Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4066/20.9T8CBR-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: PEAP
NÃO APRECIAÇÃO JUDICIA
INSOLVÊNCIA IMINENTE DO DEVEDOR
HOMOLOGAÇÃO DO PLANO
VIOLAÇÃO NÃO NEGLIGENCIÁVEL DE NORMA PROCEDIMENTAL
Data do Acordão: 12/10/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JUÍZO DE COMÉRCIO DE COIMBRA – JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 17º, 215º, 222º-A E 222º-F, DO CIRE.
Sumário: 1. Atribuindo o PEAP o controlo efetivo do processo aos credores, em detrimento do controlo jurisdicional, em que se pretende promover e potenciar uma negociação inteiramente extrajudicial, aprovado um PEAP de acordo com os procedimentos legais aplicáveis, não incumbirá ao juiz proceder a uma indagação oficiosa acerca da situação de insolvência iminente/atual do devedor e muito menos da sua recuperabilidade, excecionados os casos de abuso manifesto do recurso a tal meio pré-insolvencial (ex., quando existam elementos nos autos que revelem a confissão do devedor de que se encontra em insolvência atual).

2. Sendo os rendimentos mensais dos devedores largamente inferiores ao valor das prestações previstas no plano de pagamento aprovado, a ausência de indicação sobre como serão obtidos os meios de satisfação dos credores, se através da liquidação de algum bem, se à custa de rendimentos suplementares e quais, constituirá violação não negligenciável das normas aplicáveis ao conteúdo do plano (art. 215º CIRE).

Decisão Texto Integral:








Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

L... e mulher, O..., vieram, ao abrigo do disposto no artigo 222.º-A do CIRE, intentar o presente processo especial para acordo de pagamento (PEAP).

Admitido liminarmente o requerimento e nomeado Administrador Judicial Provisório, por este foi junta aos autos a lista provisória de créditos prevista no art. 222.º-D, ns. 2 e 3, aplicável por força do art. 17º-I, nº3, ambos do CIRE.

Apresentado acordo de pagamentos e submetido a votação, recolheu o voto favorável de credores cujos créditos representam 61,365% da totalidade dos votos emitidos.

Dentro do prazo previsto no art. 222.º-F, n.º 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, vieram os seguintes credores requerer a não homologação do plano:

1. O credor J... – Caixilharia e Construção Metálica, Lda., alegando, em síntese: i) os devedores não cumprem os requisitos legais para o recurso ao PEAP, visto se encontrarem em situação económica difícil ou de insolvência iminente, mas já em situação de insolvência, ii) é manifestamente impossível a estes cumprir o plano, porque os rendimentos mensais que auferem o não permitem; iii) a sua situação ao abrigo do plano é menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano, uma vez que, não sendo homologado o plano, é expectável que prossiga a ação executiva que moveu ao devedor, e na qual foi penhorado o quinhão hereditário de que este é titular.

2. O credor C... invocou igualmente que o plano, ao prever um perdão de 75% do capital e dívida, perdão dos juros vencidos e uma taxa de juro reduzida para o remanescente, o coloca numa situação menos vantajosa do que a que interviria na ausência do mesmo.

Os devedores responderam ao requerimento do credor J...– Caixilharia e Construção Metálica, Lda defendendo, em síntese útil, que se não encontram em situação de insolvência, a qual, ademais, cabe à maioria dos credores aquilatar, e que o invocado quanto à impossibilidade de cumprimento do plano mais não consiste do que numa opinião do credor. Sustentam também que é falso que a situação do credor ao abrigo do plano seja mais favorável do que na ausência de qualquer plano, uma vez que se o plano não for aprovado o caminho será o da insolvência dos devedores, e que em cenário de liquidação, tendo em conta que o único bem dos devedores é o quinhão hereditário a que o mesmo alude, este receberá menos de 25% do seu crédito.

Os devedores responderam ainda ao requerimento do credor C..., invocando que o credor não demonstra a alegada situação mais desfavorável ao abrigo do plano, limitando-se a tecer considerações vagas.

Pelo juiz a quo foi proferido o Despacho, de que agora se recorre, reconhecendo que o Plano de Pagamentos se mostra aprovado pela maioria legalmente necessária, recusando, contudo, a sua homologação, por violação não negligenciável de norma procedimental, com fundamento: i) no manifesto estado de insolvência atual dos devedores e ii) não conter a clara indicação da situação reditícia dos devedores e dos meios que serão afetos à satisfação do acordo de pagamentos.


*

Inconformados com tal decisão, os devedores L... e esposa. dela interpõem recurso de apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões:

...

A decisão recorrida violou designadamente os artigos 222º-A, nº1, 222º-C, nº1, 222º-F nº5, 194º e 215º, todos do CIRE, bem como os artigos 154º do CPC e os 61º, 62º e 203º da CRP.

Termos em que deve a presente recurso ser aceite e, por via do mesmo, ser a sentença nula por excesso de pronúncia.

Ainda que assim não se entenda deve ser revogada e substituído por outra que homologue o plano apresentado e aprovado pelos credores nos autos com todas as consequências legais.

Não foram apresentadas contra-alegações.
Dispensados que foram os vistos legais, ao abrigo do disposto no nº 4 do artigo 657º do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr. artigos 635º e 639º do Novo Código de Processo Civil –, as questões a decidir são as seguintes:
1. Nulidade da sentença nos termos da al. d) do nº 1 do art. 615º CPC;
2. Se poderia ter sido recusada a homologação do plano com fundamento na situação de insolvência dos devedores:
a. Não caber ao tribunal apreciar a situação económica dos devedores, a não ser em caso de manifesta insolvência;
b. Os insolventes não se encontram em estado de insolvência.
3. Recusa de homologação com fundamento na impossibilidade de incumprimento.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Na decisão recorrida o juiz a quo veio a recusar a homologação do Plano de Pagamentos aprovado nos autos, por violação não negligenciável de norma procedimental, nos termos do art. 215º CIRE, com base em dois distintos fundamentos:
i) inadmissibilidade de recurso ao PEAP por manifesto estado de insolvência atual dos devedores e
ii) impossibilidade de cumprimento do plano, por não conter a clara indicação da situação reditícia dos devedores e dos meios que serão afetos à satisfação do acordo de pagamentos.
O tribunal recorrido teve por relevantes os seguintes factos, que não foram objeto de qualquer impugnação:
...
 1. Recusa do plano motivada pelo estado de insolvência dos devedores.
O tribunal a quo, depois de chamar a atenção para a natureza marcadamente extrajudicial dos processos pré-insolvenciais e o restrito campo de intervenção que ao juiz neles é reservado, conclui no sentido de que, de qualquer modo, “não sendo os poderes dos credores ilimitados, se o processo revelar inequivocamente, e sem lugar a qualquer discussão, que o devedor está em situação de insolvência atual, o juiz deverá obstar ao uso abusivo do procedimento, recusando a homologação do plano por violação não negligenciável de norma procedimental”,  veio a recusar a homologação do plano aprovado pelos credores, nos seguintes termos, que aqui se reproduzem:
“Consequentemente, tal como sucede no PER, será inadmissível o recurso ao PEAP por credor em situação de insolvência atual, podendo o juiz recusar a homologação do acordo de pagamento aprovado quando o processo revelar inequivocamente e inelutavelmente tal situação. Mister é, contudo, que se trate de uma situação de evidente e comprovada insolvência, dada a inadequação do processo para uma análise finalística da situação económico-financeira do devedor.
Ora, no caso, decorre manifestamente dos elementos constantes do processo que os devedores se encontram em situação de insolvência atual, e não apenas em situação económica difícil, ou sequer em situação de insolvência iminente.
Com efeito, os devedores apresentam um passivo global de € 987.225,86, do qual apenas o montante de €38.333,00 respeita a um crédito sob condição sob condição suspensiva, sendo o remanescente não sujeito a qualquer condição e estando integralmente vencido. Os rendimentos mensais auferidos pelos devedores, provenientes do trabalho da devedora e da pensão de reforma do devedor, cifram-se em €1.250,35 mensais, ou seja, em valor correspondente a duas vezes o rendimento mínimo mensal garantido – que constitui, como é sabido, o «mínimo dos mínimos» necessário para uma sobrevivência digna. Os devedores não auferem quaisquer outros rendimentos, e o único bem que lhes é conhecido consiste no quinhão hereditário detido pelo devedor na herança aberta por óbito de L..., avaliado em €38.435,05.
Neste contexto, não se pode afirmar que os devedores estejam apenas com sérias dificuldades para cumprir pontualmente as suas obrigações, ou que é objetivamente previsível que não serão capazes de cumprir no momento do vencimento das obrigações: é evidente que estes não têm liquidez ou crédito que lhe permitam cumprir as respetivas obrigações já vencidas, que ultrapassam os €900.000,00 e, assim, em situação de insolvência atual.
Isso mesmo, aliás, reconheceram os devedores, ao tentarem defender-se do pedido de recusa de homologação com fundamento na situação menos favorável para os credores ao abrigo do plano. Veja-se que, a este respeito, os devedores alegaram que, caso o plano não seja homologado, o caminho a seguir será o da respetiva insolvência, e não da prossecução da execução intentada pelo credor J..., Lda., com a consequente liquidação do respetivo património no âmbito do processo insolvencial. Deste modo, expressamente reconhecem que se encontram em situação de insolvência atual, pois apenas esta determinará a necessária abertura de processo de insolvência em caso de recusa de homologação do plano (art. 222.º-G, n.º 4, e art. 3.º, n.º 4, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).
Pelo exposto, face ao manifesto estado de insolvência atual dos devedores, conclui-se pela verificação de violação não negligenciável de norma procedimental, determinativa da recusa de homologação do acordo de pagamento aprovado.”
Insurgem-se os Requerentes contra o decidido, com base na seguinte argumentação, que assim se sintetiza:
- a situação de insolvência não se basta com um grande diferencial entre o passivo e o passivo;
- o que releva é a vontade dos credores e estes decidiram – por maioria qualificada – a aprovação do plano, pelo que não podia o tribunal ter ido contra a vontade dos credores.
- ao decidir como decidiu o tribunal conheceu de factos que eram da competência dos devedores e dos seus credores e, em ultima instância, do Administrador Judicial Provisório, sendo a decisão nula ao abrigo do disposto na al. d) do nº 1 do art. 615º do CPC.
Comecemos pela invocada nulidade da decisão recorrida por ter conhecido de factos de que não poderia conhecer, cometendo a nulidade prevista no artigo 615º, nº 1, al. d), do CPC - “o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
Remetido o Plano de Pagamento ao tribunal, o credor J..., Caixilharia e Construção Metálica, Lda, veio requerer a não homologação do plano, com fundamento, entre outros, na circunstância de que os devedores não cumprem os requisitos legais para o recurso ao PEAP previstos no art. 222º-A, nº 1 do CIRE, visto se encontrarem, não em situação económica difícil ou de insolvência iminente, mas já em situação de insolvência, invocando para tal o valor do passivo, os rendimentos auferidos por aqueles e impossibilidade de cumprirem as suas obrigações vencidas.
 Constituindo a alegada situação de insolvência dos devedores um dos fundamentos de oposição à homologação do plano, solicitada por um dos credores, o tribunal não só podia, como tinha a obrigação de se pronunciar sobre tal questão (ainda que, no âmbito da mesma, pudesse vir a entender não caber ao juiz a apreciação da situação de insolvência enquanto motivo de recusa de homologação), sob pena de cometer, aí sim, a nulidade prevista na 1ª parte da citada al. d) do nº2 do artigo 615º CPC.
Como tal, não se reconhece a verificação da invocada nulidade.

*
O juiz pode indeferir liminarmente o requerimento inicial de apresentação a um PEAP, quando, pela documentação inicialmente junta pelo devedor, dê conta da inexistência de qualquer uma das situações fundamentantes de tal processo, por falta de algum pressuposto processual insuprível, em especial da falta de algum dos documentos mencionados nos  artigos 222º-C, nº 3 e 24º, do CIRE, assim como, proferido o despacho inicial de seguimento, deverá recusar oficiosamente a homologação do acordo que tenha sido alcançado, por “violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo” (art. 215º, ex vi, art. 222º-F, nº5, CIRE[1].
A questão que aqui se coloca é a de saber se, aquando do despacho de homologação do plano aprovado, pode/deve o juiz recusar a homologação do plano com fundamento na situação de insolvência atual do devedor.
O processo especial para acordo de pagamento destina-se a permitir que ao devedor que, não sendo uma empresa e se encontre “em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente”, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes acordo de pagamento.
E se o legislador esclareceu o que entende por “situação económica difícil” – encontra-se em tal situação o devedor que “enfrentar dificuldade séria para cumprir pontualmente as suas obrigações, designadamente por ter falta de liquidez ou por não conseguir obter crédito” (artigo 222º-A, CIRE) –, não adiantou qualquer definição do que seja “insolvência meramente iminente” ausência que a doutrina e a jurisprudência têm tentado colmatar[2]. Mais difícil e complexa se torna a distinção, quando nº 4 do artigo 3º do CIRE equipara à situação de insolvência atual a que se seja meramente iminente, no caso de apresentação do devedor à insolvência.
As dificuldades, quer na definição conceptual de tais figuras jurídicas, quer na apreciação da situação do devedor para efeitos de a qualificar como integrando uma insolvência iminente ou atual, aliada à carência de elementos presentes aquando da prolação do despacho liminar de recebimento do procedimento, a desjudicialização crescente do processo de insolvência e dos procedimentos pré-insolvenciais, colocando na mão dos credores a decisão sobre a “recuperabilidade” do devedor, levar-nos-ão a concluir que a possibilidade do juiz, de avaliação da situação económica do devedor, para efeitos de terminar se o mesmo se encontra em situação económica difícil/insolvência eminente ou em estado de insolvência atual, na fase do despacho liminar, se encontrará extremamente limitada.
Quer o PER, quer o PEAP, cujo regime surge decalcado do primeiro, estão configurados como processos pré-insolvenciais de natureza híbrida – negocial e judicial –, visando combater o desaparecimento económico de entidades financeiras ainda passíveis de recuperação ou a recuperação de pessoas jurídicas não titulares de empresas, através de mecanismos de negociação extrajudicial entre o devedor e os seus credores.
Iniciando-se tal procedimento pela manifestação de vontade do devedor e de, pelo menos, um dos seus credores, por meio de declaração escrita, de encetarem negociações conducentes à elaboração de acordo de pagamento, o nº 3 do artigo 222º-C exige, tão só, que o mesmo seja acompanhado dos seguintes elementos: i) a referida declaração escrita; ii) lista de todas as ações de cobrança de dívida pendentes contra o devedor, comprovativo da sua situação profissional ou, se aplicável, situação de desemprego, bem como cópias dos documentos elencados nas alíneas a), d) e e) do nº 1 do artigo 24º.
Considerando-se que a apresentação a tal procedimento tem como pressuposto substantivo que o devedor se encontre em “situação económica difícil” ou de insolvência, ainda que “iminente”, a apreciação a cargo do juiz neste momento processual – para o qual não se encontra prevista qualquer fase instrutória, ou sequer qualquer contraditório, devendo o juiz proferir despacho de recebimento, “de imediato”, com os elementos disponíveis nos autos (ressalvada a possibilidade de convite aos devedores para apresentarem alguns dos elementos previstos no nº 3 do artigo 222º-C) que se possam encontram em falta) –, terá de versar essencialmente sobre a existência dos requisitos formais, reservando-se a possibilidade de recusa do procedimento por falta de algum pressuposto substantivo, como o é a situação económica difícil ou a insolvência iminente do devedor, para um momento posterior, restringindo-se a possibilidade de indeferimento liminar aos casos em que seja “manifesta” a situação de insolvência atual do devedor[3].
Ou, como afirma Fátima Reis Silva, a insindicabilidade dos pressupostos substantivos do PER não significa a inexistência de um mínimo de controlo, sendo possível o indeferimento liminar em caso de insolvência atual comprovada[4].
Refletindo sobre a questão de saber se o juiz se deve ou não assegurar de que estão reunidos os requisitos materiais e formais de que depende o recurso ao PER, reflexões que são transponíveis para o PEAP – entendendo como requisitos materiais que o devedor se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja suscetível de recuperação (art. 17º-A, nº 1), Nuno Gundar da Cruz[5] identifica duas correntes de opinião distintas:
a) uma minoritária, segundo a qual não há controlo pelo juiz dos requisitos materiais e formais de acesso ao PER, não se encontrando prevista a hipótese de indeferimento do requerimento inicial;
b) uma maioritária, que defende que, embora não haja um controlo pelo juiz do preenchimento dos requisitos materiais de que depende o uso do PER, em situações específicas, o tribunal não pode deixar de indeferir o pedido de acesso ao PER.
Dentro desta tese maioritária, Catarina Serra[6] sustenta que, embora a lei não preveja expressamente o indeferimento liminar, há três grupos de casos em que se torna inevitável o indeferimento liminar: i) um primeiro grupo de casos respeitante às situações em que não estão preenchidos os requisitos formais (falta de apresentação dos documentos mencionados no art. 17º-C, ns. 1 e 2 ou no art. 24º, não obstante o juiz o ter convidado para o efeito); ii) um segundo grupo de casos, em que o devedor foi já declarado insolvente, independentemente de a sentença ter transitado em julgado; iii) e um terceiro grupo, quando não estejam verificados os requisitos materiais do PER, isto é, quando o devedor não esteja manifestamente em situação de pré-insolvência ou não seja manifestamente suscetível de recuperação.
Salienta-se, ainda, que, segundo estes autores, a análise deste requisito material por parte do juiz não comporta qualquer juízo de valor próprio sobre a situação ou viabilidade económica do devedor – nomeadamente sobre se encontra em situação económica difícil ou de insolvência iminente –, restringindo-se o despacho de indeferimento liminar aos casos de manifesta inviabilidade do pedido: por ex., se o devedor se apresentou previamente à insolvência com fundamento no estado de insolvência atual ou uma situação de não oposição à insolvência apresentada por credor, quando houver recorrido ao PER nos dois anos anteriores, ou sempre que da alegação do requerimento inicial resulte uma situação de insolvência atual.
Como salienta Nuno Gundar da Cruz, “a natureza liminar da apreciação realizada pelo juiz é contrabalançada pelos poderes de controlo do processo negocial e da atuação do devedor, conferidos pelo legislador aos credores e ao administrador judicial provisório[7]”: “o controlo de mérito sobre a verificação dos requisitos de acesso ao PER tem lugar extrajudicialmente, sendo feito pelos credores, no âmbito das negociações prosseguidas no PER, sob a orientação do administrador judicial provisório (ns. 8 e 9 do art. 17º-D), os quais apreciarão a bondade da pretensão, a lisura da conduta do juiz e a sua conformidade aos princípios a que é devida obediência (ns. 6 e 10º, art. 17º-D)[8]”.
Damos, assim, por assente que a possibilidade de se indeferir liminarmente o PEAP (ou o PER), designadamente por falta dos seus pressupostos legais, como na hipótese de o devedor se encontrar em insolvência atual, deverá ficar reservada aos tais casos manifestos[9], tanto mais que relativamente ao recém criado PEAP, nem sequer se exige a “recuperabilidade” do devedor.
Passamos agora à análise dos poderes atribuídos ao juiz no âmbito do posterior despacho de homologação do plano aprovado pelos credores.
Sobre os termos da aprovação do plano dispõe o nº 5 do artigo 222º-F:
O juiz decide se deve homologar o acordo de pagamento ou recusar a sua homologação, nos 10 dias seguintes à receção da documentação mencionada nos números anteriores, aplicando, com as necessárias adaptações, as regras vigentes em matéria de aprovação e homologação do plano de insolvência previstas no título IX, em especial o disposto nos artigos 215º e 216º”.
É o seguinte o teor dos artigos 215º e 216º do CIRE, para os quais se remete:
Artigo 215º
Não homologação oficiosa
O juiz recusa oficiosamente a homologação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza, e ainda quando, no prazo razoável que estabeleça, não se verifiquem as condições suspensivas do plano ou não sejam praticados os atos ou executadas as medidas que devam proceder à homologação.
Artigo 216º
Não homologação a solicitação dos interessados
“1. O juiz recusa a homologação se tal lhe for solicitado pelo devedor, caso este não seja o proponente e tiver manifestado nos autos a sua oposição, anteriormente à aprovação do plano de insolvência, ou por algum credor ou sócio, associado ou membro do devedor cuja oposição haja sido comunicada nos mesmos termos, contando que o requerente demonstre em termos plausíveis que:
(…).”
Tais normas preveem dois distintos grupos de situações que poderão levar à recusa, uma por via oficiosa (artigo 215º) e outra unicamente a requerimento do devedor ou credor que haja manifestado nos autos a sua oposição anteriormente à aprovação do plano de insolvência (artigo 216º).
Ao remeter para o disposto nos artigos 215º e 216º do CIRE, respeitantes à aprovação do plano de recuperação no processo de insolvência, optou o legislador por submeter à análise judicial o plano aprovado pelos credores, no âmbito da qual deve o juiz, oficiosamente, sindicar o cumprimento das regras procedimentais e de conteúdo não negligenciáveis, bem como, avaliar o mérito da oposição que tenha sido apresentada por algum credor: o juiz assume um papel de garante da legalidade, no âmbito do qual lhe restará assegurar-se de que não se verifica nenhuma das situações fundamentadoras da rejeição do plano estabelecidas no artigo 215º e, por outro, analisar os pedidos de não homologação do plano, se os houver (artigo 216º).
Será violação não negligenciável de regras apenas aquela que importe uma lesão de grave de valores ou interesses juridicamente titulados, isto é, uma lesão de tal modo grave que nem em atenção ao princípio da recuperação e aos interesses associados a este, o juiz pode deixar de recusar-se a homologar o plano, inviabilizando com isso a recuperação[10].
Tendo-se em consideração que o PEAP atribuiu um controlo efetivo do processo aos credores, em detrimento do controlo jurisdicional, em que se pretende promover e potenciar uma negociação inteiramente extrajudicial, fora do tribunal e quase fora do próprio processo, entende-se que, aprovado um PEAP (ou um PER) de acordo com as regras procedimentais aplicáveis, não incumbirá ao juiz proceder oficiosamente a uma indagação oficiosa acerca da situação de insolvência iminente/atual do devedor e muito menos da sua recuperabilidade (que, como o já acima referido, não constitui requisito de apresentação ao PEAP), excecionados os casos de abuso manifesto do recurso a tal meio pré-insolvencial.
Regressando ao caso dos autos, vejamos se a situação económica dos devedores configura uma situação de “manifesto estado de insolvência atual dos devedores”, como foi considerado na sentença recorrida.
Da factualidade dada por assente na sentença recorrida, não objeto de impugnação por parte dos Apelantes, sobressaem os seguintes factos absolutamente esclarecedores da situação sócio económica dos devedores:
- a devedora mulher, com 60 anos de idade, aufere o vencimento de 646,00 € mensais e o devedor marido, com 65 anos, reformado, aufere uma pensão de velhice no montante de 604,35 €;
- no seu requerimento inicial, são os próprios devedores que alegam não serem titulares de quaisquer bens, móveis ou imóveis (embora posteriormente se venha a apurar que a devedora é ainda detentora de um quinhão hereditário que se encontra penhorado numa ação executiva);
- os devedores indicam aí ter pendentes três processos judiciais, dois dos quais são execuções;
- alegam ainda apresentarem os seguintes débitos vencidos:
...
Atentar-se-á ainda que no âmbito doPEAP foram reconhecidos créditos de montante muito superior, no valor global de 987.225,86 €.
Desde logo, são os próprios devedores que, no art. 21º do requerimento inicial de apresentação ao PEAP, alegam encontrar-se “numa situação económica difícil que coloca em perigo a sua capacidade para fazer face aos compromissos assumidos, e, em última linha até, para prover à sua própria subsistência”.
E, como salienta o despacho recorrido, também eles, na resposta que posteriormente vêm dar aos pedidos de não homologação do plano, reconhecem expressamente a sua situação como sendo de insolvência atual, ao afirmarem “caso o plano em causa nos autos não seja homologado, o caminho a seguir será o da insolvência dos Devedores (…).
É certo que a insolvência não pode assentar única e exclusivamente numa comparação simples entre o ativo e o passivo do devedor pessoa singular – o passivo, ainda que em valor muito superior, pode não se encontrar vencido e o devedor possuir liquidez suficiente para ir cumprindo à medida que as suas obrigações se forem vencendo.
Contudo, no caso em apreço, o estado de insolvência não decorrerá tão só da comparação de um passivo na ordem dos 987.000,00€ (passivo este relativamente ao qual haverá outros responsáveis solidários para além dos requerentes) com um ativo correspondente ao quinhão hereditário da devedora mulher, no valor de cerca de 38.000,00€, mas, sobretudo, pela sua notória falta de liquidez para assumir ou cumprir quaisquer outros compromissos para além dos necessários à sua sobrevivência diária.
Da própria leitura do requerimento inicial (embora aí omita mais de 900.000,00€ de passivo, que vem a ser reconhecido nos presentes autos), resulta que a sua única fonte de rendimento (cada um auferindo rendimentos mensais a rondar a remuneração mínima mensal garantida[11]) é insuficiente para fazer face ao passivo já então vencido, e que, nas contas dos requerentes rondaria, então, os cerca de 85.000,00€.

O processo especial para acordo de pagamento destina-se a permitir ao devedor, que não sendo uma empresa e comprovadamente se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes acordo de pagamento (artigo 222º-A, CIRE).

Não definindo o Código o que pode entender-se por insolvência “iminente”, tratar-se-á necessariamente de um estado anterior à insolvência, o que nos remete para a noção de insolvência, definida pelo nº 1 do artigo 3º CIRE como a situação “do devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas”.

A insolvência iminente é a situação em que é possível prever/antever que o estará impossibilitado de cumprir as suas obrigações num futuro próximo, designadamente quando se vencerem estas obrigações[12].

Já a situação económica difícil é definida pelo artigo 222º-B como a situação do devedor que “encontrar dificuldade séria para cumprir pontualmente as suas obrigações, designadamente por ter falta de liquidez ou por não conseguir obter crédito”.

Segundo Nuno Salazar Casanova e David Serqueira Dinis[13], na situação económica difícil o devedor não poderá estar impossibilitado de cumprir a generalidade das suas obrigações. Pode cumpri-las, ainda que com sérias dificuldades, designadamente, por falta de liquidez ou por não conseguir obter crédito. “É o caso de o devedor que tem património para responder perante as suas dívidas, mas não tem fundos suficientes e, como tal, apenas consegue extinguir as suas obrigações, através de pagamentos em espécie, dações em cumprimento ou cessão de créditos ou outros direitos (o que pressupõe o acordo de credores) ou vendendo os seus ativos a um preço abaixo do valor de mercado a fim de obter liquidez imediata”.

Não é o incumprimento, ainda que generalizado, das suas obrigações vencidas, que carateriza a situação de insolvência, mas a “impossibilidade de cumprimento”, impossibilidade esta que não se reporta ao conceito de incumprimento tal como é definido pelo direito civil[14].

O termo impossibilidade é mais económico-financeiro do que técnico jurídico. Ele reporta-se à falta de meios económicos, em particular numerário, ou à falta de meios financeiros da empresa (porque goza de crédito), nos quais se incluem as possibilidades de financiamento que, uma vez mobilizadas, permitiriam fazer face às suas obrigações vencidas assegurando a sua viabilidade económica[15].

Tal como a doutrina vem entendendo, o incumprimento é um facto, enquanto a insolvência é um estado ou uma situação patrimonial do devedor[16].

O estado de insolvência exige um plus em relação ao incumprimento: enquanto este se refere a uma só obrigação individualmente considerada, a insolvência tem em consideração o património do devedor, assumindo um carater geral[17].

O que releva para o “estado” de insolvência, não é o incumprimento das obrigações vencidas, em si mero facto, mas antes a impossibilidade de o devedor as vir a cumprir, simplesmente porque não tem meios. O incumprimento de uma ou mais obrigações só tem importância na estrita medida em que resulte da situação de insuficiência do ativo para fazer face ao passivo vencido. O incumprimento aparece como uma manifestação externa da situação de ruína financeira – é a impossibilidade de pagar e não o incumprimento em si, o elemento essencial da insolvência[18].

Como sustenta Manuel Requicha Ferreira[19], a verificação desta incapacidade económico-financeira exige uma avaliação do património do devedor, nomeadamente da existência de meios económicos ou financeiros suficientes para satisfazer as obrigações vencidas deste. A capacidade de cumprir exige uma análise do ativo e do passivo para aferir da existência de meios económicos e financeiros, mas atende igualmente às manifestações daquela incapacidade de cumprir através de determinados fatores externos, incluindo o incumprimento.
A situação socioeconómica dos devedores relatada nos autos (e estes não alegam qualquer expectativa de melhoria da mesma) aponta no sentido de que auferindo os requerentes, no seu todo, 1.250,53 € mensais, dificilmente lhes sobraria seja o que for para fazer face ao passivo acumulado, já vencido e relativamente ao qual os requerentes já entraram em incumprimento.
A iminência da insolvência caracteriza-se pela ocorrência de circunstancias que, não tendo conduzido ao incumprimento em condições de poder considerar-se a situação de insolvência já atual, com toda a probabilidade a vão determinar a curto prazo, exatamente pela insuficiência do ativo liquido e disponível para satisfazer o passivo exigível[20].
Ou, nas palavras de Jorge Manuel Coutinho de Abreu, “existe tal situação quando se antevê como provável que o devedor não terá meios para cumprir a generalidade das suas obrigações (já existentes) no momento em que se vençam”.
E segundo Catarina Serra, a situação de insolvência não tem uma forma única, tanto pode ser a impossibilidade de cumprir as obrigações vencidas como, em certas condições, a situação de superioridade manifesta do passivo sobre o ativo[21].
Ainda segundo tal autora, uma coisa é a impossibilidade de cumprir, outra bem diferente, é o risco de, a curto prazo, isto ocorrer, numa palavra: uma é a “insolvência atual” e a outra é uma espécie de “insolvência potencial[22].
Voltando à situação em apreço, torna-se claro que a situação relatada no requerimento de apresentação à insolvência – com as retificações resultantes dos montes que vieram a ser esclarecidos nos autos e da existência de um direito ao quinhão de uma herança indivisa de que a devedora mulher é titular – integra manifestamente uma situação de insolvência atual: não só se verificou já um incumprimento generalizado das suas obrigações vencidas, como os rendimentos mensais que auferem, no confronto com o passivo reclamado e vencido (no valor global de 987.225,86€), refletem encontrarem-se os devedores incapacitados, por falta de meios, de cumprir as suas obrigações vencidas.
As circunstâncias económico-financeiras dos devedores descritas nos autos não deixam dúvidas quanto à atualidade da incapacidade dos devedores para cumprir. Não se trata do risco de, num futuro próximo, poderem vir a deixar de cumprir a generalidade das suas obrigações cumpridas. Os devedores já deixaram de as cumprir há muito, daí a instauração e pendência das ações executivas contra si e os valores que declaram encontrar-se vencidos à data da sua apresentação ao PEAP.
Concluindo, é de confirmar o juízo contido na decisão recorrida relativamente a este fundamento de recusa de homologação do plano aprovado pelos credores.
2. Impossibilidade de cumprimento do plano por não conter a clara indicação da situação reditícia dos devedores e dos meios que serão afetos à satisfação do acordo de pagamentos.
O tribunal a quo veio ainda a recusar a homologação do plano aprovado pelos credores, por não conter a clara indicação da situação reditícia dos devedores e dos meios que serão afetos à satisfação do acordo de pagamento, o que constituiria uma inobservância não negligenciável do conteúdo do plano, com a seguinte argumentação:
Sustenta ainda o credor J... – Caixilharia e Construção Metálica, Lda que, face aos rendimentos que auferem, os devedores não têm qualquer possibilidade de cumprir o plano, o qual mais não visa do que “limpar” o passivo dos devedores.
De acordo com o art. 195.º, n.ºs 1 e 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, relativo ao plano de insolvência, mas aplicável subsidiariamente ao acordo de pagamento, nos termos do art. 222.º-F, n.º 5, do mesmo diploma15, o plano deve indicar claramente as alterações dele decorrentes para as posições jurídicas dos credores da insolvência, indicar a sua finalidade, descrever as medidas necessárias à sua execução, já realizadas ou ainda a executar, e conter todos os elementos relevantes para efeitos da sua aprovação pelos credores e homologação pelo juiz. Deve, nomeadamente, indicar com clareza as alterações que comporta para a posição jurídica dos credores, esclarecer a situação patrimonial, financeira e reditícia do devedor, os meios que serão afetos à satisfação dos credores, e dar conta do impacte expectável das alterações propostas por comparação com a situação que se verificaria na ausência de plano.
O plano deve, assim, conter todos os elementos necessários à sua compreensão e perceção do seu futuro desenvolvimento, que possibilitem uma aprovação informada pelos credores, e uma homologação ponderada. Sendo que as exigências de clarificação relativas ao conteúdo do plano ou acordo de pagamento se justificam por duas ordens de razões: uma, «ligada à circunstância de o plano, estribado no princípio da liberdade de estipulação do conteúdo a que se fez referência, poder, realmente, orientar-se por vias substancialmente diversas entre si; outra, respeitante à necessidade de garantir o cabal esclarecimento dos que são chamados a decidir o destino do processo, de forma a poderem ponderar suficientemente as vantagens que estimam resultar da aprovação de um plano»16.
No caso concreto, o plano prevê o pagamento aos credores comuns, após um período de carência de vinte e cinco meses, de 25% do capital em dívida em 40 prestações trimestrais.
Atendendo a que a dívida de capital é de €923.596,49, através do acordo negociado, comprometem-se os devedores a pagar a quantia de €230.889,122, em 40 prestações trimestrais, com início decorridos mais de dois anos após a homologação. Mesmo não contabilizando juros, isso significa um valor trimestral de € 5.772,47, e um valor mensal de € 1.924,15.
Os devedores não indicaram, em qualquer ponto do acordo, com que meios ou rendimentos pretendem satisfazer as ditas prestações. E atendendo a que alegam viver com apenas €1.250,35 mensais, têm 60 e 67 anos de idade, não se prevendo, em função da sua idade, que venham a conhecer uma significativa alteração da sua situação reditícia, e têm um património extremamente diminuto, não se percebe que meios poderão afetar à satisfação dos credores, por forma a permitir o cumprimento do acordo de pagamento.
Assim sendo, considera-se que o plano não contém a clara indicação da situação reditícia dos devedores e dos meios que serão afetos à satisfação do acordo de pagamento, o que constitui igualmente violação de norma procedimental, não negligenciável na medida em que impossibilita a apreciação da sua viabilidade.
Deste modo, também por tal fundamento, deverá ser recusada a homologação do acordo de pagamento.”
Insurgem-se os Apelantes contra este segmento da decisão, com os seguintes fundamentos:
- com o plano de insolvência conseguiram reduzir a sua dívida para o montante de 230.998,112€, quantia equivalente à quantia devida pela maioria dos cidadãos portugueses, nomeadamente aqueles que possuem um crédito à habitação e nem por isso a maioria dos portugueses se encontra numa situação de insolvência;
- o período de carência de 25 meses terá de ser representativo de um balão de oxigénio para os devedores encontrarem outras formas de pagamento que agora não conseguem prever;
- a dívida advém de terem assumido, pessoal e solidariamente, na qualidade de avalistas, dívidas da empresa C..., Lda., empresa que se encontra com PER aprovado e homologado, o qual vem a ser cumprido, sendo que, ainda hoje, volvidos mais de 4 anos, a empresa se mantém em funcionamento, cumprindo o PER aprovado.
Cumpre apreciar tais fundamentos de oposição ao decidido pela 1ª instância.
Quanto à alegação de que, face ao perdão aprovado, reduziram a quantia em dívida a 230.998,112€, “quantia equivalente à quantia devida pela maioria dos cidadãos portugueses, nomeadamente aqueles que possuem um crédito à habitação e nem por isso a maioria dos portugueses se encontra numa situação de insolvência”, esquecem-se os Apelantes de uma diferença fundamental: se a maioria dos cidadãos possui dívidas à banca na sequência da contração de crédito à habitação, as responsabilidades totais do recurso a tal crédito não se encontram vencidas, vencendo-se, mensalmente e unicamente,  a respetiva prestação que, em regra, não excederá ou não deverá exceder 1/3 do rendimento mensal do agregado familiar.
Quanto ao alegado “balão de oxigénio” que poderiam constituir os acordados 25 meses de carência, continuam os devedores sem explicar onde poderão ir buscar outros meios de pagamento – quando auferem vencimentos próximos da remuneração mínima mensal garantida, o devedor marido já está reformado –, de modo a, decorridos esses 25 meses, poderem vir a suportar uma prestação com um valor mensal de €1.924,15?
Quanto à alegação de que a sociedade devedora à qual prestaram o aval que deu origem às suas responsabilidades se encontrar a cumprir – segundo os devedores/requerentes, a sociedade avalizada ter-se-á apresentado a um PER onde logrou a homologação de um plano de pagamentos e deduz-se que será este que, alegadamente, estará a ser cumprido por aquela –, não só, não consta do plano de pagamentos aqui em análise, como, nem sequer se encontra minimamente comprovada nos autos. Por outro lado, os insolventes, enquanto avalistas, respondem solidariamente e ao lado do devedor “principal”, pelo que, o eventual plano de pagamentos aprovado e homologado relativamente à sociedade avalista, não impediria o credor de reclamar a totalidade do crédito original perante os garantes, entre os quais os respetivos avalistas. Com efeito, estatui expressamente a primeira parte do artigo 217º, nº4 do CIRE que as providências previstas no plano de insolvência com incidência no passivo do devedor “não afetam a existência nem o montante dos direitos dos credores da insolvência contra os terceiros garantes da obrigação.”, norma esta analogicamente aplicável ao PER[23].
Ora, uma das regras relativas ao conteúdo do plano a que o mesmo deve obedecer, consta da al. b) do nº 2 do artigo 195º CIRE, segundo a qual o plano de insolvência deve indicar as medidas necessárias à sua execução e todos os elementos relevantes para efeitos da sua aprovação pelos credores e homologação pelo juiz, nomeadamente a indicação sobre como serão obtidos os meios de satisfação dos credores, se através da liquidação de algum bem, se à custa de rendimentos e quais, uma vez que, no caso em apreço, os rendimentos mensais são largamente inferiores ao valor das prestações previstas no plano.
E, como sustentam Luís Carvalho Fernandes e João Labareda[24], entender-se-á que, pelo menos, algumas das violações de regras aplicáveis ao conteúdo do plano são determinantes da sua não homologação oficiosa, daí a consequência de os vícios não poderem ser considerados supridos pelo facto de ter havido uma manifestação de vontade maioritária dos credores, traduzida na sua aprovação.
Concluindo, o juiz a quo, ao abrigo dos poderes que lhe são conferidos pelo artigo 215º, poderia/deveria ter recusado o plano aprovado pela ocorrência de “violação não negligenciável (…) das normas aplicáveis ao seu conteúdo”, confirmando a decisão recorrida de recusa de homologação do plano, também com este segundo fundamento.

A apelação é de improceder.

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordando os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, confirmando-se a decisão recorrida

Custas pelos Apelantes/devedores.             

                                            Coimbra, 10 de dezembro de 2020

V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº 7 do CPC.

1. Atribuindo o PEAP o controlo efetivo do processo aos credores, em detrimento do controlo jurisdicional, em que se pretende promover e potenciar uma negociação inteiramente extrajudicial, aprovado um PEAP de acordo com os procedimentos legais aplicáveis, não incumbirá ao juiz proceder a uma indagação oficiosa acerca da situação de insolvência iminente/atual do devedor e muito menos da sua recuperabilidade, excecionados os casos de abuso manifesto do recurso a tal meio pré-insolvencial (ex., quando existam elementos nos autos que revelem a confissão do devedor de que se encontra em insolvência atual).

2. Sendo os rendimentos mensais dos devedores largamente inferiores ao valor das prestações previstas no plano de pagamento aprovado, a ausência de indicação sobre como serão obtidos os meios de satisfação dos credores, se através da liquidação de algum bem, se à custa de rendimentos suplementares e quais, constituirá violação não negligenciável das normas aplicáveis ao conteúdo do plano (art. 215º CIRE).
 


***


[1] Neste sentido, relativamente ao PER, na redação anterior ao DL nº 79/2017, que reservou e desenhou um PER dirigido às empresas, criando o PEAP para as pessoas singulares, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 2ª ed., Quid Juris, p.142.
[2] Segundo Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, “a iminência da insolvência caracteriza-se pela ocorrência de circunstâncias que, não tendo ainda conduzido a situação de insolvência já atual, com toda a probabilidade a vão determinar a curto prazo, exatamente por insuficiência do ativo líquido e disponível para satisfazer o passivo exigível” – Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 2ª ed., p.86. L. Miguel Pestana de Vasconcelos, socorre-se da definição constante da lei alemã, que tem por “iminente a insolvência do devedor quando ele, previsivelmente, não estará em posição de cumprir as suas obrigações no momento em que elas vierem a vencer-se”. Socorre-se ainda do pensamento de H. Hess, segundo o qual “quando da análise financeira resulta previsível que os meios de pagamento não serão suficientes para cumprir as obrigações vincendas, sem que seja possível obtê-los, recorrendo a uma outra fonte de financiamento – “Recuperação de Empresas: o processo especial de revitalização”, Almedina 2017, p.41 e nota 96. Segundo Catarina Serra, “a insolvência iminente é a situação em que o devedor antevê que estará impossibilitado de cumprir as suas obrigações quando elas se vencerem, no futuro próximo – “Revitalização – A designação e o misterioso objeto designado. O processo homónimo (PER) e as suas ligações com a insolvência (situação e processo) e com o SIREVE”, In I Congresso do Direito da Insolvência, Coordenação: Catarina Serra, 2013, Almedina, p.91.
[3] Em igual sentido se pronuncia Fátima Reis Silva, afirmando que “o juiz não tem a possibilidade de, no curto prazo que a lei lhe comete para proferir o despacho inicial, de aferir, pela consulta dos documentos previstos no artigo 24º, se a situação é efetivamente de insolvência iminente ou de situação económica difícil ou de insolvência atual, até porque se trata de um juízo técnico complexo  que o juiz faz em processo de insolvência, rodeado de contraditório, de meios de prova, alguns vinculados, de um sistema de presunções e de várias regras gerais; e, na verdade, serão os credores e o mercado a fazer esse juízo decisivo, aprovando o plano, caso em que, maioritariamente, estarão de acordo pela recuperabilidade ou rejeitando o mesmo, caso em que tal ónus passa para o administrador judicial provisório, a quem competirá avaliar e transmitir aos autos a situação – “Processo Especial de Revitalização, Notas Práticas e Jurisprudência Recente”, Porto Editora, 2014, pp.19-20.
[4] Fátima Reis Silva, obra citada, p.20.
[5] “Processo Especial de Revitalização, Estudo sobre os poderes do juiz”, Petrony, pp. 28 e ss.
[6] “O Processo Especial de Revitalização na Jurisprudência”, Almedina 2016, pp. 43-48.
[7] “Processo Especial de Revitalização (…), p.42.
[8] Nuno Gundar Cruz, citando o Acórdão do TRP de 15 de novembro de 2012, relatado por José Amaral, in www.dgsi.pt.
[9] Neste sentido, se acabam por pronunciar Luís Meneses Leitão, “A Recuperação Económica dos Devedores”, Almedina, p. 41-42 e 71-72.
[10] Catarina Serra, “Lições de Direito da Insolvência”, Almedina, p. 474.
[11] Definida para o ano de 2020, no valor de 635,00 €, pelo DL nº 167/2019, de 21 de novembro.
[12] Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, Almedina, 2019, p.63. Em igual sentido, Jorge Manuel Coutinho de Abreu, “Curso de Direito Comercial”, Vol. I (Introdução, Actos de Comércio, Comerciantes, Empresas, Sinais Distintivos), Almedina, 10ª ed., 2016, p.139, e Miguel Pestana de Vasconcelos, “Recuperação de empresas: o processo especial de revitalização”, 2017, Almedina, p. 41. Tal avaliação resultará de um juízo de prognose: “a eminência da insolvência carateriza-se pela existência de circunstâncias que, não tendo conduzido ainda ao incumprimento em condições de poder considerar-se a situação de insolvência já atual, com toda a probabilidade a vão determinar a curto prazo, exatamente pela insuficiência do ativo líquido e disponível para satisfazer o passivo exigível” – Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 3ª ed., 2015, QUID JURIS, p.87.
[13] “PER, O Processo Especial de Revitalização”, Comentários aos artigos 17º-A a 17º-I do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas, Coimbra Editora 2014, pp.22-23.
[14] Não se identificando com a impossibilidade, objetiva ou subjetiva, temporária ou definitiva, de cumprimento prevista nos arts. 790º, 791º, 792º e 801º, do Código Civil.
[15] Manuel Requicha Ferreira, “Estado de Insolvência”, in Direito da Insolvência, Estudos, Coord. Rui Pinto, Coimbra Editora, pp. 228 e 229.
[16] Catarina Serra, “A Falência no Quadro (…), pág. 234. Para esta autora, “A impossibilidade caraterizadora da insolvência é o que pode chamar-se um “conceito funcional”, conceito que, por força do seu enquadramento normativo e da função que desempenha, deve ser associado a uma determinada situação patrimonial, económica ou contabilística do devedor, susceptível de afectar de forma indeterminada ou não imediatamente determinável, a generalidade das suas obrigações” (obra citada, p. 236, nota 622).
[17] Manuel Requicha Ferreira, “Estado de Insolvência”, in “Direito da Insolvência, Estudos”, Coordenação de Rui Pinto, pág. 221.
[18] Nuno Maria Pinheiro Torres, “Pressuposto Objetivo do Processo de Insolvência”, Direito e Justiça, Vol. XIX 2005, T II, Universidade Católica Portuguesa Faculdade de Direito, p. 169.
[19] Artigo e local citados, p. 230.
[20] Catarina Serra, “A Falência no Quadro da Tutela Jurisdicional dos Direitos de Crédito”, Coimbra Editora, p. 239, nota 633.
[21] Obra citada, pp. 241
[22] Catarina Serra, obra citada, pp.240-241.
[23] Neste sentido, Catarina Serra, onde afirma resultar de tal preceito que o perdão concedido ao insolvente não extingue a responsabilidade dos condevedores e garantes nem a redução do valor da dívida do insolvente desonera os condevedores e garantes da responsabilidade pelo pagamento da totalidade – “O Processo Especial de Revitalização na Jurisprudência”, 2016, Almedina, p.112-117.
[24] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 2ª ed., Quid Juris, anotação 6. ao artigo 195º, p. 557.