Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
79204/11.1YIPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JACINTO MECA
Descritores: INJUNÇÃO
ASSUNÇÃO DE DÍVIDA
Data do Acordão: 06/26/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE CASTELO BRANCO – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: DEC. LEI 269/98; 595º CC.
Sumário: 1.O requerimento de injunção deve expressar, sendo caso disso, de modo claro se o montante inscrito no cheque entregue para pagamento de parte da dívida integra ou não o pedido formulado na injunção.

2. A entrega de um cheque para pagamento de parte de dívida por um terceiro não é enquadrável no artigo 595º do CC, já que não reflecte qualquer declaração de dívida, mas antes uma ordem de pagamento ao banqueiro do montante nele inscrito no pressuposto que a conta tenha provisão suficiente.

Decisão Texto Integral:                 Acordam os Juízes que constituem o Tribunal da Relação de Coimbra.

1 – Relatório

S…, S.A., com sede na … intentou contra F…, residente na …, a presente acção especial para o cumprimento de obrigações pecuniárias ao abrigo do DL 269/98, alegando, em síntese que a ré é devedora da quantia de € 8.495,37 (sendo € 6.510,38 de capital e € 1.933,99 de juros de mora).

Para tanto alegou que no exercício da sua actividade vendeu à sociedade Construções …, Lda., diversos materiais, que esta incorporou em diversas obras que trazia em edificação. Para pagamento de parte desses fornecimentos, a aqui requerida emitiu da sua conta pessoal, com o nº… do Banco…, o cheque nº…, no valor de 6.510,38 €.

O valor titulado pelo referido cheque, até hoje, não foi pago, pelo que se acha em dívida a referida importância.


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A ré contestou invocando que o cheque em causa se destinava apenas a garantir o crédito da autora perante a empresa Construções … e não servia para pagar qualquer divida, não se destinando a ser apresentado a pagamento. Mais alegou a inexistência de qualquer contrato ou negócio que substancie a ordem de pagamento – cheque – mencionada na presente injunção, pois o total da dívida da Construções …, Lda já se encontra peticionado na injunção nº 67342/10.2YIPTR que corre termos pelo 2º Juízo do Tribunal Judicial de Castelo Branco, configurando tal situação uma excepção peremptória que conduz à absolvição do pedido.

A requerida foi cliente da requerente, mas tudo lhe pagou, sendo que o cheque sem factura ou contrato não reflecte o não pagamento de qualquer dívida para com a requerente.

Conclui pela procedência da excepção de facto extintiva do direito invocado pela requerente ou caso assim se não entenda deve a acção ser julgada improcedente.


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                No despacho saneador julgou-se a instância válida e regular, após o que se designou dia e hora para a audiência de julgamento.

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                Procedeu-se a julgamento e proferiu-se sentença que julgou a acção improcedente por não provada e absolveu a ré do pedido.

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                Notificada da sentença a autora interpôs recurso que instruiu com as suas doutas alegações que sintetizou nas seguintes conclusões: 

...


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                A apelada apresentou as suas alegações que rematou formulando as seguintes conclusões:

...


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                2. Delimitação objectiva do recurso

                As questões[1] a decidir na apelação e em função das quais se fixa o objecto do recurso sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, nos termos das disposições conjugadas do nº 2 do artigo 660º e artigos 661º e 685º A do CPC, todos do Código de Processo Civil, são as seguintes:

Ø Fornecimento de materiais incorporados em obra. Emissão e entrega do cheque nº…, no valor de 6.510,38€.

Ø Contrato de assunção de dívida. Cheque consubstancia ou não uma ordem de pagamento.

ü Ampliação da matéria de facto.


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                3. Colhidos os vistos aprecia-se e decide-se

                Considerando que a matéria de facto não foi impugnada, tem-se a mesma por estabilizada e daí que passemos a transcrevê-la:

...

                4. Cheque/ordem de pagamento/assunção de dívida

                Se atentarmos no desenho factual que a apelante vazou nas suas doutas conclusões – 1 a 4 – verificamos que o cheque emitido pela requerida/apelada tinha por finalidade o pagamento parcial de facturas por referência a materiais que a apelante vendeu a Construções …, Lda. da qual a requerida era sócia gerente, ficando convencida a apelante que a emissão e entrega de tal cheque se destinava ao pagamento da dívida da sociedade em questão, assumindo a requerida pessoalmente a dívida naquele montante.

                Conforme emana de modo claro da matéria de facto, a requerida emitiu da sua conta pessoal um cheque que destinou ao pagamento de diversos materiais que a Construções …, Lda havia adquirido à apelante, materiais que incorporou em diversas obras, sabendo nós também que a requerida/apelada era sócia desta última sociedade.

                Caracterizará a matéria de facto provada um contrato de assunção de dívida?

                Determina o artigo 595º do CC:

1. A transmissão a título singular de uma dívida pode verificar-se:

a. Por contrato entre o antigo e o novo devedor, ratificado pelo credor;

b. Por contrato entre o novo devedor e o credor, com ou sem consentimento do antigo devedor.

2. Em qualquer dos casos a transmissão só exonera o antigo devedor havendo declaração expressa do credor; de contrário o antigo devedor responde solidariamente com o novo obrigado.

´              Seguindo os ensinamentos do Exmo. Juiz Conselheiro Torres Paulo[2] «a assunção de dívida é o acto pelo qual uma pessoa substitui outra na posição de devedora de uma determinada quantia, fazendo sua a posição passiva até então ocupada pelo transmitente na relação de crédito, contanto que para o efeito obtenha o acordo do credor».

                Também o Sr. Prof. Luís Teles de Meneses Leitão súmula o artigo 595º nos seguintes termos: «a assunção de dívida pode resultar tanto de contrato entre o antigo e o novo devedor, ratificado pelo credor, como de contrato entre o novo devedor e o credor com ou sem consentimento do antigo devedor»[3].

                Retomando a matéria de facto não vislumbramos a existência de um qualquer contrato entre a requerida e a sociedade da qual é sócia e gerente, a Construções …, Lda, que a existir deveria ter sido ratificado pela apelante/credora/requerente, como também não é possível subsumir a matéria de facto dada como provada à alínea b) do nº 1 do artigo 595º do CC. O que efectivamente a matéria de facto nos transmite é que em dado momento e para pagamento dos fornecimentos que a requerente/apelada fez à Construções …, Lda. a requerida da sua conta pessoal emitiu o cheque identificado no ponto 4 da matéria provada, cheque que até hoje não foi pago e adiantamos também nem apresentado a pagamento – factos 5 e 13 – sendo que o mesmo em data que se desconhece foi anulado – facto 11. Ou seja, estamos claramente no âmbito de uma situação que se integra na previsão do nº 1 do artigo 767º e artigo 770º, ambos do Código Civil na medida em que a prestação a que a requerida se propôs satisfazer com a entrega do cheque não foi realizada, na medida em que o valor que o cheque titulava não foi pago – facto 5 – mas também a ordem que continha de pagamento não foi concretizada pela requerente uma vez que não o apresentou a pagamento – facto 13. 

                Como se tentou demonstrar, a requerida/apelada não subscreveu qualquer declaração de dívida nem fixou o montante pelo qual se responsabilizava, o que fez foi entregar um cheque da sua conta pessoal para pagamento de parte de uma dívida de que a sociedade de que era sócia tinha para com a apelante/requerente. Chamando à colação os ensinamentos dos Srs. Profs. F. Correia e A. Caeiro, o Sr. Conselheiro Abel Delgado transcrever a seguinte passagem «o cheque é um título cambiário, à ordem ou ao portador, literal formal, autónomo e abstracto, contendo uma ordem incondicionada dirigida a um banqueiro, no estabelecimento do qual o emitente tem fundos disponíveis, ordem de pagar à vista a soma nele inscrita. Há na base da emissão de um cheque, duas relações jurídicas distintas; a relação de provisão e o contrato de convenção do cheque (…)[4].

                Salvo o devido respeito, o cheque em causa não consubstancia um contrato de assunção de dívida por parte da requerida/apelada – artigo 595º, nº 1 do CC – mas apenas a satisfação de parte do valor em dívida que a sociedade Construções …, Lda. tinha para com a requerente/apelante. Concordamos com a apelante quanto ao enquadramento da situação no artigo 28º da Lei Uniforme sobre Cheques, todavia, desconhecemos por falta de alegação as razões determinantes do não preenchimento da data de emissão do cheque – artigo 1º da Lei Uniforme sobre Cheques – seguramente de acordo com o pacto de preenchimento acordado[5] – artigos 2º e 13º da LUCH – e o apresentou a pagamento. O que sabemos é que em dado momento a requerente/apelada reclama junto do 2º Juízo do Tribunal de Castelo Branco a condenação da sociedade Construções …, Lda no montante de 76.263,59 que corresponderá ao valor total em dívida incluindo a quantia titulada no cheque – pelo menos nada foi alegado em contrário – e daí presumimos – artigo 349º do CC – que a anulação do cheque – facto 11 – esteja relacionado com a propositura daquela acção. A não ser assim como é que se justifica que a apelante tenha tido na sua posse um cheque emitido em 2008 e que poderia de acordo com o acordado acabar de o preencher e apresentá-lo a pagamento. O requerimento de injunção não nos dá qualquer explicação, centra-se na emissão de um cheque e no reconhecimento por parte da apelada de uma dívida, reconhecimento que se não provou, apenas ficando provado a entrega à apelante de um cheque para pagamento de parte de uma dívida que não responsabilizava a emitente/apelada, cheque que não é nulo como defende a apelada já que poderia haver – não sabemos se houve ou não por completa falta de alegação – acordo relativamente ao preenchimento do mês e dia a apor no cheque – e daí que repitamos que a entrega do cheque desacompanhada de qualquer outra declaração de assunção de dívida não é enquadrável no artigo 595º do CPC, nem o pagamento da quantia nele titulada pode ser imputada à apelada – artigos 767º e 770º do CC – na medida em que se desconhece o momento em que tal cheque foi anulado – facto 11 – se antes de depois da entrada da acção contra a sociedade Construções …, Lda.

                Sobre o acórdão que a apelante indica e o qual subscrevemos na qualidade de 2º adjunto não sufraga a tese aqui apresentada pela apelante, ou seja, aborda questão diferente no âmbito de uma execução e em momento algum trata da questão jurídica relacionada com a entrega de um cheque na perspectiva de assunção de dívida do artigo 595º do CC.

                Partilhamos com a sentença recorrida quando coloca o acento tónico na inexistência de qualquer modificação subjectiva da relação contratual originária por via da existência de um contrato de assunção de dívida. A responsabilidade da apelada respeita à relação que se estabelece entre o emitente e portador do cheque que é entregue para pagamento de parte de dívida de terceiro – artigos 767º e 770º do CC – desconhecendo-se por completa falta de alegação as razões que levaram a apelante a não apresentar o cheque a pagamento, como se desconhece o momento em que o mesmo foi anulado e assim se não pode retirar qualquer conclusão jurídica negativa com projecção na esfera jurídica da apelada por referência ao seu não pagamento – artigo 28º da LUCH.

                Em conclusão:

1. Entendemos que o requerimento de injunção deveria expressar de modo claro se o montante inscrito no cheque e entregue para pagamento de parte da dívida da sociedade Construções …, Lda para com a requerente/apelante integrava ou não o pedido formulado na injunção que a aqui apelante interpôs contra esta sociedade – 342º, nº 1 CC.

2. Também deveria o requerimento de injunção trazer ao conhecimento do Tribunal em que data é que o cheque entregue pela requerida à requerente foi anulado – 342º nº 1 do CC.

3. A entrega de um cheque para pagamento de parte de dívida por um terceiro não é enquadrável no artigo 595º do CC já que não reflecte qualquer declaração de dívida, mas antes uma ordem de pagamento ao banqueiro do montante nele inscrito no pressuposto que a conta tenha provisão suficiente.


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                Decisão

                Nos termos e com os fundamentos expostos, acorda-se em negar provimento ao recurso e consequentemente mantém-se a decisão recorrida.


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                Custas pela apelante – artigo 446º do CPC.

                Notifique.

               

Jacinto Maca (Relator)

Falcão de Magalhães

Sílvia Pires


[1] É dominantemente entendido que o vocábulo «questão/questões» não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entendendo-se por «questões» as concretas controvérsias centrais a dirimir – Ac. STJ, datado de 2.10.2003, proferido no âmbito do recurso de revista nº 2585/03 da 2ª Secção.
[2] Ac. STJ datado de 18 de Maio de 1999, BMJ nº 487, pág. 332.
[3] Garantias das Obrigações – Almedina – pág. 172. Miguel Pestana de Vasconcelos – Direito das Garantias – Almedina – pág. 178.
[4] Lei Uniforme Sobre Cheques, 4ª edição, Livraria Petrony, 1983, pág. 12.
[5] Embora a data seja elemento essencial do cheque, o artigo 13º permite a sua emissão em branco – o que não é de todo o caso dos autos – desde que o preenchimento da data se faça conforme acordado.