Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
712/11.3T2AGD-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANABELA LUNA DE CARVALHO
Descritores: AVALISTA
RELAÇÕES IMEDIATAS
EXCEPÇÕES
CONTRATO CRÉDITO AO CONSUMO
CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS
DEVER DE COMUNICAÇÃO
Data do Acordão: 07/01/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA - ÁGUEDA - JUÍZO DE EXECUÇÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 10,17 LULL, DL Nº 446/85 DE 25/10, DL Nº 359/91 DE 21/9
Sumário: 1- Estando no domínio de relações imediatas pode o avalista chamar à colação o não cumprimento do dever de comunicação das cláusulas contratuais gerais integradas no contrato de mútuo.

2- O princípio da literalidade, segundo o qual a existência e a validade da relação cambiária não podem ser afectadas por via de elementos estranhos aos títulos, apenas tem o seu campo de actuação no domínio das relações mediatas.

3- No plano das relações imediatas não há que aplicar as regras próprias dos títulos de crédito, pois não há que dar a devida protecção à circulação de boa-fé.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

                                                                        I

A (…) deduziu a presente oposição à execução contra BANCO B..., SA, alegando para tanto, e em síntese que não assinou a livrança dada à execução, pelo montante de 9.583,17€.

 Alega ainda que, nunca foi informada da sua obrigação cambiária até ao momento em que recebeu uma carta da exequente. Ao tomar conhecimento do incumprimento por parte da co executada, deslocou-se ao balcão do exequente para solicitar uma cópia da documentação que teria assinado, já que tal nunca lhe havia sido entregue.

 Acrescenta que a livrança exequenda integra o regime da letra de favor, porquanto o que foi dito é que seria uma mera formalidade, não tendo dado qualquer autorização para o preenchimento da livrança exequenda.

 Mais alega que a co executada procedeu ao pagamento das prestações desde o mês de Janeiro de 2011, pelo que, o valor da quantia exequenda é de 7.437,00€.

 Admitida a oposição, foi notificado o exequente para contestar, o que fez.

 Alega que a assinatura aposta na livrança, no local destinado ao aval, foi feita pelo próprio punho da opoente, a qual assinou igualmente o contrato de crédito pessoal, na qualidade de avalista, sendo mutuária a co executada Cristina Lamego.

 A convenção de favor só poderá ser invocada no domínio das relações imediatas, entre favorecente e favorecido, não podendo ser oponível ao portador de boa-fé, nos termos do artigo 17 da LULL.

 Atendendo ao princípio da abstração que caracteriza as obrigações emergentes da assinatura de um título de crédito, estas valem por si mesmas, independentemente da relação jurídica subjacente, pelo que, é irrelevante que à opoente não tenha sido entregue cópia do contrato de crédito e de não lhe terem sido comunicados os termos do contrato.

 No que toca ao pacto de preenchimento, a livrança foi preenchida em conformidade com o mesmo, que foi assinado pela ora opoente e consigo acordado.

 Relativamente ao valor em dívida e que foi aposto na livrança exequenda, o mesmo corresponde ao capital em dívida e acréscimos legais e o valor da execução, corresponde ao capital inscrito na livrança, acrescidos dos juros de mora vencidos.

 Conclui pela improcedência da oposição à execução.

Procedeu-se à realização da audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença que julgou a oposição improcedente por não provada e determinado o normal prosseguimento da execução.

Inconformada com tal decisão veio a opoente responder, concluindo do seguinte modo as suas alegações de recurso:

(…)

Em contra-alegações pugna o apelado pela improcedência de todas as exceções invocadas, mantendo-se integralmente a decisão recorrida.

                                                                        II

São os seguintes os factos julgados provados, a que se aditou as alíneas D) e E) em uso da prerrogativa que assiste à Relação nos termos do art. 662 nº 1 do CPC, considerando a prova produzida (no caso o teor do documento não impugnado que constitui o contrato de crédito pessoal, junto a fls. 34) :

A – Foi dada à execução a livrança cujo original se encontra junto a fls. 103PP dos presentes autos e cujo teor se dá aqui por reproduzido para os devidos efeitos legais.

B – Subjacente à emissão de tal livrança está o contrato de crédito pessoal celebrado em 14 de Maio de 2008, entre o exequente e executada M (…), do qual consta o nome da ora opoente na qualidade de avalista, constante de fls. 33 e 34 PP, cujo teor damos aqui por reproduzido para os devidos efeitos legais.

C – A assinatura constante do verso da livrança, após a expressão “Dou o meu aval à subscritora” foi aposta pelo próprio punho da opoente.

D – Consta do contrato de crédito pessoal acima referido, celebrado em 14-05-2008, uma cláusula (9ª) com o seguinte teor:

“Para titulação do capital emprestado, respetivos juros e demais encargos emergentes deste contrato (s) Proponente(s) subscreve(m) uma livrança em branco, avalizada pela(s) pessoa(s) indicada(s) no verso e que abaixo assina(m), ficando desde já o Banco autorizado a preenchê-la livremente, designadamente quanto à data de emissão, ao montante em dívida, data de vencimento e local de pagamento, pelo valor correspondente ao da dívida vencida e não paga, acrescida dos juros até à data fixada para o respetivo vencimento e do imposto devido pelo preenchimento da livrança.”

E) Consta do contrato de crédito pessoal acima referido a identificação da avalista Ana Paula Ramísio Almeida, ora oponente a qual assinou o contrato como avalista quer na folha respeitante às condições particulares, quer na folha respeitante às condições gerais.

São os seguintes os factos julgados não provados:

1 – Aquando da celebração do contrato referido em B-) foi comunicado e explicado à opoente a contração de uma obrigação cambiária.

2 – No momento da celebração do mesmo contrato, foi dada uma cópia do mesmo à ora opoente.

3 – A executada M (…) procedeu ao pagamento da quantia exequenda através de prestações de cerca de 160,00€ mensais desde Janeiro de 2011.

                                                                        III

Na consideração de que o objeto dos recursos se delimita pelas conclusões das alegações (art. 635 nº 3 do nCPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. art. 608 in fine), são as seguintes as questões a decidir:

- Saber se ocorreu omissão de pronúncia (por falta de apreciação do invocado “regime de favor” e da impugnação do montante executado) e, contradição entre a matéria de facto provada e a decisão – ambas causas de nulidade da sentença.

- Saber se ocorreu impugnação válida do julgamento de facto e, em caso afirmativo, se houve erro na apreciação da prova e necessidade de reforço de prova.

- Saber se deve ser aplicado o regime do contrato de crédito ao consumo e das cláusulas contratuais gerais, implicando estes diferente decisão.

I – Das invocadas causas de nulidade da sentença

Embora sem grande rigor formal invoca a apelante duas causas de nulidade da sentença: a omissão de pronúncia e, a contradição entre os factos e a decisão.

É nula a sentença quando, entre outras razões, o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar (art. 615 nº 1 alª d) do CPC) ou os fundamentos estejam em oposição com a decisão (alª c) do mesmo artigo).

Pretende a apelante que ocorreu omissão de pronúncia porquanto não se pronunciou o tribunal recorrido quanto à alegação da existência de “regime de favor” da livrança e quanto à alegação de que o montante em dívida não corresponde ao montante executado.

É sabido que a nulidade de sentença por omissão de pronúncia refere-se a questões e não a razões ou argumentos invocados pela parte ou pelo sujeito processual em defesa do seu ponto de vista.

Efetivamente a apelante/opoente veio deduzir no seu articulado de oposição ambas as defesas. Depois de ter negado a assinatura da livrança, veio, embora num plano meramente académico fazer valer o regime jurídico da “letra de favor”, pois que, tudo o que terá assinado terá sido sob a indicação de “que se trataria de uma mera formalidade…” mas, mesmo que assim não fosse “… os montantes peticionados não são devidos”, sendo a quantia em dívida de apenas 7437€.

No caso tais questões têm dignidade própria e devem ser conhecidas.

Lida a sentença não concedemos razão à apelante quanto à omissão da questão do regime da letra de favor.

Efetivamente, embora com comedido desenvolvimento, o tribunal a quo teceu que: “Atendendo à natureza do aval e à relação jurídica emergente da prestação do aval, e que o avalista é apenas sujeito da relação subjacente ou fundamental à obrigação cambiária do aval, relação essa constituída entre ele e o avalizado e que só é invocável no confronto entre ambos, o aval prestado pela opoente não fica inquinado pelo facto de não se ter provado que não lhe foi dada cópia do mesmo, não lhe sendo aplicável, pois, o invocado regime da letra de favor, dada a autonomia da relação jurídica da prestação de aval, não se verificando o preenchimento abusivo da livrança exequenda” (negrito nosso).

Já quanto à questão de ser outra a quantia exequenda, concedemos que omite a sentença qualquer conhecimento da mesma.

No desenvolvimento do tema que enquadra a relação do avalista com o portador da letra e, ao situar essa relação no âmbito das relações imediatas deveria o tribunal a quo ter apreciado esta questão atinente a um preenchimento abusivo.

Limitou-se contudo, o Mmº julgador a tratar no contexto do preenchimento abusivo da necessidade ou não de haver comunicação das cláusulas do contrato.

Impõe-se assim que, fazendo uso da regra de substituição do tribunal recorrido (art.665 nº 1 CPC), se supra tal questão, deixando-se ora consignado que, a apelante não provou factualidade que suporte a alegação de preenchimento abusivo no respeitante ao montante porque a letra foi preenchida. Desde logo, não provou, quais os montantes pagos e não pagos reportados ao contrato avalizado.

E, como se retira da redação do art. 10 da LULL o preenchimento abusivo da letra é tido por “motivo de oposição ao portador”. Como tal, a matéria pertinente tem a natureza de exceção perentória, a ser alegada e provada pelo subscritor (ou avalista nas relações imediatas), nos termos do art. 342º, nº2, do Código Civil. Não sendo provado o abuso, a letra mantém-se válida como título executivo.[1]

Assim, improcede o preenchimento abusivo, com base em diferente montante a executar.

Conhecidas que estão as invocadas causas de nulidade da sentença, importa:

- Saber se ocorre impugnação válida do julgamento de facto e, em caso afirmativo, se houve erro na apreciação da prova e necessidade de reforço da mesma.

O recurso foi interposto no âmbito do novo CPC e a ação (oposição) foi instaurada em 2011, sendo o CPC de 2013 imediatamente aplicável (art. 5º da Lei 41/2013 de 26 de Junho).

O recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto tem a seu cargo o ónus de especificar, sob pena de rejeição; a) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

A apelante refere ter ocorrido erro na apreciação da prova na resposta à matéria de facto dada como provada na alínea C) ou seja, na prova do seguinte facto «A assinatura constante o verso da livrança, após a expressão “Dou o meu aval à subscritora” foi aposta pelo próprio punho da opoente», porquanto, diz, o resultado da perícia limitou-se a um “é provável ser”, não definiu com certeza absoluta (a assinatura aposta na livrança) como sendo da oponente e, a falta de entrega dos elementos do contrato assim o demonstra.

Tal impugnação ainda que admissível, por respeitar formalmente e no seu mínimo os requisitos processuais exigíveis, não tem, contudo, fundamentos para proceder.

Desde logo porque, o recurso aos depoimentos das testemunhas (…) que demonstrou não ter qualquer conhecimento em concreto quanto à celebração do contrato e da livrança, e (…), funcionário do exequente, que igualmente não esteve presente no ato contratual, tendo-se apenas reportado aos procedimentos habituais do colega interveniente, se podem ser probatórios, são-no apenas, no caso deste último, da realidade contrária à que a apelante quer invalidar.

Ou seja, não se vê como pode a apelante pretender provar que não assinou a livrança com tais depoimentos, nomeadamente com um depoimento contrário à sua pretensão. Nem se vê como pode pretender fazer prova desse facto – não assinatura – com a pretensa prova da falta de entrega dos elementos do contrato, factos que não se sobrepõem, além de que apenas não se provou a sua entrega, não o facto contrário, tudo, a nosso ver equívocos comprometedores da bondade desta fundamentação.

O tribunal a quo fundamentou a prova da assinatura da livrança por parte da opoente – facto C) com o exame pericial cujo relatório consta de fls. 63 e ss que concluiu como provável que a assinatura aposta no verso da livrança, no local destinado ao aval, seja da opoente, aliado ao depoimento da testemunha (…), bancário que referiu que aquando da celebração do contrato a opoente acompanhou a executada M (…) e assinaram, junto do colega que as atendeu, a documentação referente ao mesmo.

A força probatória das respostas dos peritos é fixada livremente pelo tribunal (art. 389º CC).

Considerando que o nível intermédio da afirmação pericial “provável ser” reflete uma opinião pericial no sentido da verificação da hipótese mas que, devido às próprias caraterísticas da escrita contestada, da escrita de comparação ou a limitações inerentes ao exame comparativo, não podem atingir o nível mais elevado (relatório pericial a fls. 12 deste) afigura-se-nos que, adicionando a tal opinião o contexto em que a livrança foi emitida, como garantia de um contrato de crédito pessoal cuja cópia se mostra junta aos autos a fls. 33 a 35, assinado igualmente pela oponente, sem que, em relação a este, tenha negado a assinatura que lhe é atribuída e, clausulando este contrato que “para titulação do capital emprestado, respetivos juros e demais encargos emergentes deste contrato, o(s) Proponente(s) subscreve(m) uma livrança em branco avalisada pela(s) pessoa(s) indicada(s) no verso….”, mostra-se feita a prova da autoria da assinatura do aval prestado na livrança, como sendo da oponente.

Tal ponderação tem a nossa aprovação.

Invocou ainda a apelante a necessidade de reforço de prova, pois que, estando presente em audiência testemunha por si arrolada o tribunal a quo indeferiu a sua audição.

Compulsados os autos verifica-se que a oponente arrolara duas testemunhas. Na 1ª sessão da audiência de julgamento só estava presente uma delas, a testemunha (…)faltando (…).

Designou-se uma segunda data para continuação da audiência de julgamento porquanto a testemunha arrolada pela exequente (…) , antecipadamente fez chegar ao tribunal requerimento comprovativo da sua impossibilidade de comparecer, por baixa médica.

Nesta segunda data, estando presente aquele (…) a ilustre mandatária da oponente requereu a sua audição, sem contudo, fundamentar a necessidade ou utilidade da mesma, o que se impunha, pois que, a testemunha era a apresentar, desde logo na data em que ocorreu a primeira sessão da audiência de julgamento e, a falta de testemunha  não constitui motivo de adiamento a menos que a parte declare dela não prescindir (art. 508 nº 2 do CPC), o que não aconteceu. Residualmente poderia a parte tentar a sua audição na segunda sessão invocando “razões para presumir que tinha conhecimento de factos importantes para a boa decisão da causa” fazendo-se assim uma aplicação analógica com o disposto no artigo 526º do CPC, aqui consentida, porque tal “pessoa” não seria já testemunha. Mas a parte nenhuma razão invocou, pelo que o indeferimento de tal depoimento, obedecendo aos comandos legais, não nos merece qualquer censura.

E se não invocou antes, também agora em sede de recurso, não nos dá razões para convencer da necessidade de tal depoimento, não fazendo, assim, sentido, o pretendido reforço de prova.

Improcede, por isso, na totalidade a pretendida impugnação do julgamento de facto.

Passemos então à terceira questão suscitada.

- Saber se deve ser aplicado o regime do contrato de crédito ao consumo bem como o regime das cláusulas contratuais gerais, implicando estes diferente decisão, nomeadamente considerando a não prova de entrega de uma cópia do contrato e de comunicação das cláusulas do contrato à apelante/avalista.

Lê-se na sentença recorrida:

«2-) da relevância da violação do dever de comunicação e de entrega de cópia do contrato à ora opoente, tendo presente a sua qualidade de avalista.

Alega ainda a opoente que não lhe foi entregue uma cópia do contrato de crédito subjacente à livrança exequenda, nem que lhe foram explicadas as cláusulas do contrato nem a responsabilidade que assumia ao assinar a livrança exequenda no local destinado ao aval, tendo que se concluir que não deu o seu acordo para o preenchimento da livrança exequenda.

As livranças estão sujeitas a uma disciplina jurídica especial, a qual reflete a preocupação de defender os interesses de terceiros de boa-fé, imposta pela necessidade de facilitar a circulação dos títulos de crédito.

 (…) Quando a execução se funda em livrança e é movida no domínio das relações imediatas, pode invocar-se, como fundamento à oposição qualquer defesa derivada da relação jurídica subjacente – artigo 17º da LULL e Alberto dos Reis, Processo de Execução, Vol. II, pág. 51.

 (…) Sendo a ora opoente avalista e tendo subscrito o pacto de preenchimento para preenchimento da mesma, permite situá-lo ainda no âmbito das relações imediatas, podendo invocar a exceção de preenchimento abusivo, como tem defendido o Supremo Tribunal de Justiça nos Acórdãos datados de 10.06.2007, 04.03.2008, 31.03.2009, 23.04.2009, 17.02.2011 todos disponíveis em www.dgsi.pt, indicados a título exemplificativo.

 E no caso dos autos foi celebrado um pacto de preenchimento vide a cláusula 9 de fls. 34 PP, a que faz referência o facto B-).

(…) E o mesmo encontra-se assinado pela ora opoente.

(…) «Mas não lhe foram comunicadas as cláusulas do contrato, em violação do disposto no artigo 5º do DL 446/85, nem lhe foi dada uma cópia do contrato, nos termos do disposto no artigo 6º do DL 359/91 de 21.09, diploma esse que, não obstante ter sido recentemente revogado pelo artº 33 do DL nº 133/2009 de 2/6, continua a aplicar-se ao contrato em apreço por ser na sua plena vigência que o mesmo foi concluído, tal como dispõe o artº 34, nº 1, desse último DL).

 Estas situações inquinam a validade do aval?

 Não.

(…) Atendendo à natureza do aval e à relação jurídica emergente da prestação do aval, e que o avalista é apenas sujeito da relação subjacente ou fundamental à obrigação cambiária do aval, relação essa constituída entre ele e o avalizado e que só é invocável no confronto entre ambos, o aval prestado pela opoente não fica inquinado pelo facto de não ter se ter provado que foi cumprido o dever de comunicação das cláusulas do contrato a si e pelo facto de não se ter provado que não lhe foi dada cópia do mesmo, não lhe sendo aplicável, pois, o invocado regime da letra de favor, dada a autonomia da relação jurídica de prestação de aval, não se verificando o preenchimento abusivo da livrança exequenda» (sublinhados nossos).

Assim, o tribunal recorrido, admitindo embora que, no presente caso, a execução fundada em livrança se move no domínio das relações imediatas, podendo invocar-se, como fundamento à oposição qualquer defesa derivada da relação jurídica subjacente, vem, não obstante, negar à avalista a possibilidade de invocar como meio de defesa o incumprimento pelo “mutuante” do dever de comunicação das cláusulas do contrato e de entrega duma cópia do mesmo.

Vejamos, pois.

Dúvidas não haverá que estamos no plano das relações imediatas que são aquelas que são estabelecidas entre os respetivos sujeitos cambiários, isto é sem intermediação de outros intervenientes em razão dum endosso. O contrato de crédito ao consumo garantido com o aval ora acionado foi celebrado em 14-05-2008 e foi negociado de acordo com cláusulas contratuais gerais pré-estabelecidas pela parte credora.

Temos, assim, no plano das reações imediatas dois regimes jurídicos a considerar: o regime das cláusulas contratuais gerais e o regime dos contratos de crédito ao consumo.

Prevê o art. 5º do DL 446/85 de 25/10 que estabelece o regime das cláusulas contratuais gerais [na sua 5ª e mais recente versão dada pelo DL n.º 323/2001, de 17/12] que:

«1 - As cláusulas contratuais gerais devem ser comunicadas na íntegra aos aderentes que se limitem a subscrevê-las ou a aceitá-las.

2 - A comunicação deve ser realizada de modo adequado e com a antecedência necessária para que, tendo em conta a importância do contrato e a extensão e complexidade das cláusulas, se torne possível o seu conhecimento completo e efetivo por quem use de comum diligência.

3 - O ónus da prova da comunicação adequada e efetiva cabe ao contratante que submeta a outrem as cláusulas contratuais gerais».

Prevendo, por sua vez o artigo 6º, alusivo ao dever de informação, que:

«1 - O contratante que recorra a cláusulas contratuais gerais deve informar, de acordo com as circunstâncias, a outra parte dos aspetos nelas compreendidos cuja aclaração se justifique.

2 - Devem ainda ser prestados todos os esclarecimentos razoáveis solicitados».

Sancionando o artigo 8º o incumprimento de tais deveres com a exclusão das cláusulas afetadas pelo mesmo:

Artigo 8.º

«Consideram-se excluídas dos contratos singulares:

a) As cláusulas que não tenham sido comunicadas nos termos do artigo 5.º;

b) As cláusulas comunicadas com violação do dever de informação, de molde que não seja de esperar o seu conhecimento efetivo;

(…)».

Qual a importância deste diploma para o caso em apreço?

É que, muito embora a oponente tenha sido demandada na qualidade de avalista duma livrança, título de crédito que, como se sabe, se mostra dotado de literalidade, de autonomia e de abstração não se confundindo com um contrato de adesão com cláusulas contratuais gerais, a verdade é que, na base da emissão dessa livrança está um contrato de crédito ao consumo com cláusulas contratuais gerais, nas quais se incluem a já referida cláusula 9ª, segundo a qual:

“Para titulação do capital emprestado, respetivos juros e demais encargos emergentes deste contrato (s) Proponente(s) subscreve(m) uma livrança em branco, avalizada pela(s) pessoa(s) indicada(s) no verso e que abaixo assina(m), ficando desde já o Banco autorizado a preenchê-la livremente, designadamente quanto à data de emissão, ao montante em dívida, data de vencimento e local de pagamento, pelo valor correspondente ao da dívida vencida e não paga, acrescida dos juros até à data fixada para o respetivo vencimento e do imposto devido pelo preenchimento da livrança.”

Ora, tendo a oponente assinado este contrato como avalista, tendo a cláusula 9ª provocado a subscrição da livrança com aval e, não se tendo provado que aquando da celebração do contrato foi comunicado e explicado à avalista/outorgante a contração de uma obrigação cambiária, ou que lhe foi fornecido uma cópia do contrato, obrigação a cargo da credora ora exequente, é de considerar excluída do contrato tal cláusula, por aplicação do artº 8º alª a) e b) do DL 446/85 de 25/10.

Mostra-se, então, legítimo questionar se tal exclusão deverá afetar igualmente a livrança emitida ao abrigo da mesma.

A resposta só poderá ser afirmativa, como mais à frente desenvolveremos.

Vejamos primeiro das consequências da aplicação do regime dos contratos de crédito ao consumo.

Em sede de alegações a apelante reclama a aplicação do DL n.º 133/2009, de 02 de Junho, que estabelece normas respeitantes aos contratos de crédito ao consumo, tendo revogado o DL n.º 359/91, de 21 de Setembro, pretendendo que a aplicação do art. 12º do Código Civil (aplicação da lei no tempo) o permite.

Vejamos, pois.

O contrato foi celebrado em 14-05-2008.

À data estava em vigor o DL nº 359/91 de 21-09 (na redação do DL n.º 82/2006, de 03 de Maio).

Prevê este DL n.º 359/91, de 21-09, que:

«Artigo 6.º

Requisitos do contrato de crédito

1 - O contrato de crédito deve ser reduzido a escrito e assinado pelos contraentes, sendo obrigatoriamente entregue um exemplar ao consumidor no momento da respetiva assinatura. (…)».

Dispondo o Artigo 7.º:

«Invalidade do contrato de crédito

1 - O contrato de crédito é nulo quando não for observado o prescrito no n.º 1 ou quando faltar algum dos elementos referidos nas alíneas a), c) e d) do n.º 2, nas alíneas a) a e) do n.º 3 e no n.º 4 do artigo anterior».

Sendo que, para os efeitos da aplicação deste diploma, estabelece o art. 2º que, entende-se por:

(…) b) «Consumidor», a pessoa singular que, nos negócios jurídicos abrangidos pelo presente diploma, atua com objetivos alheios à sua atividade comercial ou profissional».

Este diploma veio a ser revogado pelo DL n.º 133/2009, de 02 de Junho, o qual veio proceder à transposição para a ordem jurídica interna da Diretiva n.º 2008/48/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de Abril, relativa a contratos de crédito aos consumidores.

Também neste igualmente se define como consumidor (artigo 4.º)

“a) «Consumidor» a pessoa singular que, nos negócios jurídicos abrangidos pelo presente decreto-lei, atua com objetivos alheios à sua atividade comercial ou profissional”.

E estabelece-se como requisitos do contrato de crédito (art. 12º) que:

«1 - Os contratos de crédito devem ser exarados em papel ou noutro suporte duradouro, em condições de inteira legibilidade.

2 - A todos os contraentes, incluindo os garantes, deve ser entregue, no momento da respetiva assinatura, um exemplar devidamente assinado do contrato de crédito. (…)» (sublinhado nosso).

Sancionando o diploma o incumprimento de tais requisitos com a nulidade e inexigibilidade no seu art. 13.º:

«Invalidade e inexigibilidade do contrato de crédito

1 - O contrato de crédito é nulo se não for observado o estabelecido no n.º 1 ou no n.º 2 do artigo anterior, ou se faltar algum dos elementos referidos no proémio do n.º 3, no proémio do n.º 5, ou nas alíneas a) e d) do n.º 5 do artigo anterior.

2 - A garantia prestada é nula se, em relação ao garante, não for observado o prescrito no n.º 2 do artigo anterior». (sublinhado nosso).

Importa apurar se este último diploma – que inequivocamente contempla a pessoa do garante em igualdade de direitos com a pessoa do devedor/contraente particular/consumidor -  se aplica ao presente contrato celebrado em data anterior à sua entrada em vigor.

A resposta é negativa e, é-nos dada pelo próprio diploma, cujo art. 34.º estabelece o seguinte regime transitório:

«1 - Aos contratos de crédito concluídos antes da data da entrada em vigor do presente decreto-lei aplica-se o regime jurídico vigente ao tempo da sua celebração, sem prejuízo do disposto no número seguinte.

2 - Os artigos 14.º, 15.º, 16.º, 19.º e 21.º, o segundo período do n.º 1 do artigo 23.º e o n.º 3 do artigo 23.º aplicam-se aos contratos de crédito por período indeterminado vigentes à data de entrada em vigor do presente decreto-lei».

Ora, não tendo o art. 13º sido contemplado neste nº 2, que manda aplicar imediatamente certas normas do novo diploma aos contratos de crédito celebrados anteriormente, não poderemos pretender a sua aplicação ao contrato dos autos.

O que, de resto, tratando-se de uma norma sobre a validade substancial/formal de uma norma, se mostra consentâneo com o regime estabelecido no art. 12º do Código Civil, respeitante à aplicação da lei no tempo.[2]

Uma vez definido que, o caso se mostra coberto pelos regimes do DL nº 446/85 de 25/10 que estabelece o regime das cláusulas contratuais gerais e do DL nº 359/91 de 21-09 que estabelece o regime do contrato de crédito ao consumo, importa apurar que consequências advêm para as partes pelo facto de não se ter provado a entrega de cópia dum exemplar do contrato à garante/avalista, bem como a comunicação e explicação a esta da sua obrigação cambiária.

Alegou a oponente no seu articulado de oposição que, em momento algum lhe terá sido comunicado e explicado a contração de qualquer obrigação cambiária, possuindo ela pouca instrução escolar e, jamais foi informada da sua obrigação cambiária, até ao momento em que recebeu uma carta emitida pela oponente. Deslocou-se então ao balcão (da exequente) e quando solicitou uma cópia dos documentos que alegadamente teria assinado tal foi-lhe recusado. A oponente jamais teve qualquer cópia de qualquer documento que fosse (artºs 3º, 4º, 6º, 7º e 8º da p.i.). Requer, por isso, a extinção da execução, por nulidade da livrança e inexistência de qualquer relação material apta a constituir uma obrigação.

Ora, usando o Dec-Lei nº 446/85 de 25/10 a expressão ampla de “aderentes” e, o Dec-Lei nº359/91 de 21/09 a expressão ampla de “consumidor”, como a pessoa singular que, nos negócios jurídicos abrangidos pelo presente diploma, atua com objetivos alheios à sua atividade comercial ou profissional, dúvidas não haverá de que, a oponente enquanto subscritora do contrato, apondo a sua assinatura, em local nele destacado para a pessoa do “avalista”, está abrangida por ambos os conceitos. Aliás, tal equiparação veio a ficar expressamente definida de jure constituendo através do DL n.º 133/2009, de 02 de Junho

Assim, cabendo à exequente a prova dos factos que integrem o dever de informar e comunicar estabelecidos no Dec-Lei nº 446/85 de 25/10 (cláusulas contratuais gerais) e que integrem o dever de entrega da cópia do contrato imposta no Dec-Lei nº359/91 de 21/09 (contrato de crédito ao consumo), não se tendo provado que a exequente procedeu, aquando da celebração do contrato à comunicação e explicação à opoente de que esta contraía uma obrigação cambiária, nem que lhe foi dada uma cópia do contrato, a cláusula do contrato de crédito em causa que prevê a emissão de livrança e respetivo pacto de preenchimento – cláusula 9ª das condições gerais - tem de ter-se por excluída do contrato nos termos do artºs 5º e 8º do Dec-Lei nº 446/85, bem como afetada de nulidade por força do art. 7º do DL nº 359/91 de 21-09, como acima já havíamos referido.

Deverá tal exclusão e nulidade afetar o aval prestado na livrança?

E, será tal solução compatível com o regime jurídico do aval, pois que, a oponente assinou o contrato de mútuo, embora exclusivamente na qualidade de avalista de uma livrança subscrita pela mutuária Ana Paula Remísio Almeida e entregue à mutuante nos termos contratuais?

Entendemos que sim, pois que, no caso concreto, existe claramente entre a exequente (credora cambiária) e a oponente (avalista), uma relação causal, subjacente ao aval, por via da qual se estipulou determinado pacto de preenchimento para a livrança em branco subscrita pela mutuária e avalizada pela oponente.

No caso, estamos no domínio de relações imediatas, mesmo em relação à oponente avalista, pelo que lhe era lícito chamar à colação o não cumprimento do dever de comunicação das cláusulas contratuais gerais integradas no contrato de mútuo, pelo menos, daquelas relacionadas com o não cumprimento e com o preenchimento da livrança avalizada, bem como invocar a não entrega de uma cópia do contrato de crédito.[3]

E, se o podia fazer em relação à devedora principal, pois que, nas relações imediatas o avalista pode invocar as exceções do avalizado perante o portador, por maioria de razão o poderia fazer em relação a si.

Entendeu o tribunal recorrido de forma diferente, como resulta do trecho que acima transcrevemos.

Segundo a sentença recorrida a natureza do aval, a autonomia da relação jurídica da prestação do aval e porque o avalista é apenas sujeito da relação subjacente ou fundamental à obrigação cambiária do aval, relação essa constituída entre ele e o avalizado e que só é invocável no confronto entre ambos, o aval prestado pela opoente não fica inquinado pelo facto de não ter se ter provado que foi cumprido o dever de comunicação das cláusulas do contrato a si e pelo facto de não se ter provado que não lhe foi dada cópia do mesmo.

Todavia as regras próprias dos títulos de créditos não se aplicam no plano das relações imediatas que são aquelas que são estabelecidas entre os respetivos sujeitos cambiários, isto é, sem intermediação de outros intervenientes e, razão de ser do endosso.

Nas relações imediatas não é devida proteção à circulação de boa-fé.

Ora, no caso em apreço e conforme se refere na decisão recorrida e que as partes não contestam ainda estamos no domínio das relações imediatas.

De facto a livrança não saiu da tríplice esfera da subscritora, do beneficiário e de quem a assinou no verso.

E se estamos no plano das relações imediatas não há que aplicar as regras próprias dos títulos de crédito, pois não há que dar a devida proteção à circulação de boa-fé.

O princípio da literalidade, segundo o qual a existência e a validade da relação cambiária não podem ser afetadas por via de elementos estranhos aos títulos, apenas tem o seu campo de atuação no domínio das relações mediatas.

No caso, tudo se passa como se a obrigação cambiária de aval deixasse de ser literal e abstrata, passando a relevar o conteúdo da convenção extra-cartular que se celebrou entre as partes.

E “parte” neste caso é também a avalista e ora oponente que teve intervenção no negócio jurídico que esteve na base da subscrição da livrança, pois que apôs a sua assinatura no contrato de crédito pessoal celebrado entre a exequente e executada, embora o tenha feito exclusivamente na qualidade de avalista da livrança subscrita pelo mutuário e entregue à mutuante o qual se mostra inquinado, como vimos, no respeitante à sua cláusula 9ª.

Ora, estando no domínio das relações imediatas, à oponente, era-lhe lícito chamar à sua defesa a nulidade do contrato por falta de entrega de exemplar nos mesmos termos que ao executado/mutuário tal é permitido (meios de defesa que se baseiam na relação fundamental).

Tal nulidade afeta a obrigação cambiária pelo que as partes neste processo podem discutir relevantemente a obrigação subjacente.

Neste entendimento não pode deixar de ser julgado procedente o presente recurso apresentado pela oponente/executada.

Em suma:

- Estando no domínio de relações imediatas pode o avalista chamar à colação o não cumprimento do dever de comunicação das cláusulas contratuais gerais integradas no contrato de mútuo.

- O princípio da literalidade, segundo o qual a existência e a validade da relação cambiária não podem ser afetadas por via de elementos estranhos aos títulos, apenas tem o seu campo de atuação no domínio das relações mediatas.

- No plano das relações imediatas não há que aplicar as regras próprias dos títulos de crédito, pois não há que dar a devida proteção à circulação de boa-fé.

                                                                        IV

Termos em que acorda-se em julgar a apelação procedente, revogando-se a decisão recorrida que se substitui por outra, julgando extinta a execução contra a oponente.

Custas pela apelada.

 Anabela Luna de Carvalho (Relatora)

 João Moreira do Carmo

José Fonte Ramos


[1] Ac. TRC de 25.06.2013, P. 1506/07.6TBCTB-A.C1, (relator: Fernando Monteiro) in www.dgsi.pt.

[2] Estabelece esta norma (art. 12 CC) que:
1 - A lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroativa, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular.
2 - Quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser diretamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor.
[3] Neste sentido Ac. STJ de                04-03-2008, P.07A4251, Relator: Moreira Alves, in www.dgsi.pt