Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
299/14.5TAFIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
NEGLIGÊNCIA
DOLO
ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
NULIDADE DA SENTENÇA
Data do Acordão: 05/06/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (FIGUEIRA DA FOZ - INSTÂNCIA LOCAL - SECÇÃO CRIMINAL - J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CONTRAORDENACIONAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.41.º DO RGCO; ART. 359.º E 379.º, N.º 1, AL. B), DO CPP
Sumário: I - Por via da norma do artigo 41.º do RGCO (Regime Geral das Contra-ordenações), é aplicável, no âmbito do processo contraordenacional, o instituto da alteração substancial dos factos previsto no artigo 359.º do CPP.
II - Procedendo o tribunal da 1.ª instância ao aditamento, por referência à descrição factológica da decisão administrativa, de novos factos, que foram integrados na sentença, transmudando, desta forma, o elemento subjetivo da contraordenação, que de negligente passou a dolosa, e assim originando a agravação da moldura abstracta da coima e a consequente fixação concreta desta em montante superior ao inicialmente aplicado na fase administrativa do processo, a alteração verificada consubstancia alteração substancial dos factos – cf. artigo 1.º, alínea f) in fine do CPP, ex vi do artigo 41.º do RGCO.

III - Ao condenar a arguida nos termos já referidos, por factos diversos dos descritos na decisão administrativa, à margem do artigo 359.º do CPP, ou seja, sem que haja tido lugar a correspondente comunicação prevista nesse normativo, a sentença recorrida enferma da nulidade prevista na alínea b), do n.º 1, do artigo 379.º do CPP.

Decisão Texto Integral:

    Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. Nos autos de contraordenação n.º 223/2012 a Agência Portuguesa do Ambiente proferiu decisão contra a arguida “A..., Lda.”, condenando-a pela prática, a título de negligência, da contraordenação ambiental muito grave, prevista e punida no artigo 81.º, n.º 3, alínea o) e n.º 4, do D.L. n.º 226 – A/2007, de 31 de Maio, conjugado com o artigo 22º, n.º 4, alínea b) da Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto na redação da Lei n.º 89/2009, de 31 de Agosto e Declaração de Retificação nº 70/2009, de 1 de Outubro na coima de € 38.500 (trinta e oito mil e quinhentos euros).

2. Inconformada, a arguida impugnou judicialmente a decisão.

3. Recebido o recurso, que correu termos na Comarca de Coimbra, Figueira da Foz – Inst. Local – Secção Criminal – J1, sob o n.º 299/14.5TAFIG, realizada a audiência de discussão e julgamento - no decurso da qual, por despacho exarado em ata foi comunicada «a alteração não substancial dos factos constantes da acusação por forma a melhor materializar a conduta que se acha a ser assacada à arguida» e, bem assim, «… de forma equivalente, uma alteração da qualificação jurídica por forma a assacar a prática da infração posta em relevo em termos dolosos com a consequente mobilização da moldura contraordenacional de € 200.000 a € 2.500000, moldura que poderá ser ademais mobilizada nos presentes autos atenta a supressão do princípio da proibição da reformatio in pejus prevista no art. 75º da Lei-quadro das Contraordenações Ambientais» (destaques nossos) - por sentença depositada em 08.01.2015, foi proferida a seguinte decisão [transcrição parcial]:

«Face a todo o exposto, o Tribunal julga o recurso interposto pela arguida A..., LDA, como totalmente improcedente. Além do mais, atento o disposto no artigo 74º da Lei – Quadro das Contraordenações Ambientais e a concreta atuação dolosa concretizada pela arguida A..., LDA., condeno a mesma, pela prática da contraordenação prevista no artigo 81º, n.º 3, alínea o) do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, de 31 de Maio, e punida no artigo 22º, n.º 4, alínea b) da Lei n.º 50/2006, de 21 de Agosto, numa coima no valor de € 200.000,00.

4. Não conformada com o assim decidido recorre a arguida, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:

1. Violação do artigo 41 do RGCO – DL 433/82. Como já era acentuado no preâmbulo do DL 244/95 de 14/9 “… o ilícito de mera ordenação social tem vindo a assumir uma importância antes dificilmente imaginável”

a) “Compreensivelmente não pode o direito de mera ordenação social continuar a ser olhado como um direito de bagatelas penais”.

b) O artigo 32 do DL 433/82 estabelece que em termos substantivos, é subsidiariamente aplicável o Código Penal, o artigo 41 do mesmo diploma estabelece que em termos adjetivos ou processuais é aplicável como direito subsidiário o CPP.

c) Diz o referido artigo 41 nº 1 “Sempre que o contrário não resulte deste diploma, são aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal” (sublinhado nosso).

d) A douta sentença recorrida como se demonstrará fez, salvo o devido respeito, tábua rasa, deste preceito, violando-o, com o que postergou princípios fundamentais em matéria de direito adjetivo.

2. A alteração substancial da factualidade constante da “acusação”, efetuado pelo meritíssimo juiz “a quo”, já após as alegações finais, consubstancia uma alteração substancial dos factos descritos na acusação.

a) Consta do texto da douta sentença recorrida que “o recurso de contraordenação, não conhece a figura da alteração substancial dos factos” afirmação que não encontra qualquer apoio no RGCO (DL 433/82).

b) Não existe no DL 433/82 qualquer disposição que indicie sequer a legitimidade de tal conclusão, (que o processo contraordenacional não conhece a figura da alteração substancial dos factos), o mesmo sucedendo com a LQCA e com o DL 226-A/2007, pelo que se cai na alçada do artigo 41 do RGCO, para o qual remete o artigo 2º da LQCO e ainda o artigo 13 do DL 17/91 “ex vi” do artigo 66º do RGCO, tudo a reclamar a aplicação subsidiária do CPP.

c) O tribunal alterou matéria de facto, de tal forma que criou um quadro factual novo que desencadeia a imputação a título de dolo, em substituição da anterior imputação negligente, com consequente agravamento da moldura da coima aplicável, abstratamente até 2.500.000,00 (dois milhões e quinhentos mil euros), de tal modo que o limite mínimo da nova moldura aplicável passou a ser superior ao anterior limite máximo ...!

d) O artigo 1 do CPP, inequivocamente aplicável em consequência do disposto no artigo 41 do DL 433/82, define como Alteração Substancial dos Factos, “aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso, ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.”

e) Estamos pois perante uma alteração substancial dos factos, que criou um quadro factual novo, sendo que a douta sentença recorrida violou o artigo 359 n.º 1 do CPP e consequentemente incorreu em nulidade prevista no artigo 379 n.º 1 alínea b) do mesmo diploma legal.

f) A douta sentença recorrida é ainda violadora do princípio da acusação e do direito de defesa do arguido, ambos com dignidade constitucional – artigo 32, nºs 5 e 1 -, impondo o primeiro uma clara separação entre quem acusa e quem julga, pois de outro modo, e entendendo-se que ao Juiz é lícito proceder a uma alteração substancial dos factos constantes da acusação, tal significaria uma concentração, na mesma pessoa, das funções de investigação, acusação e julgamento.

3. Violação do Princípio da imediação. Artigo 355 CPP. Entende o meritíssimo juiz “a quo” que em matéria de contraordenações não vigora o princípio da imediação, pelo que o Tribunal formou a sua convicção citando a própria sentença recorrida “… por reporte à prova produzida em sede administrativa e em audiência de discussão e julgamento.”

a) Não existe no RGCO qualquer disposição que especificamente discipline, esta matéria, pelo que por remissão do artigo 41 desse diploma se aplica o artigo 355 do CPP, que expressamente refere: “Não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência”

b) Concretamente resulta do próprio texto da decisão recorrida que o Tribunal se “acha capacitado para adquirir e valorar … tal inquirição”, referindo-se a um depoimento prestado por uma testemunha, não ajuramentada, perante a autoridade administrativa, em detrimento do depoimento prestado por essa mesma testemunha em audiência de julgamento, o que constitui nulidade que expressamente se argui.

4. Erro notório na apreciação da prova e contradição insanável da fundamentação, artigo 410 nº 2 alíneas b) e c) do CPP na medida em que a prova foi obtida contra critérios legalmente fixados, como tudo resulta do texto da própria decisão – A/C TRC 64/08.9GAPNC.C1 “Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova, contra as regras da experiência comum, ou contra critérios legalmente fixados …”

a) Com influência decisiva na sorte da decisão como o próprio meritíssimo juiz “a quo” reconhece ao escrever que “Temos pois que a achar-se verdadeiro o explicitado por D..., quedaria paralelamente indiciada a veracidade da narração materializada por E... …”

b) Também custa a aceitar, por ser, de todo, contrário às regras da experiência e do senso comum, que alguém recuse, pura e simplesmente, a entrada nas instalações, pelo telefone, sabendo ou se soubesse que incorria em sanção com moldura penal máxima em matéria ambiental, como não se percebe e é também contrário às regras da experiência e do senso comum, que os Senhores fiscais tomassem essa recusa, por inultrapassável e de tal modo definitiva que não mais voltaram.

c) Por outro lado

São factos provados:

· Os funcionários mencionados na alínea d) dos factos provados eram de nacionalidade romena, não ostentando conhecimentos técnicos quanto ao funcionamento da exploração – al) g) dos factos provados

· Tendo recebido dos legais representantes da arguida A..., ademais, instruções para não deixar entrar terceiros nas instalações sem aqueles ou a pessoa responsável se encontrarem presentes – al) h) dos factos provados.

· Ora esta factualidade é contraditória com a vertida em f) e i) e j) dos factos provados.

· Isto porque tendo-se dado como provado que as instruções dadas pelos legais representantes da arguida aos seus funcionários da instalação (tratadores de animais) eram para não deixarem entrar sem que a gerência ou a pessoa responsável estivessem presentes, mal se percebe que se dê como provada obstrução ou recusa de entrada.

· É que são coisas diferentes. Uma coisa é obstruir, recusar, com a intenção de se impedir a inspeção, outra coisa é o direito de estar presente diretamente ou por intermédio de um responsável da empresa.

5. Insuficiência da matéria de facto para a decisão – artigo 410 nº 2 alínea a)

a) Basta-se a douta sentença recorrida, para efeito de considerar preenchido o tipo legal de ilícito em causa, com a existência de um telefonema alegadamente a recusar a entrada aos Senhores inspetores, sendo que os factos elencados na fundamentação deste recurso são essenciais à boa decisão da causa.

b) Sendo muito pouco credível que alguém, por telefone proíba pura e simplesmente a entrada à inspeção, sem que haja uma explicação, um contexto, ainda para mais sabendo que a sua conduta era punida por lei (ainda para mais com uma moldura máxima em matéria ambiental, como é incompreensível a alegada atitude dos inspetores de considerarem tal recusa efetiva, inultrapassável e definitiva, a ponto de não mais voltarem. Importa apurar.

c) Não colhendo a explicação constante da douta sentença recorrida segundo a qual, a “…vontade … da arguida … se mostrava efetivamente indispensável … É que tratamos de espaço particular” ou que a lei não facultava aos Senhores inspetores o recurso às forças policiais, mais afirmando que em caso de recusa a lei apenas prevê “ … é o puro e simples sancionamento, a título de contraordenação.

d) Não o é, para o que basta atentar no artigo 18 do DL 50/2006, o que levou o Tribunal a não apurar os referidos factos que são importantes para a decisão.

e) De outro modo ficaremos apenas com um telefonema, ouvido apenas por uma pessoa, totalmente desenquadrado do contexto acabado de referir, contrariado, quanto ao seu conteúdo, pelo outro interveniente nesse telefonema, sendo a versão deste confirmada por outra testemunha ouvida em julgamento, o que, convenhamos, é muito pouco para que se possa aplicar uma coima no valor de 200.000€ (duzentos mil euros).

6. Não verificação dos pressupostos da punição – artigo 81 nº 3 alínea o) do DL 226-A/2007 de 31/5.

a) O tipo contraordenacional é o seguinte “Constitui contraordenação ambiental muito grave a obstrução ao exercício de inspeção, fiscalização ou o exercício das suas competências, designadamente a recusa de acesso da entidade ao local” – artigo 81 nº 3 al) o) –

b) Não se verificam os pressupostos da punição.

c) O meritíssimo Juiz “a quo” basta-se, para que se constate uma obstrução ao exercício da fiscalização, com “ … uma simples informação telefónica de recusa”

d) Considerando que “Na verdade mesmo atendendo ao interesse público envolto na ação inspetiva não se prevê qualquer possibilidade de constranger o visado a suportar tal fiscalização em espaço particular mediante a mobilização da força pública. O que se prevê, inversamente, para tal eventualidade de recusa de acesso – verbal ou física – é o puro e simples sancionamento de tal conduta a título de contraordenação.”

e) Não é assim, e mal estaríamos que fosse … A lei garante o livre acesso dos inspetores a espaços particulares, facultando-lhes, se necessário, os meios policiais para assegurar tal acesso, que contrariamente ao referido na douta sentença recorrida não se esgotam no mecanismo sancionatório em apreço – artigo 18 da lei 50/2006.

f) Só que a douta sentença recorrida é omissa quanto a quaisquer atos, factos concretos, inexistentes é certo, de efetiva obstrução ou recusa mesmo em abstrato idóneos a preencher o tipo, agora considerar que um telefonema, mesmo admitindo que se tratasse de uma recusa pura e simples e não se admite, teria essa virtualidade não faz, com salvaguarda do respeito devido, qualquer sentido.

g) O que não significa que o responsável não deva ser contactado até para poder cumprir os deveres que a lei lhe impõe e beneficiar dos direitos que a lei também lhe confere (vid o citado artigo 18 e mais expressivamente os próprios regulamentos internos e procedimentais emanados pelo órgão com competência na matéria, juntos aos autos e que a douta sentença recorrida ignorou).

7. Inconstitucionalidade – “A norma das disposições conjugadas dos artigos 81 nº 3, alínea o) do decreto-lei nº 226-A/2007 de 31 de maio, e artigo 22 nº 4 alínea b) da lei 50/2006 de 29 de Agosto, que qualifica como contraordenação muito grave a obstrução ao exercício da fiscalização designadamente a recusa de acesso da entidade ao local, correspondendo-lhe uma coima de 200.000,00 euros a 2.500.000,00 euros quando praticada por pessoa coletiva a título de dolo, é inconstitucional por violação do princípio da proporcionalidade consignado no artigo 18 nº 2 da constituição.

a) Se é certo que o Tribunal Constitucional tem vindo a reconhecer ao legislador ordinário uma ampla margem de decisão nesta matéria, (Entre outros a/c 303/94, 574/95, 547/2000) não é menos certo que sempre é feita a ressalva que tal liberdade cessa em casos de manifesta e “ … flagrante desproporcionalidade ou de excessiva amplitude entre os limites mínimos e máximos” A/C n.º 313/2013, Processo 780/12 – 2.ª secção.

b) Isto mesmo se extrai do A/C 574/95 citado no A/C atrás referido: “Quanto ao princípio da proporcionalidade das sanções, tem antes de mais que advertir-se que o Tribunal só deve censurar as soluções legislativas que cominem sanções que sejam desnecessárias, inadequadas, ou manifesta e claramente excessivas, pois tal proíbe o artigo 18 nº 2 da constituição.

c) Está em causa a livre entrada de tais agentes nos espaços a inspecionar.

d) Como já se referiu nestas alegações a própria lei 50/2006 de 29/8, no seu artigo 18 prevê essa liberdade de acesso e prevê meios para a tornar efetiva em casos de obstrução e ou recusa de entrada.

e) Ou seja as finalidades “maiores” em matéria ambiental, e desde logo a eficácia das inspeções é plenamente assegurada, como não podia deixar de ser, pelas disposições legais previstas nesse diploma (e noutros).

f) Assim podemos mesmo afirmar que tal recusa é inócua, não tem a virtualidade de em si mesmo agredir o bem jurídico que essencialmente se pretende proteger ao garantir o livre acesso das entidades fiscalizadoras.

g) [Reprodução do ponto c) supra].

h) [Reprodução do ponto d) supra]

i) [Reprodução do ponto e) supra]

j) [Reprodução do ponto f) supra]

k) Não se afigura pois necessário, estipular-se uma moldura sancionatória com um mínimo de 200.000 € e um máximo de 2.500.000,00 €, que corresponde à sanção ambiental mais grave que o nosso ordenamento prevê, para assegurar a tutela do bem jurídico referido, e mais concretamente para a punição do facto tipificado.

l) Como se escreve no A/C da 2.ª Secção do tribunal constitucional atrás citado “… nada impede o julgador de caso a caso, e fazendo a aplicação da moldura mais ampla, graduar diferentemente a coima a aplicar em razão de …”

8. Inconstitucionalidade – A norma do artigo 75.º, segundo a qual não é aplicável a proibição de reformatio in pejus, em caso de impugnação da decisão final da autoridade administrativa, devendo essa informação constar desta decisão, é inconstitucional por violação do direito à tutela do direito à tutela jurisdicional efetiva consagrado nos artigos 20.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4, da Constituição.

a) A norma do artigo 75 da lei 50/2006 de 29/8 é derrogatória do regime geral constante do artigo 72-A nº 1 aditado ao DL 433/82 de 27/10, pelo DL 244/95 de 14/9.

b) No processo contraordenacional é estritamente obrigatória uma primeira fase da responsabilidade exclusiva da Administração, culminando com uma decisão (administrativa).

c) Este regime não está em si mesmo ferido de inconstitucionalidade, precisamente em razão do direito que é reconhecido ao arguido de impugnar judicialmente tal decisão,

d) O que mais releva no sentido, não de restringir, condicionar, coartar, ou de qualquer outro modo afastar o arguido do exercício de tal direito, mas, pelo contrário, no sentido de viabilizar, de não impedir ou restringir tal direito, nomeadamente com o levantamento do princípio da proibição da “reformatio in pejus” o que por si só, coloca

e) Entende a arguida que a citada norma do artigo 75 da lei 50/2006 não respeita a exigência constitucional do livre acesso aos tribunais, para tutela efetiva de direitos e interesses legalmente reconhecidos – artigos 20 nº 1 e 264, nº 8 da CRP.

f) Vejam-se os A/C do Tribunal Constitucional n.ºs 659/2006, 313/2007 e 135/2009, “é óbvio que não se limitam aos direitos de audição e defesa as garantias dos arguidos em processos sancionatórios, mas é noutros preceitos constitucionais, que não no n.º 10 do artigo 32º, que eles encontram esteio. É o caso, desde logo, do direito de impugnação perante os tribunais das decisões sancionatórias em causa, direito que se funda, em geral no artigo 20.º, n.º 1, e, especificamente para as decisões administrativas, no artigo 268.º, n.º 4, da CRP”.

g) A constituição consagra o direito à tutela jurisdicional efetiva, valendo este direito no processo contraordenacional.

h) Daqui decorre, também, que não pode a lei ordinária, ao levantar nesta matéria a “proibição da reformatio in pejus” permitir que do exercício desse direito de recurso venha a acarretar ou a resultar um prejuízo para quem legitimamente o exerceu.

i) A norma do artigo 75º da Lei-quadro das contraordenações ambientais (Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto), segundo a qual não é aplicável a proibição de reformatio in pejus em caso de impugnação da decisão final da autoridade administrativa, devendo essa informação constar desta decisão, é inconstitucional por violação do direito à tutela do direito à tutela jurisdicional efetiva (artigos 20.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa), inconstitucionalidade que se argui com todas as consequências legais.

9. Inconstitucionalidade – A interpretação dos artigos 41, nº 1 e 66 do Regime Geral das Contraordenações segundo o qual não se aplica o regime da alteração substancial dos factos que leve a uma agravação do limite máximo da sanção aplicável, previsto no artigo 359 do Código de Processo Penal, é inconstitucional por violação do artigo 32º, nº 10 da constituição, na parte em que determina que nos processos contraordenacionais é assegurado ao arguido o direito de defesa.

10. Normas violadas – Decidindo como decidiu a douta sentença recorrida violou as disposições dos artigos 1º - 359º, n.º 1 – 379º, nº 1 alínea b) – 355º - 356º - 410, nº 2 alíneas a), b) e c) todos do Código de Processo Penal, artigos 41º - 62º - 72-A do DL 433/82 do RGCO (DL 433/82 de 27/10, na redação dada pelo DL 244/95 de 14/9), artigos, 2 – 18º, nº 2 – 22º, nº 4 alínea b) da lei 50/2006 de 29/8 e artigo 81º, nº 3 alínea o) do DL 226-A/2007 de 31 de Maio, artigos 18º, nº 2 – 32º, nº 10 – 20º, nº 1 – 268º, nº 4 da Constituição da República Portuguesa.

Termos em que, mas sobretudo pelo mui douto suprimento de V. Exas. se deve dar provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão judicial proferida em primeira instância.

Assim farão V. Exas a costumada e almejada JUSTIÇA, que se pede.

5. Por despacho de 28.01.2015 foi o recurso admitido, fixado o respetivo regime de subida e efeito.

6. Ao recurso respondeu a Digna Magistrada do Ministério Público, o que fez, no essencial, contrariando a invocada insconstitucionalidade, por violação do direito ao recurso e a uma tutela jurisdicional efetiva, decorrente da não aplicação do princípio da proibição da reformatio in pejus, defendendo, ainda, conter a sentença recorrida uma alteração dos factos, alteração, essa, consentida, já que valendo a decisão da autoridade administrativa como acusação «… não é uma acusação strictu sensu …», donde que «… relativamente aos factos o tribunal não esteja vinculado aos factos constantes do texto da decisão administrativa», convocando, a propósito, a seguinte passagem do acórdão do TRP de 26.08.08 [proferido no âmbito do proc. n.º 0810356]: «O julgador da 1.ª instância não está absolutamente vinculado aos factos constantes do texto da decisão da autoridade administrativa objeto de impugnação judicial. A sua liberdade de averiguação e conformação dos factos está apenas balizada pela alteração substancial dos mesmos» e, bem assim, do acórdão do TRC de 15.02.95 [CJ, 1995, T. II, 134], enquanto dispõe: «I. O Juiz que julga em 1.ª instância a impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa que aplicou uma coima não está absolutamente vinculado aos factos que constam do texto da decisão. II. Mesmo no recurso da decisão judicial, o Tribunal da Relação pode alterá-la sem qualquer vinculação aos seus termos e sentido em que ela foi formulada. III Porém, em qualquer das situações, o tribunal não pode alterar substancialmente os factos da acusação, sob pena de cercear ao arguido as suas garantias de defesa».

Conclui, assim, no sentido de dever ser negado provimento ao recurso.

7. Remetidos os autos à Relação o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu o parecer que se mostra junto a fls. 316 a 320, no qual, em síntese, refuta:

a. A invocada verificação de qualquer dos vícios do n.º 2, do artigo 410º do CPP;

b. A nulidade da sentença [artigo 379.º do CPP], decorrente de uma alegada alteração substancial dos factos sem que tivesse sido dado cumprimento ao disposto no artigo 359º do CPP, aduzindo «… Com efeito, na sequência da referida jurisprudência, não pode considerar-se existir um paralelismo absoluto entre o procedimento contraordenacional, apesar da aplicação subsidiária do CPP, pois que esta subsidiariedade apenas á aplicável “sempre que o contrário não resulte deste diploma” (art. 41º do Regime Geral das Contraordenações), ou, de outro modo, não se justificaria a existência de diferentes diplomas legais.

Assim, no caso em apreço a alteração feita no âmbito do mesmo facto unitário, implicando uma modificação no elemento subjetivo da infração, não representou a violação dos direitos de defesa da arguida, pois que, não representando a condenação administrativa um paralelismo, ou sobreposição com a acusação em processo penal e, tendo-lhe sido conferida a possibilidade de defesa, entendemos que é o tribunal que fixa em definitivo a matéria de facto, o que pode ocorrer com a realização das diligências de prova levadas a cabo e que os sujeitos processuais apresentem;

c. As inconstitucionalidades decorrentes da invocada violação dos princípios da proporcionalidade, do acesso ao direito e à tutela jurisdicional dos interesses da arguida e, bem assim, do artigo 32º, n.º 10 da Constituição.

Termina, pugnando pela manutenção da sentença recorrida.

8. Cumprido o artigo 417.º, n.º 2 do CPP a recorrente não reagiu.

9. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

 De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 412.º do CPP e conforme jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas da respetiva motivação só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito – [cf. acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19.10.1995, DR, I Série – A, de 28.12.1995].

Neste quadro, as questões colocadas traduzem-se em saber se:

 - Enferma a sentença da nulidade do artigo 379.º, n.º 1, alínea b) do CPP;

 - Verifica violação do princípio da imediação;

- Ocorrem os vícios das alíneas a), b) e/ou c) do n.º 2, do artigo 410º do CPP;

- Resultaram inverificados os pressupostos da punição;

- Padecem de inconstitucionalidade as normas conjugadas dos artigos 81º, n.º 3, alínea o) do D.L. 226 – A/2007, de 31.05 e 22.º, n.º 4, alínea b), da Lei n.º 50/2006, de 29.08 [violação do princípio da proporcionalidade];

 - Sofre de inconstitucionalidade o artigo 75.º da Lei n.º 50/2006, de 29.08 [não aplicação no direito contraordenacional ambiental do princípio da proibição da reformatio in pejus];

- As normas conjugadas dos artigos 41.º, n.º 1 e 66.º do RGCO quando interpretadas no sentido de afastar a aplicação. no domínio do direito das contraordenações, do regime da alteração substancial dos factos padecem de inconstitucionalidade.

2. A decisão recorrida

Ficou a constar da decisão recorrida [transcrição parcial]:

II.1 - FACTOS PROVADOS

a) No dia 26 de Setembro de 2012, pelas 14h30m, os vigilantes da natureza em serviço na AGÊNCIA DE RECURSOS HÍDRICOS DO CENTRO, B... e C..., deslocaram-se às instalações suinícolas sitas no lugar de (...) , freguesia de (...) , concelho da Figueira da Foz,

b) Suinicultura que se acha titulada pela arguida A..., S.A.;

c) Os vigilantes mencionados na alínea a) dos factos provados visavam efetuar uma Ação de fiscalização ordenada por determinação superior ao sistema depurador de efluentes da pecuária por forma a aferir se a exploração havia dado cumprimento às correções que lhe haviam sido ordenadas no âmbito do ofício n.º 323/2012, de 18 de Janeiro de 2012, com vista à revalidação do Alvará de Licença n.º 1108/2010 para descarga de efluentes e que havia caducado em 31 de Dezembro de 2011,

d) Os vigilantes B... e C..., por ocasião da chegada ao local e na decorrência de pedido acesso às correspondentes instalações, foram informados pelos funcionários da arguida ali presentes que não poderiam entrar nas instalações sem autorização de pessoa responsável da A...,

e) Tendo tais trabalhadores, nessa sequência, facultado aos vigilantes B... e C... o contacto do responsável pela exploração;

f) Concretizado contacto telefónico para o legal representante da arguida A..., E... com vista a informar a sua qualidade e da realização da ação inspetiva, os vigilantes B... e C... foram informados que não poderiam ingressar na exploração;

g) Os funcionários mencionados na alínea d) dos factos provados eram de nacionalidade romena, não ostentando conhecimentos técnicos quanto ao funcionamento da exploração,

h) Tendo recebido dos legais representantes da arguida A..., ademais, instruções para não deixar entrar terceiros nas instalações sem aqueles ou a pessoa responsável se encontrarem presentes;

i) E..., na qualidade de legal representante da arguida A..., agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que se acha legalmente obrigada a facultar o acesso nas suas instalações às entidades com competência de inspeção e sindicância da atividade por si exercida,

j) E, não obstante tal conhecimento, obstou ao ingresso dos vigilantes B... e C... nas instalações suinícolas sitas no lugar de (...) , freguesia de (...) , concelho da Figueira da Foz;

k) A arguida A... tem averbadas, junto dos serviços da AGÊNCIA PORTUGUESA DO AMBIENTE, as seguintes condenações em sede contraordenacional:

i) No âmbito do processo n.º CO/000583/03, por decisão proferida em 03/12/2003, pela prática, no dia 08/05/2003, de uma contraordenação prevista e punível pelos artigos 19º, 35º e 86º, n.ºs 1, alínea p) e 2, alínea a), do Decreto-Lei n.º 46/94, de 22-02, na coima de €4.000,00, já liquidada.

ii) No âmbito do processo n.º CO/000454/06, por decisão proferida em 05/01/2008, pela prática, no dia 04/10/2005, de uma contraordenação prevista e punível pelos artigos 19º, 35º e 86º, n.ºs 1, alínea p) e 2, alínea a), do Decreto-Lei n.º 46/94, de 22-02, na coima de €4.000,00, já liquidada.

iii) No âmbito do processo n.º CO/000894/07, por decisão proferida em 06/09/2007, pela prática, no dia 21/11/2006, de uma contraordenação prevista e punível pelos artigos 36º, 40º e 86º, n.ºs 1, alínea v) e 2, alínea c), do Decreto-Lei n.º 46/94, de 22-02, na coima de €3.750,00, já liquidada.

l) A arguida A... apresentou um prejuízo fiscal de € 2.800.000,00 em 2011;

m) A arguida A... apresentou um lucro tributável de € 391.219,68 em 2012.

II.2 – FACTOS NÃO PROVADOS

Não resultou provado, com relevo para a decisão da causa e por reporte ao recurso apresentado pela arguida A..., que:

1. E..., no âmbito da conversação referenciada na alínea f) dos factos provados, propôs aos vigilantes da natureza que aguardassem a chegada de alguém responsável ou que agendassem nova inspeção ao local,

2, Tendo B... e C... abandonado a exploração sem nada dizer.

II - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.3 - MOTIVAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

A convicção do Tribunal na decisão respeitante à matéria de facto foi formada por reporte à prova produzida em sede administrativa e em audiência de discussão e julgamento. Isto sendo que, quanto à primeira, importa salientar a lição preconizada por PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE ao estabelecer que

 No processo contraordenacional não vigora o princípio da imediação, na sua versão rígida, pelo que a prova produzida na fase administrativa não tem de ser reproduzida na fase judicial diante do Tribunal. Ou nas palavras cristalinas do artigo 416.º, n.º 4 do CVM: “se houver lugar a audiência de julgamento, o Tribunal decide com base na prova realizada na audiência, bem como na prova produzida na fase administrativa do processo de contraordenação (…).

Dito de outro modo, a prova produzida na fase administrativa mantém a sua validade na fase judicial (também, LEONES DANTAS, 1994:73, COSTA PINTO, 2000 a: 31 e 32, SOARES RIBEIRO, 2001:135, HELENA BOLINA, 2000:446 e 2009:751, JOSÉ MOUTINHO, 2008:102, OLIVEIRA MENDES e SANTOS CABRAL, 2009:124 e 250, anotação 2.ª ao artigo 42.º e anotação 2.ª ao artigo 72.º, mas contra FERREIRA ANTUNES, 2005:416 e 468, anotação 19.ª ao artigo 63.º e anotação 5.ª ao artigo 72.º, concluindo que o legislador quis “predominantemente” um regime de reapreciação da prova produzida em que assentou a decisão recorrida, constituindo a prova enumerada na decisão recorrida a prova que o MP apresenta na audiência de julgamento, bem como LUÍS CATARINO, 2010:724 e 725, com base numa pretensa violação do princípio da presunção da inocência e do princípio da igualdade de armas).

Do exposto decorrem duas consequências práticas muito relevantes. Por um lado, o depoimento da testemunha ausente na audiência pode ser lido sem as restrições do artigo 356.º do Código de Processo Penal. Por outro lado, a testemunha presente na audiência de julgamento pode ser confrontada com o seu depoimento prestado diante da autoridade administrativa e o Tribunal pode valorar a versão que entender mais próxima da verdade[1].

Importa, por outra via, expressar a relativa estupefação que o signatário divisou na estruturação da prova impulsionada pela arguida A.... Efetivamente, num processo em que o cerne da controvérsia – e da atuação ilícita – se centra no teor da conversação telefónica ocorrida entre B... e E... – pugnando-se, para tal efeito, no recurso que este teria materializado dizeres (ao apenas ter peticionado aos inspetores que aguardassem a chegada de alguém responsável) não atendidos pela autoridade administrativa – é, no mínimo, de estranhar que a arguida A... não tenha, por sua própria iniciativa, impulsionado a audição de tal legal representante[2]. É que a audição de tais intervenientes se mostrava de relevância fulcral para a perceção do ocorrido atenta a circunstância de os mesmos figurarem como a única fonte probatória direta do correspondente conteúdo. Com o que a importância que se divisou à tomada de declarações ao legal representante da arguida A... foi ao ponto de o próprio Tribunal ter impulsionado oficiosamente tal diligência probatória a fls. 160.

Note-se, ademais, que a prova produzida nos autos até então se havia bastado com os depoimentos de G..., D..., B... e C.... 

Figuraram estes últimos, para tal efeito, como inspetores que materializaram a concreta ação de fiscalização em sindicância nos autos, tendo apresentado, nesta senda, um depoimento genuíno, isento, sereno e credível sem que se divise um qualquer motivo que possa indiciar uma falta de correspondência à realidade. Estabeleceu, assim, B... que 

Na sequência de reclamações e de um pedido de renovação de licença de recursos hídricos para operar uma ação de fiscalização.

Cheguei às instalações e entrei em contacto com os funcionários lá presente e que eram romenos, sendo que estes me puseram em contacto telefónico com um responsável. Este disse então que não autorizava o ingresso às instalações pois que já havia sido fiscalizado e multado na decorrência da inspeção da SEPNA. Eu expliquei-lhe que a nossa fiscalização era distinta e que ele estava obrigado a assegurar o acesso sob pena de o seu comportamento dar auto de notícia. Ele, no entanto, permaneceu indiferente.

No âmbito da nossa fiscalização, nós vamos meramente ver a parte suja. Ou seja, a ETAR, etc.

Não nos dedicamos, assim, à parte limpa da suinicultura pois que não é da nossa competência. Como tal, não precisamos de proteção sanitária para inspecionar a sobredita parte suja pois que aqui não há risco de contágio dos animais. Eu, na minha atividade, só usei proteção sanitária quando fui ver instalações na zona limpa. [Respondeu, ademais, a instâncias do Tribunal que] No entanto, a ser-me pedido numa inspeção que vestisse os trajes de proteção, não teria problemas em concretizá-lo.

[Quando questionado pelo Ilustre Mandatário da arguida A... das razões pelas quais não tentou uma nova fiscalização numa outra data] Pois que nos foi simplesmente referido que não poderíamos entrar por já terem sido multados. Nada mais foi referido! Como tal, não teria sentido voltar lá noutro dia. Acresce que a existir perceção prévia da arguida quanto à ocorrência de inspeção, mostrar-se-á possível, com algum tempo, colmatar algumas irregularidades.

Se me tivesse sido pedido parar aguardar um pouco ou voltar passados 3 horas – o que não permitiria regularizar qualquer falha existente –, eu acederia. Mas não foi isso que foi transmitido.

C... materializou, por seu turno, depoimento equivalente, tendo, no entanto, ressalvado que não ouviu o telefonema ocorrido entre o seu colega e o legal representante da arguida A.... Estabeleceu, assim, que os funcionários romenos das instalações não os deixaram entrar e puseram B... em contacto com E..., sendo que o seu colega, após finalizar a conversação telefónica, lhe narrou que aquele estatuíra que se achavam impedidos para ingressar na suinicultura. E também C... estabeleceu, noutra vertente, que não teria qualquer resistência em aguardar – como, aliás, já ocorreu noutras situações – caso lhe tivesse sido peticionado.

Facilmente se alcança, pois, que a achar-se verdadeiro o exposto por tais intervenientes processuais, quedarão, no imediato, prejudicadas as explicações apresentadas pela arguida A... no seu recurso. É que os sobreditos depoentes – e, mormente, B... – deixaram claro que a recusa de ingresso na suinicultura se apresentou como resolução tomada por E... em função de um puro desejo de não ser objeto de uma qualquer fiscalização, não tendo quedado contextualizada por qualquer preocupação sanitária ou condicionada por um simples atraso de chegada de um responsável pelas instalações. 

E é evidente, em face da factualidade provada, que o Tribunal aceitou tais narrações como autênticas, tendo as mesmas influenciado definitivamente a convicção do signatário. Mas tal não sucedeu apenas pela credibilidade que se divisou aos sobreditos depoentes, achando-se, por igual forma, determinante a falta de razoabilidade do contexto apresentado pela arguida A... no âmbito da defesa apresentada e o falseamento da realidade que se constatou em parte das testemunhas por si apresentadas.

Recordemo-nos, assim, que a arguida A... defende que não ocorreu uma injustificada recusa de ingresso à suinicultura, mas antes um simples condicionamento temporal do acesso às instalações. Efetivamente, a arguida A... estabelece que se solicitou aos inspetores que aguardassem pela chegada de um responsável atenta a sua legítima vontade de acompanhar o ato de fiscalização e a necessidade de observância de regras higieno-sanitárias. E foi em tal sentido que se direcionou a prova por si produzida.

E importa, desde logo, apontar que o testemunho de G... – enquanto médico veterinário da arguida – se apresentou algo inócuo do ponto de vista da postura que E... ostentou quando confrontado com a existência da ação de fiscalização. É que o mesmo referenciou que, não obstante ser um das pessoas capacitadas para acompanhar atos inspetivos à arguida A..., não se achava, neste dia, presente em (...) , não contactou, identicamente, com os agentes fiscalizadores e não lhe foi solicitado que se deslocasse à suinicultura. 

Teve G..., no entanto, o cuidado de salientar que o procedimento estabelecido pela A... para a ocorrência de uma inspeção passa por fazer acompanhar os agentes por um responsável da instalação – que poderá ser ele próprio, o dono ou o diretor de produção –, exigindo-se, ademais, precauções em matéria sanitária – a traduzir-se no uso de sapatos e roupa específica e de mobilização de agentes de desinfeção – com vista a evitar a propagação de agentes infeciosos. O que sucede mesmo quando o acesso se restringe à zona da lagoagem pois que o ingresso na mesma obriga à passagem perto dos pavilhões. Estabeleceu G..., por último, que as instalações se achavam dotadas de equipamento sanitário suplementar por forma a que terceiros – qualidade na qual inscreveu os inspetores – pudessem ingressar no seu interior fazendo dele uso. 

Temos, assim, que tal testemunho permite, no imediato, superar o primeiro óbice suscitado pela arguida A... quando aponta que o procedimento interno instituído – e cuja observância seria, legitimamente, de impor aos inspetores – exige que as pessoas que ingressem no espaço “só o façam após terem passado pelo devido processo de desinfeção e de terem vestido roupa adequada para o efeito”. É que ao dispor de equipamento sanitário em supernumerário que poderia ser utilizado por aqueles inspetores – não invocando a arguida A..., ademais, que estes tenham manifestado uma qualquer recusa no uso de tal equipamento, tendo B... e C... apontado, não obstante o reputarem de desnecessário, que se achariam disponíveis para tanto –, não existiriam razões neste plano para sentir reservas quanto ao ingresso nas instalações. 

Na verdade – e sem atentar sequer que, em face do depoimento de B..., não foi esse o motivo apontado para recusar o ingresso –, o certo é que as instalações se achavam dotadas das barreiras sanitárias postas em relevo. Com o que se conclui linearmente que a recusa de acesso não se poderá ter fundado na propalada preocupação sanitária.

Também o suposto desejo de fazer a inspeção ser acompanhada por um responsável não se sustentou em audiência de julgamento. Note-se, assim, que E... enunciou que se achava em Grândola quando um seu empregado de (...) lhe ligou a dizer que “estavam uns senhores da autoridade a querer entrar”. No que pediu para falar com os inspetores para explicar que não se podia deslocar em tempo útil às instalações atenta a distância a que se encontrava mas que iria falar com o seu encarregado para os acompanhar no ato de fiscalização. Isto sendo que a anuência dos mesmos inspetores o motivou a ligar a D... para que este se deslocasse a (...) , tendo tal responsável referenciado que “tinha 20 e tal partos para fazer e que demoraria cerca de 2 horas a lá chegar. Mas que o faria”. Aponta, por firma, que, quando ligou para o empregado que se achava na suinicultura com vista a solicitar que os inspetores aguardassem pois que o encarregado iria lá comparecer, aqueles “já tinham abalado”. Reconhece, por último, que se os inspetores desejassem entrar nas instalações mesmo sem a presença de encarregado, teria que o tolerar pois que se acha legalmente constrangido a suportar tais ações de inspeção.

É certo que tal narração foi sustentada em audiência de discussão e julgamento por D..., o qual evidenciou que

Fui contactado para me deslocar aos (...) pois que estava lá uma fiscalização. Não podia ir porque estava em Mortedo a dar assistência às porcas a parir. Disse assim que só lá para o final da tarde é que lá podia estar, pelo que não deveriam contar comigo antes das 16h30m.

Temos, pois, que, a achar-se verdadeiro o explicitado por D..., quedaria paralelamente indiciada a veracidade da narração materializada por E.... Sucede que D... olvidou que tinha já dado uma versão dos factos em sede administrativa, sendo que o Tribunal se acha capacitado para adquirir e valorar – compreendendo-se, assim, a citação que se concretizou supra de PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE – tal inquirição. E há, para tal efeito, que atentar que aquele havia feito exarar a fls. 52 que

(…)

Que, no dia da fiscalização foi contactado pelo Administrador da arguida, F..., a solicitar a ida à exploração para acompanhar a equipa de fiscalização da ARH do Centro. Que não acompanhou porque o Veterinário que presta serviço à arguida, compareceu na exploração, tendo acompanhado a fiscalização.

(…)

Que após um dos responsáveis ter conhecimento de alguém querer entrar na exploração, é permitida de imediato a sua entrada, neste caso, foi acompanhado pelo Veterinário da arguida. (sublinhado nosso)

São, assim, flagrantes as diferenças dos dizeres formulados por D... nos dois momentos postos em relevo. Note-se, para tal efeito, que o mesmo não concretiza qualquer referência, em sede administrativa, ao labor que se achava a exercer ou à sua anuência para se deslocar, após terminar aquele trabalho, à suinicultura em (...) . Deslocação que teria sido inversamente peticionada por F... e que, aparentemente, nunca terá sido verdadeiramente ponderada pois que G... teria assegurado o acompanhamento da fiscalização (o que significaria que a mesma se tinha, afinal, concretizado). Isto quando é neste mesmo labor e possibilidade ulterior de deslocação de D... que E... pôs o acento tónico do suposto pedido que iria ser materializado aos inspetores para aguardarem algum tempo. 

Tratam-se, pois, de contradições de relevo e que não permitem divisar qualquer credibilidade no testemunho apresentado por D... e, por arrastamento – pois que daquele dependente –, nas declarações apresentadas pelo legal representante da arguida A.... Isto sendo que tais antinomias apenas se acham explicáveis caso se conclua que D... não foi, pura e simplesmente, convocado por E... para comparecer nas instalações. O que é, aliás, claramente compaginável com o teor da conversação telefónica posta em relevo por B....

Estamos, por outro lado e para tal efeito, perante um falseamento da realidade que suprime toda e qualquer autenticidade que se desejasse divisar às razões apresentadas pela arguida A.... Isto tanto mais quando se atente no carácter inequivocamente credível dos depoimentos apresentados por B... e C.... 

Com o que se compreende plenamente a convicção alcançada pelo Tribunal. Não foi, na realidade, uma qualquer preocupação sanitária ou de acompanhamento do ato inspetivo que motivou a recusa de ingresso dos indicados inspetores na suinicultura. É que se alcança do exposto que os identificados veterinário ou encarregado nunca foram contactados para se dirigirem às instalações objeto de fiscalização. Com o que não se pode sequer falar de procedimentos internos ou administrativamente estabelecidos no sentido de aconselhar – mas não exigir – a presença de um responsável na suinicultura por ocasião da inspeção.

Repete-se, para tal efeito, que tal rejeição fundou-se, pois, no puro desejo de E... de não ser objeto de uma fiscalização pelas entidades competentes. O que, assim sendo, sempre ocorreria ainda que se achasse viável a deslocação imediata de um responsável à suinicultura ou a observância de toda e qualquer preocupação sanitária.

Relativamente à situação socioeconómica da arguida A..., tomaram-se em atenção as declarações de IRC juntas aos autos.

No que se refere aos antecedentes contraordenacionais da arguida A..., atentou-se ao constante de fls. 126 a 159.

Já no que se reporta à tipicidade subjetiva, pensamos que as razões que motivam a constatação da existência de dolo já foram sucessivamente vertidas no âmbito da presente decisão. É, na realidade, a simples mobilização das regras da experiência e do senso comum em face da factualidade objetiva que forçam a constatação da intencionalidade supra posta em relevo. Mas releva também, nesta vertente, a assunção materializada por E... quando estabeleceu que tinha perceção da obrigatoriedade de se sujeitar à realização da atuação inspetiva.

3. Apreciação

Tendo presente as questões colocadas pela recorrente, pelas consequências que daí podem advir, não podemos deixar, desde já, de dirigir a nossa atenção à invocada nulidade da sentença [artigo 379.º, n.º 1, alínea b), do CPP] decorrente de, imputando-lhe a autoridade administrativa a contraordenação a título de negligência, ter sofrido - não sem que antes o julgador haja procedido à alteração dos factos descritos na decisão administrativa, no caso aditando-os - condenação pela respetiva prática dolosa, o que teria ocorrido à margem do quadro previsto no 359.º do CPP, na coima de € 200.000,00.

Vejamos, então, o que resulta dos autos.

1. Como ressalta do relatório supra foi a arguida, ora recorrente, condenada por decisão administrativa pela prática, a título de negligência, da contraordenação ambiental muito grave, prevista pelo artigo 81.º, n.º 3, alínea o) e n.º 4, do D. Lei n.º 226-A/2007, de 31 de Maio e punida pelo artigo 22.º, n.º 4, alínea b) da Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto, na coima de 38.500 € [trinta e oito mil e quinhentos euros], vindo, na sequência da impugnação judicial por si apresentada, a ser condenada pelo cometimento, desta feita doloso, da dita contraordenação na coima de 2.000.000 €.

2. No decurso da audiência de discussão e julgamento ficou exarado em ata despacho do seguinte teor:

«Da instrução e discussão da causa considera-se mostrar necessário a alteração não substancial dos factos constantes da acusação por forma a melhor materializar a conduta que se acha a ser assacada à arguida.

Tendemos nesse sentido a estabelecer que não se vislumbram os fundamentos que levam a entidade administrativa a imputar a conduta dos autos à arguida como tendo sido praticada de forma negligente.

Note-se que a conduta enunciada se centra na imputação da arguida recusar a entrada dos inspetores da natureza no seu estabelecimento por suposta violação dos deveres de cuidado que sobre si impendiam. Não se compreende, no entanto, como tais extremos são conciliáveis. Efetivamente, se alguém recusa o acesso de outrem num dado espaço é porque o que quer concretizar! É porque disso tem intenção …Com o que não nos parece minimamente razoável tal imputação negligente.

Acresce que a testemunha B... referenciou identicamente que tal propósito de recusa dos inspetores nas instalações foi claramente manifestado por E... enquanto legal representante da arguida.

Temos pois que deverá ocorrer uma alteração da factualidade constante da acusação por forma a, no plano da tipicidade subjetiva, seja enunciado que:

1. – E..., na qualidade de legal representante da arguida Sociedade A..., Lda., agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que se achava obrigada a facultar o acesso aos inspetores nas suas instalações às entidades com competência de inspeção e sindicância da atividade por si exercida;

2. – E não obstante tal conhecimento, obstou o ingresso dos vigilantes B... e C...nas instalações suinícolas, sitas no (...) , freguesia de (...) , concelho da Figueira da Foz.

Atente-se que tal alteração importará, de forma equivalente, uma alteração da qualificação jurídica por forma a assacar a prática da infração posta em relevo em termos dolosos com a consequente mobilização da moldura contraordenacional de € 200.000 a € 2.500.000. Moldura que poderá ser ademais mobilizada nos presentes autos atenta a supressão do princípio da proibição da reformatio in pejus prevista no art. 75º da Lei-quadro das Contraordenações Ambientais.

Note-se que se afigura algo claro que a alteração da tipicidade subjectiva não incorpora uma alteração substancial dos factos pois que não há imputação de um crime diverso em matéria de perspetiva do cidadão comum em homenagem à doutrina do facto unitário.

Nestes termos, concretiza-se a sobredita alteração não substancial e da qualificação jurídica com a subsequente mobilização subsidiária do art. 358º do Código de Processo Penal.

Vão os sujeitos processuais notificados para os devidos efeitos de tal preceito e a arguida para, querendo, se pronunciar se deseja prazo para defesa ou mesmo, se à luz de igual preceito de sancionamento, deseja mobilizar a faculdade prevista no art. 71º do Regime Geral das Contraordenações ainda que condicionada aos termos previstos» - [negrito nosso].

3. À alteração assim comunicada reagiu a arguida, concluindo:

«1 – Estamos perante uma alteração substancial dos factos a que a arguida se opõe.

2 – A norma constante do artigo 75 da LQCA é Inconstitucional por violação do direito de acesso aos Tribunais e à tutela jurisdicional efetiva consagrada nos artigos 20 nº 1 e 268 nº 4 da CRP

3 – Divergindo do douto entendimento do Tribunal, em tese, e sem conceder, não está afastada a possibilidade de a infração em causa poder ser praticada a título de negligência, tudo dependendo da factualidade que levou à formação dessa convicção ou vontade …

4 – Aliás dizer que ouve obstrução ou recusa, são conceitos indeterminados e conclusivos. Sempre seria necessário sindicar os meios concretos usados para tornar efetiva essa obstrução, sem o que não passaria, mesmo que existisse, de uma mera intenção sem qualquer objetividade muito menos típica e consequentemente sem relevância Jurídico-penal, devendo a arguida ser absolvida dos ilícitos de que vem acusada».

4. A ponderação das questões suscitadas foram relegadas para a sentença.

5. A propósito, na parte que ora releva, no âmbito da decisão ora em crise ficou consignado:

«2. a) Procedeu-se a julgamento, com observância do formalismo legal. E operou-se, nesta sede, uma alteração não substancial e da qualificação jurídica dos factos constantes da decisão administrativa – arvorada em acusação – nos termos melhor apostos na ata de audiência de discussão e julgamento de 13 de Novembro de 2014. Recordemo-nos, assim, que o Tribunal concluiu que a tipicidade subjetiva subjacente à prática da contraordenação carecia de ser indexada a uma atuação dolosa, concretizando, nessa decorrência, a alteração factual necessária a operar tal imputação. Isto sendo que, em face de tal mutação circunstancial, se operou uma equivalente convolação por forma assacar o cometimento da contraordenação em função da sobredita intencionalidade.

Tendo o Tribunal facultado à arguida A... o prazo por si peticionado para o exercício do direito de defesa, veio aquela, na iminência da audiência de julgamento prevista para o dia 17 de Dezembro de 2014, apresentar o requerimento de fls. 187. O que, por seu turno, motivou o Ministério Público a peticionar prazo tendente à apreciação dos argumentos apresentados pela arguida A... por forma a puder tomar posição sobre os mesmos.

Este foi o concreto formalismo observado nos autos… No entanto, até porque a arguida A... o deixa antever no requerimento de fls. 187, importa salientar que a intenção complementar dos sujeitos processuais foi também a de facultar prazo para que se pudesse ponderar da possibilidade – com paralela não oposição pelo Ministério Público – de desistência do recurso.

Na verdade, o signatário tem a presente decisão finalizada já desde a audiência cuja ata se encontra a fls. 183. E logo nesta sede deixou antever a possibilidade de a arguida A... “mobilizar a faculdade prevista no artigo 71.º do Regime Geral das Contraordenações ainda que condicionada aos termos aí previstos”. Afigurou-se, pois, ao Tribunal que a materialização de tal faculdade se poderia afirmar como uma solução viável caso a arguida A... não se desejasse ver confrontada com a eventualidade de ser sancionada com uma coima mínima de € 200.000,00 na hipótese de constatação da prática da infração dos autos. Isto pois que, reconhece-se, o próprio signatário se sentaria algo desconfortável na imposição de uma condenação de tal índole sem dar à arguida A... uma qualquer possibilidade de conformar a sorte da impugnação judicial e, mormente, impulsionar a sua supressão. 

O que se afirma não obstante se sublinhar, paralelamente, que a própria arguida, ao impulsionar o recurso, tinha a obrigação de ponderar todas as vicissitudes ou variações que o processo poderia sofrer – isto tanto mais que a decisão administrativa de fls. 57 contém a referência exigida pelo artigo 75.º da Lei-quadro das Contraordenações Ambientais no sentido de inexistência de proibição da reformatio in pejus no âmbito de uma ulterior impugnação judicial – e, assim, de compreender no imediato que a alteração materializada se achava hipótese viável e mesmo – pois que só uma atuação dolosa é compatível com o tipo de contraordenação assacada – provável.

É certo que, em conversação informal, o Ministério Público deixou então antever que tenderia a manifestar oposição à retirada do recurso. Postura cuja bondade sentimos alguma dificuldade em percecionar em virtude de aderirmos à reflexão materializada por PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE quando preconiza que “em regra, o Ministério Público deve dar o seu acordo à retirada do recurso e só excecionalmente o deve negar, quando se verifiquem razões de especial interesse público nesse sentido[3]. Isto sendo que não logramos divisar tal especial interesse público no caso sub judice em virtude de considerarmos – como se desenvolverá infra – que a imposição de uma coima mínima de € 200.000,00 para uma infração da tipologia da que se acha em sindicância – mesmo que cometida a título doloso – se apresenta algo excessiva. 

Sucede que o Ministério Público veio, mais uma vez informalmente, a assumir na audiência de 17 de Dezembro de 2014 que aceitaria reverter tal posição, tendo o pedido de prazo de resposta ao requerimento de fls. 187 – ainda que legítimo – servido também para que o Ilustre Mandatário da arguida A... pudesse ponderar aturadamente com a sua cliente se seria de retirar a impugnação judicial ou se a bondade que divisavam no recurso se achava suficientemente intensa para fazer face à possibilidade de condenação por uma contraordenação dolosa. E é, nesta sequência, que surge o requerimento da arguida A... de 19 de Dezembro de 2014 a pugnar pelo prosseguimento dos autos.

Pareceu-nos importante a definição deste encadeamento por forma a consignar as razões que motivaram a lentidão que é percepcionável na leitura da decisão. Mas tal retrato é também fulcral para que se possa compreender que a arguida A... teve um real e efetivo poder de conformar a presente impugnação judicial após se achar confrontada com a mutação factual e da qualificação jurídica concretizada pelo Tribunal. É que se é certo que tal poder de disposição sobre os autos se esgotava na possível retirada do recurso – com a consequente manutenção da decisão administrativa e da coima aí cristalizada –, mostra-se, não obstante, inquestionável que a mesma não exerceu tal possibilidade ainda que com a perceção de todo o quadro factual e jurídico potencialmente divisado pelo julgador e, por conseguinte, da imposição de um sancionamento consideravelmente superior.

2. b) Em tal sopesação não foram, certamente, irrelevantes os argumentos mobilizados pela arguida A... no seu requerimento de fls. 187 e, assim, a consideração que a alteração factual materializada pelo Tribunal se apresenta substancial por importar agravação dos limites sancionatórios ao ponto de não poder ser considerada em sede decisória em virtude da oposição por si manifestada.

É certo que, a concluir-se que a alteração concretizada pelo Tribunal se apresenta como substancial, a sentença que operar uma condenação por tal circunstancialismo se apresentará como nula nos termos e para os efeitos da alínea b) do n.º 1 do artigo 379.º do Código de Processo Penal. Nulidade que poderá ser, naturalmente, invocada num eventual recurso para o Venerando Tribunal da Relação a mobilizar pela arguida A.... Isto não obstante o Tribunal dispor ainda presentemente da possibilidade – pois que só agora se acha a proferir a sentença onde se projetaria o putativo carácter erróneo da alteração factual materializada – de, a divisar bondade às razões avançadas no requerimento de fls. 187, reverter a posição tomada na audiência cuja ata se encontra a fls. 183. Com o que se mostra também viável e legítimo materializar uma apreciação mais profunda de tal temática e desenvolver os argumentos que se entretecem em tal matéria.

E importa, desde logo, assinalar que mantemos a posição consignada a fls. 183… É certo que nos detivemos, naquela sede, tão-somente ao argumento de não nos acharmos perante uma contraordenação distinta, não se tendo abordado – atenta a circunstância de aderirmos ao pensamento de PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE que infra se desenvolverá – a questão da agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis. Mas se é evidente que tal agravação ocorre, a realidade é que tal não contende com a constatação de a alteração materializada se apresentar como não substancial. Isto porque somos da opinião – concordando, aliás, com àquela que é, para nós, a melhor doutrina e jurisprudência – que o recurso de contraordenação não conhece a figura da alteração substancial de factos. 

Efetivamente, como se concluiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 27 de Setembro de 2011, 

(IV) Face à especificidade do processo contraordenacional, não pode no mesmo aplicar-se, ao menos com toda a sua extensão, o disposto nos artigos 379.º, 358.º e 359.º do Código de Processo Penal;

(V) O que importa é que perante a alteração dos factos, ou da qualificação jurídica, seja garantido à arguida o direito de defesa;

(VI) Decorrendo das conclusões da recorrente apresentadas no recurso de impugnação da decisão da autoridade administrativa, que ela mesma invoca factualidade inerente a diferente qualificação jurídica, afirmando ainda que a verificar-se infração seria punida nos termos de determinada qualificação jurídica, qualificando o tribunal os factos nesses termos mostra-se salvaguardado o direito de defesa da recorrente;

(…)

Como já se deixou amplamente explicitado, o direito processual penal é direito subsidiário para o regime geral das contraordenações.

De acordo com o disposto no artigo 379.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, é nula a sentença que condenar por factos diversos dos descritos na acusação, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º.

Decorre do referido artigo 358.º, n.º 1, que se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.

Ressalva-se, todavia, da necessidade de tal procedimento no caso da alteração ter derivado de factos alegados pela defesa (n.º 2, do mesmo artigo).

Não obstante o que se deixa referido, importa também atentar que recebida a impugnação judicial, o Ministério Público torna presentes os autos ao juiz, com indicação dos elementos de prova, valendo esse ato como acusação (artigo 37.º da Lei n.º 107/2009).

E é sabido que o direito contraordenacional ou direito de mera ordenação social se encontra no nosso ordenamento jurídico autonomizado em relação ao direito penal; o Decreto-Lei n.º 433/82, de 27-10, com as diversas alterações sucessivamente introduzidas, bem como quanto às contraordenações laborais e de Segurança Social, a Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro, regulam especificamente tal ramo do direito.

É certo que, como assinalam Oliveira Mendes e Santos Cabral (Notas ao Regime Geral das Contraordenações e Coimas, 3.ª Edição, Almedina, pág. 27), face às alterações operadas no Direito de mera ordenação social pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro, as bases normativas deste regime e as soluções da Parte Geral do Código Penal acentuaram-se, «(…) recorrendo agora o legislador na maior parte dos casos à importação pura e simples das soluções do Direito penal».

Tal aproximação ou “importação” verifica-se, designadamente, na vertente adjetiva, através de um reforço do garantismo.

Todavia, tal não pode significar que se desprezem por completo as regras existentes no Direito de mera ordenação social, maxime tendo presente a simplicidade da tramitação processual, seja na fase administrativa, seja, até, na fase de impugnação judicial.

O que é necessário no processo de contraordenação é, ao fim e ao resto, garantir os direitos de audiência e defesa do arguido.

Como acentuam Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª Edição, Coimbra Editora, 2007, pág. 526), o direito de audiência e defesa deve considerar-se inerente a todos os procedimentos sancionatórios, como regra inerente à ordem jurídica de um Estado de direito.

E, como de modo impressivo assinalam Oliveira Mendes e Santos Cabral (Obra citada, pág. 115), «[o] n.º 10 do artigo 32.º da Constituição da República, acrescentado pela segunda revisão constitucional, garante os direitos de audiência e defesa em processo de contraordenação. Tratasse de uma simples irradiação para esse direito sancionatório de requisitos evidentes do estado de direito democrático.

Questão mais problemática é a de saber se, e em que medida, é que os princípios da constituição processual criminal, enunciados naquele artigo, valem também para outros processos sancionatórios, não só os de carácter para-penal […] mas também os de natureza não criminal, designadamente o ilícito de mera ordenação social e o ilícito disciplinar.

Quanto a estes últimos, mesmo excluindo a sua aplicação direta ou global, há-de porém admitir-se que algumas das garantias de defesa fazem parte do cerne do princípio do estado de direito democrático, pelo que não podem deixar de ter-se por inerentes a todos os processos sancionatórios, qualquer que seja a sua natureza».

Especificamente quanto à condenação por factos diversos dos imputados ao arguido (embora a anotação se reporte à condenação pela autoridade administrativa, é possível transpor, com as devidas adaptações, o ensinamento em causa para a condenação na sentença de impugnação judicial do recurso) escrevem os referidos autores (pág. 194): «Questão de particular importância é a da condenação por factos diversos dos imputados ao arguido no auto de notícia ou participação ou imputados concretamente durante a fase administrativa e na sequência desta. Em última análise o que está em causa são os limites dos poderes de cognição e sancionamento por parte da entidade administrativa.

A solução da questão não passa pela aplicação subsidiária de disposições de processo penal vigentes em fase de julgamento e sentença, nomeadamente artigos 358.º, 359.º e 379.º do Código de Processo penal, mas sim pelo princípio constitucional do direito de defesa em processo contraordenacional – artigo 32.º n.º 10 da Constituição – o que implica que o presente artigo [58.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27-10] deve ser interpretado no sentido de que a aplicação de qualquer sanção a um arguido apenas se pode verificar em relação a factos relativamente aos quais lhe tenha sido concedida a possibilidade de se defender».

Assim, no seguimento do que se deixa explanado, e face à especificidade do processo contraordenacional, não pode aqui aplicar-se, ao menos com toda a sua extensão, o disposto nos artigos 379.º e 358.º do Código de Processo Penal.

Daí que apenas será de revogar a decisão recorrida, com o fundamento em análise, se tiver ocorrido condenação por factos diversos do que a arguida havia sido acusada, sem que à mesma tenha sido dada a oportunidade de sobre eles se pronunciar[4].

Não se trata esta, ademais, de posição única ou original no panorama português. Efetivamente, em tal sentido se pronunciam não só os autores postos em relevo no aresto transcrito mas também JOSÉ CRUZ BUCHO[5] e PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE. Emblemáticas são, aliás, as palavras deste último ao propugnar que

O regime da alteração dos factos na audiência de julgamento no processo contraordenacional rege-se por outros critérios, uma vez que o Tribunal procede a uma renovação da instância com base na remessa dos autos e não a uma mera reforma da decisão administrativa recorrida, devendo por isso ter em conta toda a prova já produzida nos autos e a que vier a ser produzida na audiência de julgamento, bem como todos os factos que dela resultem, mesmo que não tenham sido incluídos na decisão administrativa recorrida ou não tenham sido invocados pela defesa diante da autoridade administrativa (unanimemente, acórdão do TRL, de 15.2.1995, in CJ, XX, 2, 134, acórdão do TRP, de 3.4.2002, in CJ, XXVII, 2, 233, acórdão do TRE, de 23.4.2002, in CJ, XXVII, 2, 286, acórdão do TRG, de 18. 12.2002, in CJ, XXVII, 5, 292, e acórdão do TRC de 10.1.2007, in CJ, XXXII, 1, 37)[6].

É certo que tal autor vem, ulteriormente, renovar a mesma lição no seu Comentário do Regime Geral das Contraordenações[7], tendo, no entanto, o cuidado de precisar a falta de consenso jurisprudencial em tal matéria e de ressalvar que a alteração dos factos dificilmente poderá funcionar em sentido desfavorável ao arguido atenta a proibição da reformatio in pejus e a falta de competência contraordenacional primária do Ministério Público para conhecer de novas contraordenações. 

Note-se, ainda assim, que tal autor não reclama a aplicação subsidiária do artigo 359.º do Código de Processo Penal – pois que mantém que o Tribunal se move no âmbito de uma renovação da instância –, antes considerando que tais razões obstam, pura e simplesmente – mesmo que o arguido nela consinta –, à concretização de uma alteração substancial. E se compreendemos o segundo argumento avançado – pois que é indiscutível que uma nova contraordenação carecerá de ser primeiramente apreciada pelo ente administrativo com competência para tanto –, parece-nos que a primeira razão não condiciona, em si mesmo e por qualquer forma, a materialização de tal alteração substancial. Não é, efetivamente, a proibição da reformatio in pejus – a qual influi tão-somente na dosimetria da coima – que poderá condicionar a amplitude do conhecimento factual do Tribunal, admitindo-se, no entanto, que tal paradigma arvorará qualquer alteração desfavorável ao arguido como inócua atenta a impossibilidade de agravação da coima.

Mas o que vai dito por PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE significa, paralelamente, que tal autor considera que nada inviabilizará – pois que, como se irá desenvolver, não estão em causa os direitos de defesa do arguido – à concretização de uma alteração factual – mesmo que seja substancial, mesmo que funcionando a desfavor do arguido e mesmo que não exista concordância deste – quando tais razões não operem. 

Temos, assim, que nos domínios sancionatórios onde não vigore a sobredita proibição da reformatio in pejus e quando a alteração substancial não traduza a imputação de uma contraordenação inovadora e distinta – nomeadamente através da introdução de factos autonomizáveis – não se divisará qualquer óbice a tal atuação por parte do Tribunal. Na verdade, ainda que os factos introduzidos importem uma agravação dos limites máximos da sanção, temos que, a subsistir a infração originariamente imputada – e previamente apreciada pela autoridade administrativa com competência originária para tal efeito –, poderá o julgador adquirir tal factualidade inovadora no processo contraordenacional. Isto, naturalmente, conquanto advirta o arguido de tal atuação e lhe conceda prazo para defesa.

Sabemos que tal perspetiva não se mostra, ainda assim, consensual. Não nos parece, no entanto e com o devido respeito, que aqueles que pugnam por orientação distinta atentem à autonomia e às especificidades do processo contraordenacional. Na verdade, contrariamente ao que sucede com o direito adjetivo criminal, temos que a decisão administrativa se assume, invariavelmente, como “provisória” – pois que a sua subsistência fica condicionada à existência de impugnação judicial – e que o recurso envolve “a transferência da questão do domínio da administração para o juiz”. Isto ao ponto de se afirmar que as conclusões formuladas pelo arguido no âmbito de tal impugnação “determinam a reabertura da instância, podendo o Tribunal conhecer com toda a amplitude das infrações imputadas ao arguido e que motivaram a sua condenação[8]. Temos, pois, que os poderes cognitivos do Tribunal se apresentam como autónomos e plenos, não podendo uma apreciação jurisdicional esgotante da infração quedar condicionada pelas insuficiências factuais ou instrutórias da decisão administrativa.

Acresce que, contrariamente ao que sucede com o sujeito objeto de um processo penal, a impugnação judicial se apresenta como prorrogativa voluntariamente impulsionada pelo agente contraordenacional e por reporte ao qual o mesmo mantém, invariavelmente – ainda que sujeito à não oposição do Ministério Público após o início da audiência de julgamento –, uma certa margem de disponibilidade. O arguido não é, pois, um sujeito arrastado contra a sua vontade para um processo criminal onde o correspondente objeto temático se acha previamente fixado de forma unilateral pelo Ministério Público.

Ao invés, é o arguido que – apresentando-se como o melhor conhecedor da realidade factual subjacente à putativa prática da contraordenação – se decide a pôr em crise a decisão administrativa por intermédio do competente recurso. O que fará sabendo, mormente, se tal realidade se apresentará mais gravosa do que aquilo que foi adquirido pela autoridade administrativa – e que poderá ser descortinada pelo Tribunal – e conhecendo, ademais – nomeadamente quando seja representado por advogado –, todas as variantes que a mesma poderá assumir em sede jurídica. 

Com o que não poderá o arguido dizer que queda surpreendido se o julgador, tendo logrado apurar toda a verdade material, conformar o objeto factual do processo contraordenacional ainda que em sentido que lhe seja desfavorável. 

Tal como sucedeu no caso sub judice… Na verdade, o carácter doloso da tipologia de contraordenação em sindicância é por demais ostensivo, tendo a arguida A... a obrigação de percecionar, por ocasião da propositura da impugnação, que o Tribunal poderia alcançar tal conclusão de intencionalidade. Note-se que a própria decisão administrativa estabelecia já na alínea e) dos factos provados que “contactado aquele responsável [ou seja, o sócio gerente E...], recusou a entrada dos aludidos trabalhadores nas instalações, impedindo-os de proceder à ação de fiscalização”. 

Não se percebe, pois, como uma decisão frontal e inequívoca de recusa de ingresso pode ser associada a um comportamento negligente, afigurando-se, pois, que a tipicidade subjetiva plasmada na alínea f) dos factos provados apenas poderá decorrer de lapso ou de uma profunda ignorância jurídica do ente decisor. Ou seja, um mínimo ideário de rigor jurídico e de justiça material – pelo menos em face das molduras sancionatórias definidas pelo legislador como justas e adequadas – teriam obrigado à imposição – sem prejuízo da discussão simultânea ou ulterior da pertinência de atenuação, suspensão, etc. – de uma coima mínima de € 200.000,00 logo em sede administrativa. 

Mas o que nunca se poderá afirmar é que há uma qualquer decisão inesperada com minoração das garantias de defesa da arguida A... quando o Tribunal, ancorando-se naquela mesma factualidade objetiva – e sem necessidade sequer de mobilizar a prova produzida em julgamento (muito embora esta reforce tal constatação) –, vem a corrigir no único sentido possível o tipo subjetivo associado à infração e concede àquele prazo substancial para reorganizar a correspondente defesa (e, reafirma-se, ponderar da supressão do recurso).  

Com o que, caso se venha a concluir pela prática da contraordenação, é simultaneamente de inferir que se a arguida A... concretizou uma errónea ponderação dos riscos do processo por ocasião da apresentação da impugnação judicial e manteve tal errada visão mesmo após a advertência materializada pelo Tribunal, sibi imputet. Mas o que nunca poderá dizer é que os seus direitos de defesa foram por qualquer forma postergados na tramitação observada.

São pois estas as razões que nos levam a afirmar que toda e qualquer alteração factual concretizada em processo contraordenacional – ainda para mais num domínio onde inexista a proibição da reformatio in pejus a documentar o desejo do feitor da lei de potenciar a justiça material do caso divisada em sede judicial – apenas carece de observar o formalismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal com subsequente concessão de prazo de defesa». 

Traçado, nas suas linhas gerais, o cenário em que a questão foi colocada e dirimida, que dizer?

a.

O primeiro ponto a requerer atenção, passa por saber se o regime da alteração substancial e não substancial dos factos e/ou da qualificação jurídica, com assento nos artigos 358º e 359º do CPP, colhe aplicação no direito das contraordenações.

Trata-se de matéria que, como evidencia a decisão recorrida, não tem merecido unanimidade, realçando-se, contudo - tendo presente o esboço processual supra desenhado, e malgrado o que consignado ficou na sentença - não resultar haver-se o tribunal a quo confrontado com qualquer dúvida quanto ao acolhimento no direito em causa do regime gizado no Código de Processo Penal relativamente à alteração não substancial de factos e/ou à da respetiva qualificação jurídica [artigo 358.º do CPP], só assim se explicando o teor da comunicação levada a efeito [cf. os precisos termos em que o foi] por intermédio do despacho, acima reproduzido, exarado em ata.

Mais: O que, de facto, ressuma na dita comunicação contrariado não é a aplicação do regime das alterações no âmbito do direito contraordenacional, mas antes a negação de que a alteração produzida nos factos fosse suscetível de consubstanciar uma alteração substancial, aspeto que, como é de convir, se coloca a jusante.

Porém, a ser assim (como parece), sempre se poderia encarar de outro modo o juízo formulado: pois se o julgador perfilhava o entendimento de que a alteração dos factos que acabara de produzir era não substancial, fazia todo o sentido proceder como procedeu, ou seja comunicando-a, para tanto acionando o artigo 358.º do CPP, como revestindo tal natureza, o que, contudo, já não nos é fácil de percecionar através da sustentação (que acaba por surgir na sentença) de se mostrar arredado do direito das contraordenações a aplicação do regime da alteração substancial, circunstância que, aos nossos olhos, não deixaria de traduzir um certo paradoxo, na medida em que a uma alteração de espectro mais mitigado havia de corresponder, como o tribunal, no caso – bem ou mal qualificada, de momento não releva - fez corresponder, uma comunicação nesse sentido, ao passo que em face de alteração de outra ordem de grandeza – como é a substancial – já o legislador teria prescindido/dispensado, nos termos legalmente previstos, da respetiva (diferente) comunicação.

Ilustrativo do que se vem de dizer é seguinte passagem da aludida comunicação:

«Note-se que se afigura algo claro que a alteração da tipicidade subjetiva não incorpora uma alteração substancial dos factos pois que não há imputação de um crime diverso em matéria de perspetiva do cidadão comum em homenagem à doutrina do facto unitário.

Nestes termos, concretiza-se a sobredita alteração não substancial e da qualificação jurídica com a subsequente mobilização subsidiária do art. 358º do Código de Processo Penal» - [negrito nosso].

Seja como for, não se desconhecem, como, aliás, com mestria dá nota a decisão recorrida, vozes autorizadas a contrariar a aplicação do regime das alterações no âmbito do processo contraordenacional, às quais se contrapõem, contudo, várias decisões provindas dos tribunais superiores sufragando diferente orientação.

Neste sentido já se pronunciou o Supremo Tribunal de Justiça no seu acórdão de 28.05.2003 [proc. n.º 02P2776] num caso em que estava em causa uma contraordenação estradal discernindo, então: «Estamos, assim, confrontados com uma alteração substancial dos factos imputados (…), a qual não pode ser tomada em conta pelo tribunal para efeito de condenação no processo em curso – artigo 359º do CPPenal, aplicável ex vi do artigo 150º, n.º 1, do C. Estrada, e 41º, nº 1, do citado RGCO».

Na mesma linha de pensamento respiga-se do acórdão do TRP de 26.03.2008 [proc. n.º 0810356]: «As normas contidas nos arts. 358.º e 359.º do C.P.P. contêm as regras a observar quando se verifiquem alterações (de natureza não substancial na primeira, e de natureza substancial na segunda) dos factos descritos na acusação ou na pronúncia. Estas normas decorrem da estrutura acusatória assumida pelo nosso ordenamento processual penal, que também determina o princípio geral de vinculação temática do Tribunal ao objeto da acusação, constituindo este um dos corolários das garantias de defesa do arguido.

De acordo com o disposto naquele art. 359º (aplicável subsidiariamente – cfr. n.º 1 do art. 41º do RGCC), uma alteração substancial dos factos descritos na acusação não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso» - [negrito nosso].

Também assim decidiu o acórdão do TRE de 11.11.2008 [proc. n.º 2490/08-1], o qual, salientando, embora, a diferente vinculação, no âmbito da impugnação judicial da decisão administrativa, do juiz aos factos, justificando alguma desvinculação ao texto da acusação com a circunstância de não se estar perante um processo criminal, mas de mera ordenação social e de a entidade que aplica a coima ser administrativa, não especialmente vocacionada para as especificidades do direito penal, não deixa de salvaguardar a alteração substancial quando afirma: «Não olvidando as especificidades que pode assumir o processo de contraordenação, já se anotou, a propósito, no Acórdão da Relação de Lisboa, de 15 de Fevereiro de 1995, publicado na Coletânea de Jurisprudência, Ano XX, Tomo II, págs. 134 e ss. que o juiz que julga em 1.ª instância a impugnação judicial de autoridade administrativa que aplicou uma coima não está absolutamente vinculado aos factos que constam do texto dessa decisão. Ponto é que em qualquer das situações o Tribunal não proceda à alteração substancial dos factos constantes da acusação, sob pena de cerceamento das garantias de defesa do arguido».

Este limite - colocado pela barreira da alteração substancial dos factos -, tem sido convocado no domínio de um considerável número de arestos, tal como sucede com os acórdãos desta Relação de 04.10.2006 [proc. n.º 1369/06.9YRCBR], 16.12.2009 [proc. n.º 2813/08.6TALRA.C1], 02.03.2011 [proc. n.º 583/09.0T2OBR.C1], 02.06.2011 [proc. n.º 974/10.3T4AVR.C1], 27.06.2012 [proc. n.º 49/12.0TCBVL.C1], de 03.07.2012 [proc. n.º 1337/11.9TBVNO.C1].

Ideia retomada no acórdão do TRL de 19.02.2013 [proc. n.º 854/11.5TAPDL.L1 – 5], enquanto consigna: «Mas, sendo certo que a decisão da autoridade administrativa não vincula o tribunal, entendemos que, também no processo de contraordenação, não pode ser completamente postergado um princípio como o da vinculação temática e por isso não poderá ser tida em conta uma alteração substancial dos factos descritos naquela decisão (entretanto convertida em acusação) sem que se sigam os trâmites previstos no art. 359.º do Cód. Proc. Penal (…). Se assim não se proceder, e o arguido for condenado, a sentença será nula, nos termos do disposto no art.º 379.º, n.º 1, al. b), aplicável ex vi do art.º 41º, n.º 1, do RGCC, do Cód. Proc. Penal» - [negrito nosso].

Também o já identificado acórdão do TRL de 15.02.1995, considerando que o juiz que decide em 1.ª instância a impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa não está absolutamente vinculado aos factos que constam do texto dessa decisão, circunstância que encontraria justificação no facto «de não se estar perante um processo criminal, mas de mera ordenação social e de a entidade que aplica a coima ser uma autoridade administrativa, não especialmente vocacionada para as especificidades do direito penal», estabelece como limite a tal faculdade a alteração substancial dos factos sob pena – aduz - «de se cercear ao arguido o direito fundamental de defesa».

Da nossa parte, sem embargo do muito respeito que nos merece a posição contrária, não negando, embora, as diferenças entre o princípio da acusação contraordenacional e o princípio da acusação no âmbito criminal, constituindo o direito das contraordenações direito público sancionatório, mostrando-se «consolidado no pensamento constitucional que o direito sancionatório público, enquanto restrição relevante de direitos fundamentais, participa do essencial das garantias consagradas explicitamente para o direito penal, isto é, do núcleo de garantias relativas à segurança, certeza, confiança e previsibilidade dos cidadãos» [cf. acórdão do TC n.º 41/2004, de 14.01], sendo inegável que os princípios do direito sancionatório, princípios, esses, que também estão presentes no direito criminal, não deixam ali de, com nuances, embora, – ditadas pela função e natureza do direito das contraordenações - colher aplicação, comungamos do pensamento no sentido de que, em sede de impugnação judicial, a alteração possível dos factos constantes da decisão da autoridade administrativa, esbarra com o limite intransponível da alteração substancial. Melhor dito, tal limite só poderá ser transposto por intermédio da comunicação a que se reporta o artigo 359º do CPP, aplicável ex vi da remissão operada pelo artigo 41º do RGCO, o qual, a par do seu artigo 32º, constitui a tradução inequívoca da intenção, ab initio estabelecida pelo legislador, de, nos casos omissos, o intérprete e aplicador do direito se socorrer das norma penais e processuais penais com respeito, é certo, pelas especificidades do direito das contraordenações.

Por outro lado, em nada nos apazigua o espírito – bem pelo contrário – as considerações que vêm tecidas sobre – diríamos nós – a desperdiçada oportunidade de retirada do recurso [artigo 71.º do RGCO], o mesmo sucedendo quando parece querer-se encontrar algum conforto na circunstância de no âmbito da LQCA – o que, desde logo ao nível da respetiva (in)compatibilidade com a CRP também sofre contestação por parte da recorrente – não vigorar o princípio da proibição da reformatio in pejus. Com efeito, tratando-se de realidades com distinto significado – e sem cuidar, agora, da constitucionalidade da norma – sempre a consentida (ou não) reformatio não dispensaria – como não dispensou – no caso a alteração provocada ao nível do acervo factual no domínio da conformação do elemento subjetivo da contraordenação, transmudado por intermédio do aditamento de factos novos, de negligente em doloso, de tal modo que o limite mínimo da coima, agora, correspondente à contraordenação passou a ser superior ao respetivo limite máximo na forma negligente.

Encontrando-nos, embora, num campo – direito ambiental – em que as necessidades são prementes, será de convir que também as sanções impostas não favorecem a perspetiva simplista das questões bagatelares, afigurando-se-nos que a ideia de que o peso do ilícito contraordenacional e da respetiva sanção se distanciam pela sua insignificância e irrelevância da ilicitude com dignidade penal, aspetos que justificariam uma atenuação ao nível das garantias, merece ser encarado, neste particular domínio, com cada vez maior reserva.

Por conseguinte, é com alguma tranquilidade que se adere ao parecer, subscrito pelos Professores Maria João Antunes e Nuno Brandão, quando, a certo passo, concluem:

«O regime da alteração substancial dos factos, previsto nos artigos 1.º, alínea f), 359.º e 379.º, n.º 1, alínea b), do CPP, é subsidiariamente aplicável ao processo contraordenacional (artigos 41.º, n.º 1, e 66.º do RGCO).

A interpretação dos artigos 41.º, n.º 1, e 66º do RGCO, segundo a qual não se aplica ao processo contraordenacional o regime da alteração substancial dos factos que tenha como efeito a agravação do limite máximo da sanção aplicável, previsto no artigo 359.º do CPP, é inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 10, da CRP, na parte em que determina que nos processos contraordenacionais é assegurado ao arguido o direito de defesa».

Conclusões, estas, suportadas no texto que as antecede, do qual se extrata:

«Estando assente que, no confronto com a decisão condenatória da Autoridade Portuguesa do Ambiente, a sentença proferida pelo tribunal a quo deu como provados novos factos que daquela não constavam, importa agora averiguar qual a disciplina legal aplicável a esta contingência processual.

O primeiro dado de relevo para a dilucidação deste problema é a circunstância de nos depararmos aqui com um total vazio de regulação especificamente contraordenacional. Nem no Decreto-Lei n.º 226-A/2007, nem na Lei-quadro das contraordenações ambientais, nem no RGCO há qualquer previsão diretamente referida ao efeito de vinculação temática do tribunal. Nessa medida, considerando o disposto no artigo 2º da Lei n.º 50/2006, deve atentar-se no disposto nos artigos 41.º (Direito subsidiário) e 66º (Direito aplicável) do RGCO.

O primeiro, no seu n.º 1, determina que “sempre que o contrário não resulte deste diploma [RGCO], são aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal”; e o segundo que “salvo disposição em contrário, a audiência em 1.ª instância obedece às normas relativas ao processamento das transgressões e contravenções, não havendo lugar à redução da prova a escrito”. Nesta última disposição ocorre portanto uma remissão para o Decreto-Lei n.º 17/91, de 10 de janeiro (…), mais precisamente para o artigo 13.º deste diploma, relativo às formalidades da audiência. Um preceito em que voltamos a encontrar nova norma remissiva: “São subsidiariamente aplicáveis ao julgamento as disposições do Código de Processo Penal relativas ao julgamento em processo comum” (n.º 7).

(…)

Como já referimos, no regime geral contraordenacional não encontramos qualquer regulação especialmente dirigida à problemática da alteração dos factos na fase judicial do processo. Temos, pois que, para o efeito previsto no artigo 41º, n.º 1, do RGCO, inexiste qualquer indicação normativa no sentido de que lhe seja inaplicável o regime processual penal a ela relativo. Mais, todos os dados apontam para uma aplicabilidade de princípio da disciplina legal referente à audiência de julgamento em processo penal, designadamente, a inscrita nos artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal (CPP).

Estando proscrito pelo artigo 41º, n.º 1, do RGCO um procedimento de aplicação direta e linear da lei processual penal ao processo das contraordenações, cumpre ponderar em que termos deve ter lugar a aplicação subsidiária devidamente adaptada determinada por este preceito (…).

Não obstante ser possível traçar uma fronteira entre as fases administrativa e judicial do processo contraordenacional, ambas compõem um todo unitário, representando a segunda uma continuação da primeira (…), tomando a forma de duas etapas incindivelmente imbrincadas de um mesmo processo.

Deve reconhecer-se à fase judicial uma autonomia que passe por atribuir ao juiz uma ampla liberdade no conhecimento do mérito da causa, mediante, se necessário, a recolha de novos meios de prova e a repetição de prova já produzida na fase administrativa e com margem para qualificar juridicamente os factos (…) Mas, de igual modo, dada aquela relação de imbricação com a fase administrativa, não pode a intervenção judicial deixar de considerar-se substancialmente conformada pelo curso processual que a precedeu. Em especial, pela decisão administrativa condenatória que, sendo objeto de impugnação pelo arguido condenado, é condição da entrada do processo na esfera judicial.

Esta circunstância de o juiz intervir apenas se houver uma impugnação judicial da condenação administrativa aproxima materialmente o juiz do processo contraordenacional do juiz penal, mostrando que ambos partilham afinal uma característica identitária de qualquer processo sancionatório erigido sob uma matriz acusatória: o juiz não atua senão no caso de a sua intervenção ser provocada por uma acusação formulada por outro órgão (…). Formalmente, essa promoção cabe ao Ministério Público (artigo 62º do RGCO), mas materialmente resulta da iniciativa do arguido, quando impugna a decisão administrativa (artigo 59.º do RGCO). Com isto se vê que a fase judicial do processo contraordenacional constitui uma dimensão essencial do direito de defesa do arguido neste tipo de processo. E percebe-se ainda como a fase judicial do processo de contraordenação é conformada por aquela dupla intencionalidade que funda o regime processual penal da alteração substancial dos factos: a tutela do acusatório e a garantia do direito de defesa do arguido.

(…)

A aplicação da proibição da alteração substancial dos factos prevista no artigo 359.º do CPP à fase judicial do processo de mera ordenação social mostra-se, assim, desde logo reclamada pelo vezo acusatório que o legislador lhe procurou imprimir. Fundando-se essa proibição numa dimensão material do princípio da acusação, a única solução que substancialmente se coaduna com essa opção pelo acusatório é a da aplicação subsidiária do n.º 1 daquele artigo 359.º, à fase judicial do processo contraordenacional. Para esta solução concorre, do mesmo passo, a proteção que ao direito de defesa do arguido deve ser assegurada no processo contraordenacional, merecedora de consagração constitucional expressa no artigo 32.º. n.º 10,: “Nos processos de contraordenação (…) são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa”.

Ora, à semelhança do que sucede no domínio processual penal, o exercício de uma defesa eficaz só pode ser reconhecido quando se mostre garantido que, sem a sua concordância expressa, não poderá o arguido, no âmbito da fase judicial, ser condenado por factos de que se não encontrava acusado e que importem uma modificação substancial destes. (…)

Nada há, pois, de particular na regulação do processo contraordenacional que sugira que nele não deva acolher-se o princípio da vinculação temática consagrado nos artigos 1.º, alínea f), 359.º e 379.º, n.º 1, alínea b), do CPP. Pelo contrário, o comprometimento com o princípio da acusação e com a proteção do direito de defesa do arguido que se divisa na conformação da fase judicial do processo revela que a aplicação subsidiária desse complexo normativo ao processo das contraordenações é a única solução normativa consentânea com a lógica interna do sistema legal processual contraordenacional e com a observância de ditames constitucionais a que o mesmo se encontra vinculado (artigo 32.º, n.º 10, da CRP)».

b.

Resolvida esta primeira questão é tempo de nos debruçarmos sobre a efetiva natureza da comunicação levada a efeito pelo tribunal a quo, à qual, desde logo, reagiu a recorrente, sendo, contudo, irrelevante que assim não tivesse sido – [cf. o acórdão do TC 463/2004, DR, II Série, de 12.08.2004].

E nesta sede, ao invés do que resulta ter sido o entendimento do julgador [cf. o teor do despacho exarado em ata], nenhuma dúvida nos assola no sentido de que a alteração produzida traduz, à luz do artigo 1.º, alínea f), in fine, do CPP, uma alteração substancial dos factos.

Vejamos.

Conforme resulta da decisão administrativa constante de fls. 59 e ss., à arguida foi imputada, entre outra, a seguinte matéria de facto:

«f. A arguida atuou com negligência, sendo-lhe exigível o cumprimento dos deveres legais que sobre si impendem em matéria de colaboração com as entidades licenciadoras e fiscalizadoras, em especial os que se reportam ao acesso às instalações, competindo-lhe suportar os encargos advenientes, até porque não estava titulada para rejeição de efluentes».

Por outro lado, em sede de enquadramento jurídico, ficou consignado:

«(…), resulta que a arguida agiu com negligência, sendo esta punível nos termos do art.º 81.º n.º 4 do D.L. n.º 226/2007, de 31 de maio, devendo promover a boa colaboração entre os interlocutores da Administração e a sua unidade pecuária, decorrendo dos presentes autos, que tal não foi alcançado (…)».

Diferentemente, o tribunal considerou provado que:

«i) E..., na qualidade de legal representante da arguida A..., agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que se acha legalmente obrigada a facultar o acesso nas suas instalações às entidades com competência de inspeção e sindicância da atividade por si exercida,

j) E, não obstante tal conhecimento, obstou ao ingresso dos vigilantes B... e C... nas instalações suinícolas, sitas no Lugar de (...) , concelho da Figueira da Foz»,

assim condenando a arguida na dita contraordenação, agora, na forma dolosa, o que acarretou a agravação da moldura da coima, designadamente do seu limite máximo.

Na verdade, tratando-se, embora, da mesma contraordenação, foi operada uma alteração da respetiva imputação subjetiva [de negligente em dolosa], que passou pela comunicação de novos factos [não constavam da decisão administrativa], os quais vieram a integrar a sentença, conformando, dessa forma, o elemento subjetivo da contraordenação, dando origem à agravação da moldura da coima, no caso não só do respetivo limite máximo.

Por outro lado, não comungamos da posição perfilhada pelo tribunal a quo enquanto – num primeiro momento e também em sede de sentença quando sustenta a natureza da alteração dos factos vertida na comunicação que a antecedeu - parece afastar da alteração substancial os factos integrantes do elemento subjetivo da contraordenação, isto pela mesma ordem de razões que já defendíamos e que encontrou eco na fundamentação do AFJ n.º 1/2015, de 20.11.2014, não se vendo motivo para afastar no domínio do direito das contraordenações a argumentação no mesmo expendida.

Aqui chegados só resta, pois, decidir no sentido da nulidade da sentença decorrente da condenação por factos diversos dos descritos na acusação, no caso sem que haja sido observado o disposto no artigo 359.º do CPP, posto que de alteração substancial, na forma sobredita, se trata – artigo 379º, n.º 1, alínea b) do citado compêndio normativo.

Em síntese:

1. Colhe aplicação no âmbito do processo contraordenacional o instituto da alteração substancial dos factos prevista no artigo 359.º do CPP, aplicável ex vi do artigo 41.º do RGCO;

2. Foi no caso comunicada a alteração de factos – relativamente aos descritos na decisão administrativa -, procedendo o tribunal a quo ao respetivo aditamento, os quais vieram a integrar a sentença, conformando, dessa forma, o elemento subjetivo da contraordenação, que de negligente se transmudou em doloso, o que originou não uma contraordenação diversa mas a agravação da moldura da coima que passou a situar-se entre um mínimo e um máximo de 200 000 € e 2 500 000 €, respetivamente, contra a moldura correspondente à prática, a título de negligência, da contraordenação, situada entre 38 500 € e 70 000 €, pela qual foi a ora recorrente condenada em sede administrativa;

3. A alteração, assim, produzida consubstancia alteração substancial dos factos – cf. artigo 1.º, alínea f) in fine do CPP, ex vi do artigo 41.º do RGCO, não se compadecendo com a comunicação de uma alteração de natureza não substancial, conforme foi, pelo tribunal a quo, transmitida à arguida;

4. Ao condenar a arguida por factos diversos dos descritos na decisão administrativa, nos termos supra descritos em 2., à margem do artigo 359º do CPP, ou seja sem que haja tido lugar a correspondente comunicação, enferma a sentença recorrida da nulidade prevista na alínea b), do n.º 1, do artigo 379.º do CPP;

5. Invalidade, essa, que consequencia a remessa dos autos ao tribunal de 1.ª instância, onde, procedendo-se à reabertura da audiência de julgamento, deverá ser dado cumprimento ao disposto no artigo 359º do CPP.

Fica, assim, prejudicada a apreciação das demais questões colocadas.

III. Decisão

Termos em que acordam os juízes que compõem este tribunal na procedência do recurso em julgar nula, por violação do artigo 379.º, n.º 1, alínea b) do CPP, a sentença recorrida, o que tem como consequência a remessa dos autos à 1.ª instância, onde, procedendo-se à reabertura da audiência, deverá ser dado cumprimento ao disposto no artigo 359.º do CPP.

Sem tributação.

Coimbra, 6 de Maio de 2015

[Processado e revisto pela relatora]

(Maria José Nogueira - relatora)

(Isabel Valongo - adjunta)

[1] PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, in Notas ao Regime Geral…, página 291

[2] Assim como surpreendeu a circunstância de a arguida A... não ter inscrito no seu rol os funcionários  romenos – ainda que, a ser necessário, fazendo uso de intérprete – que se achavam, então, presentes nas correspondentes instalações

[3] PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, in Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações, Universidade Católica, 2011, página 288

[4] In www.dgsi.pt

[5] JOSÉ CRUZ BUCHO, in Alteração Substancial dos Factos em Processo Penal (disponível em www.fd.

unl.pt/docentes_docs/ma/fcp_MA_17192.pdf), página 6

[6] PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, in Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica, 2.ª Edição, 2008, página 918.  

[7] PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, in Comentário do Regime …, página 274 

[8] PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, in Comentário do Regime …, páginas 295 e 249. A defender semelhante entendimento – ou seja, “que as conclusões não estabelecem um limite do âmbito objectivo dos poderes cognitivos do Tribunal” –, veja-se LEONES DANTAS na referência bibliográfica ali materializada.