Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
249/12.3TBGRD-J.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FALCÃO DE MAGALHÃES
Descritores: INSOLVÊNCIA
PLANO DE INSOLVÊNCIA
CRÉDITO FISCAL
CRÉDITO
SEGURANÇA SOCIAL
Data do Acordão: 05/28/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA GUARDA – 3º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 123º DA LEI Nº 55-A/2010, DE 31/12; 30º, Nº 3 DA LEI GERAL TRIBUTÁRIA (LGT).
Sumário: I – O artigo 123º da Lei nº 55-A/2010, de 31/12 (Lei do Orçamento de Estado para 2011) veio aditar ao artigo 30º da Lei Geral Tributária (LGT) um nº 3, com o seguinte teor: “O disposto no número anterior prevalece sobre qualquer legislação especial”.
E o nº 2 do mencionado artº 30º dispõe: “O crédito tributário é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária”.

II - Do exposto resulta que, por força das mencionadas alterações, deixou de se poder lançar mão do argumento que outrora se utilizava, no sentido de que, as normas da lei geral (LGT), não podiam afastar as disposições da lei especial do processo de insolvência, passando a ficar a valer neste, após tais alterações, o princípio geral de que o crédito tributário é indisponível, só podendo ser reduzido ou extinto com respeito pela igualdade e legalidade tributária.

III - O que se disse para os créditos fiscais da Fazenda Nacional vale também para as dívidas à Segurança Social,

IV - É, assim, de entender que após as alterações legais introduzidas pela Lei 55-A/2010 não é possível, sem o acordo do Estado (da Fazenda Nacional ou da Segurança Social), homologar o plano de insolvência que comporte redução, extinção ou moratória de créditos fiscais ou da segurança social.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I - A) - 1) - Por sentença de 06/03/2012, transitada em julgado, foi declarada, pelo 3.º Juízo do Tribunal Judicial da Guarda, a insolvência da “I…, Lda.”, tendo-se designado dia para reunião da assembleia de credores.

2) - O Instituto de Segurança Social, IP., reclamou, respeitando a contribuições não pagas e juros, o crédito no montante global de € 11.935,86, que lhe veio a ser reconhecido.

3) - Proposto que foi o plano de insolvência constante de fls. 432 a fls. 460, apresentado pela Sr.ª Administradora na assembleia de credores de 8/11/2012 - plano esse que estabelece, entre o mais, o pagamento dos créditos em 12 anos (2014 - 2026) com o período de carência de 2 anos (2012-2013) -, foi a proposta aprovada, com o voto contra do credor Instituto de Segurança Social, IP.

4) - Através de requerimento de 2 de Janeiro de 2013, veio o Instituto de Segurança Social, IP, manifestar a sua oposição relativamente à deliberação dos credores, e requerer a não homologação da proposta do plano de insolvência.

Invocando o disposto no artigo 5º do Dec.- Lei n.º 411/91, de 17 de Outubro e o n.º 2 do Despacho Normativo n.º 220/92, de 25 de Novembro, alegou em síntese, que:

 - Tendo votado expressamente contra o plano em causa na assembleia de credores, não foram constituídas garantias idóneas suficientes para assegurar o pleno cumprimento do pagamento das dívidas;

- A sua situação, enquanto credor, face à dilação temporal, manifestamente excessiva, prevista no plano - pagamento dos créditos em 12 anos (2014 - 2026) com o período de carência de 2 anos (2012-2013) -, é menos favorável com a homologação da proposta do plano do que a que teria se tal plano não fosse homologado. 

B) - Em 22/01/2012, o Mmo. Juiz do 3º Juízo do Tribunal Judicial da Guarda, considerando que a alegação do Instituto de Segurança Social não procedia, homologou a referida proposta de plano de insolvência.

C) - Discordando dessa decisão, dela veio interpor recurso o Instituto de Segurança Social, IP - recurso esse admitido como apelação, a subir em separado e com efeito meramente devolutivo - oferecendo, a findar a sua alegação, as seguintes conclusões:

II - Em face do disposto nos art.ºs 684º, n.º 3 e 685-Aº, n.º 1, ambos do CPC[1], o objecto dos recursos delimita-se, em princípio, pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo do conhecimento das questões que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 660, n.º 2, “ex vi” do art.º 713º, nº 2, do mesmo diploma legal.

Não haverá, contudo, que conhecer de questões cuja decisão se veja prejudicada pela solução que tiver sido dada a outra que antecedentemente se haja apreciado, salientando-se que, com as “questões” a resolver se não confundem os argumentos que as partes esgrimam nas respectivas alegações e que o Tribunal pode ou não abordar, consoante a utilidade que veja nisso (Cfr., entre outros, Ac. do STJ de 13/09/2007, proc. n.º 07B2113 e Ac. do STJ de 08/11/2007, proc. nº 07B3586[2]).

Assim, a questão a solucionar consiste em saber se o Mmo. Juiz do Tribunal “a quo” deveria ter recusado a homologação da proposta do plano de insolvência, aprovada por deliberação da assembleia de credores.

III - A) - O circunstancialismo fáctico-processual a atender é o que consta de “I” supra.

B) - Entre outras hipóteses, prevê o CIRE que o pagamento dos créditos sobre a insolvência possa ser regulado num plano de insolvência em derrogação das normas desse código, podendo, a satisfação dos credores, em lugar de ser obtida através de liquidação da massa insolvente, ser alcançada com a manutenção em actividade da empresa, na titularidade do devedor, com pagamentos aos credores à custa dos respectivos rendimentos, com perdão ou redução do valor dos créditos sobre a insolvência, quer quanto ao capital, quer quanto aos juros, e com a modificação dos prazos de vencimento ou das taxas de juro dos créditos (artºs 192º, 195º e 196º do CIRE).

A comprovação do acerto da decisão impugnada passa por saber se a proposta de plano de insolvência que foi aprovada, podia, com oposição da Segurança Social, estabelecer a moratória e o diferimento do pagamento que contemplou.

A resposta que se daria a esta questão, perfilhando o entendimento que outrora os nossos Tribunais superiores seguiam, maioritariamente, quer quando estivessem em causa - como é o caso - contribuições em dívida à Segurança Social, quer quando se tratasse de dívidas fiscais, seria a afirmativa.

Efectivamente, versando caso idêntico ao presente, escreveu-se no Acórdão da Relação do Porto, de 17/03/2011 (Apelação nº 309/10.5TBSJM-E.P1 - 3ª Sec)[3]:

«…Quando em causa devedores ao fisco, com processo de insolvência pendente e declarada a insolvência, são sustados os processos tributários para a cobrança desses créditos que, para irem ao processo concursal, terão de nele ser reclamados e reconhecidos. Nessa situação, determina o CPPT, no seu artigo 180º, a sustação de qualquer execução fiscal, contra esse devedor insolvente, sendo tais processos avocados pelo tribunal judicial da insolvência, e sendo pelas normas do CIRE que passam a ser "cobrados" os créditos fiscais reclamados, afastando-se, nesse âmbito e consequentemente, as normas daquele processo (tributário) que não vinculam no processo de insolvência, inoperante sendo o apelo a tais preceitos para afastar o conteúdo do plano de insolvência e a não vinculação do Estado pelo mesmo.

É por este processo que os créditos da insolvência, entre eles os créditos fiscais, comuns ou privilegiados, obterão pagamento, em concorrência com os demais, por força liquidação do património do devedor, por regra insuficiente para a liquidação integral também dos créditos fiscais (independentemente da sua indisponibilidade), ou nos termos de um plano aprovado pela assembleia de credores e homologado pelo juiz.

4.10) - Como, a propósito das citadas normas dos arts. 30º/2 e 36º/3 da LGT[5] e artigo 196º do CPPT, se sintetiza no Ac. do STJ, de 02/03/2010[6] estas "têm o seu campo de aplicação na relação tributária, em sentido estrito, ou seja, no domínio das relações entre a administração tributária, agindo como tal, e os contribuintes, não encontrando apoio no contexto do processo especial, como é o processo de insolvência, onde a actuação da Fazenda Nacional se situa num plano perfeitamente distinto, pois, ao intervir nesse processo, aceita o concurso dos demais credores de determinado contribuinte num quadro em que releva a incapacidade do devedor insolvente para satisfazer as suas dívidas, inclusive das dívidas ao estado, mesmo de natureza fiscal, devendo em consequência este intervir como credor, tendo em conta a existência dos demais credores e aquela situação de incapacidade, e em observância do tendencial princípio de igualdade, despido do jus imperii, que o colocaria numa situação privilegiada perante os demais".

Ora, atenta a especificidade do processo de insolvência, os valores e interesses que ao mesmo presidem, à particularidade da situação do devedor insolvente, numa situação de penúria que afecta todos os credores (incluindo o Estado), sem se questionar a imperatividade de tais normas no âmbito das relações da administração tributária e os contribuintes, é de concluir que, por aplicação das normas do CIRE, ficam derrogadas as prerrogativas do Estado emergentes desses outros preceitos legais.».

De modo similar se entendeu nos Acórdãos de 02/01/2011 (Apelação nº 788/09.3TBMGR-C.C1) e de 18 de Janeiro de 2011 (Apelação nº 294/10.3TBVNO-G.C1) desta Relação[4], tendo-se escrito neste último: «Atenta a especialidade do regime do CIRE, não se verificando a previsão dos artigos 215º e 216º, nº 1, do CIRE, não deve ser recusada a homologação do plano de insolvência, aprovado em assembleia de credores pela maioria legal, apesar de a credora Fazenda Pública ter votado contra e ter requerido a não homologação com base na ofensa de normas imperativas de direito fiscal.».

Semelhantemente, entendeu esta Relação de Coimbra, no Acórdão de 06/01/2010 (Apelação nº 4091/08.8TBAVR-C.C1): «Considerando a natureza e as finalidades do CIRE e porque no regime deste não se previu qualquer excepcional tratamento privilegiado para os créditos fiscais do Estado ou os da Segurança Social - antes dele determinantemente emergindo a par conditio creditorum - a imperatividade das normas a estes créditos atinentes cede ou não pode ser invocada para impedir, vg., que os credores, no plano de insolvência, condicionem ou limitem, quantitativa e temporalmente, o pagamento de tais créditos.».

E entendeu o Tribunal da Relação de Guimarães, no acórdão de 26/10/2006 (Apelação nº 1930/06-2)[5], “…no contexto do processo de insolvência está acolhido o princípio da igualdade dos credores e, destarte, tanto o «perdão ou redução do valor dos créditos sobre a insolvência, quer quanto ao capital, quer quanto aos juros» como a «modificação dos prazos de vencimento ou as taxas de juros dos créditos, sejam créditos comuns, garantidos ou privilegiados», podem ser aprovados no âmbito de um plano de insolvência”.

Sucede, porém, que sobreveio alteração legislativa que impõe que adoptemos solução oposta àquela que se defendeu nos arestos acabados de citar.

Efectivamente, o artigo 123º da Lei nº 55-A/2010, de 31/12 (Lei do Orçamento de Estado para 2011) veio aditar ao artigo 30º da Lei Geral Tributária (LGT) um nº 3, com o seguinte teor: “O disposto no número anterior prevalece sobre qualquer legislação especial”.

E o nº 2 do mencionado artº 30º dispõe: “O crédito tributário é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária”.

O artº 125º da referida Lei n.º 55-A/2010 - diploma que entrou em vigor em 1/1/2011 (artº 187º) estabeleceu a aplicabilidade do disposto no n.º 3 do artigo 30.º da LGT, designadamente “…aos processos de insolvência que se encontrem pendentes e ainda não tenham sido objecto de homologação, sem prejuízo da prevalência dos privilégios creditórios dos trabalhadores previstos no Código do Trabalho sobre quaisquer outros créditos”.

Do exposto resulta que, por força das mencionadas alterações, deixou de se poder lançar mão do argumento que outrora se utilizava, no sentido de que, as normas da lei geral (LGT), não podiam afastar as disposições da lei especial do processo de insolvência, passando a ficar a valer neste, após tais alterações, o princípio geral de que o crédito tributário é indisponível, só podendo ser reduzido ou extinto com respeito pela igualdade e legalidade tributária.

O que se disse para os créditos fiscais da Fazenda Nacional vale também para as dívidas à Segurança Social, pois, como se escreveu no Acórdão desta Relação, de 17/01/2012 (Apelação nº 1577/10.8TBPBL-F.C1), “as dívidas por contribuições à segurança social assumem a natureza de dívidas tributárias”, caindo «… no âmbito do n.º 2, parte final, do artigo 3.º da LGT, onde se efectua uma classificação dos tributos…»[6].

É, assim, de entender, conforme se concluiu no Acórdão da Relação do Porto, de 15/5/2012 (Apelação nº 70/11.6TBSTS-D.P1), que «…após as alterações legais introduzidas pela Lei 55-A/2010 não é possível, sem o acordo do Estado (da Fazenda Nacional ou da Segurança Social), homologar o plano de insolvência que comporte redução, extinção ou moratória de créditos fiscais ou da segurança social».[7]

Ora, se por um lado, o período de carência de 2 anos estabelecido na proposta do plano de insolvência “sub judice” não se conforma com as regras previstas na legislação que disciplina o pagamento das dívidas de contribuições à Segurança Social (cfr. v.g., artºs 188º a 190º, do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, aprovado pela Lei nº 110/2009, de 16/09 e artº 30º da LGT, que é lei de aplicação subsidiária, “ex vi” do artº 3º, a)), por outro, à luz dessas normas, o diferimento do pagamento dessas dívidas, só é possível na forma de pagamento em prestações e com a autorização da Segurança Social, “rectius” por deliberação do conselho directivo do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I. P. (artºs 189, nº 1 e 190º, nºs 1 e 6, da Lei nº 110/2009).

A circunstância de se prever, no artº 190º, nº 2, a), dessa Lei, a possibilidade do pagamento em prestações no caso de o devedor ser objecto de processo de insolvência, não significa que, nessa situação, se dispense a mencionada autorização versando o modelo prestacional acolhido no plano proposto.

Significa isto que, contemplando-se nela a amortização das dívidas num prazo de 12 anos, com um período de carência de 2 anos, a proposta de plano “sub judice”, que, ao invés de ter merecido o acordo do Instituto de Segurança Social, IP, antes contou com a sua oposição, não poderia, “ex vi” do disposto no artº 215° do CIRE, ter sido homologada pelo Tribunal “a quo”.

IV - Em face de tudo o exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação, em julgar a Apelação procedente e revogar a decisão que homologou a proposta de plano de insolvência.

Custas pela massa insolvente.


(Luís José Falcão de Magalhães - Relator)

(Sílvia Maria Pereira Pires)

(Henrique Antunes)



[1] Código de Processo Civil, na versão resultante do DL n.º 226/2008, de 20 de Novembro.
[2] Consultáveis na Internet, através do endereço “http://www.dgsi.pt/jstj.nsf?OpenDatabase”, tal como todos os Acórdãos do STJ, ou os respectivos sumários, que adiante forem citados sem referência de publicação.
[3] Consultável em http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf?OpenDatabase, tal como os acórdãos dessa Relação que adiante forem citados sem referência de publicação.
[4] Consultáveis, tal como outros arestos desta Relação que venham a ser citados sem referência de publicação, em “http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf?OpenDatabase”.
[5] Consultável em http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf?OpenDatabase, tal como os acórdãos dessa Relação que adiante forem citados sem referência de publicação.
[6] Cfr., no mesmo sentido, o Acórdão da Relação do Porto, de 15/5/2012 (Apelação nº 70/11.6TBSTS-D.P1).
[7] Em idêntico sentido decidiu-se: no já mencionado Acórdão desta Relação, de 17/01/2012; no Acórdão do STJ, de 10-05-2012, Revista nº 368/10.0TBPVL-D.G1.S1; no Acórdão da Relação de Guimarães, de 17-01-2013, Apelação nº 1511/11.8TBGMR-E.G1; no Acórdão da Relação de Guimarães, de 20-10-2011, Apelação nº 4044/10.6TBGMR –F.G1; no Acórdão da Relação do Porto, de 13-07-2011, Apelação nº 134/11.6TBSTS-A.P1.