alude o recorrente que a decisão recorrida não indica a velocidade exacta que ele imprimia ao seu veículo.
Mas não tinha de o fazer, face ao facto de não ter sido possível apurar esse «quantum» rigoroso e à circunstância de se ter aplicado as regras jurídicas dos artigos 24º/1 e 25º/1, alíneas f) – moderação de velocidade em curvas - e h) – moderação da velocidade em troços de via molhados - (velocidade relativa), e já não os limites do artigo 27º do Código da Estrada (velocidade absoluta).
Sabemos que não é a velocidade em absoluto que se torna perigosa mas sim a relativa, podendo, em teoria, um veículo ser absolutamente inofensivo a 120 Km/h e constituir um real perigo a 40 Km/h.
Como tal, não se apurou que o arguido estivesse em excesso absoluto de velocidade, não sendo isso que está em causa (e só nesta circunstância importaria saber a velocidade concreta).
O que se deu como provado não implica descortinar a concreta velocidade do veículo do arguido – apenas releva que tal velocidade era excessiva, face ao descrito em 3 e 4 (fazia uma curva à direita em estrada molhada – PORQUE TINHA CHOVIDO ANTES E NA ALTURA CAIA UMA CHUVA MIUDINHA - e com uma substância gordurosa).
A este propósito, e no que concerne à prova da chamada prova indirecta, esta sujeita à livre apreciação, exige um particular cuidado na sua apreciação, apenas se podendo extrair o facto probando do facto indiciário quando seja corroborado por outros elementos de prova, por forma a que sejam afastadas outras hipóteses igualmente plausíveis.
Em matéria de rodoviária, dado o enorme perigo que envolve a utilização do automóvel e a velocidade, a infracção de norma de trânsito constitui presunção – natural, judicial ou de prova, nos termos do art. 439º e 351º do C. Civil, que não presunção legal de culpa, inadmissível em processo penal face ao princípio in dubio pro reo – de que não foi cumprido o dever de cuidado específico imposto pela norma violada, desde que o resultado seja daqueles que a lei ou regulamento quis evitar.
Neste caso, para decidir a questão da velocidade, o tribunal lançou mão e analisou várias provas coligidas nos autos, legalmente válidas e interpretou-as livremente (e não de forma arbitrária).
No fundo, a prova de que foi a velocidade desadequada a que o arguido conduzia que esteve na origem do despiste, resultou do facto de se ter provado que o veículo estava em boas condições de funcionamento – não permitindo que se justifique o acidente pela ocorrência de qualquer avaria mecânica –; do facto de se ter provado que não havia na estrada nenhum outro liquido – relevante - que promovesse a falta de aderência dos pneus que se verificou, a não ser as águas pluviais que o arguido sabia de antemão lá estarem e com as quais podia e devia contar; do facto de ser do conhecimento geral que ao circularem em pisos molhados os pneus dos automóveis têm um menor grau de aderência, impondo uma condução a uma velocidade especialmente moderada de forma a evitar derrapagens e outros fenómenos como o conhecido “aquaplaning”; e por fim, do facto de estar a fazer uma curva à direita, o que exigia redobrado cuidado.
Doutrinou o Acórdão desta Relação de 25/11/2009 (em situação paralela às dos nossos autos) o seguinte:
«Nos casos de prova indirecta o que está em causa é «o tribunal inferir racionalmente a prova dos factos a partir da prova indirecta ou indiciária desde que seja seguido um processo dedutivo baseado na lógica e nas regras de experiência comum (recto critério humano e correcto raciocínio) – cf. Ac. R. Coimbra de 2008, proc. 495/002.
A prova indirecta, sendo um meio de prova absolutamente legítimo, pode ser livremente utilizada e valorada pelo Tribunal, em todas as circunstâncias que entender como útil à sua utilização, assumindo relevância específica em circunstâncias de défice da prova directa, seja por virtude de inexistência, seja pela sua debilidade valorativa. Nesse sentido «a prova indirecta ou indiciária pode ser valorada preferencialmente pelo julgador e, só por si, conduzir à sua convicção, tal qual a prova directa», cf. Ac. RC 26.11.2008 proc. 341/06 in www.dgsi.pt.
Quanto à conclusão essencial de que no momento do acidente o arguido conduzia a uma velocidade não concretamente apurada, mas suficiente para originar a perda de aderência dos pneus do veículo, a consequente a perda da direcção do mesmo e, finalmente, o seu despiste, bem como sabia que devia adequar a velocidade a que o conduzia às condições climatéricas e às condições físicas da via em que circulava, bem como que o piso molhado diminui consideravelmente a aderência dos pneus dos automóveis à estrada, resulta evidente o julgamento correcto e bem fundamentado efectuado pelo Tribunal, de acordo com o conjunto probatório referido».

3.7.4. Quanto ao local exacto do embate, temos duas versões – o arguido defende que o mesmo se deu na sua faixa de rodagem e o J... refere o contrário (que o embate frontal se deu na sua hemi-faixa), ou seja, para cada um deles foi o outro que invadiu a contrária faixa de rodagem.
Ouvida a prova, parece-nos que foi bem decidida a questão pelo tribunal recorrido, não tendo ficado este em qualquer situação de dúvida que pudesse fazer funcionar o princípio constitucional do «in dubio pro reo».
O arguido limita-se a querer impor a sua versão dos factos, como se a mesma fosse a única e aquela que se adequa aos demais elementos de prova trazidos aos autos.
Para o efeito, menciona que a mesma é secundada pelo depoimento da testemunha F..., que seguia no seu automóvel.
Contudo, esta testemunha, ao contrário do que o arguido pretende, não esclareceu o Tribunal sob a forma de como o acidente ocorreu (tendo muitas dúvidas), pois que o que relatou no local, onde o Tribunal se deslocou, não é verosímil e até mesmo, nem sequer fisicamente possível de acontecer – e isso mesmo concluiu o tribunal na sua motivação: «(...) Afirmou esta testemunha que depois o carro rodopiou e bateram uma segunda vez. Todavia, não se afigura possível que um embate na sua hemi-faixa tenha sido capaz de transportar os dois veículos para a faixa contrária, posicionando-se o do arguido quase todo na berma mais distante do sentido que prosseguia, com o outro veículo parado muito próximo do seu. Haveria sim a forte possibilidade de um dos veículos se colocar na berma contrária».
Na verdade, ambos os veículos não poderiam “saltar de forma paralela para o lado”, indo ocupar a hemi-faixa de rodagem onde seguia a vítima.
O que terá acontecido é que o arguido conduziu o automóvel para a hemi-faixa do veículo do J..., local onde estavam os vestígios do embate E ONDE ESTAVAM OS DOIS VEÍCULOS.
O depoimento de J... foi peremptório e absolutamente credível – era o veículo do arguido que vinha fora de mão.
E tal depoimento é convincente e está de acordo com a demais prova - pelo local onde os automóveis ficaram após o embate, os vestígios e demais depoimentos das outras testemunhas no que toca às circunstâncias da via e o traçado (todas elas confirmando o que disse esta testemunha e o croquis dos autos).
 Também para nós foi estranha a atitude do dito João, quando viu o outro veículo à sua frente.
Mas também aqui o tribunal decidiu sabiamente:
«Este viu o veículo do arguido a aproximar-se ocupando a hemi-faixa onde circulava. Teria tido um diálogo com a vítima, que o aconselhou a não sair da sua marcha pois em caso de acidente poderia ser responsabilizado, o que se afigurou estranho. Todavia, esta estranheza, aos olhos do tribunal, conferiu credibilidade ao depoimento, considerada a afirmação da testemunha de que viu o veículo do arguido a cerca de 25 m e que seguia a cerca de 50 Km/h, velocidade que o arguido igualmente lhe atribui à sua condução. Seria uma velocidade que poderia permitir uma reacção do arguido e assim fazer gerar a ideia de que o arguido se iria desviar. E isto apesar da testemunha admitir que não avisou o arguido através de sinais sonoros ou luminosos. Tal atitude pode compreender-se considerando que a testemunha é pessoa de alguma idade, de reflexos e agilidade menos aguçados, sendo evidente, por exemplo, uma reduzida consciência sobre os factos ocorridos depois do embate. A testemunha perdeu os sentidos depois do choque, mostrando muito desconhecimento quanto ao que sucedeu depois».
E nós não temos de estranhar aquilo que foi tão eloquentemente explicado, pois as reacções humanas por vezes não conseguem ter uma singela e lógica explicação.
Também o AA... depôs de forma convincente.
A única questão que foi levantada, devido à medição ter sido efectuada a partir da faixa lateral e não do local onde começa o alcatrão, é que existiria uma diferença de cerca de 0,40/0,50 cm entre a traseira direita do veículo n°1 (do arguido) e a berma do lado direito atento o seu sentido de marcha, ou seja, no croqui, a distância da alínea e) é de
6,40/6.50 metros e não 6 metros.

A dita testemunha explicou no local ao Tribunal aquela diferença de medição e a mesma em nada bule com o respectivo croqui, local dos automóveis e dinâmica do acidente.
O depoimento desta testemunha, constante da 1ª cassete, lado A, foi peremptório em afirmar isso mesmo: “a posição dos veículos é esta”.
A diferença de medição em 40/50 cm nada altera quanto ao local do embate, pois a medição em causa nem se refere ao local de embate, pois que se o fosse, ainda colocaria tal ponto mais para dentro da hemi-faixa de rodagem do automóvel onde seguia a vítima.
E também este depoimento foi entendido pelo tribunal com sendo credível.
No que concerne ao P..., cuja profissão é perito averiguador, ele teve de facto conhecimento dos factos, não obstante não ter presenciado o acidente.
Foi ele que na sua qualidade de perito organizou o processo e que após estudo concluiu que a responsabilidade do acidente foi do arguido, tendo-se o mesmo deslocado ao local onde o acidente aconteceu, cerca de 20 dias após o embate, e aí verificou os vestígios que ainda existiam, tirou fotografias (juntas aos autos) e contactou com testemunhas.
Também ele prestou depoimento no local (e confirmou que existiam vestígios em ambos os lados da estrada, mas em menor quantidade do lado em que o arguido seguia), o que também é referido na motivação da sentença.
Como tal, tudo parece conferir com a versão dada como provada, em consonância com o croqui dos autos, não sendo verosímil que os dois veículos tenham embatido na hemi-faixa do arguido e depois “saltado” para o outro lado da estrada onde ficaram imobilizados.
Veja-se o depoimento do bombeiro D… (CD da sessão de 24-07-2009), o qual confirmou o teor do croqui da GNR:
«Advogado de defesa - “ O Sr. quando se deparou com os carros em que circunstâncias eles se encontravam?”
Testemunha - “ Olhe eu não posso estar aqui agora a dizer era mesmo assim, estava um encostado à ribanceira, à ribanceira não, ao lado, sentido Fundão ao lado direito, o Laguna virado para o lado de Silvares, mais ou menos quase fora da faixa de rodagem, virado para Silvares e o AX estava ao meio.
(…)
Eu disse que havia vestígios do próprio acidente
MP - O que é que o Sr. entende por vestígios?
Testemunha -: “ Plásticos das viaturas.
MP – Onde?
Testemunha -: Junto às viaturas».
Também a testemunha AC… (também bombeiro) referiu que viu destroços, vidros e plásticos no local «onde os carros se encontravam», e só nesse local (sessão de 24/7).
Em conclusão, e perante todo este circunstancialismo probatório, resulta de forma inequívoca que o acidente se deu na hemi-faixa de rodagem do AX onde seguia a vítima, precisamente porque só no local onde foram encontrados os veículos (nessa mesma hemi-faixa) existiam vestígios dos mesmos, sendo mais do que provável a existência de tais vestígios na hemi-faixa do arguido, caso fosse verdadeira a versão deste.
Por último, atente-se no depoimento de L…, filho da vítima, ouvido na sessão de 6/7, o qual referiu expressivamente que «o seu pai lhe contou que o veículo do arguido vindo em contra-mão, e que aquele deveria vir a dormir ou distraído», tendo esse depoimento sido validado pelo tribunal, à luz do disposto no art. 129°, n°1 do Código de Processo Penal.
Como tal, foi causa do acidente a atitude imprudente do arguido, violando os preceitos dos artigos 24º e 25º/1f) e h) do CE, além de ter violado flagrantemente o disposto no artigo 13º da mesma compilação, não podendo ter invadido a faixa de rodagem contrária à sua.

3.7.5. Uma palavra sobre o princípio «in dubio pro reo».
No fundo, o que o recorrente pretende, nos termos em que formula a sua impugnação, é ver a convicção formada pelo tribunal substituída pela convicção que ele próprio entende que deveria ter sido a retirada da prova produzida.
O recorrente limita-se a divulgar a sua interpretação e valoração pessoal das declarações e depoimentos prestados e da credibilidade que devem merecer uns e outros, exercício que no entanto é irrelevante para a sindicância da forma como o tribunal recorrido valorou a prova.
Não se evidencia qualquer violação das regras da experiência comum, sendo certo que fora dos casos de renovação da prova em 2ª instância, nos termos previstos no art. 430º do CPP - o que, manifestamente, não é o caso - o recurso relativo à matéria de facto visa apenas apreciar e, porventura, suprir, eventuais vícios da sua apreciação em primeira instância, não se procurando encontrar uma nova convicção, mas apenas e tão-só verificar se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável na prova documentada nos autos e submetida à apreciação do tribunal de recurso.
Decidiu-se, no douto Acórdão da Relação de Coimbra de 9/9/2009 (Pº 564/07.8PAVCD.P1) o seguinte:
«Acresce que vigorando no âmbito do processo penal o princípio da livre apreciação da prova, com expressa previsão no art. 127º, a impor, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, a mera valoração da prova feita pelo recorrente em sentido diverso do que lhe foi atribuído pelo julgador não constitui, só por si, fundamento para se concluir pela sua errada apreciação, tanto mais que sendo a apreciação da prova em primeira instância enriquecida pela oralidade e pela imediação, o tribunal de 1ª instância está obviamente mais bem apetrechado para aquilatar da credibilidade das declarações e depoimentos produzidos em audiência, pois que teve perante si os intervenientes processuais que os produziram, podendo valorar não apenas o conteúdo das declarações e depoimentos, mas também e sobretudo o modo como estes foram prestados, já que no processo de formação da convicção do juiz “desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um determinado meio de prova) e mesmo puramente emocionais”, razão pela qual quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum».
 Na realidade, ao tribunal de recurso cabe apenas verificar se os juízos de racionalidade, de experiência e de lógica confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar.
«Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significará que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração” (Paulo Saragoça da Matta, “A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença”, texto incluído na colectânea “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, pág. 253).
Portanto, a prova produzida foi coerentemente valorada.
Se há duas versões dos factos (mesmo que uma delas tenha dois veículos), não é uma maioria matemática que faz escolher a versão verdadeira.
O facto de haver duas afirmações opostas, não conduz necessariamente a uma “dúvida inequívoca”, por força do princípio in dubio pro reo.
Não está em causa a igual valoração de declarações ou depoimentos, mas a valoração de cada um dos meios de prova em função da especial credibilidade que mereçam. As declarações e depoimentos produzidos em audiência são livremente valoráveis pelo tribunal, não tendo outra limitação, em sede de prova, que não seja a credibilidade que mereçam.
Voltamos ao Acórdão de 9/9/2009:
«Uma vez verificado que o tribunal recorrido formulou a sua convicção relativamente à matéria de facto com respeito pelos princípios que disciplinam a prova e sem que tenham subsistido dúvidas quanto à autoria dos factos submetidos à sua apreciação, não tem cabimento a invocação do princípio in dubio pro reo, que como reflexo que é do princípio da presunção da inocência do arguido, pressupõe a existência de um non liquet que deva ser resolvido a favor deste. O princípio em questão afirma-se como princípio relativo à prova, implicando que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à «dúvida razoável» do tribunal [6]. Contudo no caso dos autos, o tribunal a quo não invocou, na fundamentação da sentença, qualquer dúvida insanável. Bem pelo contrário, a motivação da matéria de facto denuncia uma tomada de posição clara e inequívoca relativamente aos factos constantes da acusação, indicando clara e coerentemente as razões que fundaram a convicção do tribunal.».
Sabemos que o julgador deve manter-se atento à comunicação verbal mas também à comunicação não verbal.
Se a primeira ainda é susceptível de ser escrutinada pelo tribunal de recurso mediante a audição do gravado (e foi o que se fez nesta sede de recurso), fica impossibilitado de aceder à segunda para complementar e interpretar aquela.
Deste modo, quando a opção do julgador se centra em prova oral, o tribunal de recurso só estará em condições de a sindicar se esta for contrária às regras da experiência, da lógica, dos conhecimentos científicos, ou não tiver qualquer suporte directo ou indirecto nas declarações ou depoimentos prestados.
E repetimos: o juiz pode formar a sua convicção com base em apenas um testemunho (ou numa só declaração), desde que se convença que nele reside a verdade do ocorrido.
Não basta que o recorrente diga que determinados factos estão mal julgados.
É necessário constatar-se esse mal julgado face às provas que especifica e a que o julgador injustificadamente retirou credibilidade.
Atente-se que o art.º 412/3 alínea b) do CPP fala em provas que imponham decisão diversa.
Por isso entendemos que a decisão recorrida só é de alterar quando for evidente que as provas não conduzam àquela, não devendo ser alterada quando perante duas versões, o juiz optou por uma, fundamentando-a devida e racionalmente.
Ao reapreciar-se a prova por declarações, o tribunal de recurso deve, salvo casos de excepção, adoptar o juízo valorativo formulado pelo tribunal recorrido desde que o seu juízo seja compatível com os critérios de apreciação devidos.
Quer isto significar que, ouvida a gravação dos depoimentos prestados, não vemos que deva ser alterada a decisão de facto com base no cotejo dos depoimentos que o recorrente refere, pois o tribunal recorrido não retirou credibilidade aos depoimentos das testemunhas contestadas pelo arguido, juízo que aqui reiteramos.
Decorre do princípio «in dubio pro reo» que todos os factos relevantes para a decisão desfavoráveis ao arguido que face à prova não possam ser subtraídos à dúvida razoável do julgador não podem dar-se como provados.
Tal princípio tem aplicação no domínio probatório, consequentemente no domínio da decisão de facto, e significa que, em caso de falta de prova sobre um facto, a dúvida se resolve a favor do arguido. Ou seja, «será dado como não provado se desfavorável ao arguido, mas por provado se justificar o facto ou for excludente da culpa».
O princípio só é desrespeitado quando o tribunal colocado em situação de dúvida irremovível na apreciação dos factos decidir por uma apreciação desfavorável à posição do arguido.
Não ficou o Tribunal do Fundão em estado de dúvida.
E este tribunal de recurso também não
Por tal razão, não faz sentido fazer valer e funcionar o princípio constitucional in dubio pro reo.

3.7.6. Em conclusão, também a nós nos parece que não existe qualquer dúvida quanto à dinâmica do acidente e à imputação da culpa pelo mesmo à atitude rodoviária do arguido.
Assim sendo, e relativamente à dinâmica do acidente, não se pode concluir que o mesmo tenha ocorrido da forma como sustenta o arguido, porque foram bem interpretados os vários depoimentos ouvidos e os demais vestígios probatórios, falecendo os seus argumentos.
Em consequência, mantém-se os factos provados n.ºs 4, 5 e 14, estando assim justificada a culpabilidade do arguido na eclosão do acidente.

3.8. A QUESTÃO DO NEXO CAUSAL DANOS/MORTE DA VÍTIMA

3.8.1. Nos termos do artigo 137º, nº 1, do C. Penal, «quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa».
O artigo 15º do C. Penal, por seu turno, estabelece que «age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:
a)- Representa como possível a realização de um facto correspondente a um tipo de crime, mas actua sem se conformar com essa realização;
b)- Não chega sequer a representar a possibilidade da realização do facto».
Neste normativo, trata-se na alínea a) da culpa consciente, quando o agente prevê a possibilidade de realização do facto ilícito e tem dela consciência; ou seja, «representa». E na alínea b) da culpa inconsciente, quando o agente não previu, não teve consciência «não representa» a possibilidade de realização do facto ilícito.
Exige-se, no corpo do artigo, a violação de um dever de cuidado ou diligência, de acordo com as circunstâncias do caso.
A morte terá que ser objectivamente imputada à conduta ou omissão do agente, o que supõe, nos casos de comportamentos negligentes, a violação de um dever objectivo de cuidado.
Neste particular, coloca-se a questão da existência de um tal dever, da sua medida e da relação causal que tem de existir entre a violação e o resultado produzido.
No homicídio por negligência, «para que o resultado em que materializa o ilícito típico possa fundamentar a responsabilidade não basta a sua existência fáctica, sendo indispensável que possa imputar-se objectivamente à conduta e subjectivamente ao agente; ou seja, a responsabilidade só se verifica quando existe nexo de causalidade entre a conduta e o evento ocorrido». Acórdão do STJ, de 5.11.1997, C. J., ano V, tomo III, pág. 227.

Apesar de o legislador nada dizer acerca da medida do cuidado exigível do agente, «pode afirmar-se que esta coincide com o necessário para evitar a ocorrência do resultado típico. A afirmação de um tal dever de cuidado far-se-á caso a caso, em função das particulares circunstâncias da actuação do agente, constituindo auxiliares importantes nessa determinação as normas jurídicas que impõem aos seus destinatários específicos deveres e regras de conduta no âmbito de actividades perigosas (por exemplo, as normas de circulação rodoviária)».
No âmbito da circulação rodoviária, onde este tipo legal encontra vasto campo de aplicação, «não só se deverá partir como ponto de referência do condutor medianamente cauteloso, tendo em conta inclusivamente o tipo de transporte em causa, como terão que se ter presente os particulares conhecimentos do agente, se o agente sabe que se encontra na proximidade de um cruzamento particularmente perigoso, isso será certamente de ponderar ao avaliar o carácter reconhecível do perigo e a medida da cautela exigível).
Em todos os casos em que o perigo decorra da actuação de outras pessoas fala-se num princípio de confiança (quem se comporta no tráfico de acordo com as normas deve poder confiar que o mesmo sucederá com os outros; salvo se tiver razão concretamente fundada para pensar de outro modo» (Comentário Conimbricense, tomo I, pág. 109, 261 e 264).
Revertendo ao caso concreto, dado o que atrás se referiu, concorda-se que o arguido A... deu causa a este acidente, agiu imprudentemente e violou regras estradais (artigo 24º e 25º/1 f) e h) do Código da Estrada).
Não ignoramos que a ratio da punição da negligência reside no facto do “agente não ter querido, em face do conhecimento de que certos resultados são puníveis, preparar-se para – sempre que uma conduta que projecta seja adequada para os produzir – representar esses resultados (negligência inconsciente), ou para os representar justamente (negligência consciente)” (Eduardo Correia, Direito Criminal, I, pág. 433).
Está pois, verificada, relativamente ao recorrente, o tipo de culpa negligente, na modalidade de negligência inconsciente.

3.8.2. Mas foi bem condenado? Não terá havido uma interrupção do nexo causal?
Analisemos, então, mais demoradamente, os factos 11 e 12.
FACTO 11 - A morte ficou-se a dever a tromboembolia pulmonar que foi provocada pelo traumatismo abdominal fechado com ruptura de vasos do intestino, traumatismo este causado pelo acidente de viação atrás descrito;
FACTO 12 – O falecido padecia durante o internamento de arritmia cardíaca, bronquite e elevado colesterol.

3.8.3. Quanto ao facto 11
3.8.3.1. Para o recorrente, ninguém consegue afirmar com certeza que a trombo-embolia pulmonar tenha causa directa com a intervenção cirúrgica e que seja uma consequência normal da mesma.
Sabemos que a vítima sofreu lesões por causa do acidente dos autos e que foi causado pela atitude imprudente do arguido.
Foi operado por tal motivo.
Isso mesmo resulta dos factos 6 a 10, não contestados pelo recorrente.
· FACTO 6 - Mercê deste violento embate, o B... ficou preso no interior do automóvel tendo sido necessário proceder ao seu desencarceramento.
· FACTO 7 - Após ser desencarcerado o B... foi transportado para o Hospital da Covilhã, onde apresentava várias escoriações por todo o corpo, com predominância na face, cabeça, pulso direito partido e foi submetido a intervenção cirúrgica aos intestinos que ficaram perfurados.
· FACTO 8 - Esteve internado desde a data do acidente neste hospital até 19 de Janeiro de 2008, tendo nesse período, por várias vezes, necessitado de receber oxigénio.
· FACTO 9 - Logo naquele dia 19 de Janeiro, já em casa, o B... queixava-se da falta de ar.
· FACTO 10 - No dia seguinte, logo pela manhã, o B... continuava a queixar-se da falta de ar, tendo vindo a falecer cerca das 10h42min desse mesmo dia.
O acidente ocorreu em 3 de Janeiro de 2008, tendo o B...sido hospitalizado e operado nesse mesmo dia.
Veio a sair do hospital no dia 19 de Janeiro, apesar de ainda referir falta de ar.
Veio a falecer no dia 20 de Janeiro, em casa.
Ouvida a prova gravada, só podemos concordar com a visada posição do MP de 1ª instância.
O arguido apega-se aos depoimentos gravados dos médicos T... (ouvido em 30/7), Carlos Abreu (ouvido em 7/7), Pedro Serralheiro (ouvido em 7/7) e Carlos Gama (ouvido em 24/7).
Refere-se no relatório da autópsia de fls 16 a 22 que a morte de B... se ficou a dever a uma tromboembolia pulmonar, podendo ter sido uma consequência indirecta do acidente narrado nos autos.
Na discussão que antecede as conclusões o médico que fez a autópsia adianta que:
«Conjugando os achados necropsicos e a informação podemos admitir que a trombo embolia pulmonar poderá ter sido uma consequência indirecta do acidente, devido ao traumatismo abdominal fechado com ruptura de vasos e do intestino. Tal situação é susceptível de poder vir a desencadear fenómenos trombo embólicos».
O tribunal de 1ª instância evolui para a seguinte factualidade dada como provada neste particular:
«A morte ficou-se a dever a tromboembolia pulmonar que foi provocada pelo traumatismo abdominal fechado com ruptura de vasos do intestino, traumatismo este causado pelo acidente de viação atrás descrito».
E fez muito bem em assim decidir.
Vejamos porquê.

3.8.3.2. Ouvindo os depoimentos de T..., CA…, PS… e CG… os quatro médicos mencionados no recurso (as pessoas melhor colocada para nos elucidar sobre estas questões do foro médico), constatamos o seguinte:
1º- Dr. CA… (CD de 7/7/2009) – realizou a autópsia
Para ele, a morte ficou a dever-se a uma tromboembolia pulmonar, aumentando substancialmente o risco de tal ocorrência o facto de a vítima ter sido operada com perfuração intestinal e ter estado acamada.
Foi claro – estar acamado por si só é um risco.
Tal médico dá o seguinte exemplo aos 19:30
«Está a ver, de hoje em dia os nossos idosos... fracturam o colo do fémur. Mas ninguém morre de partir um osso. A pessoa morre é por causa da embolia que faz por estar acamado, por estar imobilizado, por ter lido a fractura».
E isto, mesmo aplicando-se os competentes anti-coagulantes.
2º- T... (CD de 30/7) – anestesista da operação da vítima
Disse, de facto, que certas intervenções cirúrgicas também podem criar perigo de tromboembolia; para ele, não seria o caso da operação que foi levada a cabo pois «tratou-se de uma intersecção intestinal que não foi delicada», considerando que não pode haver relação directa entre esta cirurgia e tromboembolia.
Contudo, esteve sempre sozinho nesta posição médica, como veremos.
3º- PS… (CD de 7/7)
 Para ele, este doente tinha risco de uma tromboembolia pulmonar.
«Qualquer doente que sofre um trauma, no caso, segundo me informei, um trauma, um acidente de viação, qualquer doente destes tem um risco acrescido», «aumentando muito o risco».
4º- CG… (CD de 24/7)
Para ele, existem mais dois factores de risco - o traumatismo por via do acidente, a própria intervenção cirúrgica e o facto de o doente estar acamado durante tanto tempo.
Mas não ficamos por aqui.
Ouvimos também os depoimentos de R… e de MR…, igualmente médicas.
Para a 1ª, é factor de risco também a intervenção cirúrgica, potenciando o acidente, a operação e o facto de estar acamado os factores de risco de uma tromboembolia.
Para 2ª, a mesma posição foi tomada (6:44).
            Vê-se então que todos são unânimes em entender que o risco de uma tromboembolia neste doente foi altamente potenciado pela ocorrência de um trauma, pela eclosão de uma operação cirúrgica (aqui com a excepção de T...) e pelo facto de ter estado tanto tempo acamado.
 
            3.8.3.3. O arguido defende que, no caso, ocorreu uma interrupção do nexo causal, entendendo que a lesão letal adveio, não do embate em si, mas das patologias de que a vítima padecia.
Como se sabe, nos crimes de resultado, entre a acção e o resultado deve mediar uma relação de causalidade, ou seja, uma relação que permita, no âmbito objectivo, a imputação do resultado produzido ao autor da conduta que o causou.
O que se coloca aqui não é propriamente um problema de culpa, mas, antes, um problema de causalidade, uma vez que o relevante não é saber se o lesado é responsável pelos danos provenientes dos factos que haja praticado, mas sim se esses factos são consequência do facto por si praticado, se o evento danoso é atribuível à sua actuação.
Para se imputar o resultado a uma determinada acção é necessário estabelecer uma relação de causalidade entre a acção e esse resultado - a relação de causalidade entre a acção e o resultado e a imputação objectiva do resultado ao autor da acção que o causou são o pressuposto mínimo para afirmar a responsabilidade, nos crimes de resultado, pelo resultado produzido.
Objectivamente imputáveis são unicamente as consequências do facto que dependem de um processo causal tipicamente adequado, como resulta do artigo 10.° do CP, que consagra, entre nós, a teoria da adequação ou da causalidade adequada.
Tal teoria recorre a um critério limitador da causalidade adequada - a previsibilidade objectiva do resultado.
Já esta requer a idoneidade abstracta da acção para produzir o resultado e a adequação do próprio processo causal [v.g., entre outros, Manuel Cavaleiro de Ferreira. Lições de Direito Penal. Parte Geral. Editorial Verbo. 1992. p. 148 e ss].
Deste modo, para que um facto seja causa de um dano é necessário, antes de mais, que, no plano naturalístico, ele seja condição sem o qual o dano não se teria verificado e depois que, em abstracto ou em geral, seja causa adequada do mesmo (nexo de adequação).
Para o efeito, releva a causalidade adequada na sua formulação negativa: a condição deixará de ser causa do dano sempre que, segundo a sua natureza geral, era de todo indiferente para a produção do dano e só se tornou condição dele em virtude de outras circunstâncias extraordinárias, sendo, portanto, inadequado para esse dano (cf., por ex., ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, I, 2ª ed., pág.743 e segs., PEDRO CARVALHO, A Omissão e Dever de Agir em Direito Civil, pág.61, Ac STJ de 15/4/93, C.J. ano I, tomo 2, pág.59, de 15/1/2002, C.J. ano X, tomo I, pág.36).
Tem-se entendido que só quando o resultado se produz de um modo completamente anómalo e imprevisível é que se pode sustentar a interrupção do nexo causal.
«A causa a que se segue outra causa que é daquela necessário efeito, é, ainda, causa adequada. Os casos de interrupção da causalidade são aqueles em que à causa adequada posta pelo agente se sobrepõe outra causa, igualmente adequada para produzir o resultado, mas que não provém do mesmo agente, quer directamente, quer como consequência da causa inicial. São exemplos de escola, por exemplo: o incêndio no hospital (morrendo a vítima em consequência desse incêndio e não das lesões sofridas), o acidente no transporte para o hospital (que provoca outras lesões à vítima, sendo estas a causa da morte).”(cfr. Acórdão do TRP de 04 de Outubro de 2006. www.dgsi).
Roxin isso mesmo doutrina (in Derecho Penal. Parte General. Tomo 1. Editorial Civitas. 1997. p. 362 e ss) – para ele, um resultado só se pode imputar ao tipo objectivo se a conduta do agente criou um perigo para o bem jurídico (não coberto pelo risco permitido) e esse perigo também se realizou no resultado concreto. A imputação ao tipo objectivo pressupõe que, no resultado, se realize precisamente o perigo criado pelo autor. Só é excluída a imputação quando o autor tenha criado um perigo para um bem jurídico protegido mas o resultado se produz, não como efeito desse perigo, mas apenas em conexão causal com ele.
Ora, no caso em apreço, o arguido criou um perigo não permitido da morte da vítima e a morte produz-se como efeito desse perigo.
Contudo, a conduta do agente, ainda que violadora de normas de cuidado, pode não ser causal relativamente ao resultado, se se interpuser uma outra conduta ou um outro facto, esses sim causadores directos daquele.
Ora, numa certa perspectiva, todos os factores de que depende o acontecer de um efeito ou resultado - a morte de uma pessoa - são considerados, em conjunto, como a sua causa.
De acordo com a teoria da causalidade adequada não basta a existência de um nexo causal, é necessário que o resultado fosse objectivamente previsível.
Só é causa a condição que, em abstracto e de acordo com a experiência geral, é idónea para produzir o resultado típico. Assim, de acordo com esta teoria, a conduta do arguido seria, conforme se expôs, causa adequada, caso ele pudesse e devesse ter previsto como possíveis as consequências da sua conduta, possibilidade esta assente num juízo de prognose póstuma ou juízo ex ante.
Mas o critério mais correcto a adoptar será ainda outro - o da imputação objectiva, ou seja, o da realização de um perigo juridicamente relevante. De acordo com esta teoria, a conduta do agente deverá conter um risco implícito, um perigo para o bem jurídico que deverá posteriormente realizar-se no resultado a imputar.
No nosso caso, era, por conseguinte, previsível e o arguido podia e devia prevê-lo, que, caso com o seu veículo ocupasse a faixa de rodagem destinada à circulação de automóveis em sentido contrário, podia embater nestes.
Determinada acção ou omissão será causa de certo evento se, tomadas em conta todas as circunstâncias conhecidas do agente e as mais que um homem normal poderia conhecer, essa acção ou omissão se mostrava à face da experiência comum como adequada à produção do referido evento, havendo fortes probabilidades de o originar.
A existência de nexo causal entre a acção ou omissão do agente e o resultado produzido, se é condição necessária da imputação objectiva, não o é suficientemente; é ainda necessário que o evento seja objectivamente previsível como consequência da violação do dever objectivo de cuidado, ou seja, da diligência objectiva, diligência que toma, em relação a cada espécie de crime, o sentido do cuidado exigido para evitar o mal desse crime.
O relatório lança pistas fortes:
A morte foi devida a trombo embolia pulmonar, essas lesões são causa adequada da morte e poderão ter sido uma consequência indirecta do acidente.
O perito médico (Dr. CA…) que realizou a autópsia explicou que ao escrever a 3ª conclusão quis dizer que a causa última ou mais próxima da morte foi a tromboembolia pulmonar.
Mais referiu que a cirurgia a que o arguido teve que ser submetido devido às lesões provocadas pelo acidente ao nível do abdómen e intestino, potenciou precisamente o risco da verificação da tromboembolia pulmonar que, por sua vez lhe causou directamente a morte.
O mesmo referiram todos os médicos ouvidos (com a excepção de T... que entendeu, não muito convicta e convincentemente, que aquela específica operação cirúrgica não potenciava o risco da tromboembolia).
A decisão instrutória é eloquente e rica neste particular:
«Com efeito, a embolia pulmonar ocorre quando um coágulo (trombo), que está fixo numa veia do corpo, se desprende e vai pela circulação até o pulmão, onde fica obstruindo a passagem de sangue por uma artéria. A área do pulmão suprida por esta artéria poderá sofrer alterações com repercussões no organismo da pessoa, podendo causar sintomas. Às vezes, mais de um trombo pode se deslocar, acometendo mais de uma artéria.
Existem algumas situações que facilitam o aparecimento de tromboses venosas, que causam as embolias pulmonares. A trombose é o surgimento de um trombo (coágulo de sangue) nas veias. Normalmente ocorre nas pernas, coxas ou quadris. Quando este trombo se desprende, vai para a circulação e acaba trancando numa artéria do pulmão, podendo ou não causar problemas. Se for pequeno, poderá até não causar sintomas, mas se for de razoável tamanho, poderá causar dano pulmonar ou, até mesmo, a morte imediata. Dentre algumas situações que colaboram para o aparecimento desta doença, estão, as imobilizações prolongadas dos doentes e as cirurgias.
As intervenções cirúrgicas, bem como diversos procedimentos com elas relacionados, são factores importantes de desenvolvimento de fenómenos tromboembólicos pulmonares. A tromboembolia venosa é a complicação embólica mais frequente no pós-operatório sendo, de todas as patologias para as quais existem medidas profiláticas, a principal causa de morte nos pacientes cirúrgicos.
Nos Estados Unidos da América a sua prevalência é de 600.000 casos por ano, sendo responsável por 5 a 10% de todas as mortes hospitalares.
Uma em cada sete doentes internados nos serviços de cirurgia corre risco de ter uma embolia pulmonar, um problema responsável por 10% dos óbitos nos hospitais, refere um estudo mundial, coordenado por Ana França em Portugal.
A embolia pulmonar é ‘uma das consequências mais graves do tromboembolismo venoso (TEV)’, que consiste na formação de coágulos nas veias.
A coordenadora nacional do estudo, refere que “58,S% dos doentes nos hospitais portugueses correm risco de ter um tromboembolismo, uma percentagem que sobe a 69% se apenas se tiver em conta os doentes cirúrgicos”, que têm mais riscos do que os das enfermarias, por exemplo.
Ora, o falecido só precisou de ser operado na sequência das lesões que lhe foram provocadas pelo acidente causado pelo arguido.
É certo que o arguido tinha hipertensão e colesterol alto, sofria de patologias cardio respiratórias que outrossim são factores de risco da ocorrência da tromboembolia pulmonar que lhe causou a morte, mas factores de risco secundários, e menores, e não primários e maiores, como ocorre com as cirurgias e a imobilização prolongada».
Pensamos que um doente, devidamente medicado e assim, controlado, não está tão sujeito ao risco da tromboembolia pulmonar, como o estará na sequência de intervenções cirúrgicas e de uma inelutável imobilidade.
Assim, não poderemos concluir que a morte da vítima tenha ocorrido de forma anómala ou imprevisível ou que se tenha quebrado o nexo de causalidade.
Com efeito, a conduta do arguido causadora do acidente — invasão da faixa de rodagem contrária ao seu sentido de marcha — provocou na vítima lesões abdominais e no intestino que exigiram uma intervenção cirurgia. Esta, ainda associada á imobilização que lhe é inerente, provocou a trombo embolia pulmonar que causou a morte do arguido.
E como se deixa escrito nos autos, «essa mesma será a conclusão mesmo considerando que o arguido teve alta hospital e veio a falecer um dia depois», assente que o risco de trombo embolia pulmonar pode durar alguns meses após a cirurgia, e que não se pode prever.
O Acórdão da Relação do Porto de 4/6/2006, já aqui citado prevê um caso semelhante ao nosso.
Aí se escreveu:
«No caso em apreço, a causa da morte (embolia gorda) é, ainda, efeito da fractura da cabeça do fémur, provocada pelo embate. Por isso, não ocorreu uma interrupção do processo causal. A causa a que se segue outra causa que é daquela necessário efeito, é, ainda, causa adequada. Os casos de interrupção da causalidade são aqueles em que à causa adequada posta pelo agente se sobrepõe outra causa, igualmente adequada para produzir o resultado, mas que não provém do mesmo agente, quer directamente, quer como consequência da causa inicial».
Do que antes fica exposto, não temos dúvidas em afirmar que se estabeleceu o nexo causal entre o acidente e a morte de B....
A vítima já possuía factores de risco próprios, quer pela idade, quer pela patologia que apresentava.
Mas com toda a probabilidade (aquela que nos é bastante para este efeito) existiram 3 factores de risco acrescido:
- o acidente (o trauma de ter ficado encarcerado num carro, tendo havido uma perfuração dos intestinos);
- a operação cirúrgica a que foi submetido;
- a circunstância de ter estado acamado no hospital (mesmo a serem administrados anti-coagulantes).
Mesmo com o tratamento adequado, a morte pode advir (veja-se o depoimento de CG… que diz que «infelizmente, essas situações, mesmo com a profilaxia feita, não estão completamente acauteladas»).
Sabemos que o decesso se deu um dia após a alta hospitalar (e cremos ser muito injusta a acusação feita pelo arguido aos familiares a fls 619, dando a entender que ele morreu porque não foi logo assistido no sítio certo, num hospital – note-se que quando sai do hospital, ainda tinha falta de ar, o que aconteceu de novo no dia seguinte, falecendo na manhã desse dia).
Toda a prova produzida vai, portanto, no sentido de afirmar que o acidente dos autos potenciou em grande o risco de uma tromboembolia pulmonar.
E não vale também aqui nesta sede invocar o princípio do IN DUBIO PRO REO – o tribunal não teve dúvidas em considerar que o risco de uma tromboembolia pulmonar é muito provável na sequência dos acontecimentos que viveu a triste vítima.
Não precisamos de certezas aqui (e todos sabemos que certezas é algo que os médicos, ouvidos em tribunal, nunca dão, preferindo sempre colocar o seu discurso no «é provável», «é previsível», talvez porque a vida humana não é uma operação matemática e tem imensas condicionantes que norteiam a sua terrena passagem)…
E muito bem sentenciou o tribunal «a quo»:
«Ora, como explicou o Dr. CG…, médico que se debruçou já sobre este tema, desde o século XIX que se conhece a ligação estreita entre traumatismo, intervenções cirúrgicas e imobilização e a ocorrência de fenómenos tromboembólicos, pelo que nada há a cindir no percurso causal entre o embate, as lesões, tratamentos e o episódio morte, que segundo este mesmo testemunho pode acontecer dias ou meses depois».
Como tal, foi muito bem estabelecido o nexo causal entre o acidente, as lesões da vítima, a intervenção cirúrgica a que foi submetida e o seu infeliz decesso um dia após a alta hospitalar.
Não temos qualquer dúvida que B... PODERIA estar vivo se não fosse o acidente dos autos que justificou uma intervenção cirúrgica delicada, a qual originou uma imobilização forçada e um previsível e muito provável risco de uma letal embolia.
Improcedem, assim, os argumentos do recorrente, mantendo-se na íntegra a redacção do FACTO 11.
 
            3.8.4. Quanto ao facto 12
No que concerne à pretensão do arguido de ver mudada a redacção do facto 12 com base somente nos depoimentos dos médicos T... e R…, ela só pode improceder, assente que relevam mais os dados documentais existentes nos autos do que as declarações dessas testemunhas que até não primaram pela certeza e rigor (a segunda testemunha diz mesmo que a vítima provavelmente padecia de patologia cardíaca).
Veja-se ainda que, face ao que ficou decidido atrás relativamente ao nexo causal entre as lesões do acidente e a morte de B..., torna-se inócua a alteração pedida (que não é aliás de grande monta).
.
3.9. Foi, assim, bem considerado o arguido como autor do crime constante da acusação (crime de homicídio negligente p. e p. pelo artigo 137º/1 do CP), pelo qual foi devidamente sancionado, em termos de pena.

3.10. Vejamos a final uma questão que é suscitada pelo Exmº PGA, nesta Relação, ao entender que a decisão recorrida deverá ser revogada na parte atinente à condenação «na sanção acessória de inibição de condução de veículo com motor pelo período de 9 meses, nos termos do n.º 1, alínea b) do artigo 69º do Código Penal.
Esta questão não foi directamente sindicada pelo recorrente.
Podermos nós conhecê-la?
Aqui o tribunal labora num erro jurídico – chama-lhe sanção acessória e inibição de condução (embora a fls 583, fale também em “proibição de conduzir”).
E aqui foi pouco rigoroso, confundindo conceitos.
Uma coisa é a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor prevista no artigo 69º do CP.
Outra bem diversa é a sanção acessória de inibição de conduzir (artigo 147º do CE), sendo destinada a sancionar, acessoriamente, a prática de contra-ordenações graves e muito graves, sendo mais uma medida de segurança administrativa.
No Dispositivo, o tribunal a quo já fala em «sanção acessória de inibição de condução», «nos termos do n.º 1, alínea b) do artigo 69º do Código Penal», sendo que temos de integrar esta redacção com o que consta de fls 583, parte final.
Como tal, o que o tribunal quis aplicar foi uma pena acessória do artigo 69º do CP.
E não o podia ter feito, de facto, em plena concordância com o explanado pelo Exmº PGA.
Tem sido unanimemente considerado que após a entrada em vigor da Lei n.º 77/2001, de 13 de Julho, e como decorre da redacção dada à alínea a), do n.º 1, do art. 69°, do Código Penal, deixou de ser aplicável a pena acessória de proibição de conduzir por crime cometido no exercício da condução de veículo com motor com grave violação das regras de trânsito rodoviário.
Por isso, no caso de crime cometido no exercício da condução de veículo automóvel, designadamente de homicídio por negligência, aquela sanção acessória só poderá ser aplicada caso o agente haja cometido, concomitantemente, o crime previsto no artigo 291º, do Código Penal (condução perigosa de veículo rodoviário) ou o crime previsto no artigo 292° (condução em estado de embriaguez) – v.g. Acórdão da Relação de Coimbra de 23/1/2002, CJ,I-43 -, o que não é o nosso caso.
No artigo 69º quer-se apenas abranger os crimes dolosos, excluindo-se a utilização negligente do veículo durante a mera condução, ainda que imprudente.
Também assim decidiu o Acórdão da Relação de Évora de 24/6/2003 (CJ-III-267), dando o seu acordo a esta posição jurisprudencial o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque, no seu Comentário do Código Penal, página 225.
E parece-nos ser essa, de facto, a doutrina mais correcta.
O arguido não foi acusado pela prática de uma autónoma contra-ordenação grave, tendo-se apenas lançado mão das normas dos artigos 24º e 25º do CE para efeitos de indicação das infracções estradais causais da negligência evidenciada pelo comportamento do arguido.
Em suma, não podia ter sido aplicada ao arguido a pena acessória do artigo 69º.
Poderemos agora nós revogar tal parte da sentença, não invocada expressamente pelo arguido no seu recurso?
Se estivéssemos no âmbito do Código de 1929, em que o recurso importava a reabertura da discussão sobre tudo o que houvesse para decidir, não teríamos dúvidas.
No âmbito do Código actual, há que atentar nos art.s 402.º, 403.º e 412.º, que aproximam o processo penal do processo civil neste âmbito, fazendo com que o tribunal de recurso tenha que se mover dentro do âmbito do objecto do recurso, tal como ele é traçado pelo recorrente na motivação.
Isto, claro, sem prejuízo do que fôr de conhecimento oficioso, o que não é o caso.
Assim, e tendo em atenção que não será, também, o caso do n.º 3 do art. 403.º (já que nada procedeu do que o recorrente pediu ao tribunal de recurso), a 1ª resposta seria que a questão da «inibição» está claramente fora do poder cognitivo do Tribunal da Relação.
E isto porque a delimitação objectiva do âmbito do recurso é dada pelas respectivas conclusões.
Contudo, e após segunda reflexão, entendemos que não estamos impedidos de fazer esta abordagem.
No nosso caso, o recorrente suscita a impugnação ampla da matéria de facto, PEDINDO a sua absolvição total.
Como tal, poderemos interpretar no sentido de também pedir a «absolvição» da dita pena acessória, não obstante não ter abordado concretamente essa questão - é importante que o arguido tenha pedido a absolvição, razão pela qual entendemos que, ainda que não expressamente abordada, está dentro do objecto do recurso a questão da pena/sanção acessória.
No fundo, não obstante o arguido recorrente pedir a absolvição apenas com base na não verificação da factualidade dada como provada, este tribunal de recurso pode e deve apreciar, em nome da "reformatio in melius", as questões que não se considerem correctas e que funcionem a favor do arguido.
Não nos esqueçamos que é o MP de 2ª instância a suscitar a questão.
Perguntamos: não estará dentro das funções do MP de defensor da legalidade suscitar este tipo de questões, ainda que em benefício do arguido, quando intervém no âmbito de um recurso por este interposto?
Uma vez que ele tem legitimidade para interpor recurso, ainda que no exclusivo interesse do arguido, não poderá fazer algo parecido com a possibilidade de ampliação do objecto do recurso que é conferida ao recorrido no processo civil quando contra-alega (art. 684.º-A do CPC), desta feita para defesa da legalidade?
Para que serve, afinal, a vista do 416.º do CPP quando o MP, que é um corpo único, já tomou posição na resposta ao recurso? Não será também com um intuito que excede a mera resposta ao recurso, destinando-se a vista a fiscalizar genericamente o cumprimento da lei?
A resposta é afirmativa para nós.
Seguimos também de perto a posição exarada no Acórdão do tribunal da Relação de Coimbra de 9/4/2008 (Pº277/06.8GBAGD.C1):
«Apesar do supra exposto, importa não olvidar que o art. 402º do Código de Processo Penal consagra o princípio do conhecimento amplo do recurso e que, por aplicação da regra da reformatio in melius pode o arguido vir a ser absolvido de um crime por que vinha condenado, não obstante não ter havido recurso dessa matéria, já que os poderes de cognição do Tribunal Superior em matéria de indagação e aplicação do direito só são limitados pela proibição da reformatio in pejus.
Efectivamente, o tribunal de recurso não está impedido de oficiosamente conhecer de todos os erros que não impliquem reformatio in pejus, mesmo os não especificados, visto que no processo penal rege o princípio da verdade material e, quando está em jogo a liberdade do cidadão cuja inocência é protegida constitucionalmente até ao trânsito em julgado da condenação, não há que impor entraves formais para evitar o erro judiciário]
Ora, no caso dos autos, por força desta regra, a única questão a decidir prende-se com a verificação dos elementos constitutivos do crime de condução sem habilitação legal, com base nos factos considerados assentes em 1ª instância e que o Recorrente não pôs em crise».
Atento o exposto, iremos conhecer desta questão, ordenando a revogação da sentença de 1ª instância no que tange à aplicação da pena acessória de proibição de conduzir prevista no artigo 69º do CP, pena essa efectivamente aplicada pelo tribunal, embora sob o epíteto de «sanção».

3.11. Não tendo o arguido contestado directamente (e aí teria de o fazer) a medida da pena aplicada, não tem este tribunal que a sindicar, mantendo-se a mesma intocável.

3.12. Conclui-se, deste modo, que, com excepção da questão por nós abordada em 3.9., a sentença recorrida fez correcta interpretação e aplicação do direito, não violando qualquer norma legal, inexistindo, assim, qualquer erro notório de prova, ou qualquer contradição entre a fundamentação e a decisão, as duas deveras coerentes, assinale-se.

            III – DISPOSITIVO
           
Em face do exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação em
1º julgar não provido o recurso intentado pelo arguido A...;
            2º- revogar a sentença de 1ª instância na parte em que condenou o arguido «ao cumprimento da sanção acessória de inibição de condução de veículo com motor pelo período de 9 (nove) meses, nos termos do n.º 1, alínea b) do artigo 69º do Código Penal» e em que ordena a comunicação da sentença à DGV, mantendo-se na íntegra o restante dispositivo da sentença recorrida.
            Custas pelo recorrente, com a taxa de justiça fixada em 8 UCs (artigos 513º, n.º 1 do CPP e 87º, n.º 1, alínea b) do CCJ.

Coimbra, _______________________________
(Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário – artigo 94.º, n.º2, do C.P.P.)


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(Paulo Guerra)

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(Vieira Marinho)







[1] Numa motivação onde, estranhamente, inexiste a referência a uma que seja norma penal, não fazendo nós o convite do artigo 417º/3 do CPP já que estamos essencialmente perante um recurso sobre matéria de facto [cfr. artigos 412º/2 a) e 413º/3 do CPP].
[2] Cf. Acórdão da Relação do Porto de 11/7/2001, processo n.º 01110407, lido em www.dgsi.pt/trp.