Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
520/11.1TBMMV.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL SILVA
Descritores: MATÉRIA DE FACTO
IMPUGNAÇÃO
ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO
IRS
RETENÇÃO NA FONTE
Data do Acordão: 04/14/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA – MONTEMOR O VELHO – SEC. COMP. GENÉRICA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 640º, Nº 1 DO NCPC; 20º, Nº 2 DA LEI GERAL TRIBUTÁRIA; 98º, Nº 1 DO CIRS; DECRETO-LEI Nº 134/2001, DE 24.04.
Sumário: I – Tendo a Autora estribado a sua pretensão na responsabilidade contratual e na extracontratual (ou por factos ilícitos), o juiz deve conhecer de ambas, pelo que não se verifica excesso de pronúncia se a condenação do Réu resultar de alguma dessas causas de pedir.
II - A matéria de facto cuida apenas de factos, enquanto ocorrências concretas da vida, percetíveis aos sentidos humanos. O pedido formulado na acção, a abordagem das regras legais e do sentido jurídico da decisão não integram impugnação da matéria de facto.

III - Se o Recorrente não identifica quais os “concretos pontos de facto” tidos por incorretamente julgados, não faz qualquer referência aos “concretos meios probatórios” que em sua opinião impunham decisão diversa, nem sobre o “sentido da decisão” que deveria ser proferida, há que rejeitar a reapreciação da matéria de facto, sem qualquer convite a aperfeiçoamento das conclusões.

IV - O momento relevante para a retenção na fonte do montante devido em sede de IRS por honorários relativos a prestação de serviços é o da respetiva liquidação, e não o do efetivo recebimento dos honorários por quem a eles tem direito. Em consonância, a entidade devedora terá de entregar ao Estado o montante retido até ao dia 20 do mês seguinte àquele em que o deduziu, e não àquele em que pagou os honorários.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

I - HISTÓRICO DO PROCESSO

                1.            S... (de futuro, apenas Autora) instaurou ação contra N... (de futuro, apenas Réu) pedindo a sua condenação a pagar-lhe € 5.443,25, acrescidos de juros, a título de indemnização.

                Fundamentou o seu pedido alegando ter com ele outorgado um contrato de prestação de serviços de contabilidade e assessoria fiscal, que o Réu prestou de forma defeituosa (responsabilidade contratual), vindo a causar-lhe danos diversos, tendo ainda violado diversos deveres dos técnicos oficiais de contas (responsabilidade delitual).

                O Réu contestou, alegando que a Autora não lhe forneceu condições de trabalho, designadamente ligação à Internet e de software adequado, bem como falta das informações e decisões necessárias à prossecução das suas funções.

                Em reconvenção, pediu a condenação da Autora a pagar-lhe € 3.250,00, acrescidos de juros vincendos, preço devido por uma licença de utilizador e por um estudo efetuados a pedido da Autora.

                Em despacho saneador delimitou-se a matéria de facto controvertida.

Realizada audiência de discussão e julgamento, veio a ser proferida sentença condenando o Réu a pagar à Autora € 3.443,25, acrescidos de juros moratórios e julgando improcedente o pedido reconvencional.

2.            Inconformado com tal decisão, dela vem apelar o Réu, formulando as seguintes conclusões:

...

3.            A Autora contra-alegou e concluiu:

...

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

4.         OS FACTOS

...

                5.         O MÉRITO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art. 608º nº 2, ex vi do art. 663º nº 2, do Código de Processo Civil (de futuro, apenas CPC).

No caso, são as seguintes as QUESTÕES A DECIDIR:

· Impugnação da matéria de facto?

· Excesso de pronúncia

· Erro de julgamento

5.1.     EXCESSO DE PRONÚNCIA (conclusões B e C)

Corolário do princípio do dispositivo, e ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, o juiz apenas pode conhecer das questões suscitadas pelas partes: art. 608º nº 2 do CPC.

                Em consonância, é nula a sentença em que o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento: art. 615º n.º 1 al. d) do CPC.

                O exato conteúdo do que sejam as questões a resolver de que falam tais normativos foi objeto de abundante tratamento doutrinal [[1]] e jurisprudencial [[2]], havendo neste momento um consenso no sentido de que não se devem confundir as questões a resolver, propriamente ditas, com as razões ou argumentos (de facto ou de direito) invocadas pelas partes, para sustentar a solução que defendem a propósito de cada questão a resolver.

                Utilizando a singela clareza de exposição de Rodrigues Bastos: «Também devem arredar-se os «argumentos» ou «raciocínios» expostos na defesa da tese de cada uma das partes, que podendo constituir «questões» em sentido lógico ou científico, não integram matéria decisória para o juiz. Temos, assim, que as questões sobre o mérito a que se refere este n.º 2 serão as que suscitam a apreciação quer a causa de pedir apresentada, quer o pedido formulado. As partes, quando se apresentam a demandar ou a contradizer, invocam direitos ou reclamam a verificação de certos deveres jurídicos, uns e outros com influência na decisão do litígio; isto quer dizer que a «questão» da procedência ou da improcedência do pedido não é geralmente uma questão singular, no sentido de que possa ser decidida pela formulação de um único juízo, estando normalmente condicionada à apreciação e julgamento de outras situações jurídicas, de cuja decisão resultará o reconhecimento do mérito ou do demérito da causa». [[3]]

                «O excesso de pronúncia gerador da nulidade prevista na 2.ª parte da alínea d) do n.º1 do referido artigo 668.º só tem lugar quando o juiz conhece de pedidos, causas de pedir ou exceções de que não podia tomar conhecimento.». [[4]]

O Recorrente considera verificar-se este vício por na sentença se ter apurado a sua condenação com base na responsabilidade por factos ilícitos, “decidindo contra os factos” (conclusão B).

Ou seja, se bem o entendemos, o que o Réu pretende dizer é que não existem factos provados capazes de alicerçar a sua condenação.

Ora, a ser assim, o problema não seria um excesso de pronúncia, mas antes um erro de julgamento na subsunção dos factos provados à lei ou na interpretação desta.

No que toca ao excesso de pronúncia, e analisada a petição inicial, temos que a Autora ao pedir a condenação do Réu invocou [[5]] duas causas de pedir: a responsabilidade contratual (na vertente de cumprimento defeituoso das obrigações do Réu) e a responsabilidade delitual (imputando-lhe a violação de deveres deontológicos).

Portanto, e ao invés do que considera a Recorrente, o juiz tinha de se pronunciar sobre essas duas causas de pedir, sob pena de incorrer no vício contrário, o da omissão de pronúncia!

                Conclui-se não se verificar a nulidade.

5.2.     IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO? (conclusões A, D, E, G e H)

Atinando no teor das conclusões em apreço, poder-se-ia ser levado a concluir estarmos perante recurso sobre a matéria de facto, mas tal não sucede.

Na verdade, a matéria de facto cuida apenas de factos.

Os factos são ocorrências concretas da vida, percetíveis pelos nossos sentidos, e só podem ser tidos em conta os alegados pelas partes.

Ora o dar-se como provado “que a autora no pedido requereu a condenação do réu a pagar-lhe a quantia de €5443,25 (…)” (conclusão A), não traduz qualquer facto, antes corporizando o pedido formulado na ação.

O mesmo acontece quanto à pretensão formulada na conclusão D —— “deveria dar como provado que o conteúdo do mandato conferido ao réu não foi concretamente apurado, (…)” —— e à conclusão E —— “necessidade do novo TOC proceder à elaboração da contabilidade dos exercícios de 2009 e 2010” ——, que mais não são do que uma conclusões de direito, a extrair dos factos, e a ser resolvidas na sentença aquando da subsunção dos factos à lei.

Também sob a conclusão G —— “dado como provada a dívida ao réu no montante de €2500,00 reclamada na reconvenção, porque no que concerne à obrigatoriedade de facturação, os profissionais independentes enquadrados nas actividades enunciadas no Anexo I da Tabela de Actividades do art.º 151 do CIRS, como é o caso do réu (4015), (…)” ——, o que se faz é uma abordagem das regras legais e do sentido jurídico da decisão.

Assim sendo, apesar de se aludir ao que deveria ou não ter ficado “provado”, não temos uma efetiva impugnação da matéria de facto.

Mas, ainda que assim se não entendesse, sempre se imporia a rejeição da reapreciação da matéria de facto.

Na verdade, essa sindicância está absolutamente dependente do cumprimento pelo Recorrente do ónus de alegação que se lhe impõe no art. 640º do CPC, do seguinte teor:

“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.”.

                O incumprimento destas regras formais são tidas pela lei como preclusivas à possibilidade de o Tribunal da Relação se debruçar sobre a matéria de facto, impondo-se-lhe a rejeição do recurso nessa parte.

Ora, resulta claro das conclusões de recurso, atrás transcritas, que o Recorrente não cumpriu qualquer dos pontos que o ónus de alegação lhe impunha: no caso, não se identificam quais os “concretos pontos de facto” tidos por incorretamente julgados, não se faz qualquer referência aos “concretos meios probatórios” que em sua opinião impunham decisão diversa, nem sobre o “sentido da decisão” que deveria ser proferida.

E tal deficiência/omissão acontece não só ao nível das conclusões, como também no corpo da motivação.

Poder-se-ia avançar com a hipótese de o Tribunal lançar mão de um despacho de aperfeiçoamento; porém, a lei descartou tal possibilidade, como era, aliás, já entendimento unânime, quer na doutrina, quer na jurisprudência. [[6]]

                Como refere Abrantes Geraldes, «Importa observar ainda que as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo. Exigências que afinal devem ser o contraponto dos esforços de todos quantos, durante décadas, reclamaram pela atenuação do princípio da oralidade pura e pela atribuição à Relação de efectivos poderes de sindicância da decisão sobre a matéria de facto como instrumento de realização da justiça. Rigor a que deve corresponder o esforço da Relação quando, debruçando-se sobre pretensões bem sustentadas, tenha de reapreciar a decisão recorrida, (…).». [[7]]

                Assim sendo, não se mostrando reunidos os pressupostos de índole formal exigidos pelo art. 640º nº 1 al. b) e nº 2 al. a) do CPC, rejeita-se o recurso na parte respeitante à, pretensa, impugnação da matéria de facto.

5.3.     ERRO DE JULGAMENTO (conclusão F)

                Sob este ponto, considera o Recorrente que não lhe deveria ter sido imputada a responsabilidade pela “coima por entrega fora de prazo da retenção de IRS que incidiu sobre os honorários referentes ao mês de Novembro de 2010, isto porque o cheque relativo aos honorários do mês de Novembro foi remetido ao réu após o dia 13 de Dezembro, ficando o rendimento à sua disposição apenas a partir daquela data”.

Ao subsumir os factos ao direito, discorreu-se assim na sentença:

«Além disso, devia o réu até ao dia 20-12-2010 ter emitido guia e dar conhecimento aos dirigentes da autora do valor da retenção (relativa ao seu vencimento de Novembro de 2010) – arts 11.º als a) e b) e 12º do Cód. Deontológico e art 54.º, als s) [[8]] e b) e 55º, ambos do Estatuto – para que estes pudessem proceder ao respectivo pagamento.

Ora, além de ter ficado provado que à data em que o respectivo cheque lhe foi enviado (em 13-12-2010) pela autora ainda o mesmo estaria em prazo de o fazer, não logrou o réu provar que estava impedido de o fazer, uma vez que em Janeiro a senha de acesso ao Portal das Finanças ainda não havia sido alterada (testemunho do novo TOC).

Ora, recaindo sobre o réu o ónus da prova da falta de culpa da sua actuação na verificação do efeito danoso, e não sobre a autora o ónus da prova da culpa daquele, não tendo o réu logrado realizá-la, deve considerar-se, presumivelmente, culpado pela sua produção, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 344º, nº 1 e 350º, nºs 1 e 2, do CC.».

                Tratando-se de um problema de retenção na fonte, em causa está o fenómeno da substituição tributária: art. 20º nº 2 da Lei Geral Tributária (de futuro, apenas LGT).

                Citando Alberto Xavier, refere António Lima Guerreiro [[9]], «Conforme aquele autor, na substituição tributária deparam-se três sujeitos: o Estado, titular do crédito do imposto, o substituído, que é o verdadeiro contribuinte, a pessoa em relação à qual se verificam os pressupostos do facto tributário, e o substituto, que, por força das relações de direito privado que mantém com o substituído, é chamado a ocupar, a título indirecto e por força da lei, a posição de devedor do tributo, em vez do substituído.

                O elemento distintivo da substituição tributária, que tem por função a aproximação entre o momento do facto tributário e o momento do pagamento da dívida tributária, consiste, assim, em o procedimento da entrega da quantia em dívida estar a cargo de obrigado fiscal distinto do titular do rendimento.».

                Ou seja, pese embora fosse o Réu a ter de suportar o imposto devido, era à Autora que competia reter a respetiva percentagem, deduzindo-a nos honorários a pagar e entregando esse quantitativo assim deduzido ao Estado.

Estavam em causa honorários de prestação de serviços, o que significa a sua sujeição, para efeitos de imposto sobre o rendimento, a rendimentos da categoria B: art. 3º do Código de Imposto sobre o rendimento das Pessoas Singulares (de futuro, apenas CIRS).

Ora, o art. 98º nº 1 do CIRS determina que “(…), a entidade devedora dos rendimentos sujeitos a retenção na fonte, (…), são obrigadas, no ato do pagamento, do vencimento, ainda que presumido, da sua colocação à disposição, da sua liquidação ou do apuramento do respetivo quantitativo, consoante os casos, a deduzir-lhes as importâncias correspondentes à aplicação das taxas neles previstas por conta do imposto respeitante ao ano em que esses atos ocorrem”; e, de acordo com o nº 3 do preceito, “as quantias retidas (…) devem ser entregues até ao dia 20 do mês seguinte àquele em que foram deduzidas”.

No mesmo sentido, o art. 101º, nº 8 do CIRS: “a retenção que incide sobre os rendimentos das categorias B (…) é efetuada no momento do respetivo pagamento ou colocação à disposição (…)”.

                E assim também o prescreve o Decreto-Lei nº 134/2001, de 24.04 (regime de retenção na fonte do IRS), nos seus art. 8º, nº 3 __ “a retenção que incide sobre os rendimentos das categorias B (…) é efectuada no momento do respectivo pagamento ou colocação à disposição (…)” __, bem como no art. 13º - “as quantias retidas nos termos dos artigos anteriores, são entregues nos cofres do Estado pela entidade retentora, até ao dia 20 do mês seguinte àquele em que forem deduzidas”.

Como se verifica destes preceitos, a lei distingue vários momentos: “acto do pagamento”, “acto do vencimento”, “acto da colocação à disposição”, “acto da liquidação”.

O acto a ter em conta deve ser o que acontecer em primeiro lugar.

E o art. 13º do Decreto-Lei nº 134/2001, que especificamente regula a “entrega do imposto retido” é perentório em referir o mês seguinte àquele em que forem deduzidas”, ou seja, aquando do “processamento” dos honorários.

No caso, reportando-se a retenção aos honorários de Novembro/2010, a mesma deveria ter sido paga até 20 de Dezembro.

E não se diga, como pretende o Réu, que só foi pago após 13 de Dezembro, o que faria avançar o pagamento para 20 de Janeiro.

Na verdade, com interesse para a decisão, ficou provado que o Réu recebeu a remuneração relativa a Novembro/2010 em 13.12.2010 sem que tivesse procedido à retenção do imposto referente a esse mês (facto 45) e que a Autora teve conhecimento dessa não retenção quando foi citada pela Direcção-Geral de Impostos para proceder ao pagamento do montante devido, acrescido de juros de mora e custas e notificada da aplicação de uma coima num total de € 183,75 (facto 46).

Para além disso, refere-se do facto 29 que a Autora enviou uma carta ao Réu, no dia 13.12.2010, onde referia que “(…) Como até à data não veio levantar o cheque referente aos seus honorários do mês de Novembro/2010 junto remetemos o mesmo no valor de 395,00€, (…)”.

Daqui se pode extrair que o Réu só recebeu, efetivamente, o pagamento após o dia 13.12.2010.

Mas, o que aí também se diz é que foi o Réu que não foi, atempadamente, “(…) levantar o cheque referente aos seus honorários do mês de Novembro/2010”, obrigando a que o cheque tivesse de ter sido remetido juntamente com a carta.

Ou seja, o pagamento foi posto atempadamente à disposição do Réu, que só não o recebeu porque não quis levantar o cheque.

O momento a ter em conta deve ser por isso o da colocação dos honorários à sua disposição e, portanto, o prazo normal de Dezembro/2010.

Mas, para além disso, há que atender que a condenação do Réu encontrou suporte jurídico no facto de a sua conduta ter violado as regras do Estatuto da Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas, aprovado pelo Decreto-Lei nº 452/99, de 05.11, com última alteração pelo Decreto-Lei nº 310/2009, de 26.10 (de futuro, apenas EOTOC), bem como do Código Deontológico constante do seu Anexo II.

Ora, sendo o Réu o TOC da Autora, a ele competia a entrega das ditas declarações —— art. 54º nº 2 [[10]] e art. 55º nº 1 al. a), c) e d) [[11]] do EOTOC ——, bem como, nos termos do art. 11º al. a) do Código Deontológico, o dever de informar a Autora “das suas obrigações contabilísticas, fiscais e legais relacionadas exclusivamente com o exercício das suas funções”.

Para além disso, por força do art. 6º nº 1 al. d) do mesmo EOTOC, constituía uma das suas funções a de “com base nos elementos disponibilizados pelos contribuintes por cuja contabilidade sejam responsáveis, assumir a responsabilidade pela supervisão dos actos declarativos para a segurança social e para efeitos fiscais relacionados com o processamento de salários”.

No caso, tratava-se dos seus próprios honorários, pelo que nem precisaria de informações ou elementos a fornecer pela Autora.

Que essa falha, pela qual a Autora veio a ser condenada em coima, resultou da conduta do Réu está evidenciada no facto provado sob o número 50: “o réu submeteu dentro dos prazos, as declarações de IVA, de retenções de IRS (com exceção do indicado em 45)”, ou seja, com exceção da retenção dos seus honorários de Novembro de 2010.

Concluindo: não ocorre erro de julgamento.

                6.         SUMARIANDO (art. 663º nº 7 do CPC)

a) Tendo a Autora estribado a sua pretensão na responsabilidade contratual e na extracontratual (ou por factos ilícitos), o juiz deve conhecer de ambas, pelo que não se verifica excesso de pronúncia se a condenação do Réu resultar de alguma dessas causas de pedir.

b) A matéria de facto cuida apenas de factos., enquanto ocorrências concretas da vida, percetíveis aos sentidos humanos. O pedido formulado na ação, a abordagem das regras legais e do sentido jurídico da decisão não integram impugnação da matéria de facto.

c) Se o Recorrente não identifica quais os “concretos pontos de facto” tidos por incorretamente julgados, não faz qualquer referência aos “concretos meios probatórios” que em sua opinião impunham decisão diversa, nem sobre o “sentido da decisão” que deveria ser proferida, há que rejeitar a reapreciação da matéria de facto, sem qualquer convite a aperfeiçoamento das conclusões.

d) O momento relevante para a retenção na fonte do montante devido em sede de IRS por honorários relativos a prestação de serviços é o da respetiva liquidação, e não o do efetivo recebimento dos honorários por quem a eles tem direito. Em consonância, a entidade devedora terá de entregar ao Estado o montante retido até ao dia 20 do mês seguinte àquele em que o deduziu, e não àquele em que pagou os honorários.

III.      DECISÃO

7.            Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção cível da Relação de Coimbra em não dar provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida.

Custas a cargo do Recorrente.

                                                                              Coimbra, 14/04/2015


(Relatora, Isabel Silva)

(1ª Adjunto, Alexandre Reis)

(2º Adjunto, Jaime Ferreira)



***

      [[1]] Cf. Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, pág. 143; Rodrigues Bastos, “Notas ao Código de Processo Civil”, 1969, vol. III, pág. 228.

      [[2]] Cf., entre muitos, acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), de 06.01.977 (BMJ, 263º, 187), de 05.06.985 (Acórdãos Doutrinais, 289º, 94), de 11.11.987 (BMJ, 371º, 374) e de 27.01.993 (BMJ, 423º, 444). 

      [[3]] Obra citada, pág. 228.

[[4]] Acórdão do STJ, de 06.12.2012 (processo 469/11.8TJPRT.P1.S1), disponível em www.dgsi.pt/, sítio a atender nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem.

[[5]] Clara e expressamente, até por delimitação da respetiva matéria em “secções”.

[[6]] Cf. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2ª edição, 2014, pág. 134; Lopes do Rego, “Comentários ao Código de Processo Civil”, vol. I, Almedina, 2004, 2ª edição, pág. 585; Amâncio Ferreira, “Manual dos Recursos em Processo Civil”, Almedina, 2008, 8ª edição, pág. 170 (nota 331). Em termos jurisprudenciais, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça (de futuro, apenas STJ), de 06.02.2008 (processo 07S3903), de 06/11/2006 (processo 06S2074) e de 24.01.2007 (processo 06S2969).

[[7]] Abrantes Geraldes, obra citada, pág. 135.

[[8]] Verifica-se aqui um erro de escrita pois como já de seguida se verá, o referido artigo não tem sequer uma alínea “s”.

[[9]] In “Lei Geral Tributária Anotada”, Editora Rei dos Livros, 2001, pág. 123.

[[10]] Artigo 54.º - Deveres para com as entidades a que prestem serviços (…)

2 - Os técnicos oficiais de contas não podem, sem motivo justificado e devidamente reconhecido pela Ordem, recusar-se a assinar as declarações fiscais, as demonstrações financeiras e seus anexos, das entidades a que prestem serviços, quando faltarem menos de três meses para o fim do exercício a que as mesmas se reportem.

[[11]] Artigo 55.º - Deveres para com a administração fiscal

1 - Nas suas relações com a administração fiscal, constituem deveres dos técnicos oficiais de contas:

a) Assegurar que as declarações fiscais que assinam estão de acordo com a lei e as normas técnicas em vigor;

c) Abster-se da prática de quaisquer actos que, directa ou indirectamente, conduzam a ocultação, destruição, inutilização, falsificação ou viciação dos documentos e das declarações fiscais a seu cargo;

d) Assegurar, nos casos em que a lei o preveja, o envio por via electrónica das declarações fiscais dos seus clientes ou entidades patronais.