Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | MARIA JOÃO AREIAS | ||
Descritores: | PEAP NÃO APRECIAÇÃO JUDICIA INSOLVÊNCIA IMINENTE DO DEVEDOR HOMOLOGAÇÃO DO PLANO VIOLAÇÃO NÃO NEGLIGENCIÁVEL DE NORMA PROCEDIMENTAL | ||
Data do Acordão: | 12/10/2020 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JUÍZO DE COMÉRCIO DE COIMBRA – JUIZ 3 | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTºS 17º, 215º, 222º-A E 222º-F, DO CIRE. | ||
Sumário: | 1. Atribuindo o PEAP o controlo efetivo do processo aos credores, em detrimento do controlo jurisdicional, em que se pretende promover e potenciar uma negociação inteiramente extrajudicial, aprovado um PEAP de acordo com os procedimentos legais aplicáveis, não incumbirá ao juiz proceder a uma indagação oficiosa acerca da situação de insolvência iminente/atual do devedor e muito menos da sua recuperabilidade, excecionados os casos de abuso manifesto do recurso a tal meio pré-insolvencial (ex., quando existam elementos nos autos que revelem a confissão do devedor de que se encontra em insolvência atual). 2. Sendo os rendimentos mensais dos devedores largamente inferiores ao valor das prestações previstas no plano de pagamento aprovado, a ausência de indicação sobre como serão obtidos os meios de satisfação dos credores, se através da liquidação de algum bem, se à custa de rendimentos suplementares e quais, constituirá violação não negligenciável das normas aplicáveis ao conteúdo do plano (art. 215º CIRE). | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra: I – RELATÓRIO L... e mulher, O..., vieram, ao abrigo do disposto no artigo 222.º-A do CIRE, intentar o presente processo especial para acordo de pagamento (PEAP). Admitido liminarmente o requerimento e nomeado Administrador Judicial Provisório, por este foi junta aos autos a lista provisória de créditos prevista no art. 222.º-D, ns. 2 e 3, aplicável por força do art. 17º-I, nº3, ambos do CIRE. Apresentado acordo de pagamentos e submetido a votação, recolheu o voto favorável de credores cujos créditos representam 61,365% da totalidade dos votos emitidos. Dentro do prazo previsto no art. 222.º-F, n.º 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, vieram os seguintes credores requerer a não homologação do plano: 1. O credor J... – Caixilharia e Construção Metálica, Lda., alegando, em síntese: i) os devedores não cumprem os requisitos legais para o recurso ao PEAP, visto se encontrarem em situação económica difícil ou de insolvência iminente, mas já em situação de insolvência, ii) é manifestamente impossível a estes cumprir o plano, porque os rendimentos mensais que auferem o não permitem; iii) a sua situação ao abrigo do plano é menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano, uma vez que, não sendo homologado o plano, é expectável que prossiga a ação executiva que moveu ao devedor, e na qual foi penhorado o quinhão hereditário de que este é titular. 2. O credor C... invocou igualmente que o plano, ao prever um perdão de 75% do capital e dívida, perdão dos juros vencidos e uma taxa de juro reduzida para o remanescente, o coloca numa situação menos vantajosa do que a que interviria na ausência do mesmo. Os devedores responderam ao requerimento do credor J...– Caixilharia e Construção Metálica, Lda defendendo, em síntese útil, que se não encontram em situação de insolvência, a qual, ademais, cabe à maioria dos credores aquilatar, e que o invocado quanto à impossibilidade de cumprimento do plano mais não consiste do que numa opinião do credor. Sustentam também que é falso que a situação do credor ao abrigo do plano seja mais favorável do que na ausência de qualquer plano, uma vez que se o plano não for aprovado o caminho será o da insolvência dos devedores, e que em cenário de liquidação, tendo em conta que o único bem dos devedores é o quinhão hereditário a que o mesmo alude, este receberá menos de 25% do seu crédito. Os devedores responderam ainda ao requerimento do credor C..., invocando que o credor não demonstra a alegada situação mais desfavorável ao abrigo do plano, limitando-se a tecer considerações vagas. Pelo juiz a quo foi proferido o Despacho, de que agora se recorre, reconhecendo que o Plano de Pagamentos se mostra aprovado pela maioria legalmente necessária, recusando, contudo, a sua homologação, por violação não negligenciável de norma procedimental, com fundamento: i) no manifesto estado de insolvência atual dos devedores e ii) não conter a clara indicação da situação reditícia dos devedores e dos meios que serão afetos à satisfação do acordo de pagamentos. * Inconformados com tal decisão, os devedores L... e esposa. dela interpõem recurso de apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões: ... A decisão recorrida violou designadamente os artigos 222º-A, nº1, 222º-C, nº1, 222º-F nº5, 194º e 215º, todos do CIRE, bem como os artigos 154º do CPC e os 61º, 62º e 203º da CRP. Termos em que deve a presente recurso ser aceite e, por via do mesmo, ser a sentença nula por excesso de pronúncia. Ainda que assim não se entenda deve ser revogada e substituído por outra que homologue o plano apresentado e aprovado pelos credores nos autos com todas as consequências legais. Não foram apresentadas contra-alegações. * O juiz pode indeferir liminarmente o requerimento inicial de apresentação a um PEAP, quando, pela documentação inicialmente junta pelo devedor, dê conta da inexistência de qualquer uma das situações fundamentantes de tal processo, por falta de algum pressuposto processual insuprível, em especial da falta de algum dos documentos mencionados nos artigos 222º-C, nº 3 e 24º, do CIRE, assim como, proferido o despacho inicial de seguimento, deverá recusar oficiosamente a homologação do acordo que tenha sido alcançado, por “violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo” (art. 215º, ex vi, art. 222º-F, nº5, CIRE[1].A questão que aqui se coloca é a de saber se, aquando do despacho de homologação do plano aprovado, pode/deve o juiz recusar a homologação do plano com fundamento na situação de insolvência atual do devedor. O processo especial para acordo de pagamento destina-se a permitir que ao devedor que, não sendo uma empresa e se encontre “em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente”, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes acordo de pagamento. E se o legislador esclareceu o que entende por “situação económica difícil” – encontra-se em tal situação o devedor que “enfrentar dificuldade séria para cumprir pontualmente as suas obrigações, designadamente por ter falta de liquidez ou por não conseguir obter crédito” (artigo 222º-A, CIRE) –, não adiantou qualquer definição do que seja “insolvência meramente iminente” ausência que a doutrina e a jurisprudência têm tentado colmatar[2]. Mais difícil e complexa se torna a distinção, quando nº 4 do artigo 3º do CIRE equipara à situação de insolvência atual a que se seja meramente iminente, no caso de apresentação do devedor à insolvência. As dificuldades, quer na definição conceptual de tais figuras jurídicas, quer na apreciação da situação do devedor para efeitos de a qualificar como integrando uma insolvência iminente ou atual, aliada à carência de elementos presentes aquando da prolação do despacho liminar de recebimento do procedimento, a desjudicialização crescente do processo de insolvência e dos procedimentos pré-insolvenciais, colocando na mão dos credores a decisão sobre a “recuperabilidade” do devedor, levar-nos-ão a concluir que a possibilidade do juiz, de avaliação da situação económica do devedor, para efeitos de terminar se o mesmo se encontra em situação económica difícil/insolvência eminente ou em estado de insolvência atual, na fase do despacho liminar, se encontrará extremamente limitada. Quer o PER, quer o PEAP, cujo regime surge decalcado do primeiro, estão configurados como processos pré-insolvenciais de natureza híbrida – negocial e judicial –, visando combater o desaparecimento económico de entidades financeiras ainda passíveis de recuperação ou a recuperação de pessoas jurídicas não titulares de empresas, através de mecanismos de negociação extrajudicial entre o devedor e os seus credores. Iniciando-se tal procedimento pela manifestação de vontade do devedor e de, pelo menos, um dos seus credores, por meio de declaração escrita, de encetarem negociações conducentes à elaboração de acordo de pagamento, o nº 3 do artigo 222º-C exige, tão só, que o mesmo seja acompanhado dos seguintes elementos: i) a referida declaração escrita; ii) lista de todas as ações de cobrança de dívida pendentes contra o devedor, comprovativo da sua situação profissional ou, se aplicável, situação de desemprego, bem como cópias dos documentos elencados nas alíneas a), d) e e) do nº 1 do artigo 24º. Considerando-se que a apresentação a tal procedimento tem como pressuposto substantivo que o devedor se encontre em “situação económica difícil” ou de insolvência, ainda que “iminente”, a apreciação a cargo do juiz neste momento processual – para o qual não se encontra prevista qualquer fase instrutória, ou sequer qualquer contraditório, devendo o juiz proferir despacho de recebimento, “de imediato”, com os elementos disponíveis nos autos (ressalvada a possibilidade de convite aos devedores para apresentarem alguns dos elementos previstos no nº 3 do artigo 222º-C) que se possam encontram em falta) –, terá de versar essencialmente sobre a existência dos requisitos formais, reservando-se a possibilidade de recusa do procedimento por falta de algum pressuposto substantivo, como o é a situação económica difícil ou a insolvência iminente do devedor, para um momento posterior, restringindo-se a possibilidade de indeferimento liminar aos casos em que seja “manifesta” a situação de insolvência atual do devedor[3]. Ou, como afirma Fátima Reis Silva, a insindicabilidade dos pressupostos substantivos do PER não significa a inexistência de um mínimo de controlo, sendo possível o indeferimento liminar em caso de insolvência atual comprovada[4]. Refletindo sobre a questão de saber se o juiz se deve ou não assegurar de que estão reunidos os requisitos materiais e formais de que depende o recurso ao PER, reflexões que são transponíveis para o PEAP – entendendo como requisitos materiais que o devedor se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja suscetível de recuperação (art. 17º-A, nº 1), Nuno Gundar da Cruz[5] identifica duas correntes de opinião distintas: a) uma minoritária, segundo a qual não há controlo pelo juiz dos requisitos materiais e formais de acesso ao PER, não se encontrando prevista a hipótese de indeferimento do requerimento inicial; b) uma maioritária, que defende que, embora não haja um controlo pelo juiz do preenchimento dos requisitos materiais de que depende o uso do PER, em situações específicas, o tribunal não pode deixar de indeferir o pedido de acesso ao PER. Dentro desta tese maioritária, Catarina Serra[6] sustenta que, embora a lei não preveja expressamente o indeferimento liminar, há três grupos de casos em que se torna inevitável o indeferimento liminar: i) um primeiro grupo de casos respeitante às situações em que não estão preenchidos os requisitos formais (falta de apresentação dos documentos mencionados no art. 17º-C, ns. 1 e 2 ou no art. 24º, não obstante o juiz o ter convidado para o efeito); ii) um segundo grupo de casos, em que o devedor foi já declarado insolvente, independentemente de a sentença ter transitado em julgado; iii) e um terceiro grupo, quando não estejam verificados os requisitos materiais do PER, isto é, quando o devedor não esteja manifestamente em situação de pré-insolvência ou não seja manifestamente suscetível de recuperação. Salienta-se, ainda, que, segundo estes autores, a análise deste requisito material por parte do juiz não comporta qualquer juízo de valor próprio sobre a situação ou viabilidade económica do devedor – nomeadamente sobre se encontra em situação económica difícil ou de insolvência iminente –, restringindo-se o despacho de indeferimento liminar aos casos de manifesta inviabilidade do pedido: por ex., se o devedor se apresentou previamente à insolvência com fundamento no estado de insolvência atual ou uma situação de não oposição à insolvência apresentada por credor, quando houver recorrido ao PER nos dois anos anteriores, ou sempre que da alegação do requerimento inicial resulte uma situação de insolvência atual. Como salienta Nuno Gundar da Cruz, “a natureza liminar da apreciação realizada pelo juiz é contrabalançada pelos poderes de controlo do processo negocial e da atuação do devedor, conferidos pelo legislador aos credores e ao administrador judicial provisório[7]”: “o controlo de mérito sobre a verificação dos requisitos de acesso ao PER tem lugar extrajudicialmente, sendo feito pelos credores, no âmbito das negociações prosseguidas no PER, sob a orientação do administrador judicial provisório (ns. 8 e 9 do art. 17º-D), os quais apreciarão a bondade da pretensão, a lisura da conduta do juiz e a sua conformidade aos princípios a que é devida obediência (ns. 6 e 10º, art. 17º-D)[8]”. Damos, assim, por assente que a possibilidade de se indeferir liminarmente o PEAP (ou o PER), designadamente por falta dos seus pressupostos legais, como na hipótese de o devedor se encontrar em insolvência atual, deverá ficar reservada aos tais casos manifestos[9], tanto mais que relativamente ao recém criado PEAP, nem sequer se exige a “recuperabilidade” do devedor. Passamos agora à análise dos poderes atribuídos ao juiz no âmbito do posterior despacho de homologação do plano aprovado pelos credores. Sobre os termos da aprovação do plano dispõe o nº 5 do artigo 222º-F: “O juiz decide se deve homologar o acordo de pagamento ou recusar a sua homologação, nos 10 dias seguintes à receção da documentação mencionada nos números anteriores, aplicando, com as necessárias adaptações, as regras vigentes em matéria de aprovação e homologação do plano de insolvência previstas no título IX, em especial o disposto nos artigos 215º e 216º”. É o seguinte o teor dos artigos 215º e 216º do CIRE, para os quais se remete: Artigo 215º Não homologação oficiosa O juiz recusa oficiosamente a homologação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza, e ainda quando, no prazo razoável que estabeleça, não se verifiquem as condições suspensivas do plano ou não sejam praticados os atos ou executadas as medidas que devam proceder à homologação. Artigo 216º Não homologação a solicitação dos interessados “1. O juiz recusa a homologação se tal lhe for solicitado pelo devedor, caso este não seja o proponente e tiver manifestado nos autos a sua oposição, anteriormente à aprovação do plano de insolvência, ou por algum credor ou sócio, associado ou membro do devedor cuja oposição haja sido comunicada nos mesmos termos, contando que o requerente demonstre em termos plausíveis que: (…).” Tais normas preveem dois distintos grupos de situações que poderão levar à recusa, uma por via oficiosa (artigo 215º) e outra unicamente a requerimento do devedor ou credor que haja manifestado nos autos a sua oposição anteriormente à aprovação do plano de insolvência (artigo 216º). Ao remeter para o disposto nos artigos 215º e 216º do CIRE, respeitantes à aprovação do plano de recuperação no processo de insolvência, optou o legislador por submeter à análise judicial o plano aprovado pelos credores, no âmbito da qual deve o juiz, oficiosamente, sindicar o cumprimento das regras procedimentais e de conteúdo não negligenciáveis, bem como, avaliar o mérito da oposição que tenha sido apresentada por algum credor: o juiz assume um papel de garante da legalidade, no âmbito do qual lhe restará assegurar-se de que não se verifica nenhuma das situações fundamentadoras da rejeição do plano estabelecidas no artigo 215º e, por outro, analisar os pedidos de não homologação do plano, se os houver (artigo 216º). Será violação não negligenciável de regras apenas aquela que importe uma lesão de grave de valores ou interesses juridicamente titulados, isto é, uma lesão de tal modo grave que nem em atenção ao princípio da recuperação e aos interesses associados a este, o juiz pode deixar de recusar-se a homologar o plano, inviabilizando com isso a recuperação[10]. Tendo-se em consideração que o PEAP atribuiu um controlo efetivo do processo aos credores, em detrimento do controlo jurisdicional, em que se pretende promover e potenciar uma negociação inteiramente extrajudicial, fora do tribunal e quase fora do próprio processo, entende-se que, aprovado um PEAP (ou um PER) de acordo com as regras procedimentais aplicáveis, não incumbirá ao juiz proceder oficiosamente a uma indagação oficiosa acerca da situação de insolvência iminente/atual do devedor e muito menos da sua recuperabilidade (que, como o já acima referido, não constitui requisito de apresentação ao PEAP), excecionados os casos de abuso manifesto do recurso a tal meio pré-insolvencial. Regressando ao caso dos autos, vejamos se a situação económica dos devedores configura uma situação de “manifesto estado de insolvência atual dos devedores”, como foi considerado na sentença recorrida. Da factualidade dada por assente na sentença recorrida, não objeto de impugnação por parte dos Apelantes, sobressaem os seguintes factos absolutamente esclarecedores da situação sócio económica dos devedores: - a devedora mulher, com 60 anos de idade, aufere o vencimento de 646,00 € mensais e o devedor marido, com 65 anos, reformado, aufere uma pensão de velhice no montante de 604,35 €; - no seu requerimento inicial, são os próprios devedores que alegam não serem titulares de quaisquer bens, móveis ou imóveis (embora posteriormente se venha a apurar que a devedora é ainda detentora de um quinhão hereditário que se encontra penhorado numa ação executiva); - os devedores indicam aí ter pendentes três processos judiciais, dois dos quais são execuções; - alegam ainda apresentarem os seguintes débitos vencidos: ... Atentar-se-á ainda que no âmbito doPEAP foram reconhecidos créditos de montante muito superior, no valor global de 987.225,86 €. Desde logo, são os próprios devedores que, no art. 21º do requerimento inicial de apresentação ao PEAP, alegam encontrar-se “numa situação económica difícil que coloca em perigo a sua capacidade para fazer face aos compromissos assumidos, e, em última linha até, para prover à sua própria subsistência”. E, como salienta o despacho recorrido, também eles, na resposta que posteriormente vêm dar aos pedidos de não homologação do plano, reconhecem expressamente a sua situação como sendo de insolvência atual, ao afirmarem “caso o plano em causa nos autos não seja homologado, o caminho a seguir será o da insolvência dos Devedores (…). É certo que a insolvência não pode assentar única e exclusivamente numa comparação simples entre o ativo e o passivo do devedor pessoa singular – o passivo, ainda que em valor muito superior, pode não se encontrar vencido e o devedor possuir liquidez suficiente para ir cumprindo à medida que as suas obrigações se forem vencendo. Contudo, no caso em apreço, o estado de insolvência não decorrerá tão só da comparação de um passivo na ordem dos 987.000,00€ (passivo este relativamente ao qual haverá outros responsáveis solidários para além dos requerentes) com um ativo correspondente ao quinhão hereditário da devedora mulher, no valor de cerca de 38.000,00€, mas, sobretudo, pela sua notória falta de liquidez para assumir ou cumprir quaisquer outros compromissos para além dos necessários à sua sobrevivência diária. Da própria leitura do requerimento inicial (embora aí omita mais de 900.000,00€ de passivo, que vem a ser reconhecido nos presentes autos), resulta que a sua única fonte de rendimento (cada um auferindo rendimentos mensais a rondar a remuneração mínima mensal garantida[11]) é insuficiente para fazer face ao passivo já então vencido, e que, nas contas dos requerentes rondaria, então, os cerca de 85.000,00€. O processo especial para acordo de pagamento destina-se a permitir ao devedor, que não sendo uma empresa e comprovadamente se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes acordo de pagamento (artigo 222º-A, CIRE). Não definindo o Código o que pode entender-se por insolvência “iminente”, tratar-se-á necessariamente de um estado anterior à insolvência, o que nos remete para a noção de insolvência, definida pelo nº 1 do artigo 3º CIRE como a situação “do devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas”. A insolvência iminente é a situação em que é possível prever/antever que o estará impossibilitado de cumprir as suas obrigações num futuro próximo, designadamente quando se vencerem estas obrigações[12]. Já a situação económica difícil é definida pelo artigo 222º-B como a situação do devedor que “encontrar dificuldade séria para cumprir pontualmente as suas obrigações, designadamente por ter falta de liquidez ou por não conseguir obter crédito”. Segundo Nuno Salazar Casanova e David Serqueira Dinis[13], na situação económica difícil o devedor não poderá estar impossibilitado de cumprir a generalidade das suas obrigações. Pode cumpri-las, ainda que com sérias dificuldades, designadamente, por falta de liquidez ou por não conseguir obter crédito. “É o caso de o devedor que tem património para responder perante as suas dívidas, mas não tem fundos suficientes e, como tal, apenas consegue extinguir as suas obrigações, através de pagamentos em espécie, dações em cumprimento ou cessão de créditos ou outros direitos (o que pressupõe o acordo de credores) ou vendendo os seus ativos a um preço abaixo do valor de mercado a fim de obter liquidez imediata”. Não é o incumprimento, ainda que generalizado, das suas obrigações vencidas, que carateriza a situação de insolvência, mas a “impossibilidade de cumprimento”, impossibilidade esta que não se reporta ao conceito de incumprimento tal como é definido pelo direito civil[14]. O termo impossibilidade é mais económico-financeiro do que técnico jurídico. Ele reporta-se à falta de meios económicos, em particular numerário, ou à falta de meios financeiros da empresa (porque goza de crédito), nos quais se incluem as possibilidades de financiamento que, uma vez mobilizadas, permitiriam fazer face às suas obrigações vencidas assegurando a sua viabilidade económica[15]. Tal como a doutrina vem entendendo, o incumprimento é um facto, enquanto a insolvência é um estado ou uma situação patrimonial do devedor[16]. O estado de insolvência exige um plus em relação ao incumprimento: enquanto este se refere a uma só obrigação individualmente considerada, a insolvência tem em consideração o património do devedor, assumindo um carater geral[17]. O que releva para o “estado” de insolvência, não é o incumprimento das obrigações vencidas, em si mero facto, mas antes a impossibilidade de o devedor as vir a cumprir, simplesmente porque não tem meios. O incumprimento de uma ou mais obrigações só tem importância na estrita medida em que resulte da situação de insuficiência do ativo para fazer face ao passivo vencido. O incumprimento aparece como uma manifestação externa da situação de ruína financeira – é a impossibilidade de pagar e não o incumprimento em si, o elemento essencial da insolvência[18]. Como sustenta Manuel Requicha Ferreira[19], a verificação desta incapacidade económico-financeira exige uma avaliação do património do devedor, nomeadamente da existência de meios económicos ou financeiros suficientes para satisfazer as obrigações vencidas deste. A capacidade de cumprir exige uma análise do ativo e do passivo para aferir da existência de meios económicos e financeiros, mas atende igualmente às manifestações daquela incapacidade de cumprir através de determinados fatores externos, incluindo o incumprimento. A apelação é de improceder. IV – DECISÃO Pelo exposto, acordando os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, confirmando-se a decisão recorrida Custas pelos Apelantes/devedores. Coimbra, 10 de dezembro de 2020 V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº 7 do CPC. 1. Atribuindo o PEAP o controlo efetivo do processo aos credores, em detrimento do controlo jurisdicional, em que se pretende promover e potenciar uma negociação inteiramente extrajudicial, aprovado um PEAP de acordo com os procedimentos legais aplicáveis, não incumbirá ao juiz proceder a uma indagação oficiosa acerca da situação de insolvência iminente/atual do devedor e muito menos da sua recuperabilidade, excecionados os casos de abuso manifesto do recurso a tal meio pré-insolvencial (ex., quando existam elementos nos autos que revelem a confissão do devedor de que se encontra em insolvência atual). 2. Sendo os rendimentos mensais dos devedores largamente inferiores ao valor das prestações previstas no plano de pagamento aprovado, a ausência de indicação sobre como serão obtidos os meios de satisfação dos credores, se através da liquidação de algum bem, se à custa de rendimentos suplementares e quais, constituirá violação não negligenciável das normas aplicáveis ao conteúdo do plano (art. 215º CIRE). ***
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